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Crônica do viver baiano seiscentista - a cidade e seus pícaros - Letrados

Índice LETRADOS
CONTRA OUTROS SATIRIZADOS DE VÁRIAS PENAS QUE O ATTRIBUHIRÃO AO
POETA, NEGANDO-LHE A CAPACIDADE DE LOUVAR.
A HUM IGNORANTE POETA, QUE POR SUAS LHE MOSTROU HUMAS DECIMAS DE
ANTONIO DA FONCECA SOARES.
DESCREVE A VIDA ESCOLASTICA.
AO MESMO ASSUMPTO.
A HUM FULANO DA SYLVA EXCELENTE CANTOR, OU POETA.
MANDANDO GONÇALLO SOARES DA FRANCA SENDO AINDA ESTUDANTE PEDIR
AO POETA HUM LIVRO INTITULADO REPUBLICA GENTILICA EM OCCASIÃO, QUE
AMBOS ESTAVAM DESFAVORECIDOS DE SUAS DAMAS, O POETA LHO MANDOU
COM ESTA DÉCIMA.
RESPOSTA QUE MANDOU AO POETA GONÇALLO SOARES DA FRANCA DE
REPENTE E PELOS MESMOS CONSOANTES.
A ESTA DÉCIMA RESPONDEO O POETA COM ESTE SONETO.
AO DOUTOR ANTONIO RODRIGUES DA COSTA CAVALHEYRO DO HABITO CHRISTO, CHEGANDO DE PORTUGAL COM HUM VESTIDO VERDE, E CANHÕES DE VELUDO, O QUAL SE FEZ ABORRECIDO DO POETA POR MAO LETRADRO, E JURISTA
INTRUSO.
AO MESMO LETRADO QUE HAVENDO ARTICULADO CONTRA HUMA PARTE EM
TOTAL PERJUIZO DE HUMA HERANÇA, ESTA HUMA NOYTE LHE METTEO NA
CABEÇA HUMA PANELLA DE MERDA, DIZENDO, QUE ERAM CAMARÕES.O POETA
LHE CHAMA AQUI GILVAZ, PORQUE TINHA HUMA CUTILADA NA CARA.
AO MESMO LETRADO MORDENDO, E ABOCCANHANDO AS LETRAS DO POETA; E
ELLE LHE AMEAÇA SEUS ATREVIMENTOS.
A CERTO LETRADO QUE SENDO HOMEM DE NAÇÃO AFFECTAVA JACOBICES
CORRENDO A VIA SACRA COM OS BRAÇOS ABERTOS.
A CERTO LETRADO FULANO COELHO, CASANDO-SE COM HUMA MOÇA, QUE SE
DIZIA SER TAL COMO PUBLICA A MESMA SATYRA.
AO MESMO ASSUMPTO E AOS MESMOS SUGEYTOS SUCCEDENDOLHE O QUE DIZ.
AO MESMO LETRADO METTIDO EM AMIZADES COM O Pe. DAMASO, A QUEM
PRATICAVA OS TEMPOS DA VOCACIA, SATYRISA O POETA A AMBOS.
A MANUEL ROIZ DE FIGUEYREDO, QUE SENDO REQUERENTE SE POZ COM
PRESUNÇÕES DE LETRADO, A QUEM CONCORRIA GRANDE PARTE DOS
PLEYTEANTES.
AO TABELIÃO MANUEL MARQUES TENDO SIDO ESPADEYRO HAVIA POUCO.
A OUTRO REQUERENTE DA MESMA CIÊNCIA E DA MESMA PRESUNÇÃO, MAS
INFAMADO DE CHRISTÃO NOVO E DE MULATO CHAMADO PEDRO DE TAL.
A OUTRO REQUERENTE APELLIDADO O PERALVILHO, QUE COSTUMAVA VENDER
AS CAUSAS, E FURTOU AO POETA UM CAVALLO SELLADO.
6 – LETRADOS
Porque com quatro ditinhos, De conceitos estudados, Não podem ser graduados Em as ciências.
que hajam poetas ocultos na sombra da poesia fugindo da Luz do dia, e que estes se chamem cultos!
no hábito de cacoetes, que tem o meu amo entre asnetes de falar agongorado.
(o cavalo de Pedralvez)
CONTRA OUTROS SATIRIZADOS DE VÁRIAS PENAS QUE O ATTRIBUHIRÃO AO
POETA, NEGANDO-LHE A CAPACIDADE DE LOUVAR.
1 Saiu a sátira má, e empurraram-ma os preversos que nisto de fazer versos eu só tenho jeito cá:
noutras obras de talento eu sou só o asneirão, em sendo sátira, então eu só tenho entendimento.
2 Acabou-se a Sé, e envolto na obra o Sete Carreiras enfermou de caganeiras, e fez muito verso solto:
tu, que o Poeta motejas, sabe, que andou acertado que pôr na obra louvado é costume das Igrejas.
3 Correm-se muitos carneiros na festa das Onze mil, e eu com notável ardil não vou ver os cavaleiros:
não vou ver, e não se espantem, que algum testemunho temo, sou velho, pelo que gemo, não quero, que mo levantem.
4 Querem-me aqui todos mal, mas eu quero mal a todos, eles, e eu por nossos modos nos pagamos tal por qual:
e querendo eu mal a quantos me têm ódio tão veemente o meu ódio é mais valente, pois sou só, e eles são tantos.
5 Algum amigo, que tenho, (se é, que tenho algum amigo)
me aconselha, que, o que digo, o cale com todo o empenho:
este me diz, diz-me estoutro, que me não fie daquele, que farei, se me diz dele, que me não fie aqueloutro.
6 O Prelado com bons modos visitou toda a cidade, é cortesão na verdade, pois nos visitou a todos:
visitou a pura escrita o Povo, e seus comarcãos, e os réus de mui cortesãos hão de pagar a visita.
7 A Cidade me provoca com virtudes tão comuas:
há tantas cruzes nas ruas, quantas eu faço na boca:
os diabos a seu centro foi cada um por seu cabo, nas ruas não há um diabo, há os das portas a dentro.
8 As damas de toda a cor como tão pobre me vêem, as mais lástima me têm, as menos me têm amor:
o que me tem admirado é, fecharam-me o poleiro logo acabado o dinheiro, deviam ter-mo contado.
A HUM IGNORANTE POETA, QUE POR SUAS LHE MOSTROU HUMAS DECIMAS DE
ANTONIO DA FONCECA SOARES.
Protótipo gentil do Deus muchacho, poeta singular o mais machucho, Que no mais levantado do Cartucho Quis trazer o Pegaso por penacho.
Triunfante ao Parnaso entrou gavacho Com décimas do métrico Capucho;
Se são suas merece um bom cachucho, Que por boas conseguem bom despacho.
Mas o Sol, que na Aurora do desfecho Os párpados abrindo vos viu micho, Por ser vosso talento de relexo Logo disse não éreis vós o bicho, Que vos sente nas ancas este sexo, Que vos limpe essas barbas cum rabicho.
DESCREVE A VIDA ESCOLASTICA.
Mancebo sem dinheiro, bom barrete, Medíocre o vestido, bom sapato, Meias velhas, calção de esfola-gato, Cabelo penteado, bom topete.
Presumir de dançar, cantar falsete, Jogo de fidalguia, bom barato, Tirar falsídia ao Moço do seu trato, Furtar a carne à ama, que promete.
A putinha aldeã achada em feira, Eterno murmurar de alheias famas, Soneto infame, sátira elegante.
Cartinhas de trocado para a Freira, Comer boi, ser Quixote com as Damas, Pouco estudo, isto é ser estudante.
AO MESMO ASSUMPTO.
Devem de ter-me aqui por um Orate Nascido lá na gema do Lubeque, Ou por filho de algum triste Alfaqueque Daqueles, que trabucarn lá em Ternate.
Porque um me dá a glosar um desparate, E quer, que se lhe imprima com crasbeque;
Outro vem entonando como um Xeque, E fala pela língua de um mascate.
Anda aqui a poesia a todo o trote, E de mim corre já como um lambique Não sendo eu destilador brichote.
Outro vem, que casou em Moçambique, E vive co'a razão de vinho, e brote, Que o Sogro deu, e o Clérigo Cacique.
A HUM FULANO DA SYLVA EXCELENTE CANTOR, OU POETA.
Tomas a Lira, Orfeu divino, ta, A lira larga de vencido, que Canoros pasmos te prevejo, se Cadências deste Apolo ouviras cá.
Vivas as pedras nessas brenhas lá Mover fizeste, mas que é nada vê:
porque este Apolo em contrapondo o ré, Deixa em teu canto dissonante o fá.
Bem podes, Orfeu, já por nada dar A Lira, que nos astros se te pôs Porque não tinha entre os dous Pólos par.
Pois o Silva Arião da nossa foz Dessas sereias músicas do mar Suspende os cantos, e emudece a voz.
MANDANDO GONÇALLO SOARES DA FRANCA SENDO AINDA ESTUDANTE PEDIR
AO POETA HUM LIVRO INTITULADO REPUBLICA GENTILICA EM OCCASIÃO, QUE
AMBOS ESTAVAM DESFAVORECIDOS DE SUAS DAMAS, O POETA LHO MANDOU
COM ESTA DÉCIMA.
Na República, Senhor, de antigas gentilidades achareis as Divindades compadecidas do amor;
com que podereis melhor desse mal, que padeceis ter dó de mim, pois sabeis, (que por meu mal, já se vê)
restaurar as leis da fé, destruir do Amor as leis.
RESPOSTA QUE MANDOU AO POETA GONÇALLO SOARES DA FRANCA DE
REPENTE E PELOS MESMOS CONSOANTES.
Na república, Senhor, não dessas gentilidades, mas de vossas divindades, triunfará o vosso amor:
com que então vereis melhor no temor, que padeceis, o quanto vencer sabeis, que muitas vezes se vê dos erros da lei da fé, apurar do amor as leis.
A ESTA DÉCIMA RESPONDEO O POETA COM ESTE SONETO.
De repente, e cos mesmos consoantes Não o fazem Poetas negligentes, Um Apolo o fará Mestre das gentes, E vós, Gonçalo, Sol dos Estudantes.
A princípios tão raros, e elegantes As Musas já se prostrarn reverentes, Querendo duplicar-vos muitas frentes, Porque um laurel não são lauréis bastantes Canta pois, doce espírito engenhoso, Nunca a Lira deponhas, nem suspendas, Porque das nove o coro soberano Se põem no Sacro Monte deleitoso Umas, porque Mecenas as acendas, Outras, porque as emendes Mantuano.
AO DOUTOR ANTONIO RODRIGUES DA COSTA CAVALHEYRO DO HABITO
CHRISTO, CHEGANDO DE PORTUGAL COM HUM VESTIDO VERDE, E CANHÕES DE
VELUDO, O QUAL SE FEZ ABORRECIDO DO POETA POR MAO LETRADRO, E
JURISTA INTRUSO.
1 Quem vos viu na terra entrar com libréia de Lacaio verde cor de papagaio, que há de vos esperar?
haveis de papagaiar, e fazer tal garalhada, que fique a gente pasmada com raiva, e sem paciência vendo a Casa da audiência reduzida em milharada.
2 As mangas veludo inteiro, e a roupeta verde pano é libréia em todo o ano da grande casa de Aveiro:
Vós sois tão vil malhadeiro, que não pode a minha idéia presumir, que tão má preia serviu tão alto solar, salvo vós por vos honrar lhe furtastes a Libréia.
3 Bem é verdade constante, que éreis na praça, e na feira um prólogo do Fronteira, pois lhe íeis sempre diante:
que essa Libréia flamante fez ele para uma tropa de Lacaios fraca roupa em uns touros como uns ouros, e por seres contra os touros, vos lançou de si Europa.
4 Daqui a gente malvada vendo-vos na cara um zás, não cuida, que foi gilvaz, mas cuida, que foi cornada:
vós fostes na Lacaiada, quando o Marquês à espanhola quantos touros vê, degola, e bem que andastes na praça, suposto que sois caraça, contudo não sois carola.
5 E como o parto suposto é delito atroz, e grave, tendes na cara esse cabe por lacaio pressuposto:
dá-me grandíssimo gosto ver-vos ir peão peão co'a capa arrastando o chão, pois a crer, que sois me arrisco na cinza de São Francisco São Ivo da procissão.
6 A ver-vos com sobrecéu fôreis em retrato fiel Rainha Santa Isabel sem rosas, mas com chapéu:
ganhais por isso o troféu aos advogados, porquanto a todos excedeis tanto, que ainda dos condenados os demais são advogados, contudo vós sois o Santo.
7 Só vós sabeis, quanto a mim, os prelúdios, que fazeis, Casus est iste, dizeis, reverente: é grão Latim!
dissera um vilão ruim tirado ant'onte das cabras tais latins, nem tais palavras?
vá lavar-se ao mar Euxino o latim do Calepino, e o do Padre Manuel Abrás.
8 Ó lacaio alatinado, ó macarrônico ilustre, ó Jurista balaústre ao machado torneado!
pois sois tão grande Letrado, vede, que dizem doutores, que os Rábulas ladradores por isso cães se chamavam, porque aos ouvidos ladravam dos míseros pleiteadores.
9 Cuidais, caraça de broma, que as Leis dos Imperadores se hão de levar a clamores, como a espada as de Mafoma?
se a língua vos dá, que coma, pode dar-vos, que jejue, e bem que a pança se atue com gritos, pode a Bahia acordar sisuda um dia, e é força descontinue.
10 Com homens, que têm por pulha tomar-vos por seu Lacaio, nem heis de ser papagaio, nem menos heis de ser grulha:
navegai por outra agulha, e atai melhor vossos molhos, porque em chegando aos abrolhos a ressaca muita, ou pouca, se não tapares a boca, há de fechar-vos os olhos.
AO MESMO LETRADO QUE HAVENDO ARTICULADO CONTRA HUMA PARTE EM
TOTAL PERJUIZO DE HUMA HERANÇA, ESTA HUMA NOYTE LHE METTEO NA
CABEÇA HUMA PANELLA DE MERDA, DIZENDO, QUE ERAM CAMARÕES.O
POETA LHE CHAMA AQUI GILVAZ, PORQUE TINHA HUMA CUTILADA NA CARA.
1 Estava o Doutor Gilvaz à margem da livraria, cuidando, no que faria, e estudando, o que não faz:
quando uma parte sagaz lhe entrou com certas questões, e ao pagar-lhe das razões lhe transformou no bofete a panela em capacete, e em câmara os camarões.
2 Uns camarões em panela era o mimo, e o presente, que aquela parte insolente levava ao Doutor cabrela:
ele arremessou-se a ela, mas mostrou-lhe o seu pecado, que do ofício de advogado, em que estriba o seu sustento, era aquele um provimento pela Câmara passado.
3 Porque da Câmara era, diz a Parte, que o levara, que reverente o beijara, e na cabeça o pusera:
que a panela se escorrera, e da cara mascarada saíra tal enxurrada, que o Doutor nesta ocasião não cegou de privação, ficou cego de privada.
4 Deste sucesso infeliz logo, e a todo o correr teve notícia a Mulher por avisos do nariz:
e posto que ver não quis tal cara com tal salmoura, viu na cabeleira cara, que a afeia, e a desdoura, que adequada a tornara mais suja, porém mais loura.
5 Por evitar maior perda, água água pediu logo, senão para tanto fogo, água para tanta merda:
lavou-lhe cabelo, e cerda, lavou-lhe roupa, e vestido, e como o tinha sentido, disse medrosa, a velhaca, vede vós toda esta caca, não me cheira bem, Marido.
6 E porque mais água pede, ela lhe disse, isto basta, porque esta merda é de casta, que se a mais bolem, mais fede:
ide para a rua, e vede a razão, com que vos move, na história fazei-vos novo, mostrai-vos leve na perda, porque esta merda foi merda, de que gostou todo o povo.
7 A Parte andou temerária, e com sobeja ousadia, não faria valentia, mas fez causa necessária:
vós como grande alimária no pleito lhe dareis perda, pois um artigo a deserda, e ela já pode afirmar, que me inventou deserdar pela mesma boca merda.
8 Que era de engenho notório dá grandíssima suspeita, pois deixa câmara feita, o que foi sempre escritório:
mudai logo o consistório como Letrado de Lampa, que já hoje o juízo escampa;
mas diz a gente travessa, que vós fazíeis-lhe a peça, mas ele amou-vos a trampa.
9 Quem pôs tal merda em tal capa, tenho por ponto assentado, que morrerá excomungado, se não recorrer ao Papa:
vós sois Fidalgo de chapa desde o Brasil até Europa, pois quando a merda vos topa, tanto fedeis, que ao nariz do Moço da Câmara ides a Moço de guarda-roupa.
10 Se vos não houve respeito (que é cousa, em que se repara)
nem à cruz da vossa cara, nem à cruz, que está no peito:
o que presumo, e suspeito, é, que nunca está seguro de tanto cabungo impuro cruzeiro em monturo alçado, com que o vosso está cagado por cruz posta em um monturo.
11 A Parte não andou lerda em vir com panela cheia, porque a mim me coube meia panela com meia merda:
não quis a fortuna esquerda, que mos dê tão má maré desigualar-nos, mais que no sentimento, e respeito, pois vós tomaste-la a peito, porém eu dei-lhe c'o pé.
12 Não temais, que a Parte lusa, porque leva a mão ganhada, que se ela fez panelada, nós faremos garatusa:
ela deu assunto à Musa, que já dormia, e roncava, pois quando agora acordava, viu, que pelo triste caso té a fonte do Parnaso com tanta merda inundava.
AO MESMO LETRADO MORDENDO, E ABOCCANHANDO AS LETRAS DO POETA; E
ELLE LHE AMEAÇA SEUS ATREVIMENTOS.
1 Vós não quereis, Cutilada, tomar emenda, e calar, morrendo andais por levar outra na outra queixada:
quereis a cara cruzada, gilvazada a não quereis, pois tudo conseguireis, e se a vossa fé vos salva, no calvário dessa calva três cruzes postas vereis.
2 Na capinha, ou no capuz, tendes a cruz de cristão, na cara a do mau ladrão, e inda vos falta outra cruz:
eu vos juro por Jesus, que por fazer o ternário por modo extraordinário à outra vos hei de pôr, porque do monte Tabor vades ao monte Calvário.
3 Ao Pretório ireis levado, onde a gentinha vulgar crucifige há de clamar, e heis de sair condenado:
um negro Simão chamado será o vosso Cireneu, e na fôrma do chapéu um pau vos há de encaixar, e então vos hão de jogar o adivinha, quem te deu.
4 Ireis entre dous Teatinos vendo o vosso enterramento, tendo o maior desalento na cantiga dos Meninos:
que piedosos, e benignos ora por ele dirão, e vós nesta ocasião revirando os bugalhitos, os Padres serão mosquitos, e o mais povo confusão.
5 Irá o porteiro diante pelo seu papel cantando, e dirá de quando em quando justiça a este Bargante:
manda El-Rei, que num instante se lhe tire fala, e vista, e se lhe faça com vista;
justiça, que manda El-Rei fazer a um homem sem lei, por se meter a legista.
6 Não heis de então requerer, e muito menos gritar, pois por gritos de advogar ide-vos a padecer:
deitar pleitos a perder a puros gritos e zurros botar na terra sussurros, de que sois grande Doutor na forca vos hão de pôr a vós, mais a vossos burros A CERTO LETRADO QUE SENDO HOMEM DE NAÇÃO AFFECTAVA JACOBICES
CORRENDO A VIA SACRA COM OS BRAÇOS ABERTOS.
Deixe, Senhor Beato, a Beati-, Que se é via do Céu a via saNinguém o quer já crer nesta cidáPorque é você da casta Israeli-.
Quando devoto corre a sacra viE a cada pé de cruz estende os braParece um entremez da Lei da graQue a toda a cristandade causa ri-.
Deixe-se disso, e trate do escritóQue esse lhe dá de render o pão da me-, E o céu também, se com bom zelo advó-.
Mas se quer, que por Santo o reconhêE na paixão de Deus faz o graciô-, Embolsará as risadas da comé-.
A CERTO LETRADO FULANO COELHO, CASANDO-SE COM HUMA MOÇA, QUE SE
DIZIA SER TAL COMO PUBLICA A MESMA SATYRA.
1 Este, que de Nise conto, ouçam, que é bem raro caso, pois dizem, calça seu vaso (com ser tão grande) um só ponto:
casou com Fábio, que é tonto, e eu folgo por vida minha, porque é cousa bem sabida que andavam com grão cuidado o Moço por ela assado, e ela por ele cozida.
2 Por dar alívio a seu peito no mar de amor, lhe convinha a Fábio passar a linha, porém não passar o estreito:
mas não haverá conceito, que repare a Fábio amante, pois hoje a vela constante (quando em deleites se arrulha)
o rumo serve de agulha como astuto navegante.
3 Mais direito do que um fuso Fábio com manha seleta no vaso por linha reta lhe encaixou o membro obtuso:
mas de dizer não me escuso, que nisto tinha interesse, pois caso estranho parece, e coisa rara que Fábio sendo Astrólogo tão sábio o Virgo não conhecesse.
4 Andou prudente, e alentado nesta empresa, a que aspirava pois de Nise o vaso estava com linhas fortificado:
avançou-o denodado, donde claramente infiro (não cuide alguém, que isto é conto)
que a Moça lhe pôs o ponto?
para ele fazer o tiro.
5 Em casar com Nise bela nada Fábio se desonra, que nisto de pontos d'honra ninguém sabe mais do que ela:
e assim com gentil cautela que ambos ganharam (suspeito), a vida num mesmo efeito, sem que pareça tolice, com os pontos de honra Nice, Fábio com os de direito.
6 Se Fábio ocioso alguma hora de Nise, por ser sandeu as linhas tristes torceu alegre as destorce agora:
embainhe o membro embora no vaso, pois nisto acerta;
mas é bom, que esteja alerta, não se fira nesta bulha porque bainha de agulha é força, que esteja aberta.
7 Bem é, liberal se ostente em casar-se Nise bela, dando-se aos mais donzela pois dando-se a muitos ela hoje um recebe somente:
ter-me-ão por maldizente, mas não tenho a culpa eu, que sou mui cativo seu:
a verdade aqui só conto, sem lhe acrescentar um ponto dos que ela no vaso deu.
AO MESMO ASSUMPTO E AOS MESMOS SUGEYTOS SUCCEDENDOLHE O QUE
DIZ.
Casou-se nesta terra esta, e aquele, Aquele um gozo filho de cadela, Esta uma donzelíssima donzela, Que muito antes do parto o sabia ele.
Casaram por unir pele com pele, E tanto se uniram, que ele com ela Com seu mau parecer ganha para ela, Com seu bom parecer ganha para ele.
Deram-lhe em dote muitos mil cruzados Excelentes alfaias, bons adornos, De que estão os seus quartos bem ornados:
Por sinal, que na porta, e seus contornos Um dia amanheceram bem contados Três bacios de merda, e dous de cornos.
AO MESMO LETRADO METTIDO EM AMIZADES COM O Pe. DAMASO, A QUEM
PRATICAVA OS TEMPOS DA VOCACIA, SATYRISA O POETA A AMBOS.
Deu agora o Frisão em requerente Fiado ern seu saber, e boas artes.
Será por essa via homem de partes, E irá (se for à queima) por agente.
Má hora, que vá ele por paciente, Sendo agente de tantos Durandartes, Que atacando-lhe o Ventre a puros fartes, Come-os ele, mas não lhe põe o dente.
Neste ofício se val da companhia De um moderno, que em vez de pêlo Louro Penteia as tranças da carneceria.
Doutor com borla de osso? mau agouro:
Adonde pode achar-se? Na Bahia, Que de um manso Coelho faz um touro.
A MANUEL ROIZ DE FIGUEYREDO, QUE SENDO REQUERENTE SE POZ COM
PRESUNÇÕES DE LETRADO, A QUEM CONCORRIA GRANDE PARTE DOS
PLEYTEANTES.
1 Letrado, que cachimbais, quando estudais nos Jasões e assentais as conclusões com as letras garrafais:
grande riso me causais, quando no vosso cetial dais audiência geral, e as Partes aconselhando, todas ides defumando porque tornem ao pombal.
2 Vós graduado a borrões em uma universidade que fundou nesta cidade o braço dos asneirões:
fazeis tais alegações nas lides, causas, e pleitos, que vos dão alguns sujeitos, que afirmarn letrados velhos fedem os vossos conselhos tanto, como vossos feitos.
3 O que me vira o miolo é o gabão, que trazeis, que um Bártolo pareceis, não sendo senão Bartolo:
comeis a queijada, e o bolo desde a Baia ao Cairu;
eu vos peço, meu Mandu, que se usais das vossas artes, comendo das vossas partes, que a primeira seja o cu.
4 Não vos culpo, asno barbado, senão a esta simples gente, que de um tão mau requerente quer formar um bom letrado:
vós pondes todo o cuidado em manter a vida cara, e assim eu vos não culpara, senão ao néscio, que quer comprar-vos o parecer, tendo vós tão torpe cara.
5 Irmão, não vos acelere querer subir de repente, que o cargo de requerente vosso talento o requere:
assim o céu vos prospere, que da vocacia honrada torneis à vida passada, que quem se entrega aos Jasões comer pode os camarões que comeu o Cutilada.
6 Não é o advogar de nós, Santos são, os advogados, dai ao demo os maus letrados, e o primeiro sejais vós:
bem vistes o caso atroz, que depois de Ave-Marias sucedeu, há quatro dias, ardendo os vossos papéis, porque vós, e eles ardeis pelas vossas heresias.
AO TABELIÃO MANUEL MARQUES TENDO SIDO ESPADEYRO HAVIA POUCO.
Há cousa, como ver o Sô Mandu Mui prezado de ser Tabelião Na Ilha descendente de um vilão, E cá feito um Monarca do Pegu.
Aspecto reverendo, feio, e cru Trombeteiro de sua geração, E encaixando o barrete, e seu roupão Representa um fatal Jacó Baru.
Que ignore este enfim seu nascimento, Como o faz no Brasil qualquer Brichote, Vade em paz, porque imita mais de cento:
Mas que sendo inda há pouco espadeirote, Queira ser como Bruto grão talento;
Será: que manhas tem de Dom Quixote.
A OUTRO REQUERENTE DA MESMA CIÊNCIA E DA MESMA PRESUNÇÃO, MAS
INFAMADO DE CHRISTÃO NOVO E DE MULATO CHAMADO PEDRO DE TAL.
1 Ó Galileu Requerente, Macabeu solicitante, quem vos deu tamanho guante, tendo-vos de gozo o dente?
Se me dais cá por agente, sois homens de tantas partes, que me ganhais estandartes:
eu zombo de vossos pleitos, porque são vossos direitos de Pedro de malas artes.
2 Latis, e cuidais, que eu morro de ouvir o vosso latir, e eu zombo de vê-lo ouvir, porque quem late, é cachorro:
vós latis, e eu me desforro dando-vos estas pedradas, que quando um cão nas estradas late ao manso caminheiro, assentando-lhe o cacheiro deixa as partes sossegadas.
3 Guardais-vos Israelita, que se me chega a mostarda, talvez, que a casa vos arda, porque é casa de mesquita:
se à força da jeribita tendes a idéia turbada, com que vos não dais de nada, vede, que a minha Camena como vos corta co'a pena vos pode cortar co'a espada.
4 Dizem, que um Hebreu vos fez entre o Porto, e entre Judá, por isso não falais cá nem hebreu, nem português:
temo, que caiais de vez neste, ou noutro qualquer porto, porque culpado no Horto, e do Egito no desterro, não me podeis pegar, Perro, como eu a vós, Perro morto.
5 Quem vos meteu, canzarrão, co demo, que vos atiça, a ser membro da justiça, se não sois membro cristão?
corre de vós opinião, que bem pouco vos aflige, que o mais a que se dirige o vosso negro saber, é somente o requerer crucifige, crucifige.
6 Dirigi pois os sapatos caminho da terra Santa, onde heis de fincar a planta no Pretório de Pilatos:
Lá tão sacrílegos tratos, como em pretório fiel fareis, Escriba cruel, porque vejais entre os cães, que há na Bahia escrivães, e Escribas em Israel.
A OUTRO REQUERENTE APELLIDADO O PERALVILHO, QUE COSTUMAVA VENDER
AS CAUSAS, E FURTOU AO POETA UM CAVALLO SELLADO.
1 Peralvilho: o Peralvilho pudera de vos tomar lições de peralvilhar, para ser reperalvilho:
vós sereis muito bom filho, como eu entendo em rigor, mas sois mau procurador, porque aqui para entre nós, em procurar para vós sois contra procurador.
2 Procurastes ao traidor, e eu fiquei desenganado, que fostes já procurado para mau procurador;
lá entregou ao Senhor um Judas Escariote, vós, Peralvilho Quixote, entregastes como acinte ao vosso constituinte como a simples sacerdote.
3 Judas vendeu por dinheiro a seu Mestre, a seu Rabi, a vós nem maravedi vos rendeu ser mau vendeiro:
Judas teve o paradeiro da sua dor, e fadiga numa figueira inimiga, e vós de puro coitado para seres enforcado, nem figueira achais, nem figa.
4 As custas me heis de pagar em ser tido por velhaco, e por velhaco, e por caco vos hei de os cacos quebrar:
caco não há de ficar no vosso casebre inteiro e por velhaco embusteiro a vossa casa velhaca terão por caco de caca, e a vós por caco, e caqueiro.
5 Sois um simples, e um coitado, e a mim nada me acobarda, pois furtando-me uma albarda vós ficastes o albardado:
ficai agora ensinado a andar pelo barbicacho, com focinho triste, e baixo, vendo, que como ruim me furtastes um rocim para cair dele abaixo.
6 Por traidor, e por falsário a sentença vos condena, e para dar-vos a pena, foi curto o vocabulário:
esgotou-se o Calendário das nossas execuções, e por encurtar razões temi, que no caso atroz cheirasses ao duro algoz os fundilhos dos calções.


Texto-fonte: Obra Poética, de Gregório de Matos,
3ª edição, Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.


Domínio Público Gov.BR


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