Crônica do viver baiano seiscentista - a cidade e seus pícaros - Antônia
Índice OS SEUS DOCES EMPREGOS
MULATA LIVRE E TRAVESSA POR CUJA ESPERTEZA LHE CHAMAVAM MARIBONDA.
MORAVA NA RUA DA POYEIRA NAQUELLE TEMPO QUASI DESERTA E SE ACHAVA
DE PRESENTE EM CASA DE HUMA AMIGA NO CAMPO DA PALMA, ONDE O POETA
HIA DIVERTIR-SE: E ALI EMBARAÇOU COM ELLA.COMO DIZ A METHAFORA.
NEGOU-SE TOTALMENTE ANTONICA DE MEDO, QUE À TODAS FAZIA A SOLTURA
DO POETA, E ELLE A PERTENDE REDUZIR COM ESTA REGALLADA POEZIA.
TARDAVA ANTONICA COM A RESOLUÇÃO, E O POETA EXORTA SUA
NEUTRALIDADE.
QUEYXA-SE DE QUE LHE NÃO VALESSEM FINEZAS PARA QUE ANTONIA O
ADMITISSE.
CHEGANDO ALI O POETA COM THOMAZ PINTO BRANDÃO CONTA, O QUE PASSOU
COM ANTONICA HUMA DESHONESTA MERETRIZ.
OS SEUS DOCES EMPREGOS
8 – ANTÔNIA
Mulata livre e travessa Manuel Pereira Rabelo, licenciado Dai-me licença, Antonica para eu ir à vossa casa para beijar-vos as mãos e para: não digo nada.
MULATA LIVRE E TRAVESSA POR CUJA ESPERTEZA LHE CHAMAVAM
MARIBONDA. MORAVA NA RUA DA POYEIRA NAQUELLE TEMPO QUASI DESERTA
E SE ACHAVA DE PRESENTE EM CASA DE HUMA AMIGA NO CAMPO DA PALMA, ONDE O POETA HIA DIVERTIR-SE: E ALI EMBARAÇOU COM ELLA. COMO DIZ A
METHAFORA.
1 Fui hoje ao campo da Palma, onde com súbito estrondo me investiu um maribondo, que me picou dentro n'alma:
era já passada a calma, e eu me sentia encalmado, sentido, e injuriado, porque sendo obrigação meter-lhe eu o meu ferrão, eu fui, o que vim picado.
2 Fiz por fechá-lo na mão, mas o Maribondo azedo me picava em qualquer dedo, e escapava por então:
desesperada função foi esta, pods me foi pondo tão abolhado em redondo por cara, peitos, vazios, que estou em febres, e frios morrendo do Maribondo.
3 Dizem, que a vingança está em lhe saber eu da casa, porque deixando-lhe em brasa, o fogo mitigará:
temo que não arderá por mais que toda uma mata lhe aplique com mão ingrata, porque eu, o que lhe hei de pôr há de ser fogo de amor, que inda que abrasa não mata.
4 Nesta aflição tão penosa donde me virá socorro?
morrerei, que o por que morro, faz uma morte formosa:
esta dor tão temerosa me livrará de maneira, que ou ela queira, ou não queira, em chegando à sua rua, se acaso se mostrar crua, tudo irá numa poeira.
NEGOU-SE TOTALMENTE ANTONICA DE MEDO, QUE À TODAS FAZIA A SOLTURA
DO POETA, E ELLE A PERTENDE REDUZIR COM ESTA REGALLADA POEZIA.
Agora que sobre a cama Antonica me inquieta, muito rnais estando ausente, que se na cama estivera:
Agora que o meu cuidado dentro dalma me desvela, e o verdugo da memória em saudades me atormenta:
Agora que o brando leito, qual duro potro me espera, porque o cordel da lembrança execute as leis da ausência:
Agora que a muda noite no silêncio, que professa, como quem soube os meus gostos, mos representa na idéia:
Entre o passado e presente não distingue a paciência, se é mais ativa a fortuna, nos logros ou se nas perdas:
Quero queixar-me, Antonica, de vós, da vossa beleza, rigores, desatenções, esquivanças, e inclemências.
Quero queixar-me de mim sobre padecer a ofensa, pois que não soube agradar-vos para forrar estas queixas.
Acaso vos vi uma tarde debaixo de uma urupema por meu mal, porque entre nuvens o sol mais ativo queima.
Indo ao campo buscar fresco topei, sendo pela fresca, muito calor, que me abrasa de raios da vossa esfera.
Vi-vos, e rendi-me logo, e em duas ações diversas de ver-vos, e de render-me eu não sei, qual foi primeira.
Permitiu minha ventura (desgraça quero eu, que seja)
que não cegasse com ver-vos, para padecer mais penas.
Que sempre em ódio de um triste faz mudança a natureza, pois cheguei a ver um sol, não tendo de águia as potências.
Movido da mão de Amor, que as liberdades sujeita, Fênix dei a meus cuidados berço em amante fogueira.
Tornei outra vez a ver-vos, e a segunda diligência, claro está, que era nascida dos acasos da primeira.
De novo não me rendi, que era encontrada fineza ter ainda, que render-vos, quem a sua alma vos dera.
Mas por dobrar rendimentos, e igualar correspondências, as almas multipliquei por sentidos, e potências:
Tantas almas era justo, que a tantas prendas rendera, por não ficar sem triunfo a menor das vossas prendas.
Favorecestes-me então, e a memória o representa, por me tirar com pesar, o que com gosto me dera.
Logo vos arrependestes de uma culpa tão pequena, como é pagar com favores amantes correspondências.
Estes são os meus pesares, estas, digo, as minhas queixas, que por serem de um mofino temo que soem a ofensas.
E pois molesta por força estar escutando queixas, de quem finezas enfadam, já Amor nos queixumes cessa.
De vós mesma me dai novas;
dai-mas de vossas durezas, pois quanto mais me acrisolarn, tanto mais o amor as preza.
TARDAVA ANTONICA COM A RESOLUÇÃO, E O POETA EXORTA SUA
NEUTRALIDADE.
Mando buscar a resposta Antonica à vossa casa, e queira Deus não se torne a resposta em respostada.
Com temor a solicito, bem que a desejo com ânsia, que uma cousa é meu amor, e outra a minha pouca graça.
Vós sois esquiva e cruel, tão dura e desapegada, que tirais de ser querida as razões de ser ingrata.
Que vos rende a ingratidão, que assim vos tem inclinada?
acaso vos faz mais linda, mais Senhora, ou mais bizarra?
A ingratidão é delito tal, que se se castigara, não se pagara co'a vida, por isso nunca se paga.
Ser benévola que custa?
que gasto é de uma palavra?
dai-me um sim, que custa pouco, e muitas finezas ganha.
Sede mercador de amor, onde um favor, que se gasta, rende quinhentos por cento em finezas de ouro, e prata.
Fazei comigo negócio:
e se heis medo, à minha barca, quem não se arrisca não perde mas no risco está a ganância.
E mais vós, que sabeis, que comigo ninguém naufraga, porque sou nesta cidade um dos berrantes de fama.
Quem pode matar de linda, de esquiva para quem mata?
morra da vossa beleza, mas não da vossa esquivância.
Deixar as armas de bela, e usar de tirana as armas, é suspender a beleza o ofício, que tem na cara.
Entre o piço, e o feitiço vai muita grande distância, o esquivo pica as vontades, o belo enfeitiça as almas.
Dai-me licença, Antonica, para eu ir à vossa casa, para beijar-vos as mãos, e para: não digo nada.
QUEYXA-SE DE QUE LHE NÃO VALESSEM FINEZAS PARA QUE ANTONIA O
ADMITISSE.
MOTE
Fui por amante ferido, por firme fui maltratado, por constante desprezado, e por leal ofendido.
1 Quando esperava gozar favores de uma tirana, o tempo me desengana, para dela me queixar:
portanto não quero amar porque já tenho entendido, que amar é tempo perdido:
bem o tenho exprimentado, pois em vez de ser amado, Fui por amante ferido.
2 Mostrei-lhe minha firmeza, de mostrá-la resultou, que logo também mostrou de seu amor a dureza:
se bem disto me não pesa, nem me sinto magoado, mas fico bem emendado, para mostrar-lhe com fé minha firmeza, porque Por firme fui maltratado.
3 Além de mostrar-me amante, em constâncias lhe mostrei, mas bem conheço, que errei, em mostrar-me tão constante:
não serei mais ignorante, que o Amor me tem mostrado os males, que me há causado:
nem constância quero ter, para que não venha a ser Por constante desprezado.
4 Lealdade sem respeito nunca teve bom lugar, porque não soube guardar a lealdade defeito:
eu me dou por satisfeito, e aceito por bom partido ser por amante ferido, por firme ser maltratado, por amante desprezado, E por leal ofendido.
CHEGANDO ALI O POETA COM THOMAZ PINTO BRANDÃO CONTA, O QUE
PASSOU COM ANTONICA HUMA DESHONESTA MERETRIZ.
Chegando à Cajáíba, vi Antonica, e indo-lhe apolegar, disse-me caca, gritou Tomás em tono de matraca Bu bu pela mulher, que foge à pica.
Eu, disse ela, não sou mulher de crica, que assomo como rato na buraca, quem me lograr há de ter boa ataca, que corresponda ao vaso, que fornica.
Nunca me fez mister dizer,quem merca, porque a minha beleza é mar que surca alto baixel, que traz cutelo, e forca.
E pois você tem feito, com que perca, diga essas confianças à sua urca, que eu sei, que em cima de urca é puta porca.
Texto-fonte: Obra Poética, de Gregório de Matos,
3ª edição, Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.