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Textos para uso geral de domínio público.

Crônica do viver baiano seiscentista - a cidade e seus pícaros - a freira:ralo, roda e grade

Índice OS SEUS DOCES EMPREGOS
ÀS RELIGIOSAS QUE EM HUMA FESTIVIDADE, QUE CELEBRÁRAM, LANÇÁRAM A
VOAR VARlOS PASSARINHOS.
A D. MARTHA DE CHRISTO PRIMEYRA ABBADEÇA DO DESTERRO GALANTEA O
POETA OBSEQUIOSAMENTE.
CELEBRA O POETA O CASO, QUE SUCCEDEU A HUA FREYRA DO MESMO
CONVENTO A QUEM OUTRAS FREYRAS TRAVESSAS LHE MOLHARAM O
TOUCADO, COM QUE PERTENDIA FALLAR À SUA AMANTE.
A D. CATHERINA PRELADA, QUE FOY NO MOSTEYRO DE ODIVELLAS, E AGORA
PORTEYRA PEDE O POETA HUMA GRADE.
REPETIO O POETA A MESMA ROGATIVA DEPOIS DE ALGUM TEMPO.
NO DIA EM QUE O POETA EMPRENDEO GALANTEAR HUA FREYRA DO MESMO
CONVENTO SE LHE PEGOU O FOGO NA CAMA, E INDO APAGAR-LO, QUEYMOU
UMA MÃO.
QUEYXA-SE HUMA FREYRA DAQUELLA MESMA CASA, DE QUE SENDO VISTA HUA
VEZ DO POETA, SE DESCUYDAVA-SE DE À TORNAR A VER.
A HUMA FREYRA QUE NAQUELLA CASA SE LHE APRESENTOU RICAMENTE
VESTIDA, E COM UM REGALO DE MARTAS.
A OUTRA FREYRA, QUE SATYRIZANDO A DELGADA FIZIONOMIA DO POETA LHE
CHAMOU PICAFLOR.
QUEYXA-SE O POETA DAS FUNDADORAS, QUE VIERAM DE EVORA, POR NÃO
PODER CONSEGUIR ALGUM GALANTEYO NAQUELLA CASA, E SEREM SOMENTE
ADMITTIDOS FRADES FRANCISCANOS.
REPETE A QUEYXA INCREPANDO AS CONFIANÇAS DE FR. THOMAZ
D'APRESENTAÇÃO, QUE SE INTROMETTIA SOFREGAMENTE NAQUELLA CASA, ONDE O POETA JA TINHA ENTRADA COM D. MARIANNA, FREYRA, QUE
BLAZONANDO SUAS ESQUIVANÇAS LHE HAVIA DITO, QUE SE CHAMAVA
ORTIGA.
A MESMA FREYRA D. MARIANNA PELO MESMO CASO DE SE HAVER APPELLIDADO
ORTIGA.
QUEYXA SE O POETA A MESMA FREYRA DE SUAS INGRATIDÕES
DESPRIMOROSAS, IMITANDO A D. THOMAZ DE NORONHA EM HUM SONETO, QUE
FEZ A CERTA FREYRA, QUE PRINCIPIA "SOROR
DONA BARBARA".
À MESMA FREYRA JA DE TODO MODERADA DE SEUS ARRUFOS E
CORRESPONDENDO AMANTE AO POETA.
À MESMA FREYRA EM OCCASIÃO, QUE O POETA À OUVIU CANTAR COM AQUELLA
ESPECIAL GRAÇA QUE PARA ISSO TINHA.
À MESMA FREYRA MANDANDOLHE HUM PRESENTE DE DOCES.
AO MESMO ASSUMPTO.
A OUTRA FREYRA QUE ESTRANHOU AO POETA SATYRIZAR AO PE. DAMASO DA
SYLVA, DIZENDOLHE QUE ERA HUM CLERIGO TAM BENEMERITO, QUE JA ELLA
TINHA EMPRENHADO, E PARIDO DELLE.
A HUMA FREYRA QUE IMPEDIO A OUTRA MANDAR HUM VERMELHO AO POETA DE
PRESENTE, DIZENDO, QUE À HAVIA SATYRIZAR.
A CERTA FREYRA QUE EM DIA DE TODOS OS SANTOS MANDOU A SEU AMANTE
GRACIOSAMENTE POR PAM POR DEOS HUM CARÁ.
A OUTRA FREYRA QUE MANDOU AO POETA HUM CHOURIÇO DE SANGUE.
OS SEUS DOCES EMPREGOS
13 – A FREIRA: RALO, RODA E GRADE
No dia em que o Poeta emprendeo galantear uma Freyra no mesmo convento se lhe pegou o fogo na cama.
Manuel Pereira Rabelo, licenciado Alto: vou- me meter Frade na ordem de Fr. Tomás, serei perpétuo lambaz do ralo, da roda, e grade:
mamarei paternidade, Deo gratias se me dará, e apenas se me ouvirá o estrondo do meu tamanco, quando a Freira sobre o banco no ralo me aguardará.
ÀS RELIGIOSAS QUE EM HUMA FESTIVIDADE, QUE CELEBRÁRAM, LANÇÁRAM A
VOAR VARlOS PASSARINHOS.
Meninas, pois é verdade, não falando por brinquinhos, que hoje aos vossos passarinhos se concede liberdade:
fazei-me nisto a vontade de um passarinho me dar, e não o deveis negar, que espero não concedais, pois é dia, em que deitais passarinhos a voar.
A D. MARTHA DE CHRISTO PRIMEYRA ABBADEÇA DO DESTERRO GALANTEA O
POETA OBSEQUIOSAMENTE.
Ilustríssima Abadessa, generosa Dona Marta, que inda que nunca vos vi, vos conheço pela fama.
Um ludíbrio da fortuna, epílogo de desgraças se oferece a vossos pés, para beijar-vos as plantas.
E bem, que a tão breve pé sobra uma boca tamanha, que mal me estará fazer-vos as adorações sobradas.
Que dissera eu, se vos vira a beleza dessa cara, dos corações doce enleio, suave encanto das almas?
Mas já que nunca vos vi, por não ter dita tão alta, a informação, que tirei, para desejar-vos basta.
Vós sois, Senhora Abadessa, fruto de tão nobre planta, que se não nascêreis vós, mal pudera outro imitá-la.
O que vos peço, é querer-vos ou que me désseis palavra de consentir, que vos queira, que é dom, que não custa nada.
Eu sou um conimbricense nascido nestas montanhas, e sobre um ovo chocado entre gemas, e entre clara.
Servi a Amor muitos anos, e como sempre mal paga, tenho a alma sabichona já de muito escarmentada.
Não tenho medo de vós, que não sois das namoradas, dadas a mui pertendidas pelo meio de falsárias.
Sois uma Freira mui linda, bem nascida, e bem criada.
e o gabo não vos assuste, que ninguém gorda vos chama.
A este pobre fradulário dai qualquer favor por carta, porque no tardar do prêmio não perigue a esperança.
CELEBRA O POETA O CASO, QUE SUCCEDEU A HUA FREYRA DO MESMO
CONVENTO A QUEM OUTRAS FREYRAS TRAVESSAS LHE MOLHARAM O
TOUCADO, COM QUE PERTENDIA FALLAR À SUA AMANTE.
1 Pelo toucador, clamais, e em confusão me meteis, porque se enxuto o quereis como sobre ele chorais?
quanto mais suspiros dais, novos extremos fazendo, vai vosso dano crescendo, e é mui mal esperdiçado sobre a perda do toucado andar pérolas perdendo:
2 Mas um peito lastimado, que tem em pouco essas sobras, dirá, pois chora por dobras, que o deixem chorar dobrado:
ditoso o vosso toucado nas lágrimas, que chorastes, pois tão bem desempenhastes as vezes, que vos ornou, que se até aqui vos toucou, de pérolas o toucastes.
3 Porventura, Nise, achais, que mais bela a touca estava ao tempo, que vos toucava, do que agora a toucais?
não vedes, não reparais, que aqueles vãos ornamentos umedecidos, e lentos de aljôfares derretidos, o que estão de mui caídos, isso têm de mais alentos?
4 Chorais com razão tão pouca, que estão todos murmurando, que andais as toucas lançando não mais que por uma touca se por Sílvio ides louca, porque arnante vos anele, e mais por vós se desvele, vinde à grade destoucada, e verá, que de empenhada botais as toucas por ele.
5 Inundais as escarlatas à guisa da bela aurora, como se mui novo fora, que nágua se banhem patas:
se as Professas, ou Donatas, que as patas vos mergulhararn tanto a peça celebraram, zombai das suas invejas, não se gabem malfazejas, que de patas nos viraram.
A D. CATHERINA PRELADA, QUE FOY NO MOSTEYRO DE ODIVELLAS, E AGORA
PORTEYRA PEDE O POETA HUMA GRADE.
Parabém seja à vossa Senhoria Ser da Chave dourada dessa glória, Que há de dar-nos sem obra meritória Por graça só da sua fidalguia.
Se, quando o céu monástico regia, Deixou de seu juízo tal memória, Quanto mais, que o reger, dará vã glória Estar abrindo a glória cada dia.
Qualquer alma, que à glória se avizinha, Contente aceita, alegre se acomoda Com toda glória não: cuma casinha.
Não dê Vossenhoria a glória toda, Mas bem vê, que à crueldade se encaminha, Que, sendo Caterina, dê a roda.
REPETIO O POETA A MESMA ROGATIVA DEPOIS DE ALGUM TEMPO.
Minha Senhora Dona Caterina, Posto que montam pouco os meus engodos, Agora os junto, e os engrazo todos, Chamando a minha Mãe minha Menina.
Já sabeis, que me faz fome canina Lise, de cujos agradáveis modos Não são para servir de seus apodos Os astros dessa esfera cristalina.
Tratai de me fartar esta vontade em uma grade, como em uma boda, Que é pouco em cada mês uma só grade.
Pois toda a Mãe seus Filhos acomoda, Adverti, que parece crueldade, Que sendo Caterina deis a roda.
NO DIA EM QUE O POETA EMPRENDEO GALANTEAR HUA FREYRA DO MESMO
CONVENTO SE LHE PEGOU O FOGO NA CAMA, E INDO APAGAR-LO, QUEYMOU
UMA MÃO.
Ontem a amar-vos me dispus, e logo Senti dentro de mim tão grande chama, Que vendo arder-me na amorosa flama, Tocou Amor na vossa cela o fogo.
Dormindo vós com todo o desafogo Ao som do repicar saltais da cama, E vendo arder uma alma, que vos ama, Movida da piedade, e não do rogo Fizestes aplicar ao fogo a neve De uma mão branca, que livrar-se entende Da chama, de quem foi despojo breve.
Mas ai! que se na neve Amor se acende, Como de si esquecida a mão se atreve A apagar, o que Amor na neve incende.
QUEYXA-SE HUMA FREYRA DAQUELLA MESMA CASA, DE QUE SENDO VISTA HUA
VEZ DO POETA, SE DESCUYDAVA-SE DE À TORNAR A VER.
Quem a primeira vez chegou a ver-vos, Nise, e logo se pôs a contemplar-vos, Bem merece morrer por conversar-vos, E não pode viver sem merecer-vos.
Não soube ver-vos bem, nem conhecer-vos Aquele, que outra vez deseja olhar-vos, Pois não caiu nos riscos de tratar-vos, Quem quer, que lhe queirais por já querer-vos.
Essas luzes de amor ricas, e belas Vê-las basta uma vez, para admirá-las, Que vê-las outra vez, será ofendê-las.
E se por resumi-las, e contá-las, Não se podem contar, Nise, as estrelas, Nem menos à memória encomendá-las.
A HUMA FREYRA QUE NAQUELLA CASA SE LHE APRESENTOU RICAMENTE
VESTIDA, E COM UM REGALO DE MARTAS.
De uma rústica pele, que antes dera A um bruto monte, fez regalo Armida, Por ser na fera a gala conhecida, Como na condição já dantes era.
Menos que Armida já se considera Ser a fera, pois perde a doce vida Por Armida cruel: e esta homicida Por vestir a fereza, despe a fera.
Se era negra, e feroz por natureza, Com tal mão animada a pele goza De um cordeirinho a mansidão, e a alvura.
Oh que tal é de Armida a mão formosa!
Que faz perder às feras a fereza, E trocar-se a fealdade em formosura.
A OUTRA FREYRA, QUE SATYRIZANDO A DELGADA FIZIONOMIA DO POETA LHE
CHAMOU PICAFLOR.
Se Pica-flor me chamais, Pica-flor aceito ser, mas resta agora saber, se no nome, que me dais, meteis a flor, que guardais no passarinho melhor!
se me dais este favor, sendo só de mim o Pica, e o mais vosso, claro fica, que fico então Pica-flor.
QUEYXA-SE O POETA DAS FUNDADORAS, QUE VIERAM DE EVORA, POR NÃO
PODER CONSEGUIR ALGUM GALANTEYO NAQUELLA CASA, E SEREM SOMENTE
ADMITTIDOS FRADES FRANCISCANOS.
1 Estamos na cristandade?
Sofrer se há isto em Argel, que um convento tão novel deixe um leigo por um Frade?
que na roda, ralo, ou grade Frades de bom, e mau jeito comam merenda e eito, e estejam a seu contento feitos papas do convento, porque andam co papo feito?
2 Se engordar a fradaria a esta cidade os trouxeram, melhor fora, que vieram, sustentar a Infantaria:
que importa, que cada dia façam obras, casas fundem, se os Fradinhos as confundem por modo tão execrando, que quanto elas vão fundando, tudo os Frades lhes refundem.
3 Pelo jeito, que isto leva, cuidam, que em Évora estão, onde de Inverno, e Verão se põem os marrões de ceva:
nenhuma jamais se atreva sob pena de excomunhão a cevar o seu marrão, que se em tais calamidades me asseguram, que são Frades arto em cevá-los lhe irão.
4 Sirvam-se do secular, que ali está o garbo, o asseio, o primor, o galanteio, a boa graça, o bom ar:
a este lhe hão de falar à grade, ao pátio, ao terreiro, que o secular todo é cheiro, e o Frade a mui limpo ser, sempre há de vir a feder ao cepo de um Pasteleiro.
5 Em chegando à grade um Frade sem mais carinho, nem graça, o braço logo arregaça, e o trespassa pela grade:
e é tal a qualidade de qualquer Frade faminto, que em um átomo sucinto se vê a freira coitada como um figo apolegada, e molhada como um pinto.
6 O secular entendido, encolhido e mesurado não pede de envergonhado, não toma de comedido:
cortesmente de advertido, e de humilde cortesão declara a sua afeição, e como se agravo fora, chama-lhe sua Senhora, chama-lhe, e pede perdão.
7 Mas o Frade malcriado, o vilão, o malhadeiro nos modos é mui grosseiro, nos gostos mui depravado:
brama, qual lobo esfaimado, porque a Freira se destape, e quer, porque nada escape, levar logo a causa ao cabo, e fede como o diabo ao budum do trape-zape.
8 Portanto eu vos admoesto, que o mimo, o regalo, o doce o secular vo-lo almoce, que a um Frade basta um cabresto:
toda Freira de bom gesto se entregue em toda a maneira a um leigo, que bem lhe queira, e faltando ao que lhe pedem, praza a Deus, que se lhe azedem os doces na cantareira.
REPETE A QUEYXA INCREPANDO AS CONFIANÇAS DE FR. THOMAZ
D'APRESENTAÇÃO, QUE SE INTROMETTIA SOFREGAMENTE NAQUELLA CASA, ONDE O POETA JA TINHA ENTRADA COM D. MARIANNA, FREYRA, QUE
BLAZONANDO SUAS ESQUIVANÇAS LHE HAVIA DITO, QUE SE CHAMAVA ORTIGA.
1 Nenhuma Freira me quer de quantas tem o Desterro, porque todas são do ferro de Fr. Burro de Almister:
que me dá do seu querer, se eu também nenhuma quero:
mas o rostinho severo de Soror Madama Urtiga, porque me há de dar fadiga, se tão rendido o venero.
2 Que tem Freirinhas tão belas cos pobres dos seculares, que a todos lançam azares, e nunca a sorte cai nelas:
deve de vir das estrelas de algum signo peçonhento, que abaixo do firmamento, onde jaz o Escorpião, lhos influi um Fradalhão, que lhes domina o convento.
3 Alto: vou-me meter Frade na ordem de Fr. Tomás, serei perpétuo lambaz do ralo, da roda, e grade:
mamarei paternidade, Deo gratias se me dará, e apenas se me ouvirá o estrondo do meu tamanco, quando a Freira sobre o banco no ralo me aguardará.
4 Daí para a grade iremos, e apenas terei entrado, quando o braço arregaçado aos ofícios nos poremos:
e quando nos não cheguemos (porque o não consentirá a grade, que longe está)
o seu, e o meu coração, porque vá de mão em mão, irá na barca da pá.
5 Pela pá irá o meu zás, e o seu pela pá virá, e à força de tanta pá viveremos sempre em paz:
serei o maior mangaz, que passou de leigo a demo, e a Frade, que é mor extremo, e será por meu sojorno a pá para ela de forno, e pá para mim de remo.
6 Então me virá buscar a Senhora Dona Urtiga, Deo gratias, meu Fr. Fustiga, Deo gratias Sor Rosalgar:
então me hei de pôr a olhar, e tão grave me hei de pôr, que quando me diga Amor, esta é a Freira, que dei, dir-lhe-ei, já me purguei, e evacuei esse humor.
7 A fé Soror Mariana, que tanto me hei de vingar, que eu mesmo hei de perguntar pela Freira soberana:
e há de dizer vossa Mana (digo Soror Florencinha)
Senhor Doutor, esta é minha Irmã, a quem você quis, e hei de dizer-lhe, mentis, que esta é uma coitadinha.
8 Não sabeis, Soror Florença não sabeis diferençar um Frade de um secular?
pois é esta a diferença:
tendo o leigo a capa imensa como homem racional nada lhe parece mal, toda a Freira é uma flor:
mas em sendo Frei Fedor, a melhor é um cardal.
A MESMA FREYRA D. MARIANNA PELO MESMO CASO DE SE HAVER
APPELLIDADO ORTIGA.
1 Como vos hei de abrandar, se dizeis, que sois Urtiga salvo se vos açoutar, porque então heis de ficar mais branda que uma bexiga.
2 Outro remédio melhor sei eu para a formosura, que faz gala do rigor, e é não a querer, que amor se vê, que vos faz mais aura.
3 Mas se isto de não querer-vos, a dureza há de abrandar-vos, sempre hei de vir a perder-vos, que o mesmo é morrer de ver-vos, que morrer de não falar vos.
4 Com que a cura de meu mal é amar, calar, sofrer que quando o mal é mortal, se à vida é prejudicial, será remédio o morrer.
5 Eu morro de vos querer, e tanto em morrer persisto, que podereis vos fazer, que não ficasse malquisto o venturão de vos ver.
6 Pois sabida a minha morte, e a sua causa sabida, fugindo vós de corrida, todos terão por má sorte ver-vos, e perder a vida.
7 Mas eu, que do mal de amor faço tanta estimação, não hei de queixar-me não de tão formoso rigor, nem de tão bela afeição.
8 Antes morte tão luzida com tal gosto a ela corro, que temo, minha homicida, que me torne dar a vida o prazer, com que me morro.
QUEYXA SE O POETA A MESMA FREYRA DE SUAS INGRATIDÕES
DESPRIMOROSAS, IMITANDO A D. THOMAZ DE NORONHA EM HUM SONETO, QUE
FEZ A CERTA FREYRA, QUE PRINCIPIA "SOROR DONA BARBARA".
Senhora Mariana, em que vos pes, Haveis de me pagar por esta cruz, Porque nisto de cornos nunca os pus, E sei, que me pusestes mais de três.
Não sei, quem vos tentou, ou quem vos fez Cruel, que rigor tanto em vós produz, Pois convosco não val, e em mim não luz Fé de Tudesco, e amor de Português.
Se contra vós algum delito fiz, Que do vosso favor fora me traz, Vós não podeis ser Parte, e mais Juiz.
Não queirais dar contudo a trasbarrás, Nem vos façais de mim xarrisbarris, Que me armeis por diante, e por detrás.
À MESMA FREYRA JA DE TODO MODERADA DE SEUS ARRUFOS E
CORRESPONDENDO AMANTE AO POETA.
A bela composição dos dous nomes, que lograis, bem explica, o que cifrais nessa rara perfeição:
porque sendo em conclusão por Maria Mar, e sendo Graças por Ana, já entendo, que quem logra a sorte ufana de estar vendo a Mariana um mar de graça está vendo.
À MESMA FREYRA EM OCCASIÃO, QUE O POETA À OUVIU CANTAR COM
AQUELLA ESPECIAL GRAÇA QUE PARA ISSO TINHA.
Oh quem de uma Águia elevada tIvera uma pena! eu creio, que só então com fortuna descrevera a sol tão belo.
Porém se tenho de Fênix as penas dentro em meu peito pelo abrasado, em que vivo sejam chamas, quanto escrevo.
Mas não: sejam lavaredas à vista desse luzeiro, que a vista de sol tão claro escurece um vivo incêndio.
Contudo se o desafogo se permite a todo o peito, por não estalar esta alma, coragão, desabafemos.
Convosco falo, Senhora, de minhas atenções centro, que a voz de um vale humilhado também chega ao monte excelso Recebi o sacrifício de um profundo rendimento, que as Deidades soberanas aceitam toscos obséquios.
Não culpeis esta ousadia, nem crimineis tanto excesso que o destino de alta estrela me influi um amante excesso.
Vi esse pasmo, que adoro, ouvi a voz, que venero, de ver fiquei sem sentido, e de ouvir sem pensamentos.
Por ouvir fico enlevado, e por ver fico suspenso, se o ver me prendeu o corpo, o ouvir a alma me tem preso.
Um pasmo de formosura do corpo é somente enleio, e a voz mais doce, e canora é só d'alma firme emprego.
Mas ser cantora suave, e ser gentil com portento é ser labirinto, e pasmo d'alma, e corpo ao mesmo tempo.
Porém se em laços tão doces for eterno prisioneiro, não terão prêmio mais alto meus firmíssimos intentos.
No nome sois mar de graça, de prendas sois mar imenso, não permitais, que naufrague meu arnor sem ter remédio.
Concedei-me um mar bonança, porto seguro, e sereno, que a esperança de servir-vos é âncora de querer-vos.
Na firmeza sou penhasco, mas pronto a qualquer aceno, por isso as ondas mais brandas desse mar serei ligeiro.
O vento do vosso agrado sopra sobre mim preceitos, serei baixel, que obediente voe como um pensamento.
Seguirei o vosso norte, e por navegar direito, só esse sol seja o astro, que eu observe com empenho.
Não haverá tempestade, por brabo que sopre o vento, que obrigue a mudar de rumo, quando em vosso mar navego.
Venham pois de vossas luzes os mais brilhantes reflexos, porque possa encher a altura da viagem dos afetos.
Mandai, que a vossa presença chegar possa a salvamento, pois ao mar dessas ternuras com vento em popa navego.
À MESMA FREYRA MANDANDOLHE HUM PRESENTE DE DOCES.
1 Um doce, que alimpa a tosse, cousa muito grande era, se eu não trocara, e pudera a doçura pelo doce:
se quisera Amor, que eu fosse tão digno, e tal me fizera, que juntos vos merecera ora o doce, a doçura ora, maldita a minha alma fora, se tudo vos não comera.
2 Mas há grande distinção.
e discrímen temerário entre os doces de um almário, e as doçuras de uma mão:
e quem é tão sabichão destro no ré mi fá sol mal pode errar, em seu prol, quando sabe, que a doçura se se come, é por natura, e os mais doces por bemol.
3 O que enfim venho a dizer, é, que se à minha ventura negais comer da doçura, doces não hei de comer:
não hei de troca fazer, mais que a palos me moais, e se comigo apertais, que os vossos doces almoce, é fazer-me a boca doce, quando a mim é por demais.
4 Trocai o doce em favor, e curai meu mal tão grave co'aquela ambrósia suave, com que foi criado o Amor:
o néctar será melhor, que destilam vossas flores, que são tão secos favores são de amor efeitos pecos, tão mais são amores secos, como são secos amores.
AO MESMO ASSUMPTO.
Senhora minha: se de tais clausuras Tantos doces mandais a uma formiga, Que esperais vós agora, que vos diga, Se não forem muchisimas doçuras.
Eu esperei de amor outras venturas:
Mas ei-lo vai, tudo o que é de amor, obriga, Ou já seja favor, ou uma figa, Da vossa mão são tudo ambrósias puras.
O vosso doce a todos diz, comei-me, De cheiroso, perfeito, e asseado, E eu por gosto lhe dar, comi, e fartei-me.
Em este se acabando, irá recado, E se vos parecer glutão, sofrei-me, Enquanto vos não peço outro bocado.
A OUTRA FREYRA QUE ESTRANHOU AO POETA SATYRIZAR AO PE. DAMASO DA
SYLVA, DIZENDOLHE QUE ERA HUM CLERIGO TAM BENEMERITO, QUE JA ELLA
TINHA EMPRENHADO, E PARIDO DELLE.
Confessa Sor Madama de Jesus, Que tal ficou de um tal Xesmeninês, Que indo-se os meses, e chegando o mês, Parira enfim de um Cônego Abestruz.
Diz, que um Xisgaravis deitara à luz Morgado de um Presbítero montês, Cara frisona, garras de Irlandês Com boca de cagueiro de alcatruz.
Dou, que nascesse o tal Xisgaravis, Que o parisse uma Freira: vade in paz, Mas que o gerasse o Senhor Padre! arroz Verdade pois o coração me diz, Que o Filho foi sem dúvida algum trás, Para as barbas do Pai, onde se pôs.
A HUMA FREYRA QUE IMPEDIO A OUTRA MANDAR HUM VERMELHO AO POETA
DE PRESENTE, DIZENDO, QUE À HAVIA SATYRIZAR.
1 Ó vós, quem quer que sejais, que nem o nome vos sei, Freira, a quem nunca falei, e tão mal de mim falais:
porque à fome me matais, sem vos dar motivo algum?
pois querendo mandar-me um vermelho uma Freira guapa, vós me destes sem ser paga esse dia de jejum.
2 Não quisestes porfiosa, que se me mandasse o peixe, formando para isso um feixe de razões de bem má prosa:
a Freirinha era medrosa, e vós, que o peixe intentastes livrar de tantos contrastes, de sátiro me arguístes, e satírica não vistes, que então me satirizastes.
3 Sendo o conselho tão tosco, tão bem a Freira o tomou, que o peixe me não mandou, por não se espinhar convosco:
mas vós que tendes conosco, comigo, e minha talia?
e se o peixe vos doía, em que eu agora me escaldo, se o fazíeis pelo caldo, o caldo eu vo-lo daria.
4 Oh: faz a um cuspir no chão uma sátira o Doutor:
satiriza um Pica-flor, quanto mais a um peixarrão:
homem de tal condição não se lhe dá de comer, e tem pouco que entender, que o Doutor já fraco, e velho se há de comer o vermelho por força o há de morder.
5 Pois destes tão mal conselho, rogo ao demo, que vos tome, por deixar morrer à fome um pobre faminto velho:
rogo ao demo, que ao seu relho vos prenda com força tanta, que nunca arredeis a planta, e que a espinha muita, ou pouca, que me tirastes da boca, se vos crave na garganta.
6 Assim como isto é verdade, que pelo vosso conselho perdi eu o meu vermelho, percai vós a virgindade:
que vo-la arrebate um frade;
mas isto que praga é?
praza ao demo, que um cobé vos plante tal mangará, que parais um Paiaiá, mais negro do que um Guiné.
A CERTA FREYRA QUE EM DIA DE TODOS OS SANTOS MANDOU A SEU AMANTE
GRACIOSAMENTE POR PAM POR DEOS HUM CARÁ.
1 No dia. em que a Igreja dá pão por Deus à cristandade, tenho por má caridade dares vós, Freira, um cará:
se foi remoque, oxalá, que vos dêem a mesma esmola, que não há mulher tão tola, que por mais honesta, e grave, não queira levar o cabe, se pôs descoberta a bola.
2 Descobristes a intenção, e o desejo revelastes, quando o cará encaixastes, a quem vos pedia o pão:
como quem diz: meu Irmão, se quem toma, se obrigou a pagar, o que tomou, vós obrigado a pagar-me, ficais ensinado a dar-me o cará, que vos eu dou.
3 Levado desta seqüela promete o mancebo já de dar-vos o seu cará, porque fique ela por ela:
se consiste a vossa estrela em dar, o que heis de tomar, cará não há de faltar, porque o Moço não repara em levar a cópia, para o original vos tornar.
4 Se assim for, que assim será, fareis um negócio raro, porque um cará não é caro se por um outro se dá:
e pois o quer pagar já sem detença, e com cuidado, se o quereis ver bem pagado, há de ser com tal partido, que por um cará cozido leveis o meu, que anda assado.
5 Vós pois me haveis de dizer (assentado este negócio)
se quereis fazer socrócio, porque comigo há de ser:
de carás heis de cozer uma boa caldeirada, e de toda esta tachada tal conserva heis de tomar, que vos venhais a pagar do cará co caralhada.
A OUTRA FREYRA QUE MANDOU AO POETA HUM CHOURIÇO DE SANGUE.
1 Conta-se pelos corrilhos que o Pelicano às titelas sustenta como morcelas a puro sangue a seus filhos:
vós, Dona Fábia Carrilhos, se bem cuido, e não me engano, deveis de ser Pelicano, que enchestes este chouriço com o sangue alagadiço desse pássaro magano.
2 Com que este chouriço gordo, tão gordo, e especiado um filho vosso é criado co sangue do vosso tordo:
porém tomou mau acordo, quem quer que o empapelou, e a dar-mo vos obrigou, pois não tem caminho enfim, mandares-me o filho a mim, que outro Pai vos encaixou.
3 O que me dita o toutiço, é, que o paio se mediu;
e por onde este saiu, pode entrar qualquer chouriço:
direis, que vos não dá disso, e eu creio, se vos não dá, mas alguém vo-lo dará, e que fora o meu quisera, porque se fartara, e enchera do sangue, que vai por lá.
4 Comi o chouriço cozido com sossego, e sem empenho, porque outro chouriço tenho para pagar o comido:
vós tendes melhor partido, mais liberal, e mais franco, pois como em real estanco tal seguro vos prometo, que por um chouriço preto heis de levar o meu branco.
5 Sobre vos aventejar nas cores desta trocada, vós destes-me uma talhada, e eu todo vo-lo hei de dar:
se cuidais de mo cortar, ele é duro de maneira que a faca mais cortadeira não fará cousa, que importa, que o meu chouriço o não corta, salvo um remoque de Freira.
6 Eu o dou por bem cortado deste primeiro remoque, que ao vosso mais leve toque fique de todo esgorado:
então o vosso cuidado vendo, que tanto me emborco, e inda assim vos não emporco, terá por cousa do Olimpo, que a tripa de um homem limpo se dê por tripa de porco.
7 Muito me soube atalhada do chouriço inda que preto, e a ser todo vos prometo, que a ceia fora dobrada:
mas fora mais acertada cousa, e de menos trabalho que dando-vos nisto um talho, uma lingüiça vos cangue, que o chouriço coalha o sangue, e a lingüiça leva o alho.
8 Eu sou tão bom conselheiro, que heis de escolher, o que digo, porque quem fala comigo, escolhe em um tabuleiro:
se vos for mais lisonjeiro o chouriço, que a lingüiça, dou gosto, e faço justiça:
mas bem sabe quem se abrocha, que o chouriço a boca atocha, e a lingüiça o fogo atiça.


Texto-fonte: Obra Poética, de Gregório de Matos, 3ª edição,
Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.


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