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Textos para uso geral de domínio público.

Um Ambicioso

I
— Mas Juca, tu estás doente ou que é?
Esta pergunta era feita pelo sr. Mateus, com casa de louças à Rua da Saúde, a um filho seu, que ele foi encontrar, sentado numa mesa, com os pés sobre um mocho e os olhos cravados na parede.
Não era a primeira vez que José Cândido, filho do sr. Mateus, apresentava sintomas de melancolia ou forte preocupação. Havia duas semanas que o pai reparava na mudança do rapaz; e duas vezes lhe falou nisso; a primeira com ar indiferente, mas afetado; a segunda com algum interesse. A terceira vez, que foi agora, falou-lhe com a alma nas palavras, porque o sr. Mateus, viúvo e sem parentes, salvo uma prima, concentrara todo seu coração em José Cândido, seu filho único.
José Cândido andava já perto dos trinta anos; faltavam-lhe um ou dois meses. Era um rapaz de feições irregulares e de uma expressão alvar, sobretudo estando quieto. Não era magro nem gordo, alto nem baixo; mediano em tudo, exceto na inteligência, que era ínfima. Tinha uma particularidade José Cândido; gostava de gravatas amarelas. Em compensação detestava o trabalho. Vivia do que lhe dava o pai, que possuía a casa de louças, e uns cinco prédios; trinta contos ao todo.
O sr. Mateus repetiu as palavras com que esta narração começa, e não obteve melhor resposta do que um silêncio sinistro e doloroso.
— Juca, responde!
— Não é nada, papai, disse José Cândido, acordando da contemplação em que estava;
não é nada; estou pensando na minha vida.
— Mas que tem a tua vida?
— Nada, suspirou o filho.
— Que é? que foi? conta-me tudo. Tens alguma dívida?
— Oh! não! protestou José Cândido com um gesto de pudor.
O sr. Mateus respirou; escapara ao maior perigo. Ele professava o princípio de não dever nem fiar. José Cândido, vendo-o caminhar para a porta, cravou outra vez os olhos na parede e mergulhou na contemplação.
O sr. Mateus voltara à loja, onde o caixeirinho, um menino, vindo de Iguaçu dois meses antes, impingia a um freguês, por dois mil-réis, uma jarra de mil e quinhentos.
Esta circunstância prendeu a atenção do sr. Mateus, que antes de ser pai, já era negociante, e tinha, além disso, o entusiasmo da profissão. A jarra custara-lhe novecentos réis; ele marcara o preço de mil e quinhentos, a fim de ganhar seis tostões; mas o caixeiro, que tinha a flama sagrada, achou meio de lhe fazer ganhar quase o duplo.
A alma do sr. Mateus sorriu.
Quando, dez minutos depois, tornou a pensar no filho, este apresentou-se-lhe na loja com o chapéu na mão. Tinha enfiado um paletó preto, porque até então estivera de colete e em mangas de camisa, e ia sair.
O sr. Mateus não lhe pôs obstáculo; estimou que ele se distraísse.
— Queres dinheiro? perguntou ao filho.
— Não, senhor, obrigado.
Saiu José Cândido, e o sr. Mateus sentou-se numa cadeira, que ficava por trás de um balcãozinho, ao fundo da loja. Sobre esse balcão havia duas rumas de pratos, por entre as quais o sr. Mateus usava enfiar os olhos para ver o que se passava na rua, ou vigiar a fidelidade e o tino do caixeiro.
Sentou-se, abriu a caixa de tabaco, fungou uma pitada e reflexionou:
— Aquele rapaz parece-me que anda apaixonado... Aquilo há de ser volta de mulher. Não vá ser aí alguma cabecinha tonta, alguma avoada...
Ele a dizer isso, e a sra. D. Inácia a penetrar na loja.
— Seu amo está? perguntou ela.
— Estou aqui, prima, disse o sr. Mateus fazendo-se visível. Que anda fazendo?
— Eu, primo, ando na lida!
— Sempre a trabalhar?
— É verdade.
— Sente-se. Traga um mocho.
O caixeiro obedeceu. A sra. D. Inácia sentou-se, tirou um lenço do bolso do vestido, enxugou a testa e a cara, e ofegou durante cinco minutos.
A sra. D. Inácia, quarentona rechonchuda, pesada, mourejava no trabalho desde manhã até à noite, por culpa do sr. Mateus, que, se quisesse, podia ter — ainda mesmo agora —
o coração da prima. Mas o sr. Mateus, que olhava muita vez para a sra. Inácia com olhos pouco angélicos, tinha tal aferro ao dinheiro, que não queria arriscar um passo no fim do qual havia, ou podia haver, casamento ou despesa. A sra. Inácia tinha três filhas.
— Como está o Juca? perguntou a sra. Inácia, depois de descansada.
— Assim, assim... Vamos andando como Deus é servido. Sua obrigação?
— Rolando a vida... A Chiquinha é que teve ontem um incômodo, uma dor no peito; mas felizmente passou.
— São macacoas... Eu também, às vezes, aparece-me isto ou aquilo, mas no dia seguinte passa. Agora mesmo, tenho aqui uma dor nas cadeiras...
— Veja um banho de malvas; isso vai embora. Primo, sabe o que é que me trouxe aqui?
O sr. Mateus ficou com o coração pequenino.
— Era ver, continuou a Sra. D. Inácia, era ver se me fiava um açucareiro, porque o meu quebrou-se na semana passada...
O sr. Mateus, que para resistir ao golpe, tirara a boceta de tabaco, tomou uma pitada, dando tempo ao cérebro de redigir uma resposta. E foi bom isso; porque lembrou-lhe a tristeza misteriosa de José Cândido e teve a idéia de pedir o auxílio da prima.
— Fiar, não fio, disse ele; mas dou-lhe um açucareiro e um bule, que aí tenho, de muito gosto.
E foi buscar os dois objetos em um canto de uma das prateleiras.
— O bule tem um pequeno defeito na asa, disse ele; e é pena, porque é bonito; este friso azul dá muita graça. Aceita?
— Ora, com muito gosto! Bem bonitos!
— Embrulhe isso, ordenou o sr. Mateus ao caixeiro.
E sem mais demora, enquanto o caixeiro embrulhava a louça, o sr. Mateus expunha à prima a causa de suas preocupações e pedia-lhe auxílio.
— Aquilo pode ser negócio de namoro... Um pai sempre deve dar-se ao respeito.
A sra. D. Inácia, que acompanhara a confidência com gestos afirmativos de cabeça, em chegando àquele ponto compreendeu logo o que o sr. Mateus lhe queria dizer.
Compreendeu e aceitou.
— Eu lhe falo, não tem dúvida. Eu pergunto assim como coisa minha... descanse.
— Hoje é quinta, não? talvez no sábado.
— Pois sim; veja-me isso... Veja se ele lhe conta alguma coisa.
— Deixe comigo, disse a sra. D. Inácia, erguendo-se e sobraçando o embrulho de louça, por baixo do grande xale de ramagens.
E saiu a sra. D. Inácia.
II
José Cândido, logo que saiu de casa, dirigiu-se à Rua da Imperatriz, e entrou no corredor de um sobrado.
— O sr. capitão está em casa?
— Quem é? perguntou de dentro uma voz irritada.
— Um seu criado, disse José Cândido.
Entrou.
O dono da casa veio recebê-lo à porta da sala, com um ar que contrastava com a voz de há pouco, mas não com a voz que empregou então, a qual era doce a mais não poder.
— Venha cá, venha cá, disse ele; cuidei que já nos tinha esquecido.
— Estive cá anteontem.
— Pois então! Dois dias parece-lhe pouco?
José Cândido sentiu-se satisfeito; entrou; sentou-se em uma cadeira de balanço, que o dono da casa lhe ofereceu. Era este o capitão Fabrício, um homem alto e cheio, grisalho, de olhos velhacos e pretos.
— Quer tomar alguma coisa?
— Não, senhor; obrigado.
Fabrício sentou-se também, esfregou as mãos, bateu com elas nos joelhos, exclamando:
— Então parece que a coisa vai!
— Ora, se vai!
— Ou tudo leva a breca! concluiu José Cândido com ar marcial.
— Apoiado!
Seguiu-se um silêncio. Fabrício foi o primeiro que falou:
— Tem feito alguma das suas?
— Tenho. Um barbeiro lá da minha rua, e dois oficiais da mesma loja, que já estavam apalavrados com os outros, declararam-me ontem que votam conosco.
— Assim! assim!... é preciso não esmorecer. Hoje dois, amanhã três, no fim das contas faz-se um rombo no inimigo.
E o capitão riu com um riso franco, amigável, paternal, enquanto José Cândido, com os olhos nos bicos dos botins, tinha o mesmo ar com que o pai o fora achar nessa manhã.
— Eu, sr. capitão... disse ele ao cabo de alguns segundos; queria falar-lhe numa coisa.
— Diga, diga.
— Talvez... pode ser... mas...
— Mas?
— Não me atrevo...
— Atreva-se.
— Queria dizer... sim... posso contar com sua proteção?
— Toda, toda, sr. José Cândido; pode contar comigo para tudo o que for de seu agrado.
Tinha que ver, que não pudesse contar com a boa vontade dos correligionários, um homem que tem feito o que o senhor tem feito. Diga, o que é?
José Cândido mostrou-se animado com esse tom, pôs toda a alma nas mãos e preparouse para desembuchar o seu segredo, enquanto Fabrício, com o ar mais afetuoso e serviçal que possuía, esperava que ele começasse a falar.
José Cândido falou.
Nunca a voz trêmula da donzela, que pela primeira vez confessa que ama, nunca foi mais doce, mais úmida. Os olhos, ora no chão, ora no teto, pareciam envergonhados da audácia do dono. A face, ordinariamente amarela como as gravatas, fez-se vermelha como os botões de vidro do colete. A mão tremia, o lábio tremia, todo ele tremia.
— Eu, sr. Capitão, disse ele, eu desejava... ambicionava... supunha... sim... queria ser eleitor...
O capitão entrelaçou um riso e uma careta, fez um gesto de cabeça e piscou os olhos.
— Ambição legítima, disse ele; ambição muito legítima, a mais legítima possível.
— Parece a V.S....
— Pois não há de parecer! Um homem digno, fiel ao partido, trabalhador...
— Por ora não tenho pedido nada.
— É verdade; não tem pedido nada.
— Então, posso contar? perguntou José Cândido no cúmulo da alegria.
O capitão deitou-lhe um pouco de água na fervura.
— Por mim, decerto; mas sabe que não depende só de mim; os correligionários, os candidatos, as influências...
— Mas, se é certo que eu posso ambicionar...
— Pode e deve. Mas, como sabe, tudo neste mundo está sujeito a contingências. O que eu posso afirmar-lhe é que pode contar comigo.
— Oh! interesse-se por mim!
Fabrício estendeu-lhe a mão.
— Conte com isso.
— Quanto a recursos, se é preciso entrar com alguns, creio que posso dispor de quatro ou seis contos de réis...
— Isso depois. Vamos primeiramente ao essencial; amanhã lhe darei a resposta.
Amanhã, não, domingo é mais certo.
José Cândido saiu da casa do capitão com a alma a nadar-lhe em um mar de júbilo.
Eleitor! José Cândido sentira nascer-lhe essa ambição algumas semanas antes; se é que ela nasceu, se é que suas ambições podiam nascer. Existia desde o princípio dos tempos;
coexistiu com o caos. Desagregando-se da confusão das coisas, ficou no espaço à espera que nascesse José Cândido. José Cândido nasceu, ela penetrou-lhe no cérebro, onde residiu escondida até quase trinta anos. Um dia rebentou como um aneurisma.
José Cândido tinha a paixão eleitoral, mas só a paixão eleitoral, não a política. Era um cabalista de primeira força. Ele vivia no tempo das eleições três vezes mais do que no resto dos tempos. Por isso amava as dissoluções da Câmara. Era a sua única ocupação, mas valia por trinta.
Tinha roda, dispunha de votos; era exímio no meio de angariar votos contrários, em trocar cédulas, preparar fósforos, reunir invisíveis.
Não lhe perguntassem qual era o seu partido; ele era do partido do capitão. Houve um tempo em que o capitão entendeu conveniente fazer uma reviravolta; José Cândido não se alterou; ficou no mesmo lugar; ficou fiel ao capitão. Este era a sua bandeira, o seu programa, o seu sistema. Suas idéias, princípios, simpatias, eram as simpatias, princípios e idéias do capitão; fora dele era tudo abominável. E o capitão sabia de que força era o correligionário. Quis um dia arranjar-lhe uma patente de alferes, na Guarda Nacional, e ele recusou, com uma abnegação romana. José Cândido era desinteressado, puro, incorruptível.
Um dia, porém, (fatal dia!) a ambição eleitoral deitou a ponta do nariz de fora. José Cândido sentiu bater-lhe o coração fortemente, mais fortemente do que batia, quando ele ia falar a Emília, sua prima, filha da sra. Inácia. Que seria? Consultou-se; recuou aterrado.
Uma feiticeira de Macbeth bradava-lhe aos ouvidos : “ Eleitor! sim; por que não? Ele os fazia, podia manipular-se a si próprio. Que seria preciso? Apoio? Contava com o capitão.
Dinheiro? O pai lhe daria algum quando soubesse que o filho ia ser eleitor. Esta idéia e que o trazia desde tanto tempo distraído, absorto, acima do tempo e do espaço.
Não eram muitas nem decisivas as esperanças que Fabrício lhe dera; mas as primeiras ambições são fáceis de iludir. José Cândido saiu da casa do capitão certo de ver já o seu nome proclamado aos quatro vento do universo. Ele próprio sentia em si um ar mais seguro, alguma coisa menos ínfima. Seus olhos pareciam dizer às esquinas, aos prédios, às calçadas da rua: Vede; este é um dos bem-aventurados da terra!
Ia neste sonho, quando ao passar a última esquina, perto de casa, sentiu alguém que lhe puxava pela aba do paletó.
III
A pessoa era uma mulher; a mulher era a sra. Inácia.
— Onde vai você, Juca? disse ela.
José Cândido sentira alguma coisa semelhante a um trambolhão moral; sua alma caiu no chão. Sorriu, contudo, apertou a mão à sra. Inácia, perguntou como iam todos.
— Todos vão bem; a Emília é que...
— Que tem? doente?
— Não; mas anda aborrecida. Você onde vai?
— Para casa.
— Vamos lá à casa primeiro.
— Vamos.
A sra. Inácia morava perto; seguiram os dois, a falar de coisas indiferentes, ela atenta, ele distraído.
— Que é que você tem, Juca? disse repentinamente a sra. Inácia.
— Eu?
— Sim; você.
— Nada.
— É impossível. Noto que você anda há algum tempo distraído, meio aluado, falando pouco, assim não sei como...
— Reparou nisso? disse José Cândido com um ar de magnífica superioridade.
— Reparei. Que é?
José Cândido parou.
— Há coisas, disse ele, superiores ao entendimento de uma senhora. Em geral, as senhoras não pensam nos negócios públicos... Eu penso nos negócios públicos.
A sra. Inácia não entendeu; ficou a olhar para ele, alguns instantes. Depois disse:
— Mas você anda distraído.
— Por isso mesmo.
— Isso mesmo o quê?
José Cândido levantou os ombros.
— Falemos de outra coisa, disse ele; falemos de linhas e alfinetes. Onde comprou o seu xale?
— Na Rua do Carmo, explicou a sra. Inácia; não custou muito caro.
— Não?
— Dez mil-réis.
— Está bom! murmurou José Cândido com os olhos e o pensamento no eleitorado.
A sra. Inácia mordia-se de zanga; não tinha alcançado nada e queria saber tudo ou alguma coisa: 1º porque podia ser namoro, e ela afagava a idéia de casá-lo com a filha; 2º
porque não queria perder a fama da sagacidade e jeito, que adquirira no bairro; 3º
finalmente, porque tinha o olho em uma dúzia de xícaras que havia em casa do primo Mateus.
Três boas razões.
Estavam perto da casa dela; a sra. Inácia parou.
— Juca, vou pedir a você uma coisa.
— Diga.
— Você há de me dizer o que é que tem.
— Mas por quê? que tenho eu?
— Alguma coisa; você não anda bom.
José Cândido já não podia esconder o desdém que lhe causava o triste vulgo, e a pergunta da sra. Inácia encheu a medida de seu infinito desprezo. Contudo era preciso explicar-se.
— Se eu lhe dissesse o que tenho, a senhora não entendia...
— Isso agora!
— Não entendia; mas só lhe peço que acredite numa coisa; eu nunca hei de desprezar os meus; posso fazer até muito benefício, porque... enfim... a posição... a importância... Sim, um eleitor tem importância.
— Eleitor?
— Lá me escapou; sim, eleitor... não diga nada. Adeus!
E José Cândido estendeu-lhe a mão.
— Não vens ver as pequenas? perguntou a sra. Inácia.
— Vou, vamos.
Foram; as meninas fizeram muita festa ao primo; ele pôde falar a sós, um minuto, com Emília, que era uma rechonchuda como a mãe, e saiu daí a meia hora.
A sra. Inácia ficara consternada. Não chegara a entender o que José Cândido lhe dissera.
A sra. Inácia era pouco mais inteligente do que os seus sapatos. Para entender as coisas era preciso que lhas dissessem com todas as letras, palavras, verbos e advérbios, tudo explicadinho, repetido, claro, transparente. As palavras de José Cândido não tinham para ela nem ligação nem explicação.
— Há alguma coisa, pensou ela; é preciso voltar à carga.
Não foi preciso. José Cândido contou-lhe tudo naquela mesma noite, sem pedido dela, mas de própria inspiração. Ele pensara na conveniência de ter alguém que, ao pé do pai, abrisse caminho ao pedido dos quatro ou seis contos de réis precisos para o cofre dos candidatos. Lembrou-se da sra. Inácia. Contou-lhe tudo, com muitas e repetidas explicações; depois disse o que queria.
— Cinco ou seis contos! exclamou a sra. Inácia pondo as mãos na cintura. Pois é preciso tanto dinheiro para isso?
— A senhora não entende de negócios públicos, disse José Cândido com certa bonomia e magnanimidade. Não me peça explicações; aceite o que lhe digo e ajude-me, ajude-me que é ajudar os seus, é a glória da família.
— Lá isso é! concordou a sra. Inácia para fazer crer que entendia uma coisa tão difícil que José Cândido dizia ser superior ao entendimento das mulheres.
E depois de um instante:
— Está certo de que seu pai ceda?
— Há de ceder.
— Só de pensar nisso, tremo!
— Não trema! Não lhe peça nada. Diga-lhe só que eu estou quase eleitor e preciso de cinco contos; que não me atrevo a pedi-los; que vivo aflito; que a glória da família está ameaçada...
— Espere, interrompeu velhacamente a sra. Inácia; para obrigá-lo mais, direi que a Emília ficou toda chorosa...
— A Emília... balbuciou José Cândido; mas...
— Anda lá! pensa que eu sou alguma tola? disse a sra. Inácia piscando os olhos.
José Cândido baixou os olhos pudicamente. A sra Inácia afiançou-lhe que não levava a mal seus sentimentos; chegava a aprová-los; talvez mesmo a aplaudi-los. José Cândido apertou-lhe as mãos, com certo ar, piscou um olho, e confirmou as suspeitas da sra.
Inácia, de modo que ela viu luzir-lhe nas prateleiras toda a louça da casa do velho Mateus.
O velho Mateus teve dois sobressaltos quando a prima lhe falou do caso; uma de alegria, porque a idéia de ver o filho eleitor sempre lhe lisonjeava a vaidade; o outro de terror, quando ela lhe fez ver que seriam precisos alguns quatro ou seis contos de réis.
— Nunca! exclamou ele dando um murro no balcão.
Daí a um quarto de hora, tendo ouvido as palavras e rogativas da sra. Inácia, limitou-se a dizer, mas já sem murro:
— É muito dinheiro!
Foi nessa ocasião que José Cândido, que tudo escutava, entrou na loja. Estava pálido naturalmente; e artificialmente com o ar desvairado e as pernas bambas. Instou por sua vez; disse que era a glória da família, a honra própria, que os mais altos destinos podiam estar no fim da campanha eleitoral.
O velho Mateus resistiu.
Mas resiste-se um dia, não se resiste em outro; e cada sol traz uma mudança à alma do homem. O sr. Mateus não era avesso à ambição, ainda que fosse homem pacato.
Verdadeiramente, ele não acreditava no eleitorado de José Cândido; mas este asseverou tanto, e ficou tão acabrunhado, falou de morrer, fez vários trejeitos mais, uns sinceros outros exagerados, que afinal o sr. Mateus prometeu um conto, depois dois, finalmente os quatro, e somente os quatro.
José Cândido cantou um Te Deus laudamum.
IV
Logo que obteve resposta favorável, José Cândido foi ter com o capitão Fabrício, que havia já adiado a resposta três vezes, dizendo não ter podido chegar a acordo.
Oh! que não sei de nojo como conte a declaração feita pelo capitão ao digno e ativo correligionário! José Cândido subiu as escadas a quatro e quatro. O eleitorado dava-lhe asas. Subiu; entrou na sala do capitão, falou-lhe trêmulo.
— Então?
Fabrício tinha preparado uma cara análoga ao ato, e suspirou uma vez, bateu duas vezes com a mão no joelho, até que rompeu a fatal palavra.
— O número está completo; nossos amigos pedem que você espere para a eleição seguinte. Na eleição seguinte o seu lugar é certo. Eu mesmo o defenderei, como o defendi agora, como o defenderei sempre.
José Cândido ouviu tudo aquilo mais pálido que um defunto.
— Mas, sr. capitão, eu...
— Não diga nada, interrompeu o capitão; não pode dizer mais do que eu próprio disse a todos eles...
— Contudo...
— Sei! Sei! Não há abnegação! Não há unidade de pensamento...
José Cândido quis ainda intercalar algumas frases, mas era impossível; o capitão interrompia-o furioso para asseverar que a abnegação estava morta, que não havia fraternidade política. José Cândido estava fulminado; não ouviu as primeiras palavras do chefe. Quando voltou a si, insinuou ao capitão que podia dispor dos meios necessários para obtenção do diploma.
— A coisa está feita, disse melancolicamente o capitão.
José Cândido torcia os braços.
— Cheguei a dizer que cedia o meu lugar em seu proveito...
— E então?
— Recusaram.
— Ah! trata-se então de uma guerra pessoal...
— Não! Sou obrigado a dizer que, nesse ponto, o pensamento dos nossos amigos foi não se desfazerem do meu nome, que eles supõem (com razão) cercado de certo prestígio.
José Cândido ainda insistiu, bradou, implorou; o capitão animou-o com as mais brilhante promessas, chegando a dizer que ele se retiraria da arena política, para todo o sempre, se por ventura o seu nobre amigo não fosse incluído na lista dos candidatos futuros. Era muito, mas eram promessas somente, e José Cândido vivia já de uma suposta realidade.
Durante três dias o mancebo andou desatinado, até que no quarto dia, por uma dessas resoluções que levam os Césares a atravessar o Rubicão, José Cândido galgou a muralha das considerações políticas: retirou o seu concurso ao capitão; em vez de lutar contra um partido, dispôs-se a lutar contra dois; determinou enfim apresentar-se candidato.
O sr. Mateus não era homem de dar os quatro contos, mediante a garantia única da influência do filho, sem o concurso de um partido. José Cândido, que o sabia, empregou uma perfídia; nada disse ao pai do que se passara com o capitão. Pelo contrário, deu-se como aceito e aplaudido; figurou que ia ter com ele muitas vezes; falava de conciliábulos, circulares, entrevistas, uma agitação comum. Oito dias depois, o pai aventava os quatro contos e entregava-os ao jovem candidato. Importa dizer que, na mente do sr. Mateus, os quatro contos não eram deitados à rua; ele meditava já obter umas empreitadas, por intermédio do futuro eleitor. Não! ele não era homem de dar dinheiro por nada. Nada por dinheiro ainda era possível.
— Vão para a caixa, disse José Cândido atando as notas.
O sr. Mateus suspirou; mas a aludida reserva mental e a vaidade de ver as grandezas políticas do filho, de algum modo lhe minoraram as saudades.
José Cândido, ambicioso impotente mais fantástico, viu tudo cor-de-rosa, contemplava já os dois partidos de cara à banda, vendo triunfar um nome não cogitado por eles. Havia mesmo em seu íntimo, certo desejo de derrotar pessoalmente o capitão, por não ter alcançado a aceitação de seu nome. Chegava-lhe aos ouvidos o eco de futuras conversações nos círculos políticos:
— José Cândido venceu!
— Eleitor José Cândido!
— É um golpe inesperado!
— É uma desforra da opinião pública!
— É isto!
— É aquilo!
Não se podia negar que José Cândido dispunha de alguns votos certos; ao todo, uns vinte e cinco. Podia ter esperança em alguns votos prováveis; uns cinqüenta. Era pouco, era quase nada; mas ele contava com algumas artes particulares que tinha.
Uma vez resolvido a lutar, atirou-se Cândido à arena, com alma e coração. Tratou primeiro que tudo de organizar umas listas excluindo o capitão e incluindo o seu nome, e fez crer aos votantes que o acompanhavam que essa decisão tinha sido tomada pelos centros políticos da capital. Ao barbeiro, acenou com a possibilidade de o incluir também;
e o barbeiro, cujas ambições não iam acima da rabeca, sentiu uma espécie de vertigem, uma explosão interior e acabou aceitando a oferta.
Os quatro contos do sr. Mateus começaram a ter uma extração lenta, mas certa. Almoço daqui, ceia dacolá, um presente, um empréstimo, todas as formas da redução, que podem estar ao alcance de quatro contos e de um candidato desejoso de fazer a chapa, todas foram empregadas com muito método e singular tenacidade.
O dia aproximava-se a passos de gigante.
V
Um dia de manhã o sr. Mateus teve um acesso de cólera. Abrira o Jornal do Commercio e lera a lista definitiva dos candidatos ao eleitorado da Paróquia. O nome do filho brilhava pela ausência!
Foi um Dies irae.
O sr. Mateus, com o jornal amarrotado na mão, precipitou-se no quarto de José Cândido.
— Malandro! pelintra, ratoneiro! Que é isto? Onde estão os meus quatro contos? dizia ele fazendo da gazeta um chicote e ferindo com ele o ar.
— Que é? disse o filho espantado.
O sr. Mateus berrou ainda alguns adjetivos, primeiro que explicasse o motivo da cólera.
Depois explicou. José Cândido ficou pálido, mas dominou-se logo. Simulou um grande espanto, e prometeu que ia saber o motivo daquilo. O dinheiro não estava perdido, porque só o dera com a condição do eleitorado.
— Tolo fui eu em ceder! exclamou o sr. Mateus.
José Cândido saiu e voltou daí a uma hora.
— Tudo está explicado, disse ele, essa lista é apócrifa.
José Cândido tinha apreendido a palavra apócrifa, nas lutas eleitorais; o pai, que nunca entrara nelas, ignorava absolutamente o sentido da palavra e teve vergonha de o pedir.
Felizmente o boticário defronte tinha um dicionário, que lhe emprestou, e ele pôde ler a definição do termo, e com certo custo aplicou-o ao caso.
Infelizmente, no dia seguinte era publicada uma circular política recomendando a lista que se dizia apócrifa; e dessa vez não era lícito duvidar, salvo se a circular fosse também apócrifa, o que José Cândido não teve ânimo de dizer. Confessou tudo; acrescentou que por motivos políticos ele não fora incluído na lista, mas que o partido o ajudaria por trás da cortina.
— Mas o dinheiro? bradou o pai, que ia achando apócrifos tanto o partido como a cortina.
— O dinheiro...
— Sim, onde está?
— O dinheiro é necessário à luta, disse José Cândido com um ar ingênuo. Quando duas facções de um mesmo grupo de interesses...
— Qual, interesses! Vai buscar o dinheiro.
Era difícil obedecer. Parte dele estava já em jantares, charutos, paletós, empréstimos, pagamento de dívidas. Demais, José Cândido não cederia nunca. Disse-lhe que o dinheiro tinha seguido o seu destino.
O sr. Mateus sentiu alguma coisa semelhante a um tiro na boca do estômago. Caiu numa cadeira, bufou, espumou, declarou a José Cândido, que saísse e nunca mais lhe pusesse os pés em casa. José Cândido não fez grande esforço para ficar; aceitou a solução e saiu.
— Nunca mais! bradou o pai. Ouviste? nunca mais!
E vendo-o sair sem dizer palavra, sem tentar abrandá-lo, sem um remorso aparente, o sr.
Mateus sentiu uma comoção superior à da perda dos quatro contos. A paternidade falou mais alto que o dinheiro.
Meia hora depois voltou à loja com os olhos vermelhos.
Tinha chorado.
José Cândido não chorou; saiu teso, até risonho, com os olhos na estrela eleitoral, certo de que o pai lhe abriria a porta e os braços no dia em que o visse aparecer triunfante. Foi dali ao barbeiro, contou-lhe o caso e as esperanças, que não perdera de abrandar a cólera do pai, quando fosse eleito. O barbeiro, dentro em si, reprovou o incidente; mas a esperança de um triunfo à custa do dinheiro de José Cândido, fê-lo calar todos os escrúpulos. Ele aprovou de boca o procedimento de José Cândido, que achou digno sem ser desrespeitoso. Esta opinião, que o envergonhava, foi dita ao mesmo tempo que ele afinava a rabeca; meio de se não ouvir a si próprio.
A notícia da expulsão de José Cândido caiu como uma bomba em casa da sra. Inácia.
Esta deu um salto ao xale e precipitou-se para casa do primo, a saber do que havia, enquanto Emília, a namorada de José Cândido, se desfazia em lágrimas amargas.
No meio das lágrimas apareceu-lhe José Cândido.
— Será verdade? perguntou a moça.
— O quê?
— Que você foi posto fora de casa.
José Cândido ergueu os ombros. Emília soltou um dilúvio de novas lágrimas.
— Mas por que chora você? perguntou José Cândido exasperado.
— Por quê? perguntou a moça indignada.
— Sim, por quê?
Emília disse que ele era um ingrato, e intimou-o a reconciliar-se com o pai; insinuou-lhe mesmo que o fato da expulsão podia demorar ou tornar impossível a aliança conjugal que os dois ambicionavam. Sou obrigado a dizer que este era o motivo secreto das lágrimas de Emília.
José Cândido respondeu com um repelão, declarou que tudo estava acabado entre eles, e saiu, sempre com os olhos na estrela eleitoral. O barbeiro teve igualmente notícia deste rompimento; e secretamente achou que era complicar a situação já melindrosa; mas de viva voz confessou que os sentimentos de segunda ordem não podem impedir a expansão dos altos interesses e das nobres paixões cívicas. Seu estilo foi menos levantado, mas a idéia foi aquela.
José Cândido concordava com tudo; animava-o a idéia de que não há arrufos diante de um candidato vencedor, e vivia com os olhos nas urnas. Uma dúzia de sujeitos trabalhava em favor dele; dois viviam dia e noite a copiar cédulas. José Cândido, vendo quinhentas, mil, duas mil cédulas manuscritas, imaginara que eram outros tantos votos, e figurava já o efeito de seu nome impresso com o algarismo dos votos adiante. Nunca mais fora à casa do capitão. Este duas ou três vezes mandou-o chamar; uma vez chegou a procurá-lo, mas não o encontrou; deixou um recado, inútil.
Os dois caudilhos estavam divorciados.
E à proporção que os quatro contos iam fugindo, a aurora esperada vinha a aproximar-se de José Cândido; o barbeiro e mais dois ou três férvidos partidários faziam esforços hercúleos. José Cândido chegou a sacrificar alguns mil-réis, nos jornais, em mofinas deste gênero:
ELEITORADO
Recomendamos o nome de um jovem cheio de serviços e de incontestável aptidão: o sr.
José Cândido.
Um do Povo Ou assim:
AO POVO!
Votemos no sr. José Cândido, uma das esperanças da mocidade e um dos fluminenses mais dignos por seus serviços e modéstia.
Justus Ou assim:
À URNAS!
Os homens honestos, amigos do talento e reconhecidos aos verdadeiros serviços, têm um candidato certo, que sairá eleito, porque felizmente goza da mais vasta popularidade na paróquia: o sr. José Cândido. Às urnas! às urnas!
Um que não falta VI
Chegou o dia; José Cândido não dormiu a noite antecedente; deixou a cama com a aurora. Preparou-se; atou ao pescoço a gravata mais amarela de sua coleção e foi animar as fileiras. Pelos seus cálculos tinha quinhentos votos certos; a estes deviam acrescer uns duzentos votos de simpatia, ou pessoal ou produzida pelas mofinas dos jornais. Vários amigos ainda lhe filaram alguns mil-réis, que ele entregou em dobro, para fortalecer as opiniões. As horas corriam, ele esperava ansioso o momento fatal.
E, coisa curiosa! não esperavam com menos ânsia o pai e a namorada. A idéia de o ver triunfante, sem que eles dessem por isso, já lhes fazia cócegas no coração. O sr. Mateus amaldiçoara o filho, mas não se lhe daria de abençoar o eleitor. Quanto a Emília, havia um pouco de vaidade e um pouco de interesse; o interesse era a reconciliação possível da família.
José Cândido foi ao barbeiro, que o recebeu um pouco melancólico.
O capitão arranjara no bairro um rival de José Cândido, e mandara-o contraminar o trabalho deste, não por medo de que a candidatura vencesse, mas para não perder alguns votos, que dariam mais forças à vitória da chapa. Ora, esse agente secreto estivera nessa manhã na loja do barbeiro, e abrira-lhe os olhos de tal modo, que o barbeiro estava aterrado, não com a idéia da derrota, mas com a do ridículo.
Não foi difícil a José Cândido restabelecer o fervor do barbeiro cujo espírito viera a este mundo, destinado a mover-se a todos os ventos do horizonte.
— Tem razão, disse ele; você tem razão. São tricas!
— Ora, você ainda vai com cantigas! O que eles querem é justamente assustar e desanimar a gente. Nada de fugir de caretas.
— Apoiado!
— Vamos à igreja!
— Vamos!
Fechou-se a loja; os dois oficiais tiveram sueto para ir votar. Alguns fregueses, dando com a porta fechada, praguejaram contra a indolência do Fígaro eleitoral; mas não lucraram nada com isto. A porta não se abriu.
A luta foi longa, renhida, desesperada. José Cândido pôs em ação todas as molas de seu gênio cabalista; ia, vinha, andava, parava, chapéu na mão ou na cabeça, bolso cheio de cédulas, dando-as a um, trocando a de outro, enchendo as algibeiras dos votantes. A
cada instante dava o sinal dos rolos; apoiava um e outro partido, quando se tratava de denunciar um fósforo e impedi-lo de votar. Nem nesse dia nem no seguinte comeu coisa que pudesse razoavelmente alimentá-lo. Todo ele era agitação, esperança, ambição, sonho. As vinte pessoas que o rodeavam freqüentemente, por uma dessas ilusões do desejo, afiguravam-se-lhe todo o corpo dos votantes; e dizendo-lhe elas que ele tinha uma maioria formidável, ele cria e sorria.
Nas primeiras horas o barbeiro esteve mole e pacato; mas o ardor de José Cândido comunicou-se-lhe; a esperança fez o resto.
— Que tal irá a coisa? perguntava-lhe às vezes José Cândido.
— Soberba! dizia invariavelmente o barbeiro. Vai como se quer!
Enfim, a agitação cessou; começou a apuração dos votos.
— Vamos ver quem tem garrafas vazias, dizia José Cândido na véspera da apuração.
Não obstante essa convicção do triunfo, José Cândido tremia às vezes; olhava um pouco desconfiado para a urna, em cujo ventre estava a glória ou a ignomínia. Se em vez de triunfo... Essa idéia negra era felizmente breve; a esperança cobria-o de suas folhas verdes; ele repousava tranqüilo sobre os futuros louros.
Não menos satisfeito andava o barbeiro; e José Cândido nutria esse fogo mais inocente que sagrado. Contudo, ele não contava com a vitória do barbeiro, em outras razões, porque lhe cortara muitos votos. Alguns aceitavam o nome de José Cândido, cabalista conhecido, mas duvidavam das opiniões do outro ou das suas aptidões eleitorais. José Cândido insistia frouxamente; e quando via o seu nome em perigo lançava ao mar o nome do aliado. Ora, o aliado, que nada disso viu nem suspeitou, nadava em júbilo e sentia em si um coro de gratidão pela notoriedade que José Cândido ia dar-lhe. Não cessava de lhe apertar as mãos, de dizer que ele era um homem superior.
— Não é verdade? acudia José Cândido ouvindo nas palavras do outro o eco de seus próprios pensamentos.
A aurora, com seus dedos de rosa, abriu as portas do céu ao sol do grande dia; mas parece que o sol, adivinhando alguma coisa do que se ia passar, não quis alumiar os sucessos desse dia e velou nobremente o rosto. Velou o rosto, enquanto o juiz de paz e mesários iam tomar seus lugares no templo, à roda da mesa, onde estava a urna que continha em seu bojo os destinos de uma existência.
A apuração começou. O presidente lia os nomes dos eleitos, que dois mesários escreviam. Esta leitura monótona era um dos maiores prazeres que José Cândido conhecia na terra; naquela ocasião era o prazer máximo; devia sê-lo ao menos.
As primeiras listas não continham o nome de José Cândido e muito menos o do barbeiro.
Este, candidato novel, lançava ao filho do sr. Mateus olhos de angústia e desesperação;
mas José Cândido tranqüilizava-o, dizendo-lhe ao ouvido que as primeiras listas não decidem uma eleição.
— Sim, confirmava o barbeiro; o primeiro milho é dos pintos.
Só no outro dia acabou a apuração. Seu resultado, na parte que nos interessa, foi o seguinte:
José Cândido........... 37 votos O barbeiro ............ 15 votos Uma ilusão engendra ordinariamente outra. José Cândido escondeu-se de todos, oito dias, persuadido que acabava de obter a celebridade da derrota. No fim esse tempo apareceu; mas andava com os olhos baixos. O primeiro desconhecido que lhe pedia fogo parecia estar dizendo:
— Coitado! Deve ter padecido muito.
Alguns, os conhecidos, falavam da eleição, mas com entusiasmo sincero, porque lhes parecia que o voto de trinta e sete pessoas era um sonho realizado para José Cândido.
Este ouvia esses aplausos com um grande desespero na alma, porque era preciso ser muito inferior para achar alguma coisa significativa em 37 votos.
Contudo, esses dois algarismos, com o tempo, tornaram-se menos ínfimos aos olhos de José Cândido. Eram ínfimos, durante a convalescença da derrota; mas os dias passam, o desgosto amortece, a ambição perde as penas, e os 37 votos ficaram sendo um título, uma recordação, uma espécie de aurora eleitoral. José Cândido, que até então não quisera mais pôr os olhos no fatal número, foi ele próprio comprar alguns exemplares das folhas que haviam publicado a apuração. Leu o seu nome; fez-lhe bem a vista desses votos, mais cinco do que os obtidos por um médico, mais sete do que os votos dados a um desembargador; enfim, um proprietário da vizinhança figurava apenas com um voto, lembrança lisonjeira de um inquilino atrasado nos aluguéis.
Um ano depois deste acontecimento, as coisas tinham mudado. O sr. Mateus falecera.
José Cândido, que deixara pai, noiva, afeições de família, interesses domésticos, por uma candidatura mais do que problemática, reconciliara-se com o autor de seus dias, de quem herdou as casas e a loja. A sra. Inácia não gastou muito latim para realizar o casamento da filha; ele veio de si mesmo; duplo sonho realizado, porque não só arranjou a filha, como reformou a louça da casa, que estava deficientíssima.
Uma só pessoa faltava: o sr. Mateus; mas a ausência era compensada pela herança.
Os meses correram, depois os anos; vieram os filhos. O barbeiro, que a troco de 15 votos, perdera quinze fregueses, tinha rompido as relações com José Cândido, mas nos últimos tempos reconciliara-se. José Cândido foi perdendo, uma a uma, suas paixões e ilusões da juventude. Sacrificou o amor da vadiação e as eleições. Sobre este ponto, ele explicava tudo e mais que tudo, exceto uma coisa, para ele metafísica e inextricável.
— Por que razão, dizia ele, às vezes, consigo, eu, que ajudei os outros a vencer, não pude vencer naquele dia?
E pensando assim, brilhavam-lhe diante dos olhos os 37 votos. Ele lisonjeava-se já com esse número escasso; falava dele com certa fatuidade. Às vezes, conversando com o barbeiro, diziam ambos, para recordar um fato e uma data:
— Foi no ano da nossa luta eleitoral.
E ao dizer isso, José Cândido parecia inchar, subir, trepar às eminências; sentia-se superior; seus olhos derramavam um olhar satisfeito ao passado. Depois concertava a gravata, a mais e mais amarela, com o gesto de um homem que preencheu seus destinos; puxava o colete para baixo com outro gesto sacudido, rápido, imperioso. E o resto do dia era um deleite, uma vida luminosa, dourada, juvenil... Pobre mortais! Até a ambição é caduca.


Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis
Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1877


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