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Textos para uso geral de domínio público.

Ruy de Leão

I
Consta de crônicas inéditas e secretas que, ali pelos anos de 1630, vivia no interior do Brasil, um fidalgo chamado Ruy de Leão, varão de boas prendas, extremado na língua do país e aparentado com uma família tamoia, por ter casado com uma das suas mais belas filhas.
Ruy de Leão contava nesse tempo cerca de quarenta anos. Era robusto, corado, ativo, tão enérgico na alma como no corpo. Tinha no rosto uns longes de melancolia que se dissipavam muita vez sem que de todo se extinguissem. Parece que a causa dessa desconhecida tristeza prendia com infortúnios que sofrera em Portugal, e que o trouxeram ao Brasil em um dos régios galeões. O certo é que o nosso fidalgo, esquecendo totalmente a grandeza da sua raça, não duvidou em unir-se pelos laços do matrimônio à filha de um velho pajé.
Matrimônio, digo eu, unicamente para usar de um termo corrente; mas a verdade é, que não se deve ligar a esta palavra a idéia cristã que lhe damos. O matrimônio do fidalgo consistiu nas cerimônias indígenas. Debalde o padre Pires tentou converter a esposa do fidalgo e santificar a união. Ruy de Leão respondia que, de ora em diante, era tamoio, pois que sua mulher o era, e mandou embora o padre.
Tamoio ficou o nosso fidalgo, menos no traje, que o conservou civilizado e português.
Mas até isso veio a perder daí a poucos anos, por conselho do pajé que um dia lhe disse:
— Carão branco, tu és a nossa lua, tu és o nosso irmão, mas só uma coisa te falta. O caju é igual ao caju; o coco é igual ao coco; só tu carão branco, em vez de seres igual a todos nós, usas de umas roupas semelhantes às dos nossos inimigos. Por que recusas vestir como nós as plumas da arara e as cores do jenipapo?
— Pajé, respondeu Ruy de Leão, a pele do carão branco não está afeita ao clima do teu país.
O pajé sorriu, contemplou o céu, inseriu o dedo mínimo no canto do olho esquerdo e ejaculou resposta filosófica:
— A água bate na pedra e fura a pedra: o costume reforma a natureza.
Ruy de Leão estremeceu ouvindo estas palavras na boca do pajé; não lhe parecia que ele as tirasse do seu cérebro. O sogro entristeceu, insistiu no pedido, e Ruy de Leão depois de meia hora de conferência cedeu, e despiu-se dos calções, do gibão e dos sapatos.
Grande foi a festa que seguiu à encarnação do fidalgo no vestuário do deserto.
Nanavi, sua esposa, fez um esplêndido cocar de plumas com que ele se adornou garridamente.
Entre Ruy de Leão e Júlio César nenhum ponto de contacto havia; mas uma circunstância ligava estes dois grandes homens: eram ambos calvos como a ocasião.
Imaginem o prazer com que o fidalgo recebeu o cocar; foi por assim dizer a sua coroa de louros cesariana. Na tarde desse famoso dia houve reunião na cabana do pajé.
Peitos de papagaio, costeletas de tatu, e outras viandas saborosas serviram de pasto aos convivas. Quando o sol começou a ficar triste, todos os convivas entraram a bailar, e bailaram até que o cansaço e o vinho os prostraram no mais profundo sono.
Extrema era a confiança da tribo no fidalgo, que logo se habituou aos mais duros exercícios.
Não havia guerra em que não colhesse imarcescíveis louros, nem matança de vítima a que não levasse um par de famintos queixos.
A primeira vez que figurou numa destas festas, era a vítima um galhardo mancebo indígena, que, segundo o uso, fora engordado previamente por uma velha de seus oitenta janeiros bem puxados.
Convocou-se toda a gente da vizinhança, e Ruy de Leão teve a glória de ser escolhido para dar o golpe mortal no rapaz.
Não se pode descrever a alegria do fidalgo, quando lhe foi conferida essa honra suprema.
Quando ele apareceu à porta da cabana com a maça mortífera em punho, e o colar de dentes humanos ao pescoço (ordem honorífica daqueles povos bárbaros), houve um geral murmúrio de admiração.
A única coisa com que os filhos do deserto embirraram, foi com o nariz de Ruy de Leão, nariz cristianíssimo, verdadeiro contraste com os narizes da gentilidade.
Rezam as crônicas que esta diferença nasal, esteve a ponto de provocar um levantamento no povo; mas a influência do pajé e a presença da graciosa Nanavi mataram em flor todo o projeto de insurreição.
Bizarro entrou na praça o nosso Ruy de Leão, e logo se encaminhou para a espécie de palanques onde a vítima devia ser imolada.
Imediatamente apareceu o condenado tirado por dois robustos rapazes, e rodeado por uma meia dúzia de velhos tocando nos seus alguidares, ao passo que uma orquestra executava em tíbias humanas ásperas variações dos Rossinis do tempo.
Ruy de Leão levantou a maça e começou a atordoar a vitima levemente, no meio dos aplausos da multidão, até que, com um golpe em cheio, lhe reduziu o crânio a migalhas.
Houve então a repartição da carne da vítima.
Ruy de Leão obteve larga parte e é fama que lhe achou melhor gosto do que outrora nos guisados da civilização.
Tais foram as grandes estréias antropófagas de Ruy de Leão, que nos outros exercícios desbancava ao mais pintado.
Apanhar um papagaio no ar com a flecha ou um peixe no rio; atirar ao arco com pés e mãos, tudo isso nada era para o nosso fidalgo.
Como os tamoios eram amigos de vagabundear, depressa o nosso Ruy de Leão perdeu o gosto de fazer ninho, tão pronunciado nos povos civilizados, e era de ver a presteza com que ele construía e desfazia sua cabana.
A tudo se afez o esposo de Nanavi. Entretanto é difícil que um homem civilizado perca de todo a sua tendência propagandista.
Ruy de Leão, posto que achasse bons os costumes do deserto, teve idéia de introduzir neles alguns usos da Europa.
Inúteis foram os seus esforços.
Os índios recusaram toda inovação política ou social nos seus hábitos.
Ruy de Leão ficou com a sua vontade.
Aqui temos pois o nosso herói, na época em que começa esta história, provada em documentos de incontestável autenticidade.
Justamente no ano de 1630, dois séculos antes da revolução do Campo da Aclamação, estava Ruy de Leão conversando com o pajé, a respeito das últimas águas, quando Nanavi apareceu à porta da cabana e comunicou ao esposo a agradável noticia de que dentro de pouco tempo seria pai.
Ruy de Leão ardia por ver algum fruto da sua união com a tamoia.
Levantou-se e exclamou:
— Ainda bem Nanavi: a mangueira não ficou estéril.
— Não, respondeu a índia.
— Bem-vinda seja essa criança que há de receber a herança de seu pai e a bênção de seu avô.
— Ai, não! exclamou o pajé. Quando teu filho aparecer no mundo, já eu estarei morto.
O pajé disse estas palavras com tom profético.
Ruy de Leão estremeceu e involuntariamente procurou as algibeiras dos calções, que já não usava, para meter-lhe as mãos dentro. Nanavi entrou a chorar.
O pajé consolou a família com uma dissertação filosófica a respeito da sorte; comparou a vida à luz fugaz do pirilampo: comparação de que os poetas começaram a usar mais tarde; e concluiu pedindo alguma coisa que comer.
Adivinhara o pajé. Dois meses antes de vir à luz o rebentão da ilustre raça dos Ruys de Leão, o pajé adoeceu gravemente.
Chamaram-se os físicos da localidade, Era um deles o ilustre Urumbeba, profundo conhecedor do corpo humano e seus achaques; e o outro o não menos ilustre Mandijbiyuruçu, versado no conhecimento das plantas e raízes.
Entraram estas duas glórias da Academia do sertão com a gravidade própria do caso.
Examinaram o enfermo, e declararam que era necessária uma conferência entre si, pelo que se retiraram as mais pessoas.
Quando os dois físicos ficaram sós, rompeu o silêncio de Urumbeba:
— O rio está crescendo muito, disse ele.
— Já reparei nisso; parece que alagará tudo como na lua passada.
— Além disso eu tive um sonho.
— Ah!
— Sonhei que uma cobra imensa desenvolvendo-se pela terra, enrolara a tribo toda.
— Uma cobra?
Urumbeba percebeu que o colega não atinava com o sentido do sonho.
— Sim, uma cobra disse Urumbeba e essa cobra é a imagem do rio que nos cercará a todos nós.
Mandijbiyuruçu ficou muito assustado com o sonho de Urumbeba, e concordou na necessidade de levantar as tendas.
Conversaram largamente nesse assunto até que, passada uma hora, um gemido do pajé veio lembrar-lhes o objeto principal da conferência.
Na opinião de Urumbeba o doente devia tomar um cozimento de aipim, dado em quatro porções de uma cuia cada uma; ao passo que Mandijbiyuruçu optou por uma aplicação de inimbóia cozida e dada em duas partes com fomentações de caataia.
Divididas as opiniões, foi necessário que as discutissem.
Mas o doente piorara, e Ruy de Leão veio dizer aos médicos que o pajé estava mal.
Foram os médicos ter com o enfermo e conheceram que era chegada a última hora; mas como o pajé padecia muito, resolveram que o melhor remédio era dar-lhe uma cacetada na cabeça — extrema-unção daqueles povos incultos.
O pajé compreendeu a situação e pediu para falar particularmente ao genro.
Quando se acharam sós, disse o pajé:
— Quero dar-te um presente, o melhor presente que um mortal pode dar a outro, porque o recebi eu mesmo das mãos de Tupã.
Ruy de Leão arregalou os olhos.
— Eu tenho ainda vida até o sol que vem.
— Quando vier a noite sairemos ao terreiro; quero ir contigo a um lugar secreto.
Prometeu Ruy de Leão acudir ao convite do pajé. Efetivamente, quando veio a noite, saiu o pajé encostado ao genro, e a seis ou sete passos da cabana, mandou o pajé que Ruy de Leão cavasse certo montículo de terra. Cavou o fidalgo, e não tardou que aparecesse um vaso hermeticamente tapado.
— Isto, disse o pajé, é um segredo que me acompanha sempre. Quando me mudo de um lugar para outro, levo o vaso comigo e enterro-o atrás da cabana.
Ruy de Leão contemplava o vaso, sem poder adivinhar o que continha.
Veio em auxílio dele o pajé.
— Era uma noite em que eu, não podendo dormir, fui sentar-me à beira do mar contemplando as estrelas. Estava ali já havia muito tempo, quando me apareceu um vulto cheio de luz e me disse: “ “ “
Ruy de Leão teve um movimento generoso.
— Ah! disse ele, bebe depressa.
O pajé empurrou levemente o genro.
— Não! se eu quisesse ser imortal, não o teria já bebido? Aceitei o licor com alegria e guardei-o para beber mais tarde. Profundos desgostos me amarguraram a vida; não quero ser imortal. Tu sim; és feliz; podes ser imortal. Dou-to; é para ti. Mas agora enterra o vaso; ninguém deve saber disto.
Ruy de Leão enterrou o vaso.
A noite estava escura; uma coruja piou em cima de uma árvore; o pio da coruja e o murmurar do rio eram os únicos sons que se ouviam. Quando Ruy de Leão se levantou, viu que o pajé tremia, segurou-o para não cair. Era tarde; o pajé expirou.
Grande foi a dor de Nanavi, quando soube da morte do pai. A cerimônia fúnebre impressionou a todos, porque a palavra do pajé era respeitada e adorada, e todos sabiam que se perdia nele uma glória da raça tamoia.
II
Ruy de Leão voltou ao lugar onde se achava enterrado o vaso do elixir. Desenterrou-o, tirou-lhe a tampa e examinou atentamente o conteúdo. Era um líquido amarelo, com seus reflexos azuis quando recebia os raios do sol.
A porção não era muita, nem para o fim proposto era preciso mais.
O cheiro do líquido era uma mistura de almíscar e canela.
O esposo de Nanavi enterrou o vaso e sentou-se sobre uma pedra que lhe ficava ao pé.
Não se pode saber que tempo gastou Ruy de Leão nas profundas reflexões em que se mergulhou o seu espírito. Apenas sabemos que, quando Ruy de Leão levantou a cabeça, tinha um sorriso nos lábios.
— Ilusão! exclamou ele; isto é impossível. Por que motivo não vi logo que o pajé era vítima de um sonho, ou desejava impor a sua privança com Tupã? Imortalidade! só Deus poderia dá-la, mas esse não a dá com certeza: a verdade é esta. Eia, Ruy de Leão, evoca o teu bom senso; não sejas tamoio em tudo. O pajé podia iludir aos outros, mas a mim!...
Levantou-se, deu dois passos e parou contemplando o lugar onde estava enterrado o precioso vaso.
— E contudo, disse ele, era tão bom possuir a imortalidade! Ver correr os séculos uns após e outros; ver passar as gerações; o nascimento e a queda dos impérios, e ficar sobranceiro a tudo; zombar do tempo e dos homens!... Oh! seria uma grande ventura, e se realmente o elixir do pajé...
Ouviu uns passos. Era Nanavi.
— Pensas no teu país? perguntou a indígena.
— O meu país é o teu, Nanavi, a minha pátria é o teu amor. Que teria eu lá mais do que tenho aqui? O sol é o mesmo; pisa-se a mesma terra; respira-se o mesmo ar. Vive-se a mesma vida; morre-se da mesma morte.
Nanavi lançou os braços à roda do pescoço de Ruy de Leão; este beijou-a ternamente na testa.
— Andas pensativo... que tens?
— Nada; saudades do pajé.
— Pobre pai!
Ruy de Leão sentou-se sobre uma pedra.
— Era um grande homem teu pai, disse ele.
— Era um sábio.
— Sim, era.
— Ninguém melhor do que ele, continuou Nanavi, sabia ler no céu, nem combinar as raízes da terra.
Ruy estremeceu.
— Que tens?
— Nada. Teu pai conhecia as virtudes das raízes?
— Quem as não conhece entre os filhos de Tupã?
— Tens razão.
— Meu pai era mais sábio que todos os outros; mas não o dizia a ninguém.
Ruy de Leão ficou pensativo.
— Quem sabe, dizia ele consigo, quem sabe se o pajé não combinou este elixir por meios secretos, e modestamente o atribuiu a origem divina?
Não sem admirar a modéstia do pajé, Ruy de Leão demorou-se nesta idéia e concluiu que, em todo o caso, não sendo provável que o sogro lhe quisesse mal, a bebida se não lhe desse a imortalidade, também não daria a morte.
Dois meses depois veio à luz um amável pimpolho, fruto da união do fidalgo com a indígena.
Segundo o uso, Ruy de Leão meteu-se na cama, tomou os caldos, recebeu as visitas, ao passo que a mulher foi cuidar dos arranjos da casa. Urumbeba foi visitar assiduamente a Ruy, não porque ele carecesse dos seus serviços médicos, mas porque era conversador e alegre nas horas de bom humor.
Numa das ocasiões, disse-lhe que havia chegado àquela região um padre da nação de Ruy, homem apessoado e de falas de mel.
— Onde está? perguntou Ruy.
— Anda perto; foi visto na foz do rio.
Daí a dias apareceu efetivamente o padre Norberto, que andava em missão. Disseram-lhe que havia ali um homem seu compatriota; foi vê-lo. Eram conhecidos.
O frade Norberto falou de Portugal e da família de Ruy. Disse-lhe que os seus parentes se achavam mortos com exceção de um primo que fora meter uma lança em África.
— Pouco me importa saber, frade Norberto, do que vai lá pela minha família, nem se são vivos ou mortos. Hoje a minha família é Nanavi e meu filho.
Justamente nessa ocasião acordou o pequerrucho; o frade Norberto viu o fruto do amor da indígena com o europeu; e disse ao fidalgo.
— Vamos batizá-lo?
— Não.
— Pois quê! não quer?
— Não.
— Meu Deus! continuou o frade Norberto, será isso possível! dir-se-á que estes gentios nascidos e criados sem a luz da fé, são mais fáceis de converter que V. Mercê nascido e criado no seio da Igreja.
O argumento não tinha resposta; por isso mesmo o fidalgo tentou sofismá-lo. O digno frade ouviu-o silencioso.
Quando o fidalgo acabou disse o frade:
— Peço a Deus que não faça cair sobre V. Mercê a justa pena deste ato... E saiu.
Logo nessa noite, teve Ruy de Leão uma intensa febre; no dia seguinte piorou. Nenhuma raiz, nenhuma folha pôde abrandar o mal do pobre Ruy. Esgotou-se a farmacopéia do deserto; a doença tinha todos os sinais de ser mortal. Três dias durou esta luta entre a natureza e a ciência. Ao cabo desse tempo resolveu-se que, se o último remédio não produzisse efeito, devia recorrer-se ao medicamento eleitoral do cacete.
Ruy não sabia que já estava condenado, mas suspeitava-o bem, porque o remédio que lhe deram como definitivo nenhum efeito produzira. Viu a morte diante de si; lembrou-se das palavras do frade Norberto; contemplou o filho, apenas nascido, a mulher ainda no viço dos anos. Todas estas coisas juntas fizeram com que Ruy reunisse todas as suas forças (que bem poucas eram), e tentasse de noite ir ao elixir da imortalidade.
Fê-lo a muito custo; logo à porta da cabana teve um desmaio. Conseguiu levantar-se sem despertar ninguém. Caminhou lentamente para o montículo onde estava enterrado o vaso; cavou a terra com as unhas; arrancou o vaso e bebeu parte do conteúdo.
No dia seguinte amanheceu melhor. Os parentes de Nanavi, que já preparavam os ventres para o condigno enterro do estrangeiro ilustre, ficaram agradavelmente surpresos quando viram a rápida melhora que naturalmente atribuíram ao remédio que tomara.
Restabeleceu-se Ruy de Leão da moléstia, e grande alegria houve por isso, pois o fidalgo era realmente a luz daquela gente e o melhor conselho dos casos difíceis.
Certeza de que estava imortal, não a tinha ainda Ruy de Leão; mas certeza de que o elixir curasse febres teimosas, essa adquiriu logo. Esperemos o resto, dizia ele consigo.
E esperou.
Não tardou que se admirasse toda a gente daquelas paragens da robustez crescente de Ruy de Leão; era o segundo efeito do elixir. Multiplicaram-se-lhe as forças e a atividade, coisa que sumamente agradava a Nanavi, pois naquele tempo e entre aqueles povos, a glória não estava em agitar um junco parisiense, mas em brandir uma pesada maça de guerra.
Com os anos cresceram as esperanças de Ruy. O tempo nenhuma ação tinha nele; não só os poucos cabelos que tinha continuaram a ficar pretos, senão que lhe nasceram outros, e dentro em pouco tempo tinha o homem uma verdadeira floresta na cabeça, a qual floresta, atenta à falta de pentes no sertão, era uma verdadeira floresta virgem.
Nenhuma ruga lhe afeiou o rosto: nenhum abalo lhe fraqueou o pulso.
Tinha Ruy sessenta anos e era o mesmo homem dos quarenta. Não eram isto indícios da imortalidade? Ruy adquiriu a plena certeza de que tinha vencido a morte.
Não aconteceu o mesmo à pobre Nanavi, que andando um dia a colher frutas no mato, recebeu em cima da cabeça um tronco que a levou desta para melhor. Ficou a criança, rapazote de largas esperanças, único fruto dos amores de Ruy e Nanavi.
Como o frade Norberto continuasse em missão, encontrou-o um dia o nosso neo-tamoio e travou conversa com ele.
Sem descobrir o segredo do pajé, disse-lhe que tinha meios de fazer uma conversão em larga escala durante longos decorreres de anos; que para isso ajudaria com dedicação os frades da companhia não somente com as luzes que tinha da língua do Brasil como também pela autoridade moral que adquirira entre os índios; finalmente que por prova de que servia sinceramente a igreja, dava a batizar o filho de Nanavi.
— De boa razão é vosso procedimento sr. Ruy de Leão e eu estou que a fé colherá grande proveito com o auxílio de vossa pessoa. Suspeitar de vossa sinceridade fora além de injustiça, erro grosseiro, porquanto entrais no corpo da Igreja passando a porta preciosa e precedendo ao inocente filho que nos dais para batizar e iniciar na fé. Onde está a mãe?
— A mãe morreu.
— Culpa vossa, sr. Ruy de Leão; perdeu-se uma alma pela obstinação com que V. M. se houve...
— Estou arrependido, padre Norberto, disse Ruy ajoelhando aos pés do frade.
Foi batizado o pequeno e iniciado nos preceitos da fé cristã, ao passo que o pai incumbido de arrebanhar a gentilidade, saiu pelo sertão acompanhado pelo frade Norberto e outro.
Longo tempo andou nessa missão. Colheu a Igreja preciosos frutos dela e quando voltaram todos três para asilo dos frades houve grande e preciosa festa em honra de todos e principalmente de Ruy. Os frades asseveraram à porfia que a piedade do fidalgo fora exemplar e os seus esforços incessantes.
Notaram todos, porém, que se os frades voltaram alquebrados pelas fadigas e perigos, Ruy estava tão sadio e robusto como fora. Maior admiração houve quando o fidalgo confessou ter mais de sessenta anos.
— Não admira, respondeu o fidalgo rindo; eu adquiri o privilégio desta gente que vive geralmente até os cem anos.
Ficou o nosso Ruy no convento acompanhando os frades. Uma noite veio do sertão uma horda de índios, e atacou o asilo monástico com desusado vigor. A defesa foi quase toda nula contra os ferozes índios. Após uma luta porfiada, Ruy conseguiu fazer ouvir a sua voz e acalmar os ânimos. Os índios foram embora deixando dois cadáveres dos seus.
Dos frades tinham morrido dois às envenenadas flechas do inimigo. A todos admirou, porém, que Ruy recebesse uma flecha nas costas, que a arrancasse, e não morresse como acontecera aos outros.
— Que mistério é esse irmão? perguntou-lhe um frade.
— Nenhum, respondeu Ruy; provavelmente a flecha não vinha ervada.
Correram os anos; os frades estavam substituídos à proporção que iam morrendo; e assim se chegou aos anos de 1730, sem que Ruy perdesse sequer um dos traços de sua vigorosa pessoa.
Toda a gente ficava pasmada diante de semelhante prodígio. Prodígio havia de certo porque de cem anos por cima é impossível não ter já todos os sinais da velhice; porém não... nunca Ruy deixou de ter a mesma cara.
Foi em 1730 que um oficial régio tendo sabido da maravilhosa mocidade de Ruy, ofereceu-se para levá-lo à corte de Lisboa a fim de apresentá-lo ao rei que era então D.
João V. Partiram.
III
É ÉÉEE incrível que nenhuma história publicada daquele tempo mencione a chegada deste prodigioso sujeito à corte de Lisboa e dos casos que aí houve.
Ruy não foi apresentado ao rei, não se sabe bem por que razão; mas andou por toda a parte; figurou nos solares da fidalguia como nas casas dos mesteirais; espantou damas, condes e burgueses; falou de coisas acontecidas um século antes; causou em suma o mesmo assombro que o célebre conde de S. Germano em Paris, ainda que este misterioso personagem não possuísse o dom da imortalidade achado pelo pajé.
Sabido é que às mulheres agrada o misterioso e o raro. Uma D. Beatriz, formosíssima fidalga daquele tempo, veio a enamorar-se do nosso Ruy que também se enamorou dela.
Como a moça estivesse para casar com D. Álvaro, marquês de P... saiu este paladino a campo e desafiou Ruy por um combate singular.
Não era homem de recusar duelo o nosso Ruy; aceitou o repto do fidalgo, que o não era mais que ele, e bateram-se à espada nas imediações de Lisboa.
Infelizmente o uso da flecha desabituara o viúvo de Nanavi ao uso da espada. O marquês era esperto jogador desta arma. O combate era desigual. Todavia, não aceitou Ruy o conselho dos que lhe diziam que fizesse um estudo prévio.
Durou o duelo uns vinte minutos de angústia para os padrinhos de Ruy; ao cabo desse tempo, D. Álvaro varou o nosso homem de meio a meio. Correram todos ao ferido que imediatamente caiu no chão lavado em sangue.
— Está morto! exclamaram todos.
— Ainda não, disse Ruy; não estou morto.
E com a própria mão estancou o sangue, enquanto um físico, adrede convidado, lhe administrou os primeiros socorros.
— Morre daqui a duas horas, disse tristemente o cirurgião aos padrinhos de Ruy.
Duas horas depois, Ruy aparecia nas ruas de Lisboa, com grande espanto do povo que ouvira falar no duelo e nos resultados dele.
— Sabem que mais? dizia o cirurgião, aquele homem é o diabo.
Naqueles tempos de fé uma descoberta desta ordem equivalia ao exílio perpétuo do homem. Ruy viu fecharem-se-lhe as portas dos palácios, as hospedarias, as casas todas enfim; e compreendeu que estava abandonado.
Ajuntou algum dinheiro que tinha, guardou na algibeira um frasco contendo o resto do elixir de imortalidade, e partiu para Espanha.
Ali deixou de dizer quem era, nem a idade que tinha; viveu desconhecido. Mas não deixou de lhe ser proveitoso e incógnito. Jogou a sorte nas casas em que isso se fazia e ganhou somas fabulosas.
— Que farei agora? perguntava Ruy a si mesmo.
Partiu para a Alemanha e dispôs-se a estudar. Com o dinheiro que tinha ganho nas tavolagens de Castela, pôde o nosso célebre Ruy de Leão ocorrer às despesas do estudo.
Ao cabo de longos anos, era ele doutor em teologia, filosofia, matemática, direito, medicina, profundo antiquário, extremado nas ciências físicas e químicas; em suma o doutor dos doutores, a expressão mais alta da ciência humana. Aprendeu o latim, o grego, o árabe, o armênio, o turco, o hebraico. Traduziu para várias línguas as obras de Santo Agostinho e S. Tomás; fundou uma academia arqueológica e um liceu de filosofia;
comentou os atos dos apóstolos, escreveu uma história dos mártires, fez descobertas arqueológicas em Roma, anunciou dois cometas e espantou toda a Europa científica não menos pela profundidade e variedade dos seus conhecimentos, como pelo prodigioso número de acontecimentos antigos a que presenciara.
Graças à riqueza que facilmente adquiriu, casou o nosso homem com uma fidalga de Espanha cinco vezes marquesa e rica de mais a mais. Durou pouco o casamento; a mulher faleceu dois anos depois, e foi essa a maior dor de sua vida, posto que a morta lhe deixara uma grande riqueza nas mãos.
De novo se entregou aos estudos da ciência, com redobrado ardor. Mas apesar da admiração que o mundo científico lhe votara, apesar da espécie de infalibilidade que adquirira perante as sociedades e academias, o nosso Ruy entrou a sofrer de um incurável aborrecimento. Tinha quase dois séculos e a vida já lhe pesava; o mundo não lhe oferecia espetáculo novo; a ciência perdera o prestígio da princípio: o imortal começou a desejar a morte.
Mas era tarde.
Como acharia ele a morte?
Ruy recorreu ao suicídio; sabia que era um crime perante Deus e os homens; mas não tinha outro recurso. Achava-se então em Lisboa, mas como já muitos dos que o conheceram antes tinham morrido, ninguém viu nele o mesmo Ruy de Leão e ele teve o cuidado de trazer nome suposto.
Ali resolveu acabar os seus dias. Foi ao Tejo e atirou-se à água; em ocasião em que não podia ser socorrido. Sabia nadar, mas não quis usar do que sabia. Debalde! o corpo voltou à tona e desceu até esbarrar num galeão, de onde foi visto e pescado.
De outra vez recorreu à faca mas o mais que conseguiu foi abrir no pescoço uma ferida que se curou rapidamente.
Era impossível morrer.
Imagine quem puder o suplício deste homem condenado a ser imortal, a ver os mesmos dias, as mesmas comédias — este Tântalo da morte, ambicionando aquilo que os outros receiam — pedindo ao céu como a suprema felicidade uma cova para dormir.
A situação é de si tão patética que eu não precisa lacrimejar o estilo; basta dizer a coisa para que ela seja compreendida.
Depois de estudar tudo e tudo ver; depois de passear pelas várias partes do mundo, sem encontrar novidade que lhe divertisse o ânimo; depois de ser assíduo espectador de tudo quanto pudesse despertar a curiosidade de um homem enfadado como, por exemplo, o homem de botas de cortiça, o boneco jogador de xadrez e outros, determinou Ruy de Leão voltar ao Brasil nos princípios deste século ali pelos anos de mil oitocentos e tantos, estando ainda cá o rei.
Efetivamente aqui aportou no Rio de Janeiro o imortal Ruy. A cidade não oferecia então o aspecto que hoje tem. A rua do Ouvidor não era a via elegante da capital; nem o Rocio estava transformado no jardim que aí vemos. Eram os belos tempos de Vidigal e seus granadeiros, de cujas proezas tão habilmente falou o nosso chorado dr. Manuel de Almeida, talento como poucos.
Ruy tratou de encobrir-se o mais que pôde; entrou como verdadeiro desconhecido.
Contudo a presença de um homem tão sábio e tão rico, não era coisa que passasse despercebida ao povo nem à corte. Não tardou que fosse convidado para as melhores casas e os vários fidalgos de respeito do rei porfiaram em recebê-lo à sua sala. Era parceiro obrigado no whist dos velhos fidalgos, grande par do minueto, excelente cavaleiro do garfo, em suma a flor da boa roda.
Mas esse recreio durou pouco. No fim de dois meses voltou Ruy de Leão às suas mágoas antigas.
Foi então que lhe aconteceu um caso decisivo na sua vida.
Entre as damas que mais apreciavam o saber e os dotes do ilustre Ruy, havia uma D.
Madalena de Sousa e Pedroiça, criatura tão notável pela graça do semblante, quanto pelas virtudes fidalgas da vida. Ruy ficara sempre com um grande pendor às mulheres, o que era naturalmente um corretivo da imortalidade, porquanto ser imortal e aborrecer as mulheres seria estar no pior de todos os infernos deste mundo e do outro.
Agradou-lhe D. Madalena, mas esta posto que o apreciasse muito, não lhe aceitou o coração. Coração repelido é o ideal da pertinácia. Ruy multiplicou as suas armas galantes, a ver se colhia a esquiva dama, e esta sempre isenta, dava de tábua às seduções do namorado.
Durou esta luta cerca de dois anos.
Uma noite, vindo recolher-se para casa o nosso Ruy, surdiu-lhe em frente um sujeito e lhe disse:
—Quer saber por que razão D. Madalena lhe recusa a mão?
— Quero.
— Ama a outro.
— Impossível.
— É verdade!
O sujeito tinha a cara meia coberta com uma das abas do capote. Descobriu-se então e Ruy pedindo a lanterna ao criado que tinha com ele, pôde reconhecer a um parente de Madalena.
Passava-se esta cena nos Cajueiros e o nosso Ruy morava perto do Valongo: convidou o parente da moça para acompanhá-lo à casa.
Quando lá chegaram, tomou palavra o parente da moça, D. Martim, e disse:
— D. Madalena ama o licenciado Álvares e quer casar com ele; o pai opõe-se ao casamento e já a ameaçou com o convento. É essa a razão por que não aceita o seu amor.
— Mas, disse Ruy, eu não sei que diabo achou ela no licenciado...
— Nem eu, mas a verdade é esta.
Ruy refletiu na dificuldade de sua posição.
— Deste modo, disse ele, perco o meu tempo...
— Como eu perdi, replicou D. Martim: também eu a amei mas nada pude conseguir. O
licenciado transtornou-lhe a cabeça. Que lhe havemos de fazer?
— Dar uma lição ao licenciado.
D. Martim piscou o olho, via-se-lhe no rosto que ele não vinha para outra coisa.
— Como lhe daremos a lição?
— Como?
— É verdade que ele costuma a falar com a prima às escondidas...
— A horas mortas?
— Sim. Chega ao portão e ela fala de cima da janela que dá para o jardim.
— Basta.
— Qual é o seu plano? perguntou D. Martim arranjando o capote.
— Esganá-lo.
— Mas isso é perigoso; o intendente da polícia não é de graças.
— Qual intendente! exclamou Ruy; pois eu cá vou consultar intendente para esganar um patife?
Saiu D. Martim exultando de contente, e Ruy deitou-se meditando na vingança que devia tomar do rival.
Na subseqüente noite não apareceu Ruy de Leão em casa da família de D. Madalena, e foi esperar o licenciado no sítio indicado por D. Martim. A noite era escura: e ameaçava temporal. Ruy saíra de casa sem criado nem lampião. Armou-se com uma faca, encostouse à parede e esperou que batesse a hora da vingança.
Ao cabo de longo tempo, que é sempre longo para quem espera, Ruy de Leão ouviu passos ao longe na direção do ponto em que se achava. Ao mesmo tempo abriu-se a janela de Madalena e o vulto da moça apareceu como Julieta quando esperava Romeu e a escada.
Era a hora suprema.
Coseu-se o doutor dos doutores com a parede e esperou o feliz rival que se aproximava cautelosamente. Mal o pobre namorado soltava as primeiras palavras, saltou-lhe acima o fidalgo e enterrou-lhe no estômago uma comprida faca. O licenciado apenas deu um gemido e tentou murmurar o nome de Madalena. Caiu. Ruy afastou-se rapidamente do teatro do crime.
No dia seguinte de manhã apareceu a polícia, levantou o cadáver, fez-lhe os exames precisos, e começou as indagações para ver de onde partia o crime.
A primeira suspeita recaiu sobre o pai de Madalena cuja oposição ao licenciado era conhecida; mas o pai, vendo contra si a espada da lei, declarou que talvez fosse antes o crime praticado por um indivíduo que igualmente pretendia Madalena, homem de boa presença, formado em várias matérias e conhecido em toda a cidade.
Houve da parte do intendente tão virtuosa repulsa ao ouvir tão negra suspeita, que o nosso Ruy se lha visse, devia votar-lhe eterna gratidão.
Todavia, como a justiça não podia deixar de averiguar tudo, mandou-se chamar Ruy de Leão, que apenas chegou negou o crime. Entretanto deu-se-lhe busca em casa, e achou-
se-lhe a faca ensangüentada, que por um incrível descuido Ruy esquecera de lavar ou deitar fora. Interrogada a criadagem, confessou que o amo saíra de casa à noite, sem escudeiro, embuçado num capote e escondendo alguma coisa.
Todos os indícios eram contra o assassino.
A justiça d’Similia similibus curantur') Similia similibus curantur; estás vencido.
Bebeu o resto do elixir do pajé. No dia seguinte morreu.
Assim acabou este grande homem, após quase três séculos de existência, tendo colhido louros na guerra, na ciência e no parlamento; feliz no jogo e nos amores; mimoso da fortuna; homem, enfim, que provou praticamente que a morte, longe de ser um mal, é um corretivo necessário aos aborrecimentos da vida.
Imitemo-lo nas façanhas e no amor ao estudo; não no desejo de ser imortal; e convencemo-nos de que o melhor elixir de imortalidade não vale os sete palmos de terra de Caju.


Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis
Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1872


Domínio Público Gov.BR


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