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Textos para uso geral de domínio público.

Qual dos Dois

I
A Rua do Ouvidor é a gazeta viva do Rio de Janeiro. Ali se fazem planos políticos e candidaturas eleitorais; ali correm as notícias; ali se discutem as grandes e as pequenas coisas: o artigo de fundo dá o braço à mofina, o anúncio vive em santa paz com o folhetim.
Não é, pois, de admirar que ali comece este romance, que é ao mesmo tempo o romance do dr. Daniel E..., rapaz de vinte e oito anos, formado aos vinte e dois, e regressado há pouco da Europa. Daniel é formado em direito, mas até a idade em que o vemos aparecer não pleiteou um só processo, e, a julgar pelo gênero de vida que leva, não promete ser coisa que preste na ordem judicial. E, no entanto, não lhe falta talento, nem amigos, nem protetores, três elementos capazes de levantar um homem quando ele não tem má estrela. Mas apesar de todas essas vantagens, Daniel não tinha nem gosto nem profissão de advogado, e estava mais longe dela do que o pólo ártico está do pólo antártico.
Falemos verdade: o grande obstáculo que havia em Daniel, não só para a vida forense como para qualquer outra vida ativa, era a preguiça, o poderoso móvel do espírito humano descoberto por La Rochefoucauld, isso que Madame de Schönberg dizia ser — “.
A preguiça quebrava-lhe os arrojos, como lhe arrancava as paixões: e como felizmente ele possuía bens de fortuna, podia afoitamente dispensar-se de tentar qualquer carreira trabalhosa, ou que simplesmente lhe exigisse atenção.
Indiferente ao movimento público, a queda de um ministério valia para ele tanto como a extinção de um charuto. Nunca lera um discurso parlamentar. Conhecia a Constituição por tê-la lido na academia. Não votava nunca, nem tinha disposição de fazê-lo.
Nenhuma grande ordem de idéias chamava a sua atenção; tinha em pouco as fadigas do gênero humano por bens que lhe pareciam nulos, sem que desse a razão por quê, operação que lhe exigiria certa atividade, que não tinha.
— A vida é um ônibus, dizia ele; cada um paga a sua passagem e desce do veículo na primeira cova que encontra. Ora, num ônibus, anda-se quieto; deixem-me andar quieto.
Vê-se que o sentimento da preguiça aliava-se um pouco a certa filosofia apática, resultando deste consórcio a mais perfeita tranqüilidade de ânimo que jamais entrou num peito daquela idade.
A sua vida era, pois, serena, plana e uniforme. Nem tinha as grandes tempestades que agitam o mar, nem os aspectos sombrios de um terreno cercado de montanhas. Era a quietação do lago e a regularidade da planície. Pode ser que houvesse dentro dele o germe das grandes paixões, mas faltava fecundá-lo.
Vivia Daniel na Rua do Ouvidor; os seus horizontes não passavam da casa do Bernardo ou da livraria Garnier. Fazia algumas excursões a Andaraí, a Botafogo ou à Tijuca, do mesmo modo que se faz a viagem a Buenos Aires ou a Lisboa; mas o seu país natal era a Rua do Ouvidor. Se a Rua do Ouvidor não existisse, dizia ele, era preciso inventá-la.
Depois da Rua do Ouvidor, só uma coisa lhe merecia cultos: a alcova em que dormia.
Era elegante por indiferença; vestia o que lhe davam os alfaiates. Ia ao teatro por matar o tempo; entrava sem curiosidade e saía sem comoções.
Não havia memória de que se houvesse zangado alguma vez, nem com os escravos, nem com os amigos, que ele aliás confundia até ao ponto de dizer que via um amigo em cada escravo e um escravo em cada amigo.
Não consta que depois de formado concluísse a leitura de um livro, qualquer que fosse, nem que soubesse o título dos que lia à noite para chamar o sono.
Tinha, entretanto, talento, como disse, e podia ser alguma coisa, na política, no foro, nas letras e até no amor, porque era um tipo singularmente belo, um desses rapazes com que sonham as meninas de 15 anos. Mas não amava, nem era amado.
Vivia com o pai; e completavam ambos toda a família. O contraste era expressivo; tão apático era um, quão ativo era o outro. O velho Marcos era negociante desde longa data;
ganhara no comércio todos os seus cabedais; agora, trabalhava para não vadiar.
Entendia que o trabalho não era um meio, mas um fim. Quando o filho se dava algumas vezes ao escopo de provar o contrário, o bom do velho limitava-se a sorrir e a responder:
— Tens razão, meu peralta; tens razão, porque eu não posso admitir que não tenhas razão, mas deixa-me continuar no erro.
Outro contraste: Marcos era sempre folgazão; Daniel ria poucas vezes, menos por misantropia que por indolência. Mas, como não se zangava, também, não apresentava nenhum contraste.
Tinha ido a dois ou três saraus em toda a sua vida; não dançou, nem jogou, nem ceou;
limitou-se a olhar, a fumar e a trocar algumas palavras. Não se demorou em nenhum deles mais de uma hora.
Tal é o dr. Daniel a quem os leitores vão ver na Rua do Ouvidor, à porta de uma loja de modas.
II
Era há cinco anos, e na época das câmaras. A Rua do Ouvidor é nessa época o grande pasmatório da capital; ali vão ter os deputados e os curiosos, os políticos por ofício e por devoção. À porta da loja em que vemos Daniel estão dois deputados conversando; tratase de uma interpelação para o dia seguinte. Daniel, encostado ao mostrador, do lado da rua, fuma negligentemente um charuto, e olha distraído algumas mulheres que vão passando.
De quando em quando lhe chegam aos ouvidos algumas palavras truncadas da conversa política; a única impressão que produz no rapaz é um sorriso.
No fim de algum tempo, parou diante de Daniel um rapaz baixinho, representando ter trinta anos, nem bonito nem feio, mas elegantemente vestido. Eu diria que era um dândi, se a novíssima expressão francesa petit crevé não correspondesse melhor ao tipo do recém-chegado.
— Adeus, Daniel! disse este.
— Como estás, Valadares? Que fazes?
— Faço horas para jantar. São três e meia, não? Queres tu vir jantar comigo?
— Pois sim.
Valadares encostou-se também ao mostrador, cavalgou o pince-nez, e pôs-se a olhar para quem passava. Houve entre ambos um silêncio de alguns minutos.
No entanto, a conversa dos deputados tornara-se animada, a ponto que Daniel voltou rapidamente a cabeça, justamente na ocasião em que um deles tirava do bolso um papel que ia ler ao outro.
Daniel sorriu.
— Quem são estes dois sujeitos? perguntou Valadares.
— Deputados.
Novo silêncio, interrompido por Valadares:
— Sabes que o Abreu fugiu? disse ele.
— Por quê?
— Achou-se alcançado na caixa do patrão; e não querendo expor-se a alguma vergonha, achou mais prudente retirar-se da cena.
A resposta de Daniel foi sacudir a cinza do charuto.
Valadares continuou:
— Nem sabes a causa disto?
— A Mariquinhas?
— Justo.
— Era previsto. Quando fugires também...
— Eu?
— Tu.
— Mas se eu tenho caixa à minha disposição...
— Não se foge só do Rio de Janeiro, foge-se também do mundo.
— Um suicídio?
— Isso mesmo.
— Assim era eu tolo!
— Quando fugires do planeta, eu saberei logo que é por causa da Luisinha.
— Não digas mal da pequena...
— Bem sei que é um anjo, disse Daniel; mas isso não impede que lhe sacrifiques a vida;
acho até natural...
— Com que cara ficarás quando eu te der uma notícia...
— Que notícia?
— Vou casar.
— Com ela?
— Pateta! vou casar com uma conhecida nossa: uma das Seabra.
— Qual delas?
— A Amélia.
— Creio que são minhas primas remotas.
— Vê lá se um homem, às portas do casamento, pode lá matar-se por...
Daniel sorriu batendo com a bengala na ponta do pé, e replicou:
— Mas isso e o que eu digo é a mesma coisa. Casar é fugir ao mundo; a bênção nupcial não é mais do que uma encomendação em regra. Ora, se tu te metes na sepultura do casamento, é justamente por causa da Luisinha, cujos caprichos já não estão de acordo com os teus sentimentos.
Pode-se afirmar que esta meia dúzia de palavras produziu o maior discurso que Daniel fez em toda a sua vida. Por isso mesmo, apenas as proferiu, recolheu-se ao silêncio e não respondeu mais às mil razões que Valadares lhe dava relativamente ao casamento com a Amélia e ao rompimento com a Luísa.
Desculpem-me se resumo no mesmo período estes dois nomes: o de uma noiva e o de uma cortesã. Estavam unidas também na memória do rapaz, andam por aí ligados na vida; eu não faço mais do que copiar.
Valadares acabava de dar as mil razões do seu casamento, quando à porta da loja parou um carro; o lacaio foi abrir a portinhola e saíram de dentro duas senhoras: uma velha, ainda conservada, e uma rapariga de cerca de vinte anos.
Um dos deputados que estavam à porta conhecera-as apenas parou o carro e foi oferecer-lhes a mão. Saiu primeiramente a velha, e depois a rapariga; entraram ambas na loja.
Daniel tinha, como um amigo meu, a mania de examinar os pés às mulheres.
— A mulher, dizia ele, é um livro; o pé é o índice do livro.
E já por aqui vê o leitor que Daniel tinha outra mania, que era a dos aforismos e sentenças.
Com a mania de examinar o pé às mulheres, Daniel não soube se a rapariga era bonita ou feia, morena ou clara; soube, apenas, que tinha um bonito pé. Quando quis olhar-lhe para a cara, já ela havia entrado na loja. Mas nem procurou vê-la através da vidraça;
limitou-se a voltar-se para Valadares e perguntar:
— Que gente é esta?
— É da família do B...
B... era um deputado do Norte.
Valadares olhou pela vidraça.
— Vê, Daniel, vê, como é bonita!
Daniel voltou o rosto e viu com efeito que a pequena era bonita; mas não soltou nenhuma exclamação.
As duas senhoras pouco tempo se demoraram; alguns minutos depois, chegaram à porta para entrar no carro. A moça ficou justamente ao lado de Daniel. Este olhou para ela, a fim de confirmar a primeira opinião, e deu com os olhos dela que, por acaso, se cravaram nele. À claridade, a moça pareceu-lhe mais bonita do que a princípio; mas não teve tempo de admirá-la, porque ela, fazendo com a boca um gesto de desdém, voltou-lhe as costas e encaminhou-se para o carro, cuja portinhola estava aberta.
A velha entrou depois e o carro partiu logo; Daniel olhou para dentro: a moça ia conversando com a velha, e sem prestar atenção a coisa alguma.
Toda esta cena, aliás rápida, escapou a Valadares; Daniel, um pouco despeitado com o gesto da moça, sorriu-se e tirou o relógio do bolso dizendo:
— Vamos jantar?
— Vamos, disse Valadares.
Na ocasião em que iam descer para o Hotel Inglês (onde Valadares jantava habitualmente), Daniel viu na calçada uma liga, abaixou-se e apanhou-a.
— Será a liga da pequena? perguntou Valadares.
—Honny soit qui mal y pense! respondeu Daniel sorrindo e guardando a liga no bolso.
Foram jantar.
Durante o jantar, não se conversou mais no episódio da liga, nem da moça do Norte.
Apenas, quando veio o café, Daniel perguntou onde morava aquela família, e soube que em Mata-cavalos. A conversa não passou disso.
A verdade histórica pede que se diga que ainda durante essa tarde a lembrança da dona da liga perturbou um pouco o espírito de Daniel; mas posso afirmar que à noite já ele de nada mais se lembrava.
Quando voltou à casa, atirou a liga para dentro de uma secretária, e nisto ficou tudo.
III
As senhoras do carro moravam em Mata-cavalos.
A velha era irmã de um deputado do Norte; chamava-se Madalena e era viúva de um oficial do exército. Augusta, sua filha, contava perto de vinte anos, e era, no dizer dos que a conheciam, a mais bela cara da província. Mas não se lhe notavam somente as feições;
Augusta distinguia-se principalmente pela graça e elegância das maneiras, a que dava realce um certo ar de altivez.
Tendo sido eleito deputado, o dr. B..., irmão da velha e tio da moça, entendeu que aproveitaria e ensejo de ver a capital do império, trazendo consigo as duas senhoras. A
proposta foi aceita com entusiasmo por Madalena e simples agrado por Augusta.
Efetuou-se a viagem e na época em que começa esta narrativa já eles aqui se achavam havia dois meses, tendo vindo um mês antes da abertura das câmaras.
Augusta fez sensação nas salas em que apareceu; a beleza, a graça, as maneiras da moça a todos impressionavam e todavia eram comuns essas coisas na vida fluminense;
mas em Augusta tudo isso trazia um ar característico, um cunho pessoal, que distinguia a moça das demais mulheres.
Impressionado pela distinção de Augusta, um desalmado rapaz disse-lhe uma noite que não supunha a província capaz de produzir obra tão prima, e que ela era com certeza a fênix das provincianas.
— A natureza compensa tudo, respondeu Augusta; é possível que na província as senhoras como eu sejam raras, mas os homens como o senhor com certeza são raríssimos.
Esta resposta foi ouvida por um amigo do rapaz, que não tardou em espalhá-la, e dentro de pouco tempo foram comentadas as palavras da bela provinciana.
— De mais a mais tem espírito, observou um sujeito.
— Parece.
A vítima do dito estava presente, e disse:
— É pena, porque é bonita.
— É um realce, acudiu o primeiro; e para resumir na mesma designação as suas graças e as suas arranhaduras, chamar-se-á a onça de Medicis.
O nome não pegou, porque dos cinco rapazes então presentes, apenas o autor da idéia sabia da existência de uma Vênus de Medicis, condição essencial para compreender o dito; contudo, foi este acolhido com o riso dos circunstantes, um desses risos esquerdos que não querem dizer coisa nenhuma.
A reputação de Augusta ficou firmada com mais um ou dois repentes iguais ao primeiro, de maneira que, quando a gente a encontrava, se sentia tomada por dois sentimentos diversos: a fascinação e o temor. Admirava-se a moça como se admirava uma bela pantera.
Nenhum destes antecedentes era conhecido pelos dois rapazes com quem travamos conhecimento na Rua do Ouvidor; Valadares, o único que conhecia a família, só a conhecia de vista, por tê-la encontrado em casa de terceiro.
Mas, se em vez de seguirem para o Hotel Inglês, tivessem entrado na loja, depois da partida do carro, ouviriam este diálogo dos dois deputados a meia voz:
— Como vão os seus negócios com a Augusta? perguntou o mais velho dos dois.
— Na mesma, respondeu o mais moço.
— Então, nenhuma esperança?
— Esperança sempre. Já lhe disse uma vez e repito: eu tenho a ambição de ser ministro de Estado, ou embaixador ou qualquer outra coisa por este gênero; não tanto porque esses cargos pudessem legitimamente seduzir a ambição política; mas principalmente porque talvez assim obtenha as boas graças de Augusta.
— Disse-me isso uma vez, respondeu o outro; mas cuidei que fosse simplesmente gracejo; há de lembrar-se que o disse rindo. Desta vez, fala-me com seriedade. Será certo que as suas ambições têm por principal esse motivo?
— Estou apaixonado.
O interlocutor sorriu e replicou:
— Espécie nova: político por amor. Há de ser bonito num romance, mas no Parlamento é...
— Ridículo, bem sei.
— Justamente.
— E, no entanto, é verdade.
Houve um instante de silêncio.
— Luís, disse o interlocutor do namorado, deixe-me dar-lhe este nome: tenho o direito da idade. Como contaremos com você, se o seu procedimento depende todo do capricho de uma moça ?
— Nem por isso deixei de ser até hoje aliado fiel e ativo. Cuida que quando subo à tribuna não vou levado por uma convicção sincera? Vou; mas, se emprego às vezes demasiado ardor, confesso que uma parte dele é o resultado da intenção em que estou de fundar uma posição dominante... por causa dela.
— Mas não vejo...
— Vejo eu. Cuido que desse modo poderei vencer-lhe o orgulho.
O velho abanou a cabeça e franziu os lábios com um gesto de desagrado.
Mas a conversa parou aqui.
Luís saiu para o hotel em que morava; o velho foi jantar com um dos chefes da oposição.
Ao despedirem-se, disse o velho ao rapaz:
— Então, amanhã é a interpelação.
— Amanhã.
IV
Oito dias depois destas cenas, estando Daniel almoçando em casa, e só, porque eram 11 horas e o velho Marcos almoçava às 8, apareceu Valadares alegre e rubicundo.
Daniel ofereceu-lhe o almoço.
— Aceito, porque ainda não almocei, e confesso que não pretendia fazê-lo por não ter vontade nenhuma. Mas pode ser que a tua companhia me abra o apetite. O velho está cá?
— Não.
Valadares sentou-se à mesa e começou a almoçar.
Durante os primeiros minutos, apenas trocaram raros monossílabos.
Daniel acabou primeiro e acendeu um charuto.
— Que novidade há? perguntou ele.
— Uma grande novidade, respondeu Valadares.
— Imagino.
— Verás: uma novidade incrível e entretanto verdadeira, uma novidade, que não o é para ti, porque já te dei parte dela, mas então foi um pouco vagamente.
— Vamos ver o que é.
— Caso-me.
— Ah!
— Caso-me daqui a um mês.
— Estimo muito.
Valadares cruzou o talher e recebeu a xícara de café que lhe ofereceu o servente.
— Caso-me com a Amélia Seabra, e deste modo fico aparentado contigo. Ora, queres que te diga? por muito superior que seja um homem, esta idéia de casamento é sempre uma grande preocupação. De cada vez que me levanto da cama pergunto a mim mesmo se é certo que dentro de pouco tempo estarei eternamente unido a uma mulher.
Eternamente! eu que nunca dei ao amor mais de dois meses de vida. Que te parece?
— Nada.
Valadares engoliu rapidamente o café, recuou a cadeira, e acendeu também um charuto.
— Dou um baile, sabes? disse ele a Daniel; e peço-te por especial obséquio que assistas a ele.
Daniel fez um gesto de assentimento.
— Creio que terei muita gente, continuou Valadares; conto já com dois ministros e quatro senadores; são convites de meu sogro. Eu apenas me encarrego de convidar os rapazes.
A propósito, lá teremos a pequena da liga.
— Que pequena?
— Ora, aquela que deixou cair a liga na Rua do Ouvidor... não te lembras?
— Ah!
Daniel recordou-se então do incidente da Rua do Ouvidor.
— Que fizeste da liga? perguntou Valadares.
— Creio que a pus na secretária.
Levantaram-se da mesa.
Indo para o seu gabinete, Daniel abriu a secretária e encontrou ainda a liga perdida por Augusta.
— Maganão! disse Valadares, guardaste-a!
— Por distração... respondeu Daniel.
E tornou a fechar a secretária.
Depois do encontro com Augusta, era a primeira vez que ela lhe voltava ao pensamento.
Daniel recordava-se do gesto de supremo desdém e indiferença com que ela desviara os olhos e entrara no carro.
Se a preguiça, como quer o moralista, destrói todas as paixões, confessemo-lo que o faz lentamente e não de um lance. Daniel ainda tinha em si uma boa dose de orgulho que resistia à ação do elemento dissolvente. A lembrança de Augusta foi de orgulho ofendido.
O seu amor-próprio sofreu naquele momento com a evocação da cena da Rua do Ouvidor.
— Com que então a moça da liga vai ao teu baile...
— Vai; é também convite de meu sogro. Sogro! Acho uma novidade nisto; parece-me que vou mudar da terra. Meu sogro! não pensei nunca que tivesse de dar este nome a alguém. E no entanto... É o que te há de acontecer.
Daniel levantou os ombros.
— A mim? disse ele; se toda a humanidade esperar por mim para casar, podemos dar por extinta a raça humana.
— Era justamente o que eu dizia...
— Importa-me pouco o que tu dizias...
— Verás... verás...
Valadares saiu pouco depois e foi direitinho, não para a casa da noiva, mas para a casa de alguém já indicada neste romance.
Hão de ter notado que Valadares em toda a conversa sobre casamento só de passagem aludira à mulher. Contrário a todos os noivos, a futura esposa não lhe merecera cinco minutos de atenção nas suas expansões com um amigo. Nem mais nem menos, tratavase de um desses mercados a que, por cortesia, se chama — casamento de conveniência —, dois vocábulos inimigos que a civilização aliou.
Valadares tinha chegado naquele ponto em que se bifurca a estrada da vida de um estróina: de um lado, o casamento de conveniência, do outro a perdição completa. É difícil naquela situação encontrar uma mulher que se disponha a dar a mão ao estróina; achoua Valadares.
Estas mesmas reflexões fê-las consigo Daniel, apenas se separou do outro, e, fazendoas, comentou-as por modo que eu estenderia muito estas páginas se quisesse desenvolver as suas reflexões.
Não se davam com Daniel as circunstâncias de Valada-rer. Daniel era mais que tudo um homem extremamente pessoal. O casamento impor-lhe-ia uma preocupação que ele não queria ter; quanto aos prazeres do lar doméstico, eram coisa frívola para ele.
Quando o velho Marcos, ouvindo dele a notícia de que Valadares ia casar, insinuou ao filho que o exemplo era bom de seguir:
— Pois não fosse! respondeu Daniel, oferecendo um charuto ao pai.
V
O casamento de Valadares produziu grande impressão dans un certain monde, não acreditaram nele à primeira notícia, mas afinal não havia contestação que o boêmio, o estróina, o desalmado Valadares ia tomar estado.
A alguns parecia um sacrilégio, outros acharam que era simplesmente um milagre.
— Com que direito, dizia a Luisinha já citada, com que direito nos arrancam as pérolas do nosso adereço?
Havia um adereço em que Valadares era pérola.
Os rapazes já enraizados no país de Citera, davam o noivo por maluco, posto que, no ânimo de alguns, o casamento era natural à vista dos bens de noiva.
Enfim, apesar de mil comentários e algumas apostas, Valadares casou.
Foi excelente a reunião em casa do sogro. Lá se achou, como prometera, o misantropo Daniel e mais o pai, que foi um dos padrinhos do casamento.
A noiva de Valadares era uma rapariga bonita, mas extremamente faceira, e apesar da especialidade do dia, em que todas as mulheres se parecem, era fácil adivinhar nela uma casquinha de primeira ordem. Via-se que era uma menina que casara para adquirir a liberdade de arruar. Caía em boas mãos.
Daniel, segundo o seu costume, não dançava; divertia-se em ver dançar os outros.
A família do deputado B... entrou às 10 horas; acompanhava-a Luís, o interpelante oposicionista que já encontramos na Rua do Ouvidor.
Augusta estava radiante; a sua beleza, que reunia magnificamente a graça e a severidade, era dessas que centuplicam com as luzes da sala e perdem com a luz do dia.
Quer isto dizer que, se Daniel a achara bonita na Rua do Ouvidor, achou-a divinamente bela no salão dos Seabras.
Quando ela entrou, fez sensação. Todos se curvavam involuntariamente por onde ela passava, semelhante à Vênus clássica, cuja divindade se percebia simplesmente pelo andar. Daniel achava-se encostado a uma porta por onde Augusta entrou na sala da dança. Não se curvou, nem deu sinal de si. Augusta pareceu recordar-se das feições do rapaz, e demorou-se alguns segundos a olhar para ele, mas para logo retirou os olhos, repetindo o mesmo gesto de desdém que tanto impressionara o filho do velho Marcos.
Por que este gesto? — perguntava Daniel a si mesmo. Nunca a tinha visto, nem pretendido. De onde vinha essa espécie de prevenção contra ele? A curiosidade e o amor-próprio do rapaz estavam sofrivelmente aguçados.
Augusta entrou na sala pelo braço do tio; Luís dava o braço a Madalena.
Quando Valadares a viu entrar, foi ter com Daniel.
— Tive uma idéia, disse ele ao amigo.
— No dia de hoje, nenhuma idéia pode ser boa.
— Pois é. Casa com Augusta.
A dança interrompeu o diálogo.
Daniel colocou-se de modo que visse Augusta; esta dançava com Valadares.
Durante a maior parte da quadrilha, os olhos de Daniel não se encontraram com os de Augusta; mas no fim, por simples acaso, a moça olhou para o rapaz, e sustentou por alguns instantes o olhar dele. Pareciam interrogar um ao outro. Desta vez, foi Daniel o primeiro que afastou os olhos, e retirou-se.
Saiu dali, foi para uma sala intermediária, e ali atirou-se a um divã.
Estava só.
Consultou o relógio, olhou para o teto, examinou as luvas, concertou a gravata, levantouse, deu alguns passos, e tornou a sentar-se até que a quadrilha acabou.
A sala foi invadida por alguns pares.
Posto que fosse perfeito homem de sociedade, nada o aborrecia mais que o frufru das sedas, o estalar dos leques, o murmúrio das conversações, todos esses rumores de uma festa alegre, que destoavam com o seu espírito reservado e solitário.
O fastio começou a invadi-lo; dentro de uma hora, se lhe não tivessem mão, estaria entre os lençóis.
Levantou-se e ia dirigir-se para a outra sala, quando lhe apareceu o pai, dando o braço a Madalena. Marcos chamou-o. Daniel aproximou-se; o velho apresentou o filho à mãe de Augusta.
Daniel recebeu a apresentação com frieza; porém, Madalena foi tão amável que era impossível esquivar-se-lhe. Conseqüentemente, conversaram os três durante algum tempo.
O grupo foi aumentado daí a alguns minutos com a chegada de Valadares que trazia Augusta pelo braço. Nova apresentação e desta vez mais solene para os dois apresentados. Nenhuma palavra foi trocada além do simples cumprimento que Daniel dirigiu a Augusta e que esta ouviu inclinando levemente a cabeça e olhando-lhe para os pés.
Não tinha que ver: aquelas duas criaturas antipatizavam um com o outro. Não se casava a altivez de uma com o orgulho do outro. Era o caso do provérbio: duro com duro...
Mas se ambos antipatizavam a tal ponto, nem por isso Daniel deixava de admirar a beleza de Augusta, e Augusta. a desdenhar a severidade de Daniel; e essa mesma admiração os afastava mais; porque a admiração é um preito; e nas poucas e curtas vezes que se haviam encontrado, claramente se percebia em cada um deles a consciência da superioridade.
Não era entretanto do mesmo modo que Augusta olhava para Luís; para este olhava com certa compaixão. Parecia ter pena dele. Quando este lhe falava, ela respondia com bondade e doçura, mas a doçura e a bondade de quem trata com um inferior, o que contrastava com o respeito do namorado político. E, no entanto, o crime dele era simplesmente gostar dela, e havê-la pedido em casamento, ao que ela se escusou, dizendo que era melhor ficarem simples amigos.
Luís não dançava; tinha, como Daniel, a opinião de que a dança é um prazer dos olhos.
No fim, porém, de meia hora, Valadares foi ter com Daniel insistindo para que ele dançasse ao menos uma quadrilha, ao que ele recusou. Como estivessem a discutir este importantíssimo ponto, passou Augusta, e Valadares interrompeu-a para dizer-lhe oficiosamente:
— O dr. Daniel incumbiu-me de lhe pedir esta quadrilha para ele.
Daniel mordeu os beiços.
Augusta respondeu olhando para Valadares.
— Mas eu não danço mais.
— Por quê?
— Estou cansada.
Daniel interveio.
— O Valadares, disse ele, pediu-lhe espontâneamente uma honra que eu não ousava desejar, nem esperar.
— Estou cansada, repetiu secamente Augusta, a quem Valadares deu o braço, escapando assim a uma repreensão do amigo.
Daí a um quarto de hora, Daniel desapareceu do baile.
VI
Despontava-lhe já uma espécie de ódio contra Augusta. Seria esse o caminho do amor?
Quinze dias depois dos acontecimentos que acabamos de narrar, achava-se Augusta sentada ao piano na casa de Mata-cavalos, quando lhe entrou pela sala dentro a mulher de Valadares.
Começava a moça a usar da liberdade que procurara no casamento.
— Tua mãe? perguntou ela a Augusta, depois dos primeiros beijos.
— Está lá dentro; vou mandá-la chamar.
— Creio que o moleque já lhe foi dizer que eu estava aqui.
— Anda senta-te.
Amélia sentou-se e disse sorrindo para Augusta:
— Não me perguntas por meu marido?
— Ia fazê-lo.
Está na repartição. A primeira coisa em que concordamos, é que eu saísse a passeio quando me parecesse. Eu não sou criança para andar agarrada a meu marido. Na Europa, não se usa isso. Demais, tenho toda a confiança nele . Acho-te pálida hoje...
— Dormi pouco.
— Alguma preocupação?
— Uma enxaqueca.
— Que calor!
— Com efeito, o dia está quente.
Amélia agitou o leque, lançando pelos móveis da casa esse olhar de curiosidade indiscreta que tanta gente emprega numa casa onde entra pela primeira vez, sintoma de uma grosseria sem-par.
Augusta olhava para ela sorrindo.
Nesse momento, entrou Madalena.
— Já de passeio! disse ela, beijando a mulher de Valadares.
— Não é cedo.
— Seu marido está bom?
— Está.
— São felizes, creio.
— Completamente. Ah! o casamento foi a melhor invenção deste mundo. Por que razão não casa sua filha?
— Porque não encontrou noivo.
— Isso é fácil.
— Não tanto, acudiu Augusta; além de que não tenho pressa.
— Pois quanto mais cedo melhor, disse Amélia.
— Augusta, disse Madalena, terá um noivo quando quiser. Agora mesmo...
— Ah! algum apaixonado?...
Augusta levantou-se e foi buscar o lenço ao piano.
— Não falemos nisso, disse ela.
Amélia levantou-se também.
— Já se vai? perguntou Madalena.
— Já; tenho de ir escolher uns vestidos. Quer D. Augusta ir comigo?
— Não posso.
— Então, adeus. Olhe, dou-lhe um conselho: não seja cruel.
— Por que não vem tomar chá conosco esta noite? perguntou Augusta.
— Não posso, respondeu a moça, tenho de ir com meu marido visitar o velho Marcos.
Conhece, não?
— É aquele homem que me apresentou na noite da seu casamento? perguntou Madalena.
— Justamente; somos parentes. Está muito mal.
— Parecia vender saúde.
— O filho foi lá hoje à nossa casa dar-nos parte da moléstia do pai.
— O dr. Daniel?
— Sim. Adeus!
Amélia saiu.
Depois do baile, era a primeira vez que Augusta ouvia o nome do rapaz, e qualquer que fosse a razão, não pôde ouvi-lo sem algum abalo.
Ficando só na sala, Augusta foi sentar-se ao piano e começou a dedilhar não sei que composição alemã. Mas evidentemente o seu pensamento estava ausente. Algum tempo depois, entrou em casa o tio, acompanhando de Luís.
Depois da recusa que fora dada na província, era a primeira vez que Luís aceitava um convite de B... para jantar em casa dele. Era um escrúpulo pueril, se querem; mas o moço tinha esse escrúpulo e obedecia-lhe involuntariamente. Mas, como resistir às instâncias do velho? E sobretudo como recusar o prazer de respirar o mesmo ar que a moça?
Quando os dois deputados entraram na sala, Augusta levantara-se do piano.
O jantar foi imediatamente posto na mesa.
Depois do jantar, Luís esteve algum tempo a sós com Augusta. Conversaram de coisas indiferentes. A moça felicitou-o pelos aplausos que lhe deram como orador. Luís recebiaos com um ar de modéstia que não escondia completamente o sentimento de satisfação que lhe dava aquele elogio vindo da boca de Augusta.
Depois, acrescentou:
— Todos esses aplausos têm para mim uma única vantagem: adiantar a minha posição.
— Tem ambição política?
— Não; bem sabe qual é a minha ambição.
A moça ficou séria.
Luís contemplou-a com um sorriso dc dor; depois procurou pegar-lhe na mão, que ela retirou apressada, dizendo:
— Perdão! tenho que fazer...
E como desse um passou para fora, Luís adiantou-se e disse-lhe:
— Engana-se, D. Augusta, eu não venho falar-lhe de coisas em que não posso tocar.
Queria simplesmente pedir-lhe desculpas se alguma vez a ofendo com alusões a um sentimento de que não tenho culpa.
— Nem eu, creio.
— Voluntariamente, não.
A moça recuou e foi sentar-se.
— Olhe, disse ela; disse-lhe uma vez que podíamos ser bons amigos. Quer assim?
— Aceito, e já é muito; mas creio que me é lícito esperar o seu amor.
— Esperança inútil.
— Inútil? será, mas espero.
Augusta sorriu.
— Ambiciosa, disse consigo Luís.
Mas ao mesmo tempo, como que arrependido desta exclamação interior, o namorado entrou a sorrir para ela — sorriso de súplica e de contrição.
Augusta não reparou nisso.
No entanto, a tarde caía, e a melancolia da hora servia de fundo àquele quadro já de si tão triste: um coração de fogo ao pé de um coração de rocha, um destino inteiro nas mãos de uma mulher indiferente, a vida ou a morte de um homem dependente do olhar compassivo de uma mulher.
Uns terão simpatia pela posição de Luís; outros tédio. Depende dos caracteres. Os altivos julgarão que nenhum homem deve aspirar à mão de uma mulher, quando esta lha recusa.
São leis boas para o papel. Quem conhece o coração humano compreende, lastimando embora, essas situações humilhantes em que o amor pode colocar um homem, aliás brioso e digno de si.
Não poucas vezes, Luís discutira consigo mesmo a situação em que se achava, e nunca o seu espírito lavrou uma sentença de abandono que lha não reformasse o coração, juiz em última instância nestas matérias de amor.
Todavia, a cena daquela tarde impressionara singularmente o moço. Pareceu-lhe que a insistência seria já degradação; resolveu lutar e esperar.
Despediu-se de Augusta pouco depois e saiu.
Augusta, quando se achou só, respirou; era evidente que a presença de Luís a importunava.
VII
A doença de Marcos foi mortal; dois dias depois da visita de Amélia o bom velho faleceu, deixando saudades a todos quantos o conheciam.
Na vida de Daniel, foi um vácuo. Não se costumara à idéia de que viria a perder o pai; era a única família que tinha, e provavelmente o único ente a quem estimava neste mundo.
Os amigos deram-lhe as consolações do costume; alguns discursos foram proferidos na ocasião de dar-se o cadáver à sepultura; mas discursos, nem consolações podiam distrair o moço da dor que acabava de sofrer.
Para os outros pais foi um fausto acontecimento; era o noivo rico que convinha prender de algum modo. Por isso foi grande a afluência de senhoras à missa do sétimo dia.
Lá estavam Madalena e Augusta.
Quando, no fim da missa, começou a cerimônia dos pêsames, Daniel recebia-os maquinalmente e sem dar sinal de si. Não aconteceu o mesmo, quando Augusta se aproximou dele e murmurou algumas palavras de consolação; não contava que ela estivesse na igreja.
Todavia, nem o estado dele, nem o lugar eram próprios para maiores espantos. A moça seguiu a mãe, e Daniel ouviu as consolações do resto dos assistentes.
Valadares convidou Daniel para ir passar alguns dias em casa dele; apesar das recusas, tanto instou que Daniel cedeu, e para iá foi mesmo dali.
A morte do velho Marcos punha nas mãos de Daniel uma magnífica fortuna. Não contando com ela tão cedo, o rapaz não sabia em que empregá-la. A mulher de Valadares aconselhou-lhe uma viagem à Europa como coisa de maior proveito. Este conselho provocou entre o marido e a mulher uma pequena discussão que ia terminando por um ataque de nervos, desenlace seguro de muitas tragédias domésticas.
A idéia de viagem, também, não agradou a Daniel.
— Afinal, disse ele, a minha situação é a mesma, a diferença é que eu hoje administro aquilo que outrora fruía simplesmente.
— Por isso, digo eu, atalhou Amélia, como os trabalhos de administração são enfadonhos, procure uma companheira. Olhe, eu creio que tenho uma... que não se lhe dava de...
— Quem é? perguntou Daniel.
— A Augusta B...
Daniel franziu a testa. Acreditou que a solicitude da moça, indo à missa, era simplesmente um cálculo. Figurava-lhe um espírito altivo, e saía-lhe uma mulher interesseira. Acaso a mulher de Valadares adivinhou esta impressão de Daniel? O certo é que imediatamente acrescentou:
— Mas repare que isto é lembrança minha; ela não me disse coisa aLguma. Creio que até não seria coisa fácil; porque me parece orgulhosa demais...
— Parece-lhe isso?
— Sim. No entanto, se quiser que eu lhe fale....
— Oh! não! não tenho vontade de casar.
De casar, creio que Daniel não tinha vontade nenhuma, mas nem por isso a lembrança de Augusta deixava de preocupá-lo. Havia naquela moça um mistério que ele queria aprofundar. A ocasião era boa para aproximar-se dela. Já haviam decorrido vinte dias depois da missa fúnebre. Daniel resolveu ir visitar a família de Augusta para agradecerlhe a presença no ato religioso, tanto mais de agradecer quanto não se ligavam por estreitos laços de amizade.
Só as duas senhoras estavam em casa, quando se anunciou a visita de Daniel.
Augusta desapareceu da sala pouco antes de entrar o rapaz, que apenas encontrou Madalena, com quem travou uma conversa de cerca de meia hora. Durante esse tempo todo, Augusta não apareceu na sala. O rapaz esperou ainda alguns minutos, mas vendo que não chegava, levantou-se para sair.
— Espero, disse Madalena, que não será esta a última vez que nos honre com a sua visita.
Daniel curvou a cabeça, agradecendo.
Depois, apertou a mão de Madalena e dirigiu-se para a porta, justamente no momento em que Augusta entrava na sala.
Cumprimentaram-se friamente.
Daniel saiu.
VIII
— Por que não vieste à sala mais cedo? perguntou Madalena a Augusta.
— Tive uma vertigem; não podia vir, respondeu a moça.
— Foi pena, porque este moço é muitíssimo amável; passei meia hora agradavelmente.
— Foi pena! murmurou a moça, disfarçando um sorriso que lhe estava a brincar nos lábios.
Não disfarçou tanto que a mãe o não percebesse.
Há alguma coisa, pensou ela.
Augusta não lhe disse mais nada; mas quem pudesse penetrar no seu espírito, ouviria a seguinte reflexão:
— São todos os mesmos!
Reflexão que aliás não esclarece muito a situação. É provável que pelo romance adiante compreendamos essas palavras interiores de Augusta.
IX
O casamento é a perfeita união de duas existências; e mais do que a união, é a fusão completa e absoluta. Se o casamento não é isto, é um encontro fortuito de hospedaria;
apeiam-se à mesma porta, escolhem o mesmo aposento, comem à mesma mesa, nem mais, nem menos.
Este é o casamento mais comum. O outro o legítimo, o raro, esse é outra coisa que não isto. A religião santifica o casamento, mas supõe sempre a existência anterior de um elo tão sagrado como o do altar.
Não se parecia com este o casamento de Valadares. Casou o rapaz por motivos alheios ao coração: primeiramente, por interesse, depois por novidade. O casamento foi para ele uma espécie de passeio ao Corcovado. Ora, todos são de acordo que do Corcovado se goza uma vista magnífica, mas a ninguém lembrou ainda a idéia de lá fundar uma cidade.
Ninguém lá fica; sobe-se, goza-se, desce-se.
Valadares começava a sentir a necessidade de descer do Corcovado; a idéia de que estava ligado para sempre era um verdadeiro pesadelo que lhe sufocava o espírito.
Verdade é que a sua liberdade não estava tolhida; os boudoirs célebres que freqüentara outrora começaram a festejar a volta do filho pródigo. Mas era sempre um vínculo, o pobre já sentia que este o apertava. Podia ser de rosas; mas achou-o de ferro.
Amélia casara com Valadares como casaria com outro qualquer; simples mudança de estado. Comprou a liberdade sob a forma de uma prisão. Contratou um braceiro para os dias em que lhe conviesse sair a pé; e um protetor para abrigar a sua existência, a sua reputação. Com estas condições, qualquer noivo lhe servia. O que estava mais à mão foi o escolhido.
Imaginem já por aqui qual era alegria conjugal daquelas duas criaturas.
Não tardou que o aborrecimento viesse sentar-se no lugar que o amor não ocupava; em vez de dois entes unidos por um grande sentimento achavam-se como dois condenados ligados pela mesma calceta, com a diferença que a comunhão do infortúnio e do crime estabelece certa simpatia entre os dois condenados, a qual debalde se procuraria entre Valadares e a filha de Seabra.
Começava a dissolver-se a forma conjugal; não se precisava ser águia para adivinhar que, dentro de pouco tempo, a casa liquidaria e os dois achariam na separação um remédio aos seus males.
Ora, este espetáculo e esta previsão desagradavam profundamente a Daniel, que morava com os dois, segundo se disse acima. Um dia de manhã, resolveu mudar-se, e assim o declarou aos donos da casa.
— Mudar-se? exclamou Amélia. E por quê?
— Porque devo morar só; além disso, está com o meu gênio.
— Se assim é, observou Valadares, não te obrigo ao contrário. Mas hás de vir jantar comigo todos os dias...
— Todos os dias, não sei, respondeu Daniel.
— Já tem casa? perguntou Amélia.
— O meu procurador, respondeu Daniel, disse-me ter encontrado uma em Mata-cavalos.
— Ah!
A mulher de Valadares sorriu maliciosamente; o marido, por imitação, sorriu também.
Daniel viu os sorrisos e pareceu-lhe compreender.
— Mas que tem isso? perguntou ele.
— Nada, acudiu Amélia, quer dizer que está mais pertn.
— De quem?
— Ora de quem! dela!
— Não conheço!
— Augusta.
— Ora!
Daniel respondeu com uma expressão que simulava indiferença; mas, se devo confessar a verdade, não o era. Quando o procurador lhe trouxe a notícia de que havia casa na Rua de Mata-cavalos, o rapaz estimou a notícia e aceitou a casa.
— O fato é, disse Amélia, que ela pensa no senhor.
— Em mim?
— Cuido que sim, porque há dias, indo eu lá, duas vezes me perguntou se estava bom.
Quando me perguntou a segunda vez sorri, como há pouco fiz, e ela protestou calorosamente, mas debalde; via-se que era um protesto aparente.
Daniel ouviu atento as palavras de Amélia.
— E que não fosse! disse ele; como eu não vou para lá por causa dela...
— Creio, respondeu Amélia, mas o fogo ao pé da pólvora...
— Eu não sou pólvora, nem fogo...
A conversa ficou aqui. Daniel, daí a dias, estava completamente mudado.
A casa de Daniel ficava do lado oposto ao da casa de Augusta, e um pouco distante, mas ainda assim podiam ver-se de uma janela; e ele a viu no primeiro dia, depois, nunca mais a viu. Seria fortuito ou expressivo? Não sabia.
X
No fim de quinze dias, recebeu Daniel um bilhete do tio de Augusta convidando-o a ir passar a noite com ele.
Deveria ir? Sem dúvida que sim. Não queria parecer que se metia à cara da moça. O
orgulho lutava nele por dois modos; lutava, retendo-a para não parecer que a adulava;
lutava, impelindo-o para lá, a ver se triunfava dela. É difícil que, de uma luta colocada neste terreno, venha bom resultado.
Daniel só pela tarde adiante resolveu ir à casa de Augusta.
Era uma reunião íntima; conversou-se e tocou-se; não se dançou.
O tio de Augusta desejou que Daniel considerasse a casa como sua; que se não prendesse por simples consideração de cerimônias enfadonhas. Posto que Daniel tivesse em pouco a conversa das salas, não por desprezo refletivo, mas por gênio e educação, todavia, não ficava na sombra desde que lhe fosse necessário desempenhar-se como cavalheiro polido. Tinha natural espírito; sua conversa era fácil, brilhante, sem ser profunda, coisa que agrada absolutamente às mulheres. Além disso, o rapaz queria impor-se no espírito da moça; e como fazê-lo senão por meio desses triunfos de eloqüência familiar?
Mas Augusta parecia conhecer todas essas armas e a intenção com que eram manejadas; tratou Daniel como a todos os outros, em perfeito pé de igualdade. Nem lhe concedeu desta vez a distinção do desdém, que tanto agrada a certos caracteres; nivelouo com as demais pessoas.
Numa ocasião, pediu um dos amigos da casa que a moca cantasse a cavatina da Norma, justamente na ocasião em que Daniel, por entabular intimidade, lhe pedia um pedaço de Lúcia.
Colocada entre os dois pedidos, Augusta observou:
— Não posso executar ambas as coisas ao mesmo tempo. Uma há de ser primeira. Qual delas? Resolvam entre si.
Enquanto o sujeito, que pedira a Norma, inclinava-se diante de Daniel, cedendo-lhe a vez, Augusta com ar distraído e indiferente brincava com as tranças de uma amiga que se lhe aproximara e que ia acompanhá-la ao piano.
Arranjara as coisas de modo que, nem mostrava preferência, nem desdém por Daniel, o que aconteceria (pensava ela) se cantasse primeiro ou depois o trecho reclamado pelo rapaz.
Estes e outros incidentes produziram em Daniel o efeito natural; o orgulho foi-se pouco a pouco transformando; quando dali saiu, naquela noite, já se pode dizer que no coração do rapaz rompia a aurora do amor.
E, coisa singular, esse amor não era, como em outros casos, um resultado de simpatia, mas sim antipatia de duas criaturas, que, se se odiassem alguma vez, seriam mortais inimigos.
XI
Mão é minha intenção apresentar Augusta como um caráter excepcional, nem como um espírito superior. Os sentimentos da moça eram, em resumo, os mesmos das outras mulheres. O que a dominava, porém, era uma certa frieza de temperamento que a tornava incompetente para os grandes afetos. Acrescente-se a isto uma tal ou qual vaidade de sua beleza, e aí temos o que era a filha de Madalena.
Educada pela mãe com uma perfeita independência dc espírito, Augusta adquiriu certa aspereza que lhe fazia o caráter antipático. Era imperiosa, altiva, às vezes bondosa, mas bondosa por orgulho, não acreditando muito nem pouco na violência dos sentimentos; o amor para ela era simplesmente uma coisa que ela não compreendia, nem desejava compreender. Parecia-lhe melhor o triunfo numa sala que num coração.
Nem Luís nem Daniel compreendiam isto; a indiferença da moça era apreciada por eles diversamente do que cumpria ser, e daí vinha a esperança de um e o capricho de outro. O
verdadeiro triunfo seria abandonar o campo; talvez que o despeito produzisse nela o resultado favorável. Quem sabe? seria talvez a primeira a dar um passo para o esquivo namorado.
Luís supunha que podia fascinar a moça pela grandeza de posição; algumas circunstâncias lhe davam razão para crer assim; mas eram simples circunstâncias.
Quanto a Daniel, um pouco picado em seu amor-próprio, assentou que de uma luta pertinaz poderia resultar ser um bom general em vez de diplomata fino. Afigurava-lhe que a espada de Condé tinha para o caso mais virtude que a pena de Metternich.
Com estas impressões saiu da casa de Augusta.
Era a primeira vez que no espírito do moço a vontade anunciava um papel ativo. Não era decerto o amor, senão o amor-próprio que o inspirava assim. Mas neste caso, amorpróprio já não era um sintoma do próprio amor? Daniel não percebeu isto; atirou-se à luta.
Começou a freqüentar a casa de Augusta na qualidade de amigo e vizinho. A moça foi com ele e com todos os outros atenciosa e polida, mas fria; distribuía a sua atenção com igualdade. Não dava direito a queixas nem esperanças; valia tanto para ela Daniel como Luís.
Luís freqüentava pouco a casa; nem se podia dizer que a freqüentava; ia lá de longe em longe; conversava meia hora e saía logo.
Posto que Daniel não entrasse nunca nas campanhas do namoro, e apenas contasse em toda a vida alguns fáceis triunfos do tempo da academia, todavia houve-se desde princípio como um verdadeiro cabo de guerra.
Foi difícil à moça resistir aos primeiros ímpetos da força arregimentada do rapaz. Aos tiros de artilheria, isto é, os olhares, resistiu ela com facilidade; ninguém tinha maior expressão de desdém do que ela, quando se tratava de repelir os olhares de um cortesão.
Mas quando, depois de seus primeiros tiros, Daniel aproveitou uma situação adequada e atirou contra a fortaleza as massas compactas da infanteria, isto é, quando ele fez uma declaração em regra, Augusta não foi tão fácil na defesa, e, se repeliu o inimigo, foi com sensíveis perdas de sua parte.
Daniel acabava de declarar que a amava.
— Não creia, disse ele, que se trata de um amor de poeta. Eu não tenho nada de poeta;
nem é coisa que me penalize. O meu amor vem um pouco da razão. Sou um homem temperado. Confesso que as suas graças me impressionaram bastante; mas creia que, se não achasse digna de ser minha mulher, não lhe falava nisso. Estou que o amor duraria, pouco mais que as rosas de Malherbe. Quer ser minha mulher?
Esta declaração, em que misturava a sinceridade com a insolência, foi dita com volubilidade, sem fogo nem lágrimas na voz, no meio de tudo com certa graça. Augusta, tão fácil em responder, se encontrasse um homem louco de amores, não achou logo uma palavra para opor à pergunta e pedido de Daniel.
A moça tinha encontrado um sapato para o seu pé.
A conversa que estou mencionando dava-se a um canto da sala; as demais pessoas estavam entretidas em grupos distintos.
Augusta desejou que ali chegasse alguém, cuja presença interrompesse a conversação;
mas ninguém apareceu.
— Que me responde? perguntou Daniel.
— Respondo, disse Augusta, que não posso aceitar o seu amor, nem o seu pedido.
— Por quê?
Augusta olhou para ele espantada com a pergunta; mas como visse o olhar do moço, sereno e fixo, respondeu sorrindo:
— Formalmente, porque o não amo.
— Isso não é razão muito forte...
— No entanto...
— O amor viria com o tempo; bastava que me tivesse alguma afeição. Não tem?
— Não tenho.
— Que é preciso fazer para vir a tê-la?
— Isso não sei, respondeu Augusta.
Daniel tirou o relógio do bolso e depois de consultá-lo, tornou a guardá-lo silenciosamente. Na indiferença do rapaz, havia um tanto de cálculo, mas um tanto de sincero. Apenas guardou o relógio:
— Pois eu acho, D. Augusta, disse ele, que dificilmente poderia encontrar marido mais conveniente do que eu.
— Tem boa opinião em si, disse a moça sorrindo.
— A melhor opinião deste mundo, acudiu Daniel. Convencido de que os outros homens hão de ter sempre a meu respeito uma péssima opinião, eu compenso esse juízo infundado, pensando a meu respeito as melhores coisas possíveis. Por exemplo, a sua observação quer dizer que me julga fátuo; eu penso justamente o contrário a meu respeito.
— É uma compensação, observou Augusta.
— Então confessa?...
— Confesso, que estou com muito calor, disse Augusta, levantando-se.
Daniel mordeu os beiços; mas levantou-se e ofereceu-lhe o braço.
— Vamos para a janela?
Augusta aceitou sem repugnância, nem vontade.
— Com efeito, aqui faz menos calor, disse Daniel apenas chegara à janela. E a noite está bonita.
— Está bonita, repetiu Augusta; mas se lá está calor, aqui está frio.
— Não tanto, não tanto. Estou a ver uma coisa, D. Augusta.
— O que é?
— É que tudo lhe parece exagerado. Nem lá faz tanto calor, nem aqui tanto frio. Por que esta maneira de apreciar as coisas? Não lhe parece que isso há de levá-la muita vez a ser injusta?
— Quando assim seja, disse Augusta, eu creio que a primeira vítima da injustiça serei eu.
— Perdão! nem sempre assim acontece; e é justamente por isso que a justiça me parece uma bela coisa. Queira meditar bem nestas palavras, D. Augusta: não julgue nunca pelos olhos do seu capricho.
Daniel dizia todas estas palavras com uma graça tão respeitosa que desarmava a moça;
e no entanto já tinha o direito de deixá-la à janela e voltar à sala.
Quando ele lhe falou nos olhos do capricho, Augusta olhou espantada para ele; depois, respondeu:
— Os olhos do meu capricho podem ser maus; em todo caso, porém, não usarei dos óculos do seu despeito.
A alusão era clara; Daniel não contava com esta carga de baioneta.
— O meu despeito? disse ele; já sei ao que alude. Eu poderia calar-me, mas acaso é digno de nós deixar sem resposta uma alusão tão graciosamente feita? D. Augusta, eu repito o que lhe disse; amo-a, quisera recebê-la em casamento; mas a sua recusa é para mim tão sagrada que eu nem quero discuti-la; e inspira-me o mesmo sentimento que inspiraria a Virgem Maria se eu lhe pedisse uma graça e ela ma negasse; resigno-me sem pensar mais nisto.
Foi uma felicidade que entrassem neste momento Valadares e a mulher. Augusta foi abraçar Amélia, enquanto Daniel adiantou-se para ir apertar a mão a Valadares.
XII
Protestos de resignação em amor são como sentenças escritas na areia; desfazem-se ao primeiro vento. Daniel, que era o tipo da indiferença, começava a sentir a dolorosa convicção de que lhe seria difícil viver sem aquela mulher. Quando chegou a casa, recordou todos os episódios da noite, repetiu entre si as palavras trocadas com Augusta, arrependeu-se das que proferira; por um instante, teve idéia de ir-lhe pedir perdão. O tiro da peça ainda o achou acordado.
Se durante esse tempo, Daniel pudesse estar no quarto de Augusta, veria a luz da vela confundir-se com os raios da manhã. A moça dormiu apenas duas horas e ainda o seu sono foi sobressaltado. Seriam as mesmas impressões? Eu poderia, no interesse do romance, deixar em claro este ponto; mas prefiro dizer francamente aos leitores os sentimentos dos meus personagens.
Augusta não velara pelo mesmo motivo que Daniel. Era despeito. A orgulhosa Augusta sentia-se envergonhada com a cena que se passara durante a noite. Humilhara-se com a fácil resignação de Daniel; era a sua primeira derrota.
O seu primeiro pensamento foi um pensamento vulgar; lembrou-se de vingar-se do moço, vendo-o a seus pés. Mas, para alcançá-lo, não seria preciso conceder-lhe esperanças, e estas não exprimiam a confissão de um triunfo, que lhe parecia odioso?
Cálculos inúteis, dirá o leitor de boa fé, os desta moça provinciana, que fazia do amor um jogo de xadrez. Que importa? eu narro a verdade. Confesso que era mais bonito, mais juvenil, mais digno, resolver simplesmente pelo coração, amar ou dar de tábua ao pretendente, conforme lhe falasse o sentimento. Mas, se assim fosse, o romance acabaria e seria outra coisa que não a história que estou relatando.
Quando Augusta se levantou tinha os olhos pesados; a vigília deixara-lhe impressos os seus vestígios. E eram belos os seus olhos, não sei até se mais poéticos, com a languidez do cansaço, do que com a viveza natural. Direi mais: aquele aspecto tornara-a mais mulher, porque Augusta tem no olhar e nas feições um quê de enérgico e severo, que indicava antes um caráter masculino.
Passaram-se dias sem que os dois se encontrassem: nem Daniel foi à casa de Augusta, nem esta se mostrou à janela.
Numa segunda-feira, apareceu Valadares em casa de Daniel.
Convidou-o para um passeio à Tijuca, em companhia de várias famílias.
— A Augusta vai, disse ele, — Que tenho eu com isso? perguntou Daniel.
Valadares sorriu.
— Que tens com isto? cuidei que tinhas alguma coisa...Não se amam?
— Ela tem-me ódio.
— É caminho para o amor, ouvi dizer; e tu?
— Desprezo.
— Dizem que também é um atalho que vai ter à grande cidade do conjugo vobis.
— Para a tua cidade! disse Daniel, sorrindo maliciosamente.
Valadares suspirou.
— Para a minha cidade, tens razão! Mas antes não fosse!
— A coisa vai mal?
— Vai o pior possível.
— Hão de acomodar-se... Tu tratarás de ver uma compensação fora das fronteiras conjugais; e ela contentar-se-á com as modas novas... Escusas de franzir a testa; é esta a tua convicção e a minha. O casamento, meu caro Valadares, é uma loteria; o teu bilhete saiu branco. É dinheiro perdido, ou antes dinheiro ganho, porque ainda que percas tudo, ainda te fica o dinheiro...
Valadares engoliu dificilmente a observação de Daniel, falou outra vez no passeio à Tijuca e assentou-se que Daniel iria.
O passeio fez-se daí a oito dias.
Entre outras pessoas, achavam-se lá Augusta e Luís.
Daniel ignorava os sentimentos de Luís em relação a Augusta; demais, conhecia-o pouco.
Na primeira ocasião que pôde alcançar, Daniel perguntou a Augusta se estava com a mesma resolução em relação a ele.
— A mesma, respondeu Augusta.
Daniel inclinou-se e começou a falar da beleza do sítio em que se achava.
Augusta ouviu-o não sem espanto.
— Tem grande amor à natureza? perguntou ela.
— Imenso. A natureza não fala.
— Os poetas dizem o contrário, retorquiu a moça sorrindo.
— E dizem bem; a natureza fala, mas fala como uma alma deve falar a outra, sem intermédio dos lábios. Ora, eu tenho notado que o falar é perigoso para as nossas ilusões;
uma palavra destrói às vezes um mundo.
Augusta mordeu os lábios.
— Veja, disse Daniel, colhendo uma flor agreste que lhe ficava ao alcance da mão. Há nada mais do que isto? Esta flor diz mil coisas justamente porque não pode articular o que me diz: o perfume é a sua linguagem; esta cor branca ligada com esta cor azul formam uma frase que eu compreendo sem explicar. A coitadinha desta flor não pode fazer mal;
mas, se eu por um capricho qualquer, achasse na sua linguagem alguma coisa que me ofendesse, tinha o remédio nas mãos; destrui-la-ia assim...
E Daniel esmagou a flor entre os dedos.
Augusta olhou para a flor e para Daniel. Nem um gesto de surpresa ou de despeito;
apenas sorriu, dizendo:
— Mas, ainda esmagada entre as suas mãos, essa flor vale mais que o senhor, porque...
Luís aproximou-se do grupo quando Augusta ia continuar.
— D. Augusta, disse ele, sua mãe quer falar-lhe.
Augusta foi ter com a mãe.
— Está um bonito dia, disse Luís a Daniel.
— Está, respondeu o rapaz distraído.
E voltou os olhos para Augusta que se afastava.
Luís viu o gesto e procurou adivinhar o olhar de Daniel. Palpitou-lhe o coração mais fortemente; que haveria entre eles?
Alguns minutos durou o silêncio; no fim deles, Daniel voltou-se para Luís e encetou uma conversa; Luís respondeu por monossílabos ao interlocutor, até que o jantar veio pôr termo à situação esquerda em que se achavam os dois.
XIII
Daniel levantou-se um dia com a idéia de fazer uma viagem a Minas.
Sentia que Augusta já o prendia mais do que convinha ao seu coração; nasciam-lhe forças até então ignoradas. A indiferença da moça fazia-lhe supor que lutava em vão;
temia o desgosto. Resolveu viajar.
Valadares recebeu uma manhã a seguinte carta:
Valadares, Vou para Minas amanhã. Não sei se terei tempo de ir fazer-te as minhas despedidas.
Recomenda-me à tua senhora. Teu do coração Daniel.
Apenas Valadares recebeu a carta, foi imediatamente ter com o amigo.
— Vais para Minas?
— É verdade.
— Que tempo te demoras lá?
— Uns cinco meses. Queres alguma coisa?
— Estava capaz de ir contigo.
— E tua mulher?
— Fica.
— Pois tens ânimo?
— Pois então! Eu te digo; tenho até necessidade de ver-me livre por algum tempo de semelhante algoz...
— Valadares, isso não é bonito...
— Seja bonito ou não, eu vou contigo; mas só te peço uma coisa.
— O que é?
— Que adiemos a viagem para a semana que vem.
— Impossível.
— Por quê?
— Tenho minhas razões.
Valadares fez uma careta de desgosto; insistiu, mas Daniel resistiu ao convite.
— Então, não poderei ir, disse Valadares.
— Não sei por quê.
— Ora! ir só é aborrecido. Contigo, a coisa era outra. Olha lá; e se fôssemos a Paris?
— Isso mais tarde.
A conversa durou pouco mais. Valadares saiu desconsolado. Daniel continuou a dar as suas ordens precisas para a viagem.
Foi nessa mesma tarde à casa de Augusta despedir-se da família e oferecer-lhe os seus préstimos em Minas. A mãe de Augusta agradeceu-lhos e ao mesmo tempo participou que, acabada a sessão do Parlamento, partiriam para o Norte; e, portanto, só no ano seguinte se poderiam encontrar.
— Até para o ano, disse Daniel tranqüilamente.
Augusta não manifestou surpresa, nenhum desgosto com a notícia da viagem de Daniel;
conversou alegremente com ele sobre coisas ínúteis; tocou um pouco de piano e despediu-se dele como se tivesse de vê-lo no dia seguinte.
Às seis horas, estava Daniel em casa, de volta da casa de Augusta.
Mas daí a cinco minutos, parava-lhe um carro à porta.
— Quem é ? perguntou ele ao criado.
O criado foi ver e voltou.
— É uma senhora, vem subindo.
Pouco depois entrou-lhe na sala Amélia Valadares.
— Desculpe se venho assim sozinha à casa de um homem solteiro.
— Desculpar? disse Daniel, convidando Amélia a sentar-se. Não há que desculpar; há que agradecer.
— Então, como vai de saúde?
— Assim, assim... creio que preciso fazer uma viagem a Minas Gerais, e já mandei fazerlhe minhas despedidas por intermédio de Valadares.
— Ele me disse isso, e é justamente por causa desta viagem que eu venho aqui.
Amélia sorriu-se com ar sonso.
Daniel não atinou com a ligação da viagem a Minas e a visita da mulher de Valadares.
— Venho reforçar, disse Amélia, um pedido de meu marido.
Daniel já se não lembrava que pedido era.
— Um pedido? disse ele. Qual?
— Valadares entrou agora lá em casa muito triste; perguntei-lhe o que tinha e contou-me que, desejando ir a Minas com o senhor, não pudera obter que o senhor adiasse a viagem até a semana que vem. Ora, é isso justamente o que lhe venho pedir.
Desta vez, foi Daniel quem sorriu.
— Não podia, respondeu ele, adiar a viagem há tanto preparada; mas, à vista do pedido, não posso recusar o adiamento. Diga a Valadares que pode contar comigo.
— Agradeço-lhe o obséquio, disse Amélia muito satisfeita, e creia que favorece a meu marido.
— É favorecer a V. Excia., creio, interrompeu Daniel. Pode dizer que conte comigo.
A mulher de Valadares levantou-se para se despedir, e nesse ato fez o que fizera ao princípio, segundo costumava, correu por toda a sala olhos minuciosos.
— Desculpe, disse Daniel, desculpe o desarranjo em que isto se acha... Estou em véspera de viagem; e bem vê...
— Pois não; desculpo tudo, disse Amélia aproximando-se de uma mesa. São lindos estes objetos de bronze; são principalmente de bom gosto... O senhor tem bom gosto.
— Creio que sim...
— Por exemplo, a Augusta...
E calou-se.
— Que tem a Augusta? perguntou Daniel.
— A Augusta é bonita; e o senhor mostra que tem bom gosto...
— Maliciosa! bem sabe que...
— Sei que o senhor gosta dela.
— Perdão, gostei dela.
Amélia sorriu, mas não respondeu. Não teria acreditado? Daniel suspeitou-o; e quando ia continuar a conversa para deixar-lhe bem claro no espírito que já nada havia dele para com Augusta, a mulher de Valadares chamou a atenção para não sei que volume que estava sobre a mesa.
Como ele lhe explicasse o que era o livro, ela continuou no exame dos objetos que viu sobre a mesa.
Amélia era naturalmente indiscreta e leviana. A visita à casa de Daniel era já um ato de sofrível leviandade; a demora, e a bisbilhotice com que examinava a sala tinha mais graves conseqüências. Que pensaria Daniel se não conhecesse o espírito frívolo da moça?
De repente, Amélia, indo levantar um álbum, viu debaixo um objeto que lhe chamou a atenção; era uma liga. Daniel estava voltado para um espelho e não viu o gesto da moça.
Amélia examinou a liga e viu duas iniciais; as iniciais de Augusta.
O leitor lembra-se do episódio da Rua do Ouvidor.
Quando Daniel se voltou para Amélia, viu-a sorrir; aproximou-se e reparou que ela estava com a liga nas mãos. Não lhe ocorrendo a circunstância das iniciais (circunstâncias bem próprias de romance), Daniel arriscou a seguinte observação:
— Fez mal em descobrir isso: é um despojo de vencido.
— Ah! disse Amélia.
E mostrou as iniciais de Augusta.
Daniel empalideceu.
Amélia olhou para ele, atirou a liga sobre a mesa, e disse, caminhando para o espelho:
— Não se assuste; eu sou de segredo.
Daniel tinha recobrado o sangue frio.
— Assustar-me de quê? perguntou ele.
— Não sei, respondeu Amélia, consertando o chapéu.
— Além de que, não é segredo.
— Ah! não é segredo ? Eu cuidei que era... Não me disse há pouco que já não gostava dela?
— Perdão, disse Daniel aproveitando a aberta que lhe davam essas palavras; eu creio que está enganada.
— Estarei enganada, e o Luís também.
— Quem é o Luís?
— O deputado, respondeu Amélia rindo.
E apertando a mão de Daniel acrescentou:
— Adeus, adeus! tenho pressa. Tenho a sua palavra; só irá na semana que vem.
E antes que Daniel lhe oferecesse o braço ou procurasse detê-la, saiu da sala e desceu as escadas.
Daí a pouco, partiu o carro.
XIV
Daniel não pôde conter um gesto de despeito, apenas Amélia saiu.
Tinha vontade de ir agarrá-la e castigá-la de toda a leviandade com que procedeu entrando em sua casa. O incidente da liga, e as meias palavras com que ela o encerrou, tudo estava fervendo no espírito até há pouco tranqüilo de Daniel.
— Que leviana! dizia consigo. Vir à casa de um homem solteiro por um modo tão singular;
fazer-me o singular pedido de ir com o marido para fora; revolver os meus móveis;
caluniar pessoas a quem abraça... Ai, Valadares, que mulherzinha te caiu nos braços!
XV
Valadares era menos exigente que Daniel.
O que lhe parecia mal em Amélia eram as impertinências da mulher faceira, os caprichos, as imposições, de maneira que tudo acabaria se estivesse algum tempo fora dela... a espairecer.
Cuidou que a viagem a Minas era boa ocasião; mas Daniel não quis adiar a sua viagem para esperá-lo. Amélia soube disso e foi ajudá-lo nos seus desejos pedindo esse favor ao próprio Daniel Quando no dia seguinte, de manhã, Valadares encontrou a mulher à mesa do almoço, disse-lhe ela:
— Já preparaste as malas?
— Para quê?
— Para a viagem a Minas.
— Só, não vou.
— Vai com o Daniel.
— Mas ele não quer adiar...
— Quer.
— Como sabes?
— Pedi-lho eu.
Valadares tomou a liberdade de abraçar entusiasticamente a mulher diante da criada, cujo pudor lhe aconselhou imediatamente uma excursão à cozinha.
— Não sabes como te agradeço o que fizeste por mim.
— Ah! tens muito prazer em ir a Minas? Queres esquecer-me?
— Eu, lindinha? Nem por sombras. Quero estudar a província, e além disso preciso de tomar ares. O Valadão diz que eu estou caminhando para a cova, e que preciso reforçar a minha constituição. Sabe Deus que saudades levo de ti! Mas tu não queres ir.
— Bem sabes que não posso.
O almoço terminou alegremente; parecia que aqueles dois galés já saboreavam a felicidade de se separarem durante algum tempo.
Daniel resolveu responder às tolices de Amélia com partida imediata, sem embargo da promessa anteriormente feita. Ao princípio, repugnou-lhe o ato que era descortês; mas venceu o aborrecimento que Amélia lhe causara na tarde em que foi visitá-lo.
E justamente quando Valadares agradecia à mulher os esforços que fizera em favor dele, estava Daniel em caminho para Minas, acompanhado de um simples criado.
Valadares saíra de casa para ajustar objetos de que precisava para a viagem. Às duas horas, lembrou-lhe ir ter com Daniel.
— Onde está o amo? perguntou a um criado que lá encontrou.
— Saiu, respondeu o criado.
— Volta?
— Foi para Minas.
— Para Minas...
Valadares ficou contrariadíssimo com a noticia.
— Parece, disse o criado, que eu tenho aqui uma carta para o senhor.
— Para mim? Dá cá.
O criado foi buscar a carta e entregou-a a Valadares.
A carta dizia assim:
Valadares, Prometi à tua mulher que adiaria a viagem; mas sinto não poder cumprir a palavra prometida a tão gentil senhora, porque entrou-me por casa uma fúria, uma bisbilhoteira, uma mulher sem pinga de juízo que pôs a minha sala e o meu espírito em desordem.
Para esquecer esta hóspede inesperada só me resta o recurso de precipitar a viagem. Até lá ou até à volta. Teu Daniel.
Valadares leu a carta e não a entendeu muito bem.
Quando Amélia soube que Daniel, a despeito da promessa que lhe fizera, havia partido, sentiu-se um pouco humilhada; mas como as impressões da moça eram passageiras, o ressentimento não lhe durou mais de um quarto de hora. Ficou, porém, despeitada com o bilhete de despedida de Daniel. Aquilo que Valadares não compreendia, Amélia o compreendia demais. Achou-se injuriada com as expressões da carta e mais ainda porque fora sem dúvida escrita na previsão de ser lida por ela.
Valadares resolveu seguir viagem na época escolhida por ele; mas um acontecimento estranho à nossa história impediu que a viagem fosse executada. Achando-se numa ceia com rapazes e moças, Valadares sentiu-se preso pelas algemas do amor, e sacrificou a viagem a Minas nas aras de uma Laís de contrabando.
Nunca mais falou em viajar.
Amélia ainda tentou mandá-lo tomar ares; e Valadares, que em todas as ocasiões, era o tipo do esposo maricas, desta vez resistiu violentamente, prova de que amava profundamente... a outra.
XVI
Quando Augusta soube realmente que Daniel partira para Minas, sentiu uma decepção;
apesar da despedida solene que este lhe fizera e à família, Augusta acreditava que a viagem nunca seria executada.
Não supunha, note-se, que Daniel estivesse a fazer comédia, quando se despediu deles;
mas acreditava que lhe seria difícil deixar a corte. É que, apesar de tudo, Augusta estava convencida de que Daniel amava-a loucamente.
O advérbio era demais.
Daniel amava a rapariga, e justamente para acabar com esse germe, que já começava a desenvolver-se no coração, é que ele fazia aquela viagem. Ouvira dizer que as viagens são excelentes contra o reumatismo da coração.
Augusta sentiu-se ferida; o despeito pôde muito naquela ocasião.
A sua esperança foi que, demorando um último olhar na janela da casa dela, Daniel não pudesse seguir viagem e tornasse a entrar para casa, dispondo-se a encadear a existência ali a seus pés.
A esperança foi iludida.
Mas para que desejava Augusta isso, se o não amava?
Não sei; desejava-o.
Madalena procurou sondar o coração da filha, depois da partida de Daniel.
— Que sentes tu a respeito desta ida súbita do dr. Daniel? perguntou-lhe uma tarde.
— Eu, nada, respondeu Augusta. Acha que devo sentir alguma coisa?
— Não; era simples pergunta. Sabes que ele gostava de ti.
Nenhum palavra mais se conseguia arrancar a Augusta relativamente a este negócio.
Um dia, Luís estando com ela anunciou que voltava para a província, e que estava disposto a abandonar a carreira política. Acrescentou que até então tivera alguma esperança, mas que essa mesma se desvanecera.
— Pensei, disse Augusta, pensei que já não houvesse esperanças para o senhor.
— Havia uma...
— Qual?
— A de ser amado quando já todos se houvessem esquecido de mim!
— Perdeu essa esperança? disse Augusta. Olhe que não perdeu grande coisa.
— Perdi, porque ela era fundada numa base falsa. Eu acreditava até agora que o seu coração era mudo.
— Ah!
— Mas sei que não; o seu coração falou.
— Que disse ele?
Augusta estava disposta a gracejar; as suas últimas palavras foram ditas com um riso de escárnio, cujo segredo só ela possuía.
— Disse que ama a um ausente...
Augusta levantou-se ao ouvir isto; olhou fixamente para, Luís e disse:
— Ou é ilusão sua ou calúnia de alguém! Demais, creio que pouco lhe deve importar o sentimento do meu coração...
— Importa-me muito, dona Augusta. Não quero falar-lhe de amor, pois que já mo proibiu;
mas permita que lhe pergunte só por que razão eu...
Augusta lançou-lhe um olhar de profundo escárnio e desprezo, voltou-lhe as costas e saiu.
— É demais! disse Luís.
Pegou no chapéu e retirou-se.
— Que é isto? Por que motivo nutro eu uma esperança vã? Para ser insultado todos os dias? Aquela mulher é uma estátua; não tem sangue, nem alma. É feita de um pedaço de mármore. Amar para quê? para ter neste amor o meu tormento e a minha humilhação?
Não! é demais! tudo precisa de um termo.
Desse dia em diante, Luís não voltou à casa de Madalena.
XVII
O procedimento de Augusta era objeto da curiosidade de todos.
— Por que motivo esta moça recusa todos os pretendentes? diziam as mães de família;
parece que não quer casar. Quererá ficar para tia?
O argumento era singular; devia ocorrer a todos que Augusta recusava os pretendentes justamente por que não gostava de nenhum.
Mas a reflexão das mães de família era que um casamento nunca se recusa, salvo circunstâncias especiais.
Madalena respeitava os escrúpulos da filha; queria vê-la feliz e entendia que o melhor meio era casá-la com quem lhe falasse ao coração.
Mas onde estava esse fênix, visto que nenhum até agora lhe agradara?
Augusta conservava-se na sua torre de marfim, pouco disposta a ceder às instâncias, nem de Luís, nem de Daniel. Viu partir um e outro sem a menor emoção. Quem teria razão? Os que esperavam que chegasse a Augusta a hora do amor ou os que a julgavam uma simples estátua de mármore?
Tinham já corrido dois meses depois da partida de Daniel para Minas Gerais, quando Augusta encontrou Amélia na Rua da Quitanda, indo a primeira com a mãe ver umas fazendas, e vindo Amélia de um passeio com Valadares. Era raro que os dois andassem juntos; Valadares gracejara muito por essa circunstância, apenas encontrou as duas senhoras.
— Não repare, D. Madalena; o sol e a lua ao pé um do outro é sinal evidente de eclipse.
Depois de alguns minutos de conversa, Amélia seguiu com Madalena e a filha, ao passo que Valadares foi a outras ocupações. Amélia jantaria com as amigas e voltaria à noite para casa. Valadares escusou-se, dizendo que tinha um jantar diplomático. Com efeito, ao jantar a que ele assistiu, estiveram presentes alguns secretários e adidos de legação; mas o caráter do festim tinha mais de guerra que de diplomacia. Notas, se as havia, não eram de embaixada.
— Já sabe que a nossa partida está próxima? disse Madalena a Amélia, apenas chegaram à casa.
— Ah!
— Apenas se fecharem as câmaras, continuou Madalena, vou deixar o seu Rio de Janeiro.
Amélia olhou para Augusta com uma insistência que a moça não compreendeu.
— Vai deixar o meu Rio de Janeiro, disse Amélia depois de alguns instantes. Não gosta dele?
— Muito, decerto.
— É magnífico, disse Augusta; mas a nossa província...
— Amor de bairro, respondeu Amélia sorrindo.
— Será, será, mas não somos todos assim?
— Conforme. Às vezes, muda-se de sentimento, conforme os afetos que encontramos nos lugares novos.
— Isso não sei.
— Não achou cá alguma coisa?
— Coisa nenhuma.
Augusta disse isto com tanta frieza e firmeza, que Amélia não pôde reprimir um gesto de espanto.
— Pois olhe, disseram-me...
— O quê? perguntou Madalena.
Amélia hesitou alguns instantes.
— Estou gracejando, disse ela.
Mas daí a algum tempo, achando-se a sós com Augusta, disse-lhe:
— Disseram-me que estavas apaixonada pelo Daniel.
— Eu? Qual!
— Disseram-me... Juras que não é verdade?
— Juro.
— Então, toma cuidado!...
— Por quê?
— Porque podem dizê-lo e então...
— Que importa que o digam? disse Augusta.
— Perdão; importa muito. Se disserem, por exemplo, que fizeste presente de uma liga ao Daniel, como se fosse uma flor ou um botão de camisa...
— Dirão uma tolice.
— Mas se disserem que ele possui esse objeto?
— Que ele possui? Ora essa! Estás brincando, Amélia.
Amélia contou-lhe o episódio da casa de Daniel.
XVIII
No fim de uma ausência de quatro meses, voltou Daniel ao Rio de Janeiro.
A viagem foi uma verdadeira restauração. Daniel achou-se como sempre fora, tendo perdido o menor vestígio do parêntese que se dera em sua existência.
A falar verdade, Daniel achava agora que fora ridículo durante os dias em que se sentiu apaixonado por Augusta. O caráter indiferente do rapaz, por um momento agitado, voltou a ser o que era.
Entrou em casa de noite, e não tendo prevenido a ninguém, ninguém foi esperá-lo à chegada.
Ao entrar em casa, não pôde deixar de olhar para a casa de Augusta. Ignorava se ainda ali moravam ou se haviam partido para a província. A casa estava silenciosa.
O criado, que o recebeu, deu-lhe notícia de que a família de Augusta ainda morava na mesma casa.
— Mas quem te perguntou por isso? disse Daniel.
— Eu lhe digo, meu amo; é que, de quando em quando, mandavam saber de lá quando é que meu amo chegava?
— Sim?
— É verdade. E há coisa de três dias recebi uma carta com ordem de entregar-lha apenas chegasse.
— Uma carta?
— Sim, senhor; está no seu gabinete.
— Deixa-me ir descalçar as botas.
Noutro tempo, Daniel teria ido ver a carta primeiro; agora, preferia descalçar as botas.
Sirva isto de termômetro; quando um homem procura antes de tudo ler uma carta, ama;
quando descalça as bota antes, já não ama. É receita que lhes dou de graça.
Descalçadas as botas, Daniel foi ler a carta.
Era de Augusta.
Dizia assim:
Apenas chegar, peço-lhe que venha à nossa casa. Desejo falar-lhe.
Augusta.
— Olé! disse Daniel em voz alta; dar-se-á caso que a menina mudasse de opinião? Que diabo me quererá ela? Se vem falar de amores, estou disposto a não admitir conversa neste ponto; é capítulo acabado. Amanhã, veremos a coisa.
E reparando que o criado ouvira este solilóquio, voltou-se para ele rindo:
— João, ouviste o que eu disse agora?
— Eu só ouço o que meu amo quiser, respondeu o criado sorrindo maliciosamente.
— Ainda bem. Dá-me de comer.
Daniel comeu tranqüilamente como um homem que chega de uma viagem de recreio.
— Veio alguém procurar-me?
— Veio o sr. Valadares duas vezes. Parece que tem graves acontecimentos para comunicar-lhe.
— A mim?
— Disse-me isto.
— Vai dizer-lhe que eu voltei e o espero hoje mesmo.
O criado saiu.
Daniel releu o bilhete de Augusta, e não podia furtar-se ao espanto que lhe causava a sem-cerimônia da moça, escrevendo e assinando um bilhete que podia comprometê-la.
— Tudo é natural naquele gênio excêntrico, dizia ele consigo.
Cerca de uma hora depois, chegou Valadares.
Depois de um apertado abraço de boas-vindas, Valadares sentou-se e pediu a Daniel a sua mais profunda atenção.
— Estava ansioso por ver-te, disse ele.
— Aqui estou. Tua mulher?
— Não me fales dela.
— Por quê?
— Quero propor ação de divórcio.
— Eu já contava com isso, disse Daniel tranqüilamente. Dizem que dois gênios iguais não fazem liga; parece que o adágio é certo, visto que vocês ambos eram o tipo da frivolidade...
— Daniel!
— Desculpa a franqueza; é um direito de amigo. Até hoje, não descobri outro mérito num amigo senão o de dizer coisas desagradáveis ao outro amigo, sob pretexto de que a franqueza é um dever do coração. Portanto, sustento que vocês dois não se podiam ligar, pois eram e são dois espíritos frívolos.
— E tu, queres passar por um homem grave?
— Deus me defenda! Eu não sou grave, nem frívolo, sou indiferente. São dois extremos.
Eu estou entre estes dois pólos do espírito humano. O caráter é como a gravata; uns usam pôr gravata uma fitinha preta, são os frívolos; outros um lenço de dois palmos de altura, são os graves. A primeira constipa, a segunda sufoca; eu uso gravata regular.
Valadares soltou do peito um ruidoso suspiro.
— Bem; esquece os meus defeitos para atender somente aos meus infortúnios... Não posso viver com Amélia, devo separar-me a todo custo.
— É resolução assentada? Então o meu conselho é inútil.
— Nem eu te peço conselho. Quero simplesmente que me defendas, quando me acusarem.
— Isso não!
— Por quê?
— Não quero intervir em negócios de família.
A resposta de Daniel foi tão fria que Valadares não achou objeção razoável.
— É a tua última palavra? perguntou ele.
— A última.
Seguiu-se a isto um longo silêncio.
Valadares levantou-se, deu alguns passos, acendeu um charuto, enquanto Daniel punha em ordem alguns papéis.
— Como te foste de viagem? perguntou Valadares.
— Bem.
— E quando eu penso que podia ter ido contigo... A propósito, continuou Valadares, que me querias tu dizer na carta que me mandaste e que eu não entendi?
— Ah! queria dizer que não podia esperar.
— Mas há certas palavras...
— Isso não vale a pena. Tua mulher leu a carta?
— Leu. Ah! se eu tivesse ido contigo! Mas aquilo por lá é muito aborrecido?
— Conforme, disse Daniel; para quem gosta da corte e da Rua do Ouvidor, deve ser aborrecido; eu acomodo-me bem em toda a parte.
— É verdade que se eu fosse perdia muita coisa.
— Sim?
— Coisas do arco-da-velha. Sabes que temos gente nova?
— Onde?
— No Alcazar. A rapaziada agora anda muito animada. Eu estreei ontem este paletó num grande jantar na Tijuca... jantar de Citera. Como achas o paletó?
— Acho bom.
— Manda fazer um, porque a moda é isto agora. Tenho pena de não ter trazido os figurinos; os cortes das calças são excelentes. Estas que eu tenho já passaram da moda;
trouxe-as, porque vim depressa e é noite. E os padrões?
Valadares continuou neste gosto até que bateram dez horas. Daniel alegou que estava cansado e precisava dormir. Valadares saiu, prometendo voltar no dia seguinte, a fim de ver se obtinha uma resposta dele.
— Sobre o divórcio ou sobre as calças?
— Uma e outra coisa, disse Valadares descendo a escada.

XIX
No dia seguinte, à noite, Daniel foi visitar a família de Augusta.
O rapaz tinha curiosidade de saber que impressão lhe produziria a moça. Posto que não sentisse mais nada por ela, queria ver se o simples aspecto do rosto ex-amado teria força de despertar as recordações extintas.
Entrou firme e tranqüilo na sala.
Madalena esperou-o à porta; Augusta estava no sofá, e levantou-se apenas Daniel apareceu.
Feitos os cumprimentos do estilo, depois de uma longa viagem, Daniel disse que não cuidava encontrá-las no Rio de Janeiro, visto estarem fechadas as câmaras e ter o irmão de Madalena necessidade de voltar à província.
— A necessidade desapareceu por enquanto, disse Angusta; meu tio demora-se algum tempo...
— O que é um prazer para nós todos, disse Madalena.
Daniel curvou-se em sinal de assentimento.
A conversa tomou outra direção até que chegaram algumas visitas mais.
Daniel pôde ficar algum tempo a sós com Augusta, no canto de uma janela.
— Recebeu uma carta minha? perguntou a moça.
— Um simples bilhete.
— Isso mesmo. Não me julga leviana?
— Não; apenas audaz.
— É um sinônimo neste caso. Seja o que for; o certo é que recebeu a carta... e veio.
— Viria em todo caso, observou Daniel; mas o seu bilhete apressou a minha visita.
— Sabe o que lhe quero?
— Não adivinho.
— Lembra-se o que me disse há tempos?
— Disse-lhe que a amava.
— Pois bem, proponho-lhe uma coisa. Quer casar comigo?
Daniel ficou espantado com a franqueza desta pergunta. Fez-lhe o mesmo efeito de uma bala em cheio no estômago. Não atinando com a resposta, murmurou um monossílabo.
Quem visse os dois julgaria que os papéis estavam trocados. Daniel assemelhava-se a uma donzela tímida, e Augusta a um cavalheiro amante e solícito, querendo arrancar da amada a resposta decisiva.
No fim de alguns segundos, disse Augusta:
— Não responde?
— Quer que lhe responda ? perguntou Daniel, readquirindo o seu sangue frio. É tão singular esta pergunta feita por V. Excia.
— Singular? Não acho.
— Singular por dois motivos. O primeiro é que essa pergunta costuma sempre ser feita por nós outros; aqui os papéis estão trocados; o segundo é que, depois do que me disse há tempos, aí...
— Mudei de opinião.
— De opinião? perguntou Daniel, sorrindo.
— De sentimento, queria eu dizer, respondeu Augusta. Não exijo a resposta imediatamente; basta que a mande amanhã.
E retirou-se da janela.
Daniel ainda ali ficou algum tempo, aturdido com o que acabara de ouvir. Tudo lhe parecia estranho naquela moça. Para supô-la leviana encontrava um desmentido no seu caráter, que estudara outrora; seria o que ele lhe disse a ela mesma, apenas uma audaciosa?
Daniel meditou nessa noite na resposta que lhe havia de dar, ou antes na forma de resposta, porque a resposta era negativa. Consultou o coração e reconheceu que nada sentia por ela. Estava frio. Enganá-la, seria baixeza; mais valia ser franco.
Mas como dizer-lhe, sem que lhe ofendesse os brios, esta revelação inesperada?
No dia seguinte, depois de muito meditar escreveu a carta seguinte:
Minha senhora, A singularidade da nossa situação só pode ter uma solução singular. Convidado a casar por uma moça bonita, prendada, que a todos os respeitos é a ambição de um homem, é singular que esse homem, não tendo outros compromissos, recuse o convite. Pois é justamente a minha resposta; tomo a liberdade de recusar.
Não me acuse, porém, antes de meditar bem nas considerações que me obrigam a recusar o seu convite. Aceitá-lo-ia, quando eu a amava; hoje, que o sentimento que lhe votava desapareceu de todo, não posso fazê-la feliz, porque casar sem amor é desgraçar uma senhora.
Tudo isto é singular; a maior parte dos casamentos fazem-se independentemente do amor. Mas, que quer? Eu, profundamente cético, a respeito de tudo, tenho a veleidade de crer no amor, ainda que raro, e quero que o amor seja a única razão do casamento.
À vista destas razões, o meu procedimento, recusando, é tão nobre e digno como vil seria se aceitasse. Creia-me, entretanto, seu amigo e respeitador.
Fechou a carta e mandou-a.
Que impressão produziria ela no ânimo de Augusta?
XX
Augusta não se mostrou irritada com a resposta de Daniel; conteve a irritação; revelar-se, era contrário ao seu orgulho; não queria fazê-lo e não fez.
Mas, poucos dias depois, notavam-se as visitas repetidas de Luís à casa de Madalena; as pessoas que freqüentavam a casa notavam, também, que as relações entre o deputado e Augusta eram muito mais cordiais do que antes.
Madalena quando percebeu isto, estimou muito que a situação tivesse tomado aquele caráter; preferia vê-la casada com um homem que parecia merecer toda a confiança.
E seria namoro?
Alguns afirmavam que sim; outros que não.
Todos concordavam, porém, que a situação entre ambos tinha-se modificado muito.
Luís, pela sua parte, já se acreditava mais feliz; não é que ela desse esperanças positivas; mas todo o seu procedimento dava a entender isso mesmo.
Daniel, depois da carta que escreveu a Augusta, hesitou em freqüentar a casa; mas, ao mesmo tempo curioso por ver o efeito da carta, resolveu lá ir, e com efeito apareceu ali quinze dias depois do último em que lá estivera.
Como o recebeu Augusta?
Daniel ia atravessando um corredor e encontrou Augusta que vinha de uma sala interior.
A moça apenas o viu foi mais depressa para ele, com um sorriso nos lábios, a ponto que o rapaz, contando com um gesto de despeito ou ao menos de indiferença, ficou como dizem, desapontado.
Trocaram alguns cumprimentos, depois dos quais Daniel perguntou a Augusta:
— Perdoou-me?
— Perdoei-o.
Augusta disse estas palavras com tanta graça que Daniel sentiu-se arrependido de ter mandado a carta.
Nessa noite, lá esteve Luís como de costume.
Madalena recebeu Daniel com um sorriso de piedade. Ignorava a troca de cartas, mas o sorriso queria dizer:
— O que perdeu o senhor! Vai outro ser feliz!
Daniel mostrou-se amável com todos. Augusta não demonstrou o menor sintoma de desagrado, em relação ao rapaz.
Será isto natural? ou é simplesmente hipocrisia? perguntava Daniel consigo.
Luís estava radiante de amor. Já para ele não havia dúvida de que triunfava finalmente a sua perseverança.
A presença de Daniel que, em outra época, o incomodara, já agora lhe era indiferente.
Por sua parte, Daniel conhecia pelo ar de Luís que a situação estava toda a seu favor.
Não quis disputar-lha.
Somente, refletiu um pouco sobre a facilidade com que Augusta passava de um a outro namoro.
A coisa não seria de admirar noutra mulher; mas na orgulhosa Augusta!
XXI
Daniel ao entrar em casa recebeu uma carta que lá deixara Valadares.
Besta vez, o janota ia divorciar-se da mulher.
Daniel sorriu e atirou a carta a um lado; mas no dia seguinte de manhã, apenas saiu à rua, recebeu a notícia como certa.
Tinham-se finalmente separado aquelas duas almas que não foram feitas para ser unidas, apesar da conformidade das tendências que se notava entre ambas.
O próprio Valadares veio confirmar a notícia.
Daniel encontrou-o no Rocio, junto à esquina do Clube Fluminense.
— Sabes, meu rico Danie1?
— O quê?
— Que eu vou pôr a sela à margem, a sela é minha mulher.
— Tu és o burro, disse Daniel rindo.
— Com três r r r.
— Mas eu ouvi dizer que já estavam separados?
— Já me mudei de casa; agora vamos tratar judicialmente do divórcio.
— Mas já pensaste nisto maduramente?
— Já pensei demais; se me não separo tão depressa, iria para o hospício.
— Se lá estivesses há mais tempo, não te casavas.
— Isso é verdade...
Despediram-se.. Daniel foi rindo interiormente da situação de Valadares.
Na primeira vez em que se achou em casa de Augusta, encontrou lá Amélia.
A mulher de Valadares estava alegre como se não se houvesse dado na sua vida acontecimento de grande monta.
Daniel não lhe disse nada; mas Amélia, na primeira ocasião em que se achou com ele mais separada dos outros, contou-lhe a mesma coisa que o marido, com a diferença de que desta vez a vítima era ela e não ele.
Daniel ouviu como amigo a narração que Amélia lhe fazia, mas absteve-se de dar resposta nenhuma.
— Tudo isto, pensava ele consigo, voltando para casa, são argumentos para não casar nunca!
Anunciou-se um grande baile dado pelo tio de Augusta que se retirava com toda a família para a província. O velho deputado não era dado a essas coisas; mas, a pedido da sobrinha, fez tudo o que ela lhe indicou.
Augusta queria ter na corte um último triunfo.
Com efeito, na noite do baile esteve esplêndida. Tinha o condão de ser elegante, com simplicidade. Sobrava-lhe gosto. E tudo quanto podia fazer, fê-lo para aquela noite, que devia ser a sua última campanha.
Luís ficou deslumbrado, quando a viu entrar na sala, e não menos deslumbrado ficou Daniel.
A moça aceitou Daniel para seu primeiro par.
— Sabe que está deslumbrante? disse-lhe o rapaz, tomando o lugar na quadrilha.
— Deveras?
— É o que lhe digo. Demais, já todos os olhos lhe estão dizendo isto mesmo.
Depois dos antecedentes havidos entre Daniel e Augusta, era impossível que fossem mais familiares.
Posto que Luís tivesse já grandes esperanças, com visos de certeza, de dominar completamente o coração de Augusta, todavia estava um pouco incomodado com as atenções que a moça tinha para com Daniel.
Tudo, porém, desapareceu, quando Augusta o aceitou para par da seguinte quadrilha.
— Não tive a satisfação de dançar a primeira, disse Luís, mas espero que me conceda a segunda.
— Não nos compromete isso? disse Augusta.
— Por quê?
— Dizem que a segunda quadrilha é dos namorados.
Luís sorriu cheio de satisfação.
— Dizem, é verdade, respondeu ele sem saber bem o que dizia.
No correr da quadrilha, desapareceu a menor sombra de susto de Luís. Augusta estava mais do que nunca amável com ele.
XXII
Justamente no fim da quadrilha, entrou na sala Amélia Valadares, sem o marido.
Já sabemos que Amélia era bonita; sabia vestir-se, exagerando um pouco as modas, é verdade; naquela noite, vinha bem; não havia exageração e havia, portanto, elegância.
Poucas pessoas sabiam até então da resolução tomada entre ela e o marido para se separarem. Por isso, foi-lhe fácil responder aos que lhe perguntavam por Valadares:
— Foi a um jantar político. Virá logo.
Desculpem a leviandade da rapariga; ela não dava mais de si.
Quando Amélia entrou, viu Augusta pelo braço de Luís, conversando amigavelmente com ele; pela noite adiante, reparou nessa intimidade maior que a que até então existia.
— Será amor? perguntou ela consigo.
Na primeira ocasião que teve para conversar mais largamente com Augusta, aproveitou-a.
Foram para uma pequena sala de descanso, e aí, enquanto se dançava uma valsa, sentaram-se as duas num sofá.
— Dou-lhe os meus parabéns, disse Amélia.
— Por quê?
— Está de namoro e casamento pronto.
— Nem namoro, nem casamento, respondeu Augusta.
— Mas há esperanças de união?
— Isso sim.
— Logo...
— Quer que lhe diga uma coisa? É natural que eu acabe casando com o Luís, mas não é por amor dele...
Amélia, neste ponto, pensou em Valadares.
— Caso-me por duas razões: a primeira é para acabar com os pretendentes à minha mão, continuou Augusta.
— E os pretendentes ao coração?
— Oh! esses!
— A segunda razão qual é?
— A segunda razão, continuou Augusta, é que o melhor meio de esquecer...
A moça hesitou.
— Acaba! disse Amélia.
— Escute, minha amiga; é um segredo que só aqui ficará. Sabe a quem é que eu amava e amo deveras?
— Ao Daniel?
— Sim.
— Eu desconfiava.
— Só aquele orgulho misturado de indiferença podia domar a minha indiferença e o meu orgulho.
— Mas então?...
— Então, é que tendo recusado sempre o que ele pediu, que era a minha mão e meu coração, cheguei um dia a oferecer-lhos.
— E ele?
— Recusou.
— Pelintra!
— Não; era justo; a culpada foi eu. Mas agora é preciso carregar a minha cruz. Quero ir para o Norte já e ver se esqueço isto...
— O Luís há de ajudá-la a esquecer o amor de Daniel.
— Qual! disse Augusta com um gesto de tanta indiferença que seria capaz de gelar o Vesúvio em horas de explosão.
— Acabou-se a valsa, vamos passear, disse Amélia.
E saíram da sala.
Apenas transpuseram a soleira, saiu de um gabinete contíguo um homem que ali se achava, algum tempo antes de lá entrarem as duas raparigas.
Era Luís.
O gabinete era o lugar em que trabalhava ou lia o tio de Augusta. Precisando escrever um bilhete, Madalena o levou ali, onde se achava quando as duas moças chegaram.
Quando entrou na salinha, estava lívido.
Tinha ouvido a verdade mais cruel de todas; uma mulher que fingia gostar dele, sendo indiferente; que se casaria com ele para escapar aos pretendentes, e que, casando-se, levava no coração a lembrança e o amor de outro.
Luís ficou atordoado com o que ouvira; a sua primeira idéia foi aparecer no meio das duas moças, quando elas confidenciavam; mas reconheceu que isso apenas o exporia ao ridículo.
Quando percebeu que elas tinham saído, fugiu do gabinete, onde abafava. As duas moças, como disse, tinham já saído; Luís ainda viu de longe a formosa cabeça de Augusta, dominando as outras como a de uma rainha.
Deu alguns passos cambaleando; depois atravessou a sala grande, e, sem que ninguém o percebesse, foi-se embora.
Durante a primeira meia hora, não se reparou na ausência dele. Mas, afinal, descobriu-se que Luís tinha saído.
— Sem dizer-mo! pensou Augusta. É singular!
No dia seguinte, Luís amanheceu doente; uma febre grave se declarou que o prostrou de cama oito dias. Mas era robusto e o organismo resistiu triunfante ao mal.
Quando se levantou, escreveu o seguinte bilhete a Augusta:, Minha senhora, Ouvi tudo por simples acaso; é-me impossível satisfazer-lhe o desejo de casar por esquecer. Adeus.
Luís.
A carta não produziu grande comoção em Augusta; mas esta sentiu-se. Pela primeira vez, achou-se humilhada; argüia-lhe a consciência.
XXIII
Repelindo os que a amavam, leviana em suas ações, dotada de um caráter orgulhoso e altivo, Augusta teve o castigo dos próprios erros.
A carta de Luís inspirou-lhe a idéia de não casar mais.
E cumpriu a resolução.
Ninguém deve imitar Augusta; é um desses tipos raros, extravagantes, que nunca podem ser a esposa amante, nem a mãe carinhosa; em suma, é a mulher sem nenhum traço augusto.


Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis
Publicado originalmente em 1872


Domínio Público Gov.BR


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