O Monstro e Outros contos
O MONSTRO
Pelas margens sagradas do Eufrates, que fugia, então, sem espuma e sem ondas, caminhavam, na infância maravilhosa da Terra, a Dor e a Morte. Eram dois espetros longos e vagos, sem forma definida, cujos pés não deixavam traços na areia. De onde vinham, nem elas próprias sabiam. Guardavam silêncio, e marchavam sem ruído olhando as coisas recémcriadas.
Foi isto no sexto dia da Criação. Com o focinho mergulhado no rio, hipopótamos descomunais contemplavam, parados, a sua sombra enorme, tremulamente refletida nas águas. Leões fulvos, de jubas tão grandes que pareciam, de longe, estranhas frondes de árvores louras, estendiam a cabeça redonda, perscrutando o Deserto. Para o interior da terra, onde o solo começava a cobrir-se de verde, velando a sua nudez com um leve manto de relva moça, que os primeiros botões enfeitavam, fervilhava um mundo de seres novos, assustados, ainda, com a surpresa miraculosa da Vida. Eram aves gigantescas, palmípedes monstruosos, que mal se sustinham nas asas grosseiras, e que traziam ainda na fragilidade dos ossos a umidade do barro modelado na véspera. Algumas marchavam aos saltos, o arcabouço à mostra, mal vestidas pela penugem nascente. Outras se aninhavam, já, nas moitas sem espinhos, nos primeiros cuidados da primeira procriação. Batráquios de dorso esverdeado porejando água, fitavam mudos, com os largos olhos fosforescentes e interrogativos, a fila cinzenta dos outeiros longínquos, que pareciam, à distância, à sua brutalidade virgem, uma procissão silenciosa, contínua, infinita, de batráquios maiores. Auroques taciturnos, sacudindo a cabeça brutal, em que se enrolavam, encharcadas e gotejantes, braçadas de ervas dos charcos, desafiavam-se, urrando, com as patas enfiadas na terra mole.
Rebanho monstruoso de um gigante que os perdera, os elefantes pastavam em bando, colhendo com a tromba, como ramalhetes verdes, moitas de arbustos frescos. Aqui e ali, um alce galopava, célere. E à sua passagem, os outros animais o ficavam olhando, como se perguntassem que focinho, que tromba, ou que bico, havia privado das folhas aquele galho seco e pontiagudo que ele arrebatava na fuga. Ursos primitivos lambiam as patas, monotonamente. E quando um pássaro mais ligeiro cortava o ar, num vôo rápido, havia como que uma interrogação inocente nos olhos ingênuos de todos os brutos.
Em passo triste, a Dor e a Morte caminham, olhando, sem interesse, as maravilhas da Criação. Raramente marcham lado a lado. A Dor vai sempre à frente, ora mais vagarosa, ora mais apressada; a outra, sempre no mesmo ritmo, não se adianta, nem se atrasa.
Adivinhando, de longe, a marcha dos dois duendes, as coisas todas se arrepiam, tomadas de agoniado terror. As folhas, ainda mal recortadas no limo do chão, contraem-se, num susto impreciso. Os animais entreolham-se inquietos e o vento, o próprio vento, parece gemer mais alto, e correr mais veloz à aproximação lenta, mas segura, das duas inimigas da Vida.
Súbito, como se a detivesse um grande braço invisível, a Dor estacou, deixando aproximar-se a companheira.
Para que mistério - disse, a voz surda, - para que mistério teria Jeová, no capricho da sua onipotência, enfeitado a terra de tanta coisa curiosa?
A Morte estendeu os olhos perscrutadores até os limites do horizonte, abrangendo o rio e o Deserto, e observou, num sorriso macabro, que fez rugir os leões:
- Para nós ambas, talvez...
- E se nós próprias fizéssemos, com as nossas mãos, uma criatura que fosse, na terra, o objeto carinhoso do nosso cuidado? Modelado por nós mesmas, o nosso filho seria, com certeza, diferente dos auroques, dos ursos, dos mastodontes, das aves fugitivas do céu e das grandes baleias do mar. Tra-lo-íamos, eu e tu, em nossos braços, fazendo do seu canto, ou do seu urro, a música do nosso prazer... Eu o traria sempre comigo, embalando-o, avivandolhe o espírito, aperfeiçoando-lhe à alma, formando-lhe o coração. Quando eu me fatigasse, tomá-lo-ias, tu, então, no teu regaço... Queres?
A Morte assentiu, e desceram, ambas, à margem do rio; onde se acocoraram, sombrias, modelando o seu filho.
- Eu darei a água... - disse a Dor, mergulhando a concha das mãos, de dedos esqueléticos, no lençol vagaroso da corrente.
- Eu darei o barro... - ajuntou a Morte, enchendo as mãos de lama pútrida, que o sol endurecera.
E puseram-se a trabalhar. Seca e áspera, a lama se desfazia nas mãos da oleira sinistra que, assim, trabalhava inutilmente.
- Traze mais água! - pedia.
A Dor enchia as mãos no leito do rio, molhava o barro, e este, logo, se amoldava, escuro, ao capricho dos dedos magros que o comprimiam. O crânio, os olhos, o nariz, a boca, Os braços, o ventre, as pernas, tudo se foi formando, a um jeito, mais forte ou mais leve, da escultora silenciosa.
- Mais água! - pedia esta, logo que o barro se tornava menos dócil.
E a Dor enchia as mãos na corrente, e levava-a à companheira.
Horas depois, possuía a Criação um bicho desconhecido. Plagiado da obra divina, o novo habitante da Terra não se parecia com os outros, sendo, embora, nas suas particularidades, uma reminiscência de todos eles. A sua juba era a do leão; os seus dentes, os do lobo; os seus olhos, os da hiena; andava sobre dois pés, como as aves, e trepava, rápido, como os bugios.
O seu aparecimento no seio da animalidade alarmou a Criação. Os uros, que jamais se haviam mostrado selvagens, urravam alto, e escarvavam o solo, à sua aproximação. As aves piavam nos ninhos, amedrontadas e os leões, as hienas, os tigres, os lobos, reconhecendo-se nele, arreganhavam o dentes ou mostravam as garras, como se a terra acabasse de ser invadida, naquele instante, por um inimigo inesperado.
Repelido pelos outros seres, marchava, assim, o Homem pela margem do rio, custodiado pela Dor e pela Morte. No seu espirito inseguro, surgiam, às vezes, interrogações inquietantes. Certo, se aqueles seres se assombravam à sua aproximação, era porque reconheciam, unânimes, a sua condição superior. E assim refletindo, comprazia-se em amedrontar as aves, e em perseguir em correrias desabaladas pela planície, ou pela margem do rio, esquecendo por um instante a Dor e a Morte, os gamos, os cerdos, as cabras, os animais que lhe pareciam mais fracos.
Um dia, porém, orgulhosas do seu filho, as duas se desavieram, disputando-se a primazia na criação do abantesma.
- Quem o criou fui eu! - dizia a Morte. - Fui eu quem contribuiu com o barro!
- Fui eu! - gritava a outra. - Que farias tu sem a água, que amoleceu a lama?
E como nenhuma voz conciliadora as serenasse, resolveram, as duas, que cada uma tiraria da sua criatura a parte com que havia contribuído.
- Eu dei a água! - tornou a Dor.
- Eu dei o barro! - insistiu a Morte.
Abrindo os braços, a Dor lançou-se contra o monstro, apertando-o, violentamente, com as tenazes das mãos. A água, que o corpo continha, subiu, de repente, aos olhos do Homem, e começou a cair, gota a gota... Quando não havia mais água que espremer, a Dor se foi embora. A Morte aproximou-se, então, do monte de lama, tomou-o nos ombros, e partiu...
Humberto de Campos A PROMESSA
I
Foi um alvoroço na vila quando se soube que alguns rapazes do lugar haviam sido sorteados para o Exército. Há meses, andara por lá, tomando nota dos nomes, um capitão, que levara o endereço de todos; e ninguém se lembrava mais dele, nem da sua farda, quando chegou aquela notícia, alarmando as mães, afligindo as noivas, mas entusiasmando, ao mesmo tempo, a mocidade vigorosa da terra, atingida pela convocação.
- No tempo do Paraguai - diziam os velhos, cachimbando monotonamente à sombra fresca das latadas, - o remédio era o mato. Ou, então, passar o facão na mão direita e cortar uns dois dedos para não puxar o gatilho.
E enumeravam-se os que, por esse modo, haviam fugido ao recrutamento:
- Foi assim que escaparam o Bernardo Viúvo, o Joaquim André, o defunto Casimiro, o defunto Rogério e o falecido Manuel Simeão, pai de Sotero Boa-Vista.
A contribuição humana lançada, de chofre, sobre a vila do Araçá, era, porém, de molde a não permitir deserções. Nada menos de oito rapazes tinham sido chamados ao serviço das armas, para o qual todos se apresentaram sem temor ou constrangimento, antes com alegria, com vivacidade arrogante, como se esperassem de há muito aquele apelo ao seu brio patriótico. Para festejar o acontecimento, foi formada, na véspera da partida dos conscritos, uma passeata, que percorreu as quatro ruas do lugarejo, puxada por uma banda de música.
Oradores fizeram-se ouvir, concitando aqueles conterrâneos à prática de atos heróicos, elevando o nome da sua vila natal na disciplina dos quartéis e nos campos de batalha. E, na manhã seguinte, metidos na sua melhor roupa de cassineta ou de brim, montando os melhores cavalos do município e acompanhados por numerosos cavaleiros amigos, os rapazes partiram a galope, afim de tomar o trem dezoito quilômetros adiante, com destino à capital.
II
Entre as mães que ficaram chorando, nenhuma, porém, chorava tanto, como a velha Maria Inácia, mãe do João Vicente. Pobre, vivendo menos do trabalho do que do amor daquele filho, era ele tudo na sua vida obscura. Quando o capitão passara pela vila, tomando o nome aos rapazes, tinha ela mais uma filha e um filho. O filho havia morrido e a filha casara-se. E, a partir desse dia, João Vicente, o mais novo, se tornara o seu tesouro e o seu mundo.
Era um rapagão forte, claro, vistoso. Alegre e brincalhão, passava as noites em festas e serenatas, fazendo sonhar as moças do lugar. Exímio tocador de violão, não havia noite de lua que ele não a atravessasse acordado, indo cantar e tocar, com outros, companheiros de infância e de mocidade, nas proximidades dos prédios em que havia raparigas bonitas. E os dias, passava-os em casa, ajudando a mãe a tratar da chácara pequena, ou a ensaiar modinhas chorosas para as distrações boêmias da noite.
Por isso mesmo, por vê-lo criança, infantil, aos vinte anos, era que a mãe sentia mais a sua falta. Pessoas amigas haviam-lhe dito, que, tratando-se do filho único, lhe seria fácil conseguir a sua dispensa do serviço militar; de tal maneira, porém, o João Vicente se opusera a essa idéia, ameaçando até de a abandonar na sua velhice sem arrimo de coração, que a mísera se viu na contingência de sufocar o choro da alma, deixando-o partir, animoso, galhardo, risonho, entre as palmas das moças, e o soluço comovido das outras mães.
III
Seis meses tinham decorrido após a partida do Araçá, quando chegou ao quartel a ordem de aprestar o batalhão. A rebelião no sul havia estalado, assumindo proporções inesperadas pelo governo, e reclamando a remessa, para a região conflagrada, de novas unidades militares. Vários regimentos haviam sido já dizimados, de um lado, e de outro. Os feridos enchiam os hospitais, pondo um forte cheiro de sangue na atmosfera.
E o batalhão partiu.
Doze dias depois, estavam as forças de que era um dos componentes acampadas nas vizinhanças de uma pequena cidade do interior, na zona de guerra, quando o João Vicente recebeu, com a sua companhia, munição de combate. Em torno do corpo, nos bolsos do cinturão forte, os cartuchos punham um peso novo, que, no entanto, pouco o afligia. E eram nove horas da manhã quando o batalhão, após uma pequena marcha de dois quilômetros, teve ordem de desalojar os rebeldes de uma trincheira, entre o serrote e o rio.
Sob a fuzilaria do inimigo, e, principalmente, sob o fogo de uma metralhadora mascarada por um monte de pedras, o batalhão investiu, a peito descoberto. Dois companheiros ficaram no chão, feridos. A uma ordem de comando, os soldados deitaram-se, e começou a avançada lenta, morosa, ventre na terra, o queixo arrastando na grama, avançada de répteis, de animais coleantes, cuspindo fogo pelo cano escuro dos fuzis.
Dentes cerrados, olhos ardentes, a mão crispada na arma, carregando-a e descarregando-a continuamente, João Vicente avançava, palmo a palmo, sob o fogo do inimigo. À grande fila que se formara no instante da investida tornava-se cada vez mais curta e mais rala. As balas zuniam sobre a sua cabeça como uma agulha diabólica, que costurasse a atmosfera. Se olhasse para trás, para o caminho percorrido de bruços, desanimaria, talvez, ao ver o campo semeado de corpos, - uns estorcendo-se sob as dores dos ferimentos, outros paralisados, já, pela morte instantânea, os olhos vidrados, a boca escancarada, golfando sangue. João Vicente não sabia, porém, naquele momento, se tinha companheiros, ou se avançava só. A
metralhadora estalava na sua frente, como a motocicleta da morte. O seu leque de balas varria tudo. Estava ele, mesmo assim, quase a vinte metros do monte de pedras. Mais dez metros e, se não fosse descoberto, estaria, pela posição, fora do alcance da arma terrível. O
suor descia-lhe da testa, cegando-o. Mais cinco metros foram vencidos... Mais três... E outros, ainda. A quatro metros não se conteve mais: abandonando o fuzil, o sabre na mão, deu um salto de tigre, atirando-se, com todo o peso do corpo, como uma bala de canhão, sobre a pilha de granito, que se desmoronou com estrondo para o fosso da trincheira, levando de roldão o assaltante, a metralhadora, e, de mistura, com os blocos de pedra, os dois atiradores que a manejavam!
Calada por essa maneira a arma que mais os hostilizava, os assaltantes, desprezando a fuzilaria, puseram-se de pé e investiram contra a trincheira, rangendo os dentes. E, em breve, após um curto combate à arma branca, em que homens da mesma pátria se retalhavam, se dilaceravam, se estraçalhavam com fúria sanguinária, tomavam os legalistas posse do reduto, onde o sangue coagulado se misturava, repugnante, entre zumbidos de moscas, com dejeções humanas e com a lama da chuva da véspera.
Promovido a cabo, João Vicente tomou, ainda, parte em dois combates e em diversos reconhecimentos. Bravo, calmo, destemido, portara-se sempre, em uns e em outros, a contento do comandante, que lhe havia prometido, já, as fitas de sargento. Não era, porém, mais, aquele rapagão claro das serenatas do Araçá. A barba forte, que raspava toda antigamente, tomava-lhe agora o rosto, envelhecendo-o, dando-lhe os ares daqueles cangaceiros do nordeste, que via passar, às vezes, a cavalo, pela vila, com a faca de um lado, a garrucha de outro, e o clavinote na lua da sela. A vida militar absorvera o boêmio. Era, agora, um soldado.
IV
Com a partida dos sorteados, o Araçá era como um organismo que tivesse sofrido uma sangria. Sem as suas festas dos sábados e as suas serenatas das noites de lua, as casas passaram a fechar mais cedo e a abrir mais tarde Parecia que aqueles oito rapazolas enchiam, sozinhos, as ruas da vila. Por toda parte reinava uma tristeza de morte.
Ao chegarem à capital, ao quartel, alguns escreveram. E as cartas, ligeiras e simples, passavam de mão em mão como relíquias, que eram. O coração da vila acompanhava-os; até que uma grande emoção a abalou, meses depois, com a notícia de que o. batalhão em que haviam sido incorporados, partira, entre festas da população da cidade, para as campanhas fratricidas do sul.
De quantas almas sangravam no Calvário da Saudade, nenhuma havia, porém, como a da velha Maria Inácia, mãe de João Vicente. Desde o momento em que o filho partiu, acendera ela uma lamparina de azeite em frente ao oratório tosco, forrado de azul, onde a Senhora das Dores chorava, o coração transpassado por uma espada. De joelhos, as mãos juntas, os olhos súplices, postos no rosto consolado da imagem, prometera, no arrebatamento da sua fé e do seu temor:
- Minha Mãe Santíssima! vós, que sois mãe, velai pelo meu filho! Guiai-o através de todos os males, preservando-o da morte e dos perigos do mundo! E eu vos prometo trazer sempre acesa, dia e noite, esta luz aos vossos pés!
E dia e noite não faltou, jamais, aquela chama votiva aos pés da Senhora das Dôres. Três, quatro, cinco vezes, nas horas de sono, levantava-se a velhinha, no seu xale preto, para examinar se ainda havia azeite no copo e se a pequena rodela de cera e cortiça daria, ainda, até de manhã. Parecia-lhe ao coração alarmado que aquela chama era a própria vida do seu filho e que, se se apagasse, a sua existência se apagaria com ela. E, nesse delírio, redobrava de cuidado, vigiando a chama tímida como se velasse à cabeceira de um enfermo, sob a ronda traiçoeira da morte.
Até que, uma noite, foi um desespero. Fatigada pelas vigílias contínuas, a velhinha adormeceu mais profundamente na cadeira, ao lado do oratório. Quando despertou, madrugada alta, o quarto estava escuro.
- Meu Deus! meu filho morreu!... gritou, num acesso de terror, os olhos arregalados na treva, as mãos tateando, trêmulas, a caixa de fósforos na mesinha do oratório.
A velha criada que lhe fazia companhia acorreu, tropeçando nos móveis, e, riscando o fósforo, reacendeu a lamparina.
- Luiza, meu filho morreu!... O João morreu, Luiza!... gritou, abraçando-se à velha serviçal.
- Sossegue, "nhá" Nacinha! sossegue: não morreu, não! Tenha fé em Deus! - pedia a outra, procurando. tranqüilizá-la, tendo embora a alma assustada por aquele prenúncio.
A datar desse dia, a vida de Maria Inácia passou a ser uma agonia contínua, entrecortada de preces, diante do oratório. As promessas multiplicaram-se. Até que, uma noite, em um momento de maior aflição, ofereceu, com toda a sua alma devota:
- Minha Senhora das Dores! trazei meu filho são, e salvo, ainda uma vez, à minha vista, que eu vos dou a minha vida!
E com todo o fervor da contrição, num acesso de choro:
- A minha vida pela dele, Minha Mãe Santíssima!... A minha vida pela dele!... Mas que eu ainda veja meu filho!...
V
Dois meses depois da promessa, e oito da partida dos sorteados, com as primeiras chuvas do inverno, a vila do Araçá se tornou toda festiva, como nas suas solenidades religiosas. No adro da igreja, com os músicos vestidos de branco, a filarmônica esperava o momento de romper com toda a sonoridade dos metais, quebrando o silêncio dos campos vizinhos com um dos seus "dobrados" retumbantes. As crianças corriam pelo capim espontante, molhando os pés nas gotas de sereno, ou da chuva da noite. Comerciantes, fazendeiros, agricultores, trajando as roupas domingueiras, conversavam porta dos estabelecimentos. É que voltavam ao Araçá, em gozo de licença, quatro dos oito conscritos do ano, que se haviam portado heroicamente em campanha. E, entre eles, já no posto de sargento, vinha, queimado do sol e com os sinais da fadiga no semblante, o João Vicente, filho de Maria Inácia.
De repente, um grito:
- Lá vêm eles!...
Na extremidade do caminho, longe, levantava-se uma nuvem de poeira. E, momentos depois, penetrava na praça, de roldão, a cavalhada luzidia dos parentes e dos amigos com os quatro soldados à frente, ao mesmo tempo que, tornando mais comunicativo o arrepio de entusiasmo, a banda de música atacava, com toda fúria dos instrumentos, o "dobrado" mais ruidoso do repertório.
VI
Aproximava-se o dia do regresso dos rapazes. Todo aquele mês havia sido de festas, de homenagens aos bravos soldados conterrâneos. E à medida que se escoavam as horas, mais se confrangia a alma de Maria Inácia. O seu coração não se saciava de acariciar o filho. As noites, levava-as acordada, passando-lhe as mãos pelos cabelos, cobrindo-o com o lençol, beijando-lhe a cabeça adormecida. Nos primeiros dias, estava certa de que a Senhora das Dores consideraria uma loucura a promessa que lhe fizera, e a perdoaria. Pouco a pouco, porém, a proporção que se aproximava o dia do regresso, foi a su'alma se inquietando.
Prometera dar a sua vida pela do filho, se ainda o abraçasse uma vez. Deus o trouxera aos seus braços, ao seu carinho, à sua presença. Devia cumprir o voto? E, se não cumprisse, Deus não a castigaria no coração, arrebatando-o ao mundo, nos novos combates em que tomasse parte?
Esse pensamento afligia-a. Até que, de repente, resolveu:
- Não, eu devo cumprir a promessa. Devo, sim. Antes eu do que meu filho. E eu resistiria, acaso, à dor de perdê-lo, se o perdesse por culpa: minha, por falta minha perante Deus?
VII
Os dias que antecederam o regresso dos rapazes à sede da guarnição tinham sido de chuvas torrenciais. Na serra, principalmente, havia chovido muito. E, avolumado pelos riachos da montanha, o rio Araçá rolava agora transformado em torrente, arrastando galhos de árvores e moitas de aninga no turbilhão das suas águas escachoantes. Comprimido pelas ribanceiras, que ia lambendo numa volúpia furiosa de sátiro, fazia vertigem vê-lo. De quando em quando, um ruído cavo alarmava os moradores ribeirinhos. Era a queda de um barranco, de uma barreira da margem, que logo se dissolvia em rodopios, na retorta diabólica daquelas águas.
A viagem estava marcada para as nove da manhã seguinte. Amorosa, meiga, solicita, Maria Inácia passou todo o dia ao lado do filho, extremando-se em cuidados, em meiguice, em desvelos. Beijava-o de instante a instante, abraçando-o com toda a força da sua fraqueza, como se quisesse apegar-se a ele, e não o soltar mais.
À noite houve uma festa de despedida em casa de um dos licenciados. Maria Inácia ficou em casa, ajoelhada diante do oratório, rezando. Pela madrugada, o João entrou. Vinha suado, cansado, exausto de dançar.
- Despe-te, meu filho, e dorme, - disse-lhe a velha, abençoando-o.
Os galos amiudavam. Uma brisa fresca sacudia as árvores, fazendo estalar no chão os pingos da chuva acumulados nas folhas. Pé ante pé, o xale ao ombro, Maria Inácia entrou no quarto do João. Ajoelhou-se à sua cabeceira, beijou-lhe a testa, os cabelos, a mão abandonada para fora da cama. Ergueu-se, tomando o rumo da porta, e, de lá, enviando um último olhar ao filho adormecido, saiu como uma sombra.
À margem do rio, parou, olhando a torrente. As águas gorgolejavam sinistramente lá em baixo, no escuro. Ajoelhou-se, persignou-se, e balbuciou, trêmula, a oração dos mortos.
Chegou o xale mais para o corpo magro, num arrepio. E, fechando os olhos, deixou-se rolar, como um fardo, pelo declive da ribanceira ...
Só dois dias depois, três léguas abaixo da vila, entre duas pedras, foi pescado o cadáver. As mãos, que tanto haviam rezado, tinham sido, já, devoradas pelos peixes.
Humberto de Campos CATIMBAU
"BELÉM, 18 de janeiro - Os jornais desta capital noticiam a trágica morte ocorrida há dias nos campos da ilha de Marajó, município de Soure.
O destemido vaqueiro Narciso Viana, aí cunhado Catimbau, famoso domador de touros, prometeu â sua namorada que, em troca de um beijo, laçaria um touro bravio que esta lhe indicou.
Narciso perseguiu o animal, fez prodígios de equitação, rivalizando em rapidez com a destreza do touro. Afinal, atirou o laço, enrolando-se este acidentalmente, em torno do vaqueiro, que foi cuspido da sela. Estando a ponta do laço presa â cilha foi estrangulado o bravo sertanejo, sendo arrastado pelo cavalo cerca de légua e meia.
Os companheiros da fazenda do infeliz cavaleiro, conseguiram, depois de grande correria, apoderar-se do sangrento cadáver de Narciso Viana, entregando-o â sua namorada, que, involuntariamente, causara a sua morte (Telegrama da Agência Americana).
Entre os vaqueiros do Campo-Alegre, a famosa fazenda marajoara, era Catimbau, sem dúvida, o mais destemido. À tarde, quando a campina, extensa a perder de vista, começava a cobrir-se da cinza tênue com que a noite polvilha o seu caminho, era ele o primeiro a esporear o cavalo na extremidade da planície, e a estacar, de repente, no alpendre da casa, o chapéu de couro para a nuca, o chicote na mão, disposto, após doze horas de campo, como se voltasse de um passeio domingueiro.
Era um caboclo forte e ágil. O rosto moreno, queimado de sol, que Os olhos risonhos alegravam, iluminava-se todo, quando com a dentadura sã, das raças primitivas. Toda a sua figura constituía, enfim, uma festa de bravura e de saúde, que enchia de inveja os homens e matava de paixão as mulheres.
Na sua vida de herói, filho e rei daquelas amplidões verdes, havia, contudo, tristeza secreta: a que lhe nascera há dois anos, pelo S. João, na festa do Aquiri, fazenda do Joaquim Inácio, quando conhecera a Rosinha, caçula do João Soares e o botão que ia ser, no ano próximo, a rosa mais linda, e mais fresca daquelas redondezas.
A filha do João Soares era o tipo clássico da cabocla paraense. Cabelo escorrido e longo, atirado em cascata para as costas; morena, como as rolas do terreiro; nariz correto e fino;
olhos negros e úmidos; era, toda ela, candura e tentação. Duas cousas, porém, não saíam da imaginação de Catimbau: o colo farto da rapariga, arfante como as ondas do rio depois da "pororoca", e aquela boca miúda e vermelha, de uma mobilidade atordoante e que mostrava, ao menor sorriso, dois rosários de dentes pequenos, que eram, aos seus olhos de homem do campo, como pingos de leite no focinho rosado de um bezerrinho novo.
Beijar aquela boca, sugar aquelas gotas de leite, tornara-se para o vaqueiro a maior ambição do seu destino. Para ver a rapariga, mesmo de passagem, viajava cinco léguas, três vezes por semana. Para isso, inventava os pretextos mais ingênuos: ora perseguição a um garrote da fazenda, tocado à força naquela direção, ora a caça a uma novilha que ele sabia onde se achava, mas que ia procurar, sempre, para as bandas do João Soares. E cada uma dessas vezes, eram horas perdidas de conversa no alpendre: ele, escanchado no cavalo, o cotovelo esquerdo pousado na lua da sela, a curva da perna direita dobrada, em posição de descanso;
ela, feliz, assustada, risonha, esmagando os seios virgens na tábua escura do parapeito.
A despedida era todo um poema de ternura que, quase, não tinha fim. A mão na mão, os olhos nos olhos, ficavam assim minutos seguidos, sem uma palavra nos lábios. Até que, fria, trêmula, numa sacudidela violenta dos nervos, Rosinha pedia, fechando os olhos e soltandose violentamente da férrea pressão dos seus dedos:
- Ande... Vá embora!
E, esporeando o cavalo, em dois corcovos, o caboclo partia.
Certa vez, a voz cortada pela emoção, Catimbau resistiu:
- Não vou!
E enunciando um desejo que lhe estava, de há muito, no coração:
- Só irei se você me der um beijo!
A resposta, dessa vez, foi uma carreira, rápida, de veadinha arisca, para o interior da casa.
De outra feita, porém, Rosinha prometera, corando:
- Olhe, agora, não... Pelo Natal... Pelo Natal eu dou... Serve?
- Olhe lá, hein? Promessa é promessa! observou o vaqueiro.
De agosto a dezembro o pensamento de Catimbau não se prendeu a outra cousa. Agitada pela esperança da felicidade, a sua imaginação galopava mais que o seu cavalo. Para que o beijo prometido fosse mais doce, e não comprometesse outros, pela repugnância talvez despertada na rapariga, deixara de fumar. Para perfumar a boca alimentava-se de coalhada e comia, no campo, das frutas mais cheirosas da ilha. E foi assim que, com o coração aos pulos como um potro bravo, chegou, enfim, ao mês do Natal.
O dia da Conceição, oito de dezembro, era de festa, de novo, no Aquiri. De toda parte da ilha iriam vaqueiros e moças, para a festa de Nossa Senhora. E lá estaria, também, a Rosinha, cuja beleza se acentuava à medida que se tornava mulher e o amor penetrava, como uma aurora, aos abismos floridos da alma.
Quando Catimbau chegou à fazenda do Joaquim Inácio, a casa já estava cheia de gente.
Dançava-se na sala, no alpendre e, na cozinha. Ao ver, de longe, o movimento dos pares, o coração do caboclo apertou-se. Rosinha estaria dançando? E com quem? Ao aproximar-se, porém, da casa, a alma se lhe desabrochou no rosto franco, num sorriso de felicidade:
resistindo às solicitações dos outros rapazes, Rosinha estava a um canto do alpendre, à sua espera. À tarde, com o sombrear da campina, os convidados saíram, todos, para o alpendre para o terreiro. Para aguardar a noite, e dar um pouco de repouso aos músicos, sugeriu-se uma pega aos novilhos. E a idéia recebida com uma salva de palmas pelas mulheres, e por um gesto de entusiasmo pelos vaqueiros, sempre dispostos a pôr em evidência a sua bravura na carreira e a sua destreza no manejo do laço.
Em frente à casa, a uns cinqüenta metros, ficava o curral, onde uma pequena boiada que chegara pela manhã aguardava o dia seguinte para continuar a viagem, rumo do Soure.
Estalando os chifres, amontoando-se ora a um canto do cercado, ora noutro, as reses permaneciam de pé, sem repouso. À menor aproximação de uma pessoa, agitavam-se todas em redemoinho, na previsão instintiva da fatalidade iminente.
Um dos vaqueiros encaminhou-se naquele rumo, para escolher um barbatão. A porteira entreabriu-se, e o primeiro boi que estourou no pátio, foi um garrote alvação, de chifres tortos e pescoço de touro precoce. Ao sentir-se em liberdade, o animal estacou, irresoluto, como se procurasse destino. Ao ver, porém, a poucos metros um vaqueiro que corria ao seu encontro, atirou-se pela planície em carreira desabalada, levando na esteira, cada vez mais próximos, cavalo e cavaleiro. Este era Ventania, campeiro famoso da fazenda Água-Doce, e rival, nas "pegas", do Catimbau.
Curvado para diante, apoiado apenas nos estribos, em poucos segundos o rapaz alcançava o garrote, emparelhava-se com ele, segurava-lhe a cauda distendida na carreira, enrolava-a na mão, e, num movimento súbito, atirava o animal ao solo, pulando-lhe em seguida em cima, paralisando-o de focinho no chão.
- Catimbau!... Catimbau!... - gritavam as moças e os outros vaqueiros, partidários do campeiro do Campo-Alegre.
Ao lado da namorada, o caboclo mostrava-se indiferente a tudo aquilo. Que lhe importavam a glória, a fama de vaqueiro, se ele possuía, ali, o coração da Rosinha? Que o Ventania lhe arrebatasse todos os louros, mas deixasse aqueles, de homem que ama, e que é amado...
Ademais, enchia-lhe a alma um pressentimento doloroso. Parecia-lhe que, se saísse dali, do lado da noiva, lhe aconteceria alguma coisa.
A sua indiferença ao feito do outro começava, porém, a causar estranheza. Onde estava, então, a sua coragem tão proclamada? Os partidários do Ventania principiavam a sorrir, vitoriosos; os amigos Catimbau murmuravam, contrafeitos. E quem deu por isso, por essa atmosfera de prevenção que se formava, foi Rosinha.
- Por que você não vai? - indagou, mimosa.
- Para não sair de junto de você.
- E se eu lhe pedisse que fosse?
- Eu ia... Mas, com uma condição... Que você me desse hoje o beijo que me prometeu para o Natal...
A moça ficou toda vermelha. As orelhas pequenas tornaram-se-lhe de lacre, como duas cristas de galo garnizé. Meditou, porém, um instante. A fama, a nomeada, a dignidade de vaqueiro do seu namorado, do seu noivo, do homem que era o seu orgulho, estavam em perigo. E foi resoluta, decidida, que, numa violência sobre si mesma, prometeu:
- Eu dou... Vá...
De um arranco, pulando sobre o parapeito, estava Catimbau escanchado no seu cavalo castanho, o sorriso nos lábios, um brilho estranho nos olhos, o laço enrodilhado no arção.
Uma salva de palmas cobriu-lhe o gesto inopinado.
- Solta o touro! - gritou o caboclo.
Um momento mais, e, arrancando pela porteira meia-aberta, sacudindo-lhe os paus para os lados, irrompia no campo a maior peça da fazenda, um touro negro, de sangue crioulo, que, após vários meses de vida arisca e selvagem, havia sido, na véspera, recolhido ao curral.
Pernas estendidas, o corpo ligeiramente vergado para a frente, as mãos na rédea, o olhar de ave de rapina que espera a passagem da presa, a corda do laço pendente da sela, Catimbau aguardava o arranco do touro. E quando o bicho estourou fora da cerca, só se ouviu uma dupla exclamação, rápida, seca, repentina, como um grito de guerra:
- Upa!... Upa!...
E o cavalo partiu, depois de dois galões, com uma assombrosa elasticidade dos músculos, no encalço da fera.
Levando o touro uma vantagem de trinta metros, o cavaleiro alcançou-o, em dois segundos.
Negaceando, virando, torcendo, o boi dificultava a pega, que o próprio vaqueiro evitava, preferindo demorar a batalha para dar maior campo à variedade da destreza. De repente, no meio da várzea, em uma grande manobra elegante, Catimbau deixou o touro distanciar-se.
- É o laço... É o laço!... exclamaram todos, que conheciam, ponto por ponto, os processos do vaqueiro famoso.
E não se enganavam. Ao fundo da planície imensa e verde, que se tornava azul na proporção da distância, o touro e o cavalo eram como duas formigas em uma grande bandeja de esmeralda. Arrancando o laço à ilharga da sela, sentindo-lhe a extremidade bem amarrada ao arção, Cabimbau cravou as esporas no cavalo, apertou os joelhos à barriga do animal, e soltou o grito clássico do momento de perigo:
- Ecôoo!...
Compreendendo o sinal, cavalo e touro dispararam no máximo da velocidade e do esforço.
Duas flechas que cortassem o ar, impelidas pelo arco de um gigante, não seriam mais rápidas. Não era uma carreira: era uma vertigem.
- Ecôoo!...
A cinco metros da rês, viu-se, ou imaginou-se ver, do alpendre, a corda rodar, num círculo, sobre a cabeça do vaqueiro. E a um impulso violento, justo, certeiro, aquele arco partiu, rodou, desceu, indo cair, preciso, sobre a cabeça do touro.
- Laçou!... Laçou!... - gritaram vozes nervosas, no alpendre e no terreiro.
Súbito, a corda esticou. Dir-se-ia que ia partir, rebentar, estalar. Cavaleiro e touro, ao choque formidável, estremeceram, sem parar. Mas, a este choque, correspondeu uma nova cena imprevista: o corpo de Catimbau, arrancado da sela num salto sinistro, foi postar-se, de pé, entre o touro e o cavalo!
- Nossa Senhora! ...
- Meu Deus... - gritaram quarenta vozes, no alpendre.
As mãos nos olhos, as mulheres não queriam ver. Olhos arregalados, porém, os homens compreenderam tudo: ao atirar a corda, esta dera volta em torno ao pescoço do vaqueiro, o qual, ao esticar o laço, fora arrancado da sela, estrangulado!
Ao longe, na campina, o touro e o cavalo presos um ao outro pela corda distendida continuavam a correr, em direção à mata distante. E, de pé, sustido pela corda, arrastado como um bólide, pela várzea, corria, também, com eles, o cadáver do vaqueiro.
Cavaleiros partiram, céleres, com estrépito, em uma nuvem de poeira. Ao alcançarem o touro e o cavalo, estes aproximavam-se da mata misteriosa, mas, já sem o companheiro sinistro. A
cabeça do vaqueiro foi encontrada primeiro, coberta de sangue e terra. O corpo foi achado depois.
Uma hora mais tarde, a cabeça decepada de Catimbau recebia na boca sangrenta, no alpendre da fazenda, diante dos companheiros comovidos, o seu prometido beijo do Natal...
Humberto de Campos MORFINA
Quando o Carvalho Souto, meu companheiro de escritório, sofreu aquele acidente de automóvel em que fraturou duas costelas e o braço esquerdo, eu, ia vê-lo quase diariamente à Casa de Saúde Santa Genoveva, na Tijuca. A solicitude persistente com que velava pelo meu amigo, fez-me, em pouco tempo, íntimo dos médicos do estabelecimento. E de tal maneira que, trinta e quatro dias depois, quando o Souto recebeu o boletim concedendo-lhe "alta", eu contava já um amigo novo, na pessoa amável e mansa do Dr. Augusto de Miranda, que exercia, então, ali, as funções de subdiretor. Filho de médico, e neto de médico, Miranda nascera, pode-se dizer, no quarto ano de medicina. Aos sete anos já utilizava o seu pequenino serrote de fazer gaiolas, serrando, com ele, a perna dos passarinhos que apareciam com alguma unha doente.
Mediano de estatura, robusto de tórax, cabelos alourados e olhos entre o azul e o verde, o subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva era uma figura grave e simpática. O rosto largo, e escanhoado, transpirava a energia serena e boa das almas fortes e tranqüilas. Daí a confiança que entre nós rapidamente se estabeleceu, a franqueza com que me falou, naquela manhã, de uma das suas doentes que ali se achava, ainda, hospitalizada.
- Quer vê-la? Vamos... - convidou.
A Casa de Saúde Santa Genoveva está situada, como se sabe, na Estrada Velha da Tijuca, em um ponto pitoresco, dominando a cidade. Ensombram-lhe as cercanias de antigo solar, algumas dezenas de mangueiras enormes, e árvores outras, de fronde compacta e agasalhadora. Sob uma dessas mangueiras, estirada em uma espreguiçadeira de pano branco e vermelho, achava-se uma senhora alta, de rosto longo e olhos cavados, mas apresentando na fisionomia cansada e enferma os traços da antiga distinção. Devia ter sido bela, com os seus cabelos negros de ondulação larga. E elegantíssima de porte, a avaliar pela graça do busto posto em relevo na postura em que se encontrava.
- Preste atenção, vamos passando... Depois que você conhecer a história trágica de sua vida, voltaremos... - disse-me o Dr. Miranda.
Entramos por uma estrada de mangueiras vetustas, e, enquanto caminhávamos lentamente na manhã fresca, o subdiretor, a voz tranqüila e pausada, me falava desta maneira:
- Aquela senhora que acaba de ver, foi casada com um dos meus companheiros de turma na Faculdade, e é a heroína de uma das tragédias mais terríveis que vieram ter aqui dentro o seu desfecho...
- O marido morreu? - indaguei.
- Não. Ela, porém, o perdeu sem que ele morresse: está desquitada. As senhoras desquitadas, são, em nossa terra, as viúvas dos maridos vivos.
Apanhou, no chão, um pequeno ramo uma nódoa na estrada limpa, e reatou:
- Filha de um advogado que morreu sem fortuna, esta moça, aos dezessete anos, casou com o colega de que lhe falo, o qual fez um dos mais belos cursos do seu tempo, mas não foi igualmente feliz na vida prática. No primeiro ano de casamento, veio-lhe um filho. Linda criança! Vi-a uma tarde, na rua, em companhia do pai, e não esqueci, jamais, a sua graça infantil... Quatro anos depois de casados, foi esta senhora uma noite atacada de cólica hepática de extraordinária violência. O marido recorreu à terapêutica indicada no caso, mas inutilmente. Compadeceu-se, e aplicou-lhe uma injeção de morfina. A doente sentiu alívio imediato, e dormiu, até à noite. Ao acordar, pôs-se a gemer novamente, e, em seguida, a gritar. Nova injeção. Novo sono. No dia seguinte, à tarde, voltaram os gemidos queixando-se ela dos mesmos padecimentos. Gemia, debatia-se, gritava, reclamando a injeção.
Profissional inteligente, o marido certificou-se de que, verdadeira a princípio, a dor, agora, era simplesmente simulada. A morfina havia exercido a sua influência funesta! Por isso, não deu a injeção. Desiludida de alcançar o que pretendia, a esposa calou-se. E a tranqüilidade voltou, de novo, à intimidade do casal.
- E a tragédia?
- Espere, que a história é longa... Ao fim de algumas semanas, começou o meu colega a observar na senhora uns ímpetos de temperamento, uns excessos de paixão que o encantavam, porque ele era homem, mas que o preocupavam porque era médico e o alarmavam porque era marido. Pôs-se vigilante, e descobriu a verdade terrível: a esposa, seduzida pelas sensações das injeções que ele lhe aplicara, era presa, já, da morfinomania, consumindo diversas ampolas por dia! A sua assinatura havia sido falsificada, já, por mais de uma vez, no papel do consultório, em receitas de responsabilidade, pondo em perigo a sua reputação profissional.
O Dr. Miranda parou, por um momento, para acender um cigarro, e tornou:
- Com a sua experiência de clínico, o marido compreendeu a ineficiência do seu esforço individual para salvar a companheira infeliz. Por esse tempo, havia chegado da Europa um colega nosso, o Dr. Stewenson, que se tinha especializado na Alemanha e na Suíça na cura da toxicomania. Era um belo homem e um belo espírito, e o marido daquela senhora foi à sua procura, e expôs lealmente o seu caso doméstico. Pediu-lhe que tomasse sob os seus cuidados a esposa, e levou-a, no dia seguinte, ao consultório. Stewenson marcou o início do tratamento para outro dia. A moça foi, sozinha. O médico fê-la entrar para o seu gabinete, e fechou-o a chave. Em seguida, encheu duas seringas, aplicando uma injeção na cliente, e outra em si mesmo. E rolaram, os dois, abraçados, como dois loucos... Stewenson era morfinômano, e o seu anúncio como especialista contra os entorpecentes não visava senão atrair as senhoras viciadas, conquistando companheiras para os seus delírios...
- Que horror!...
- Ao fim de algumas semanas, o marido da pobre moça descobria a extensão tomada pelo seu infortúnio. A esposa, ela própria, confessou-lhe tudo, fornecendo-lhe os elementos para apurar a verdade. E ele apurou que era duas vezes desgraçado: o Dr. Stewenson era amante de sua mulher!... Diante disso, veio a separação, com o desquite. Não tendo sido judicial, o meu antigo colega de turma passou a dar uma pensão à esposa, que fixou residência apartamento em Copacabana, ficando ele num hotel no centro da cidade. Ele era, porém, um homem de temperamento apaixonado, e não podia esquecer a criatura a quem amara tanto, e que lhe havia dado as horas de paixão mais intensas da vida. Nenhuma outra mulher lhe satisfazia os sentidos e o coração. E ei-lo, na da noite, alta madrugada, abandonando o seu hotel e indo secretamente, bater à porta do apartamento de Copacabana, tornando-se um dos amantes de sua antiga mulher.
- Mas, isso é verdade? - perguntei, - É verdade, e é ciência, - respondeu-me o Dr. Miranda.
Havia rodeando um tronco de mangueira, um banco circular, de pedra. Sentamo-nos. E o subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva reatou:
- A esposa, agora entregue a si mesma, continuava a tomar morfina, absorvendo doses espantosas. Uma tarde, achando-se em casa, encheu a seringa, e meteu a agulha na parte anterior da coxa. Apertou o sifão. O líquido desapareceu da agulha. No mesmo instante, porém, a pobre rapariga soltou um grito. Uma nódoa vermelha surgira-lhe diante dos olhos. E
essa nódoa se transformou em chamas, em labaredas enormes, que a envolviam como se a tivessem precipitado numa fogueira. Um calor intenso, infernal, subia-lhe pelo corpo todo, e tudo era vermelho, tudo era fogo ante os seus olhos horrivelmente abertos. As mãos na cabeça, o pavor estampado na face, a infeliz gritou para a criada, que lhe fazia companhia:
"Chamem meu marido, que eu estou morrendo!". Dizia, aos gritos, que estava sendo queimada viva, e rasgava as roupas, correndo pela casa, batendo-se nos móveis, pois que se achava completamente cega, não vendo senão línguas de fogo, chamas que se enroscavam no seu corpo, em furiosos turbilhões. Quando o ex-marido chegou, encontrou-a totalmente nua, o sangue a correr-lhe da testa. E descobriu, logo, a origem daquela crise: a agulha alcançara a artéria, entrando a morfina, diretamente, na circulação... Daí a sensação de incêndio dentro do qual se debatia, e a impressão de labaredas que a envolvessem e as tivesse diante dos olhos... Não podendo detê-la sozinho, chamou o ex-esposo dois empregados do prédio, que a subjugaram, e a amarraram, inteiramente despida, na cama, a fim de receber a única medicação aconselhável no caso, e evitar que se mutilasse na fúria com que se atirava pelo chão, pelos armários, pelas paredes...
- Coitada!
- Afinal, passou a crise. Dias e dias tinha ela permanecido entre a vida e a morte. Após as injeções sedativas desamarraram-na. Mas ficara com os braços feridos, as mãos feridas, o rosto ferido... O ex-esposo foi, então, de uma solicitude acima de todo louvor... Não a abandonou um só instante. Amor ou piedade, o certo é que ficou a seu lado até que a viu fora de perigo... Um dos primeiros cuidados da pobre moça, logo que recobrou os sentidos, foi ver o filhinho, que contava, então, cinco anos, e ficara com o pai, que o internara em um colégio em Botafogo. O desejo era legítimo, e, ao vê-la melhor, o pai foi buscar o menino. A
desventurada, chorou muito, beijou muito o garoto, e, como fosse hora do almoço, o meu colega foi para a mesa, com outras pessoas da família que ali se achavam de visita, ficando a mãe e o filho no quarto próximo. De repente as Pessoas que se encontravam à mesa ouviram um grito: "Corram que eu estou matando meu filho! Corram, pelo amor de Deus!". Correram todos, e soltaram, diante do que viam, um grito de terror. A morfinômana tinha as mãos crispadas em torno do pescoço da criança, e estrangulava-a sem querer! Queria retirar as mãos, e não podia! Ao contrário do seu desejo, os dedos cada vez mais se contraíam, comprimindo as carnes do pequenito, que se tornara roxo, e cuja língua saía, já, da boca, com um filete de sangue... "Salvem meu filho!... Matem-me, mas salvem meu filho!...", gritava a pobre. Bateram-lhe nas mãos até lhe ferirem os dedos. Quase lhe quebram os braços, com as pancadas que lhe deram, para libertar a criança. Quando o conseguiram, era tarde.
Minutos depois, o pequenino morria...
O subdiretor da Casa de Saúde Santa Genoveva não procurou ver o espanto que se estampava em meu rosto. Acendeu outro cigarro, e pôs-se de pé. Fiz o mesmo.
- Agora, - continuou, - a desventurada senhora que ali viu, está boa. Mas a nossa vigilância em torno dela é enorme.
- Para que não volte à morfina?
O Dr. Miranda sacudiu a cabeça, lentamente:
- Não. Para que não corte, como tem tentado, as mãos com que estrangulou o seu filho!
E pusemo-nos a andar, de regresso, a cabeça baixa, em silêncio, um ao lado do outro.
Humberto de Campos A LUZ DOS MORTOS
Madrugada ainda, com os pássaros adormecidos nos ramos, a escolta abandonou a vila e pôs-se a caminho. Eram quinze homens, apenas, sob o comando de um sargento, conhecedores, todos, dos menores recantos daquelas paragens. Antigos sertanejos, arrastados um a um para a cidade pelo desejo de vestir farda, voltavam agora reunidos aos campos natais, com a missão de bater, no tabuleiro das campinas ou na garganta das serras, um forte agrupamento de bandoleiros.
Carabina ao ombro, fardados à vontade - uns de calça vermelha e camisa de riscado, outros de blusa de policial e calça arregaçada até o joelho, e todos, ou quase todos, descalços, - a escolta dirigiu-se, sem ordem de marcha, para a várzea das Pedras, onde os bandidos haviam aparecido na véspera. Das matas quietas subia, e espalhava-se, um cheiro forte de folhas machucadas, natureza virgem se martirizasse em um grande sonho voluptuoso. As sarças rasteiras, abrindo os cálices roxos em que a Noite se embebedara de orvalho, acordavam, úmidas, emergindo do labirinto das próprias ramas, polvilhadas de terra e de sereno.
Manuel Albino, o sargento que comandava a pequena força policial, era um desses tipos de sertanejo habituado às longas peregrinações pelo interior. Estatura mediana, cobreado pelo sol, pela vida ao ar livre, orçava pelos quarenta anos. O bigode, alourado e sem trato, fechava-lhe a boca forte, como se quisesse opor às palavras uma cortina de silêncio. Não se distinguia dos companheiros senão pela fita do braço, e naquelas marchas penosas, tão cheias de perigos a cada passo, era menos um chefe que um camarada.
Ao amanhecer, os soldados já haviam andado três léguas. Das margens da estrada arenosa voavam, rápidos, trilando, pequenos pássaros assustados. Aqui e ali, na mata ressuscitada, uma árvore morta sonhava com os encantos da vida, oferecendo ao sol, em cima, no espetro do último galho, o óbolo de uma flor humilde, cujo cipó se lhe agarrara ao tronco para ir dar, no alto, ao astro namorado, a cheirosa esmola daquele beijo. Insetos trilavam nas touceiras, e em tal quantidade, que, invisíveis, eram como se todas as folhas fossem de metal, e se friccionassem numa grande carícia dolorosa.
Em meio da várzea enorme, onde o dorso das pedras alvas, semeadas na campina verde, recordavam rebanhos pastando, os soldados acamparam.
- É preciso olho vivo, - aconselhou o sargento. - Eles devem andar de perto, e é bom que não nos apanhem de surpresa.
- Quer que eu vá reconhecer o terreno? - ofereceu-se uma das praças, o João Simeão, caboclo baixo e entroncado, que havia feito estágio no Exército e gostava de empregar, em serviço, os termos de técnica militar.
Meia hora depois, escondendo-se de pedra em pedra, arrastando-se, coleando, o caboclo regressava. Os bandoleiros, em número superior a vinte, haviam dormido na Pedra Grande, na outra extremidade da várzea, de onde, àquela hora, se preparavam para a retirada.
Partindo imediatamente e levando boa marcha, a tropa ainda os apanharia em campo aberto, antes que penetrassem na caatinga, escondendo-se nas moitas, ou alcançassem o Serrote Preto, de onde ninguém os desalojaria.
Ao meio-dia, quando o sol, no meio do céu, devorava com os seus dentes dourados a sombra dos troncos, dos penedos e dos homens, a campina foi alarmada, de súbito, pelos primeiros tiros da escolta. Predispostos à morte, a lutar até o último alento de vida, os cangaceiros puseram-se em defesa, entrincheirando-se nas pedras. A tropa fez o mesmo, e começou a fuzilaria intensa, viva, desesperada, em que as balas dos soldados se cruzavam, rápidas, zunindo, com as cargas de chumbo dos cangaceiros.
A luta, em tais circunstâncias, dependia mais de Deus do que da habilidade dos homens.
Cada pedra plantada no campo, era o escudo gigantesco de um combatente. E as balas, e os punhados de chumbo, achatavam-se estalando, nesses escudos, arrancando-lhes estilhaços ou fazendo voar, leves, pequenas nuvens de poeira.
O grupo dos bandoleiros era o de João Severino, antigo feitor da fazenda Água-Viva, nas fronteiras da Paraíba com o Ceará. Menino ainda, vivia João Severino com pai, no sítio dos Cajueiros, herança dos seus antepassados, quando o coronel Cazuza Rocha, fazendeiro vizinho, propôs a compra da pequena propriedade. O pai recusara o negócio, mas, como o coronel era poderoso, tomou-lhe a casa, a terra, a plantação e o gado miúdo que lá existia.
Levado para a cadeia, o agricultor esbulhado morreu. A mulher morreu de mágoa, pouco depois. Com o ódio rugindo no coração, João Severino fizera-se homem, na Água-Viva. E
era, já, feitor, homem de confiança da fazenda, quando uma noite, montou a cavalo e desapareceu. No dia seguinte, pela manhã, era o coronel Cazuza encontrado morto, no alpendre, tendo no peito, enterrada em toda extensão da lâmina, uma faca de ponta, cujo cabo, de prata lavrada, se viam as iniciais do antigo menino dos Cajueiros. Perseguido pelas autoridades, o rapaz reuniu uma dezena de homens decididos, depois outra, e ali estava, agora, no seu oitavo encontro com a polícia, depois de haver saqueado, durante dois anos e meio, várias coletorias do interior.
Escolhido pouco a pouco, O pessoal do bandoleiro era, todo, de primeira ordem. Dos vinte e dois homens que o compunham, nenhum deles, ali, pensava na morte. Atacar, matar, a tiro ou a faca, era a sua profissão natural. Não se tivesse a escolta abrigado nas pedras, e não teriam perdido uma bala de rifle ou um caroço de chumbo grosso. Descalços, ceroula amarrada na perna, camisa de algodão ordinário por cima da ceroula, chapéu de couro, ou de carnaúba, com barbicacho, era esse o fardamento da maioria. Batiam-se como leões, e morriam como cães. Para eles, só havia uma coisa vergonhosa no mundo: morrer em casa, na rede, sem deixar uma nódoa de sangue no chão. E era disputando um fim heróico, buscando, em uma bala, a morte gloriosa e invejada, que ali estavam, o joelho direito na terra, a cartucheira ou o polvarilho a tiracolo, a arma à altura do rosto, à espera de um ponto vulnerável do inimigo para atingi-lo na pontaria certeira.
Do lado oposto, não era menos vivo o interesse pela vitória. De rojo, com o queixo no chão e a carabina à altura do solo, o sargento disparava seguidamente contra os bandoleiros, que se dissimulavam a uns cinqüenta metros, por trás do seu grupo de rochas. E disparava, atento, o dedo no gatilho, quando uma bala, dirigida transversalmente, o apanhou de lado, varando-lhe o pulmão. Ferido de morte, a arma tombou-lhe das mãos com a última bala na agulha. Uma palidez repentina cobriu-lhe o rosto, acompanhada de estremecimentos leves, por todo o corpo.
Do esconderijo próximo, a dez metros, um soldado humilde, o Marciano, que defendia heroicamente o seu rochedo, assistia, aflito, ao epílogo daquela bravura. O seu coração de sertanejo, encostado ao da terra, palpitava contra ela. Seria possível que, a dez passos de distância, o seu companheiro, o seu comandante, o seu chefe, morresse naquela agonia, como um bicho, sem que alguém lhe pusesse na mão a luz de uma vela com que descobrisse, entre as trevas eternas, o misterioso caminho do céu? A arma esquecida na mão, olhos ansiosos, procurava em torno, na nudez gloriosa das coisas, solução para aquele desespero da sua alma. E, em torno, era a várzea deserta, verde, em que pedras, agora, lhe pareciam sepulcros abandonados. Perto, longe, adiante, em toda extensão da campina, apenas os cardos, de folhas chatas, lhe estendiam as mãos cobertas de espinhos. E, na rocha, por trás da qual se abrigava, o chumbo e as balas do inimigo, assobiando, zunindo, estalando.
De repente, esquecendo o inimigo, a vi da, tudo, para lembrar-se unicamente da salvação de uma alma, o soldado cingiu-se ainda mais estreitamente à terra, e começou a vencer, coleando, rasgando o peito no pedregulho, a cabeça encostada no solo, o espaço que o separava da outra pedra. Descoberto pelo inimigo, a fuzilaria aumentou na sua direção. Era, porém, já, tarde, pois que o espaço havia sido vencido.
A boca ensopada de sangue, o sargento agonizava. Marciano olhou em roda, e, diante da majestade da natureza piedosa, teve um gesto que redimia a miséria dos homens; ajoelhouse ao lado do moribundo, arrancou do bolso uma caixa de fósforos, riscou um, e colocandolhe nos dedos, ajudou-o, rezando, a morrer. Os olhos erguidos para o céu azul e imenso, todo ele voltado para Deus, as suas mãos sustinham entre os dedos ásperos do moribundo a pequenina chama vacilante. E, a voz angustiosa, todo possuído pela emoção, murmurava, lento, com todo ardor de sua fé, aquela oração que ouvira, tantas vezes, gemer à cabeceira dos agonizantes:
- Parte.. alma cristã... deste mundo... em nome de Deus Padre Onipotente... que padeceu por ti... em nome do Espírito Santo.. que sobre ti foi derramado... em nome dos Anjos e Arcanjos... em nome...
Na sua comoção religiosa o soldado esquecera-se, porém, de si mesmo. E não estava, ainda, no meio daquela oração de morte, em que se misturam a piedade e o terror, ao entregar a Deus, com os olhos na altura, a alma do companheiro, uma bala o apanhou também, certeira, atravessando-lhe a cabeça.
Duas horas depois a luta estava terminada com a fuga dos bandoleiros. E quando a pequena tropa legal se arregimentou para partir, os soldados encontraram, atrás de uma pedra, dois cadáveres, que seguravam, com os dedos hirtos, os restos do mesmo fósforo...
Humberto de Campos O ALCE
Era nas margens do rio Cobar, ainda sem limo e sem nome, que se escancarava, dia e noite, naqueles tempos inocentes do mundo, a boca monstruosa da caverna. Aberta na rocha bruta pela força inconsciente das grandes águas primitivas, a enorme furna constituíra o refúgio seguro dos tímidos veados perseguidos, que ali iam repousar, assustados, contra a voracidade dos leões do Deserto. Um rebanho de cabras silvestres habitava-a, alarmando a ribanceira alta, quando o troglodita chegou, com a sua azagaia e a sua clava, disposto a ocupá-la. Os caprinos partiram em tumulto, pulando de rochedo em rochedo, estalando as unhas ásperas nas pedras escuras da margem, e o homem ficou só com as suas armas e a sua coragem, diante da natureza misteriosa.
Quatro luas depois, a caverna das margens do rio era um lar, semente de uma família, esboço indeciso de uma tribo. Viviam nela, em paz e em silêncio, Djeb, o caçador de uros;
Elam, domesticador de abelhas selvagens; e Heva, companheira e escrava de Elam.
Vagavam, estes últimos, quase perdidos, pela solidão daquelas florestas ocidentais, quando encontraram o primeiro, e passaram a caminhar juntos, solidários contra os perigos infinitos da selva. A caverna, descoberta por Djeb, serviu-lhes de abrigo. À noite, aceso o fogo na pedra porejante, a goela enorme iluminava-se e os ursos, os tigres, os auroques, os mamutes, os cervos, os leões, os elefantes, os próprios cavalos bravios, paravam inquietos, perguntando-se em silêncio que monstro era aquele, que abria a garganta vermelha, onde dançavam línguas de chama, na encosta solitária da montanha.
A vida na caverna era monótona, mas doce. Madrugada alta, quando vinham longe, ainda, os primeiros alvores do dia, Djeb chegava à boca da furna, defendida por grandes pedras amontoadas, consultava as horas pela marcha silenciosa das estrelas, prendia mais ao seu pescoço de uro selvagem a grande pele de tigre, examinava a extremidade da azagaia, cortada nas pontas agudas de um antílope, e partia cauteloso, a surpreender os grandes herbívoros adormecidos. Às vezes, desviavam-no no seu caminho bandos de cerdos, que perseguia na carreira, abalando com o estrondo dos seus passos a enorme floresta repousada. Outras, deixava-se ir sem destino, até sair, dia alto, nas grandes várzeas pontilhadas do sangue dos cardos floridos, de onde rebanhos de cavalos, partiam correndo e relinchando em galope largo, à sua aproximação. Nessas viagens de nômade, passava o troglodita dias e dias comendo, nas mãos de grandes unhas, pedaços de carne de uro mal tostada, e bebendo, de bruços, na correnteza dos rios ou, de pé, no lençol espumante das cachoeiras. De repente, retrocedia sobre os próprios passos, como se o perseguissem, uivando, todas as feras da floresta. Penetrava na caverna, arrastava pelo braço a escrava do companheiro, atirava-a sobre as folhas do leito, e amava, como os lobos, como os tigres, como os cães errantes da selva, como todos os seres da terra bárbara. Em seguida tomava, de novo, as suas armas, e partia sem rumo, - enquanto a mulher se erguia, sem revolta, do monte de folhas, atirando para as costas o tumultuoso caudal dos cabelos desordenados.
Uma tarde penetrava Elam na caverna, quando ouviu, entre a queixa dos ramos do leito, os rugidos de amor do companheiro que regressara. Sob a sua cabeça fulva como a dos leões, os cabelos de Heva, mais fartos e mais claros, punham uma grande mancha no verde esmaecido das folhas. Estacou, olhando-os, e retrocedeu. Uma grande angústia enchia-lhe o abismo do coração. Sobre os seus ombros, vergando-o, oprimindo-o, havia o peso de um mundo. À sua inteligência de primitivo parecia que a floresta havia rolado, com toda a brutalidade dos seus troncos e dos seus ramos, sobre a sua cabeça impotente. Um desejo irresistível, teimoso, imperativo, chamava-o de novo para a furna, onde deixara, enlaçados como dois lobos, o amigo e a companheira. Detinha-se, porém, indeciso, olhando o chão, onde grandes formigas carregavam, ajudando-se mutuamente, pedaços de folhas, cortadas de um tinhorão nascido sobre uma pedra. Olhou-as, e pensou:
- As mulheres são, talvez, como o tinhorão que nasce na pedra; todas as formigas podem devorá-lo...
Repeliu, no entanto, o pensamento, e continuou a andar sem destino. Amanhecia quando o domesticador de abelhas chegou, com a sua azagaia de caça, à orla da floresta, longe do rio.
A cautela involuntária com que andava tornou a sua aproximação imperceptível aos habitantes da clareira. Um búfalo, apenas, suspeitou da sua presença, aspirando com força o ar circunstante, desconfiado. Alguns cervos ergueram a cabeça eriçada de galhos entrecruzados, afilando as orelhas para maior percepção dos rumores. Tudo voltou, porém, à quietude, à serenidade, à paz confiante, com a imobilidade de Elam, oculto, como um verme, pelo tronco de uma grande faia de raízes à flor do solo.
O nômade examinava, interessado, a vida harmônica das coisas, quando se aproximou da orla da selva um grande alce cujas pontas ultrapassavam a altura de um elefante. Atrás dele, caminhava, tosquiando a relva tenra, uma cerva de pêlo ruivo, que parecia tranqüila, como se confiasse inteiramente a sua segurança à coragem vigilante do companheiro. De repente, surgiu da floresta, dirigindo-se em sentido contrário, outro alce solitário, que se pôs a marchar no rumo da grande corça primitiva. O alce da várzea ergueu a cabeça semeada de pontas, e berrou alto. O outro respondeu, e defrontaram-se. Um ruído de ramos secos estalou, na fúria do encontro. Com os galhos emaranhados, cruzados, confundidos, os dois quadrúpedes vergavam o dorso, em dois arcos enormes. Um ruído mais forte anunciou que a luta ia terminar. Com a cabeça voltada, o alce agressor tombou por terra, num berro convulsivo, trêmulo, estrangulado, que assustou os uros distantes. O veado vitorioso desembaraçou-se do vencido, recuou dois passos, investiu contra o corpo palpitante, perfurou-lhe o ventre com duas marradas violentas, remexendo-lhe as vísceras, com as pontas agudas. Em seguida, baliu, alto, chamando a companheira. Esta achegou-se amorosa, lambendo-lhe o pêlo, como num agradecimento comovido. E continuaram a pastar, juntos, à claridade cariciosa do sol, a erva tenra da clareira...
Elam acompanhara, imóvel, a grande luta dos cervos. Quando o combate acabou, o bárbaro retomou a azagaia, examinando-lhe as pontas, e retrocedeu, na direção da caverna.
Na manhã seguinte, as águas do rio lavavam, pela primeira vez, na furna dos trogloditas, o sangue de um homem.
Humberto de Campos O FURTO
(Conto Amazônico)
A floresta imensa, de árvores augustas e seculares, chegava até à margem do rio quando os primeiros colonizadores, fazendo ressoar o machado nos troncos enormes, ergueram aí a primeira barraca de seringueiro. E pouco a pouco, investindo contra a selva soturna e impenetrável, foi o homem avançando contra a muralha verde, até fixar naquelas brenhas o marco da primeira cidade.
Agora, não era mais o casebre isolado. Alinhados à beira do rio largo e profundo, as casas de negócios e de moradia, comprimidas entre a floresta e a água, eram como ovelhas escuras de um pequeno rebanho, trazidas a beber na torrente por uma legião de gigantes desgrenhados. E entre essas casas, humilde no meio das mais humildes, estava a do Zeferino, caboclo de trabalho, que passara seis meses na pesca do pirarucu e outros seis no alto sertão, na faina dos castanhais.
A cidade pequena ressonava, quieta, naquela noite sem lua, quando o caboclo, descalço, torcendo as mãos vigorosas e ásperas, apareceu à porta escura do casebre. Era um homem baixo, grosso, de tez cobreada cabelos lisos e bigode ralo, tipo inconfundível do índio domesticado. Os olhos, vivos e pequenos, luziam-lhe nas órbitas como vagalumes escondidos nas folhas. Vestia camisa grosseira, de algodão, encardida pelo tempo, a qual lhe descia, até, quase, ao joelho, cobrindo, em parte, a ceroula do mesmo pano. Diante dele, o rio, silencioso, multiplicava-se em claridades, refletindo a abóbada inteira em cada escama do dorso. E, em cima, na altura, O espaço picado de estrelas era uma enorme orgia de luz, como se os anjos tivessem acendido naquela hora, num impiedoso desafio à sua miséria, as mais remotas lâmpadas do firmamento. Na margem, beirando o mistério das águas, velavam, como ciclopes, com o seu olho fixo, os lampiões da iluminação pública. Enfileirados ao longo da primeira rua do lugar, as suas gotas de luz, tristes, mortiças, imóveis, faziam pensar em pequenos astros cristalizados na terra, ou em grandes lágrimas de titãs tombadas soturnamente do céu.
Na quietude daquela hora de assombros, afugentando ou convocando os demônios da treva, coaxavam os sapos, martelando, monótonos, na bigorna do silêncio. Nas moitas úmidas, de onde partiam, confundindo-se tantas vozes anônimas, os pirilampos eram como as centelhas dessa oficina monstruosa, onde os batráquios batiam, talvez, a couraça de ouro do sol.
A noite corria, assim, profunda e calma, suando orvalho pelos poros da terra, na dor ignorada do seu parto, quando a figura do caboclo se desenhou, como uma grande mancha cinzenta, na mancha escura da porta. Desenrolava-se no seu espírito, naquele momento, uma das grandes tragédias da consciência. É que, dentro, na casa modesta, no refúgio doloroso da sua miséria, agonizava o seu filho pequeno, o qual ia morrer, talvez, com sacrifício da sua alma inocente, no horror da escuridão!
Ao regressar do trabalho nos castanhais, onde passara quatro meses, encontrara-o só, entregue aos vizinhos. A mãe, a Rosa, sua companheira de cinco anos, tinha-o abandonado na sua ausência, fugindo para Breves com um turco, negociante de "regatão". Informado de tudo, pensara em sair em perseguição da adúltera, e matá-la, e ao amante. O menino já estava, porém, com a maleita impiedosa, e como não tivesse quem dele tomasse conta, ficara ao seu lado, tratando-o na enfermidade com desvelos de mãe.
O dinheiro trazido do trabalho na castanha tinha-se-lhe ido, todo, nos remédios para o pequeno. Não podendo afastar-se dele para ir à pesca, ou a qualquer outro meio de vida, não tivera um níquel, sequer, na véspera, para comprar uma vela ou um pouco de querosene. E
agora, dentro, no quarto, a candeia que lhe iluminava a agonia começava a esmorecer, como um símbolo mesmo daquela vida periclitante, e, em pouco, a Morte entraria, de certo, ali, arrebatando aquele pedaço do seu coração!
No seu pavor, adivinhando o rio e olhando o céu, o caboclo via, já, o seu filho estendendo os bracinhos mirrados, estertorando no escuro, e confundindo, de olhos entreabertos, as trevas passageiras da noite com as trevas eternas do túmulo. Duas vezes chegou à porta e duas vezes entrou, de novo, impelido por um triste pressentimento. Da última vez, encontrou, já, o quarto afogado em escuridão. A lamparina, sem querosene, apagara-se. Tateando nas paredes familiares, fora até à rede onde estava o doentinho apalpando-lhe o corpinho magro, quase um esqueleto, pondo toda a delicadeza nas mãos pesadas. O menino queimava, de febre. Um grunhido estertorante subia-lhe do peito ansiado. A respiração era agitada, pela boca escaldante, que, ao tato, verificara que estava aberta.
- João?... Joãozinho?... meu filho?... - chamou, adoçando a voz.
O mesmo grunhido angustiado, surdo, foi a resposta. O caboclo chegou-lhe a coberta remendada para o peito magro, beijou-o num grande carinho, e saiu, de novo. À porta, estacou, outra vez. Que fazer àquela hora, entre o esquecimento de Deus e o sono dos homens? Onde conseguir, em hora tão avançada, uma vela ou um pouco de azeite, com que alumiasse a agonia daquele inocente, se ninguém o atenderia noite tão alta, e não havia na casa, para bater a uma venda, a moeda mais miserável?
O primeiro galo cantara, longe, perto do rio. Outro respondera mais próximo. A quietude era tamanha que se lhes ouvia o bater pesado das asas. Menos numerosos, os sapos. se acomodavam.
A alma em desespero, o caboclo passeava os olhos pela mudez misteriosa das coisas, interrogando o céu e a noite sobre o destino do seu filho e o remédio do seu sofrimento, quando teve aquela idéia, que os demônios apiedados lhe sopraram. Reentrando no casebre, tomou da lamparina vazia, apalpou ainda uma vez o esqueleto ardente do filho, e desceu à rua, rumo do rio. Ao longe, um lampião, perdido na noite, chorava, triste, o seu pranto de claridade solitária. Encaminhou-se para ele. Ao chegar-lhe junto, mediu a altura do poste esguio, e, tomando nos dentes a lamparina de folha, começou a subi-lo. Ao alto, segurandose com as pernas, retirou o bocal do candeeiro, e principiava a passar para a sua candeia algumas gotas de querosene, quando ouviu um grito, a dois passos.
- Ladrão!... - bradaram.
Era o fiscal, o rondante da iluminação. Atirando-se do poste, o caboclo confessou o seu crime, e pediu misericórdia.
- É para o meu filho!... - gemeu.
- Marche! Vamos!... foi a resposta do guarda, que, impelindo-o para a frente com um repelão, se mostrou inexorável.
- Eu vou, - replicou o desgraçado; - mas pelo amor de Deus, deixe-me ir em casa primeiro, acender a lamparina junto ao meu filho!... Deixe!... tenha piedade!...
- Marche!... - bradou-lhe, imperioso, com outro safanão, o homem da ronda.
Cabeça baixa, o desespero na alma, com uma vontade doida de romper em soluços, o caboclo pôs-se a caminho da cadeia, custodiado pelo guarda. A situação em que fora preso, amesquinhava-o, enfraquecia-o, acovardava-o. Sentia vergonha e raiva, arrependimento e indignação.
Pela cidade adormecida os galos amiudavam. Os sapos calavam-se. As estrelas, piscavam menos. Uma brisa fresca, embalando os ramos, trazia o cheiro da floresta... A chave da cadeia estalou, seca, na fechadura, e rolou, lá dentro, um corpo, impelido por um empurrão.
Já ao entardecer, quase noite, soltaram-no, de ordem do delegado. O caboclo correu à casa, para ver o seu filho.
Pelo punho da rede, tomando conta do cadáver, e entrando-lhe pela boca, pelo nariz, pelos ouvidos, desciam em fileira, em longos rosários fervilhantes, as primeiras formigas...
Humberto de Campos O CALDO
I
Como continuação da rua principal da pequena capital nortista, partia aquela estrada.
Marginada de casas a princípio, pouco a pouco, se tornando mais deserta, solitária, mais abandonada. Serpeando aqui entre serrotes, cortando ali, retilínea, uma várzea; comprimindose na garganta de uma serra ou pulando o rio com o auxílio de um pontilhão, ganhava o sertão imenso, estabelecendo um longo traço de união entre o mundo agitado e aqueles longínquos sertões pastoris. Por ela, matando-lhe a relva teimosa sob os sapatos ferrados, haviam passado os primeiros desbravadores; por ela tinham descido, nos anos de seca e de fome, os rebanhos de sombras das populações flageladas; e por ela desciam e subiam agora as boiadas, e as tropas de muares demandando o litoral ou o interior, carregadas de algodão, de milho, de couros, de arroz, de queijos, produtos da terra, ou de sal, de querosene, de fazendas, para o pequeno comércio sertanejo. Às vezes, em uma das suas curvas longínquas, erguia-se uma nuvem de poeira amarelada, que faiscava à claridade forte do sol.
À medida que a nuvem se ia aproximando, ia-se ouvindo um tilintar nervoso de guizos; e em um instante surgia, chouteando, a tropa numerosa, carregada de caixas ou de fardos, puxada pela burra-madrinha, animal inteligente e marchador, e fechada, atrás, pelos comboieiros, de chapéu de carnaúba e lenço vermelho ao pescoço, sentados na sela como imperadores de um povo itinerante.
- Toca p 'ra diante, Mimosa!...
- Endireita, Andorinha!...
E o estalo seco do chicote, tocando a tropa.
Era no alto sertão, já, para além da serra da Gameleira e da chapada dos Três Irmãos, mas à margem mesmo dessa estrada, que se erguia a casa de comércio e de moradia do coronel Antônio Solano. Antiga fazenda de gado e de cultura, havia, pouco a pouco, a Baixa-Verde caído em decadência com o seu último proprietário. O canavial e o engenho, que davam açúcar e aguardente para toda a região, tinham parado depois de 13 de maio, por falta de trabalhadores. O mato invadira as plantações, afogando-as, matando-as; e da velha casa engenho não restava agora senão uma parte do telhado sujo, tendo a outra desabado há muitos anos. A de moradia, essa, constava apenas da "venda", na frente, e uma sucessão de quartos e salas em abandono, por onde errava, fugitivo e soturno, o vulto pesado e grosseiro do coronel, último descendente de uma família ilustre e poderosa, que dominara em todo aquele sertão.
Antônio Solano era o tipo integral do sertanejo indomesticável. De estatura mediana, grosso e forte, andava pelos quarenta e cinco anos, carão largo, moreno, bigode curto e grisalho.
Trazia o cabelo cortado rente, e possuía uns olhos pequenos, escuros, escondidos, como dois tigres, sob a moita das sobrancelhas. Como não tivesse família, pois que a mulher havia morrido e a filha havia casado, vivia ali sozinho, com um criado de confiança, o Libório, que era, ao mesmo tempo, seu cozinheiro, seu caixeiro e seu guarda-costas nas aventuras perigosas.
Com o abandono das culturas e a extinção do gado, vendido pouco a pouco na vila de acordo com as necessidades, vivia Antônio Solano, agora, do arrendamento de algumas braças de terra na Baixa, e dos vagos negócios daquela casa de comércio à beira da estrada. De longe em longe, uma ou duas vezes por dia, passava uma tropa. Os tropeiros acomodavam os animais, sob o telheiro do antigo engenho, apeavam-se, compravam aguardente, fósforos, farinha, rapadura, e, após um descanso ligeiro, continuavam o seu caminho. E isso alimentava a mediania do proprietário.
Indolente por natureza, o antigo fazendeiro não compreendia, contudo, como outros prosperavam na vizinhança. A fortuna alheia fazia-lhe mal. E era para esquecer esse ressentimento que soltava a brida, inteira, ao corcel da concupiscência, transformando-se em sultão único daquelas redondezas. Mal desabrochava para a mocidade e para o desejo o botão de rosa de um seio virgem, e logo murchava poluído pela lagarta repugnante do seu beijo. Contavam-se às dezenas as mulheres atiradas por ele, ainda meninas, à degradação.
Das raparigas que faziam vida dissoluta nas vilas mais próximas, embebedando-se de aguardente nos quartos da feira, uma ou outra não havia sido lançada nesse caminho pela sua bestialidade revoltante.
Entre tantas vítimas uma houve, no entanto, que não esqueceu o ultraje recebido. Chamavase Maria Rosa, e era clara e bonita. Aos quinze anos, após a morte do pai, com a mãe enferma de sezão, fora, com o irmão pequeno, à Casa Grande, pedir ao coronel que os não atirasse fora da terra por falta de pagamento. Quando o milho amadurecesse obteriam o suficiente para o arrendamento da terra em que tinham a cabana e o roçado.
Sentado fora do balcão, num tamborete, os pés sem meias afundados nos chinelos de couro, vestindo calça e camisa de riscado, pela abertura da qual aparecia, vultosa, a musculatura do peito forte, o coronel fitava a menina como a cobra magnetiza o pássaro que vai devorar.
Sentia, já, mentalmente, os encantos virgens daquele corpo, a curva suave daquele colo, a maciez daquela boca cheirando a fruta. O menino havia ido, a mandado seu, pedir ao Libório, na cozinha, uma xícara de café. E quando voltou, encontrou a irmã chorando, abotoando o casaquinho de cassa, mas tendo na mão, nervosamente amarfanhado, o pedaço de papel com o recibo, por seis meses, do arrendamento da terra.
II
Um ano depois, pelo S. João, achava-se o coronel Solano à porta da casa, de onde havia partido uma tropa rumo do sertão. O cotovelo encostado no portal, a mão aberta sustentando a cabeça, olhava, sem ver, a natureza que o cercava. À frente, muito longe, a serra Dourada esfumava-se, coberta, aqui e ali, de lenços de bruma. Coleando para a direita e para a esquerda, arenosa e cheia de sol, a estrada deserta era como uma serpente imensa, de cauda presa ao sertão e cabeça mergulhada no mar. Em uma árvore próxima, chiavam cigarras, limando o silêncio. O sertanejo ouvia e olhava tudo isso estupidamente, quando, surgindo do oitão da casa, lhe apareceu um vulto de mulher, que não pôde logo reconhecer.
Trazia nos braços uma criança adormecida, em um sujo pano de algodão.
Toda ela denunciava miséria, penúria, sofrimento. O cabelo sem trato, amarrado ao alto da cabeça, escapava-lhe, em falripas escuras, pelo pescoço, pelos ombros, pelo rosto. Devia ser moça, mas trazia, já, nas feições, os estigmas da velhice precoce.
- Boa tarde, "seu" coronel!
- Boa tarde! - respondeu, seco, O sertanejo, sem mudar de posição.
-"Seu" coronel não me conhece?
Antônio Solano examinava-a, sem compreender.
- Eu sou a Maria Rosa, filha do defunto Tranquilino, - aventurou a rapariga, medrosa.
E enquanto o coronel fechava a cara:
- Eu vim trazer a vossa senhoria o Antoninho, p'ra tomar a benção p'ro pai...
A essas palavras, ditas timidamente, com um tremor por todo o corpo e a ponto, quase, de soltar a criança, o antigo fazendeiro explodiu:
- Pai?... Que pai, nada!... Vocês andam por ai como as cabras com os bodes, com um e com outro, arranjam os seus moleques e, depois, o coronel Solano é que é o pai! Isso já é desaforo... Eu não estou aqui para trabalhar para os filhos dos outros... Vá procurar o pai, em outra parte!...
Pálida, ainda, dos martírios da maternidade, das privações que sofria, Maria Rosa tornara-se cor de cera. O filho deitado nos braços, quase caindo, os olhos súplices e sem uma gota de pranto, recordava certas imagens toscas de Nossa Senhora que se vêem, às vezes, nas igrejas coloniais. Parecia-lhe um sonho, o que ouvia. De repente, porém, tomou coragem, e, quase num soluço:
- Ele é seu filho, "seu" coronel... Eu juro... E se eu vim aqui, não foi por mim, foi por ele...
Minha mãe morreu, na semana passada... Meu leite secou.... E o que eu vim pedir a vossa senhoria foi qualquer coisa para dar um caldinho p 'ra ele...
E como quem diz, com terror, uma coisa que lhe parece impossível:
- Senão ele morre...
- Caldos! Caldos!... - rugiu, indignado, o coronel, dando de entrar para o balcão. - Aos meus caldos querem viver vocês todos...
E, braço estirado, no rumo da Baixa:
- Vá embora!... Já!...
- Vossa senhoria nega um caldo para seu filho... Não é? - fez a rapariga, com firmeza.
- Vá embora!... Já lhe disse! - tornou Solano, colérico.
III
A noite começava a cair, envolvendo o sertão imenso. Uma cinza tênue e contínua envolvia as coisas, gastando-lhes os contornos. As seriemas soltavam ao longe o seu canto monótono de aves engasgadas. As moitas, povoadas de insetos, chiavam, como fervessem ao fogo.
Uma primeira estrela abriu no céu, como uma açucena num lago sem ondas. E outras foram miúdas, piscando os olhos pequeninos.
Pesado, grosso, a cabeça inteiramente o coronel Antônio Solano pouco mudara, em vinte anos. A casa era a mesma. O criado o mesmo. E o mesmo, ainda, o lampião de querosene suspenso do teto sobre a mesa de jantar, onde se estendia a metade de uma toalha de algodão e se via, sobre a toalha, um prato e um talher.
- Libório, - chamou o ancião, tomando lugar à cabeceira da mesa; - traga o jantar.
A figura de um preto alto, cabeça alva como a do patrão, atravessou o compartimento, rumo da cozinha. E, um momento depois, voltava com um prato fundo, onde fumegava um caldo de carne, em que flutuavam fragmentos de tempero e bolhas de gordura. Colocou-o diante do coronel, e retirou-se, de novo, em direção à cozinha, para trazer, mais tarde, o arroz, o cozido, o feijão.
A colher na mão, Antônio Solano curvou-se para a frente, e bebeu a primeira colherada.
Tomou a segunda. Se houvesse à sua frente um espelho, teria visto, talvez, nesse momento, que um homem, esgueirando-se pela porta, se aproximava, pé ante pé, da sua cadeira, com os olhos postos no seu pescoço taurino... Tomou a terceira colher... Dentes cerrados, o homem era novo e trazia à mão uma faca meticulosamente afiada, como a dos açougueiros.
E o coronel tinha a boca cheia pela quarta colherada, quando uma grande mão lhe empurrou, violenta, o rosto no prato, ao mesmo tempo que uma lâmina certeira, navalhante, lhe decepava completamente, e de um golpe, cabeça vigorosa!
Quando o criado voltou com o cozido, soltou-o no chão, de pavor: o prato do caldo estava cheio de sangue, que transbordava pela toalha, pela mesa, pelo soalho encardido; e no prato, mergulhado no caldo sangrento, o rosto do patrão.
IV
A essa hora, uma lâmina em punho, fugia, em carreira desordenada, pulando as moitas, rumo da Baixa, um rapagão moreno, de vinte anos. Era o Antônio, filho da Maria Rosa.
Humberto de Campos A NOIVA
Após um dia de trabalho intenso, consumido no manuseio de velhos volumes adquiridos nos alfarrabistas para uma obra erudição, o poeta Silvestre de Morais vira desabrochar nas alturas, através da janela aberta, as primeiras estrelas daquela da noite de verão. Fora, no jardim, as árvores repousavam, imóveis, como se rezassem, mudas, preparando-se para adormecer. De espaço a espaço, um morcego cortava com a lâmina da asa o manto espesso da noite, como um pequenino aeroplano sinistro que se exercitasse, rápido, em funambulescos vôos de fantasia.
Com os dedos da mão esquerda mergulhados nos cabelos revoltos, o poeta lia, debruçado sobre o volume, à luz da lâmpada suavemente velada, aquelas histórias de fogo e de sangue, quando, de repente, os seus olhos se contraíram diante de uma surpresa. Abaixou mais a cabeça, escancarou mais o livro, e viu: entre as duas páginas abertas, fulgia, como um risco de ouro, um fio de cabelo, brilhante, fino, quase imperceptível. Encantado com a descoberta, o sonhador arrancou-o, com a ponta de um alfinete, do esconderijo em que o tempo o sepultara, estendeu-o, cuidadoso, ao comprido da página lida, e quedou-se a olhar aquela réstia de luz cristalizada, admirando-lhe a maciez, o brilho, a delicadeza.
- De onde teria vindo aquele misterioso raio de sol? Como teria caído ali, entre as páginas daquele volume de tragédias? Que cabeça feminina se teria curvado sobre aquelas folhas tenebrosas que reviviam, passados tantos séculos, os mais terríveis dramas de amor?
Meditava assim o poeta, com os olhos fitos no faiscante fio de ouro, quando as suas pálpebras se cerraram, tocadas pelas mãos invisíveis do sono. E, como sempre acontece aos que sonham sem dormir, o sonho, continuou, no sono, o encanto da realidade.
De olhos fechados, Silvestre de Morais continuava, por isso, a ver, como se os tivesse abertos, o dourado fio de seda. Olhava-o e, não sabe como, via-o, aos poucos, crescer, desdobrar-se, multiplicar-se. Intrigado, fitou melhor o raiozinho fulgurante, e recuou, com espanto. Agora não era mais o livro, o que via: em lugar da página amarelecida, o que lhe aparecia, cortado pelo cabelo de ouro, era um rosto feminino muito pálido, muito triste, macerado, como o das monjas. Atentou melhor, e viu, mais detidamente: diante dele, olhos em lágrimas, cabelos de ouro esparsos pela fronte úmida, havia uma mulher, jovem e linda, que lhe pedia, as mãos estendidas:
- Meu senhor, eu venho buscar, convosco, a salvação da minh'alma. Há dois séculos espero, ansiosa, esta hora, este momento, o volver desta página, de que dependeu, até hoje, a minha felicidade. O meu destino está, neste instante, nas vossas mãos. E, por Deus, sede generoso!
Atônito, maravilhado, sem compreender aquela aparição subitânea, Silvestre olhava, com a interrogação nas pupilas, a visão dolorosa, como a pedir-lhe, em silêncio, a explicação do mistério. Faces em lágrimas, olhos súplices, a moça adivinhou a inquietação, porque, de pronto, lhe explicou, estendendo para ele, como dois lírios de oratório, as mãos pequeninas e pálidas;
- Tende piedade do meu infortúnio, meu senhor! Para que servirá, tão humilde, entre vossos dedos, esse fio de cabelo? Dai-mo, pois que me dareis, com ele, a minha salvação!
Insensibilizado pela surpresa, e, não menos, pela graça triste daquela aflição infantil, o poeta quedou-se, imóvel, sem uma palavra de recusa ou de assentimento. E foi diante da sua insensibilidade que a visão maravilhosa lhe contou, sem conter as lágrimas nem recolher as mãos de pétala murcha, a história da sua infelicidade e o segredo da sua angústia.
- Eu sou uma noiva que paga, meu senhor, num castigo que se eterniza, o tributo da sua ventura passageira. Meu noivo era um poeta, como vós. Um dia, líamos, os dois, como Paolo e Francesca, o livro que tendes em mão, quando um fio do meu cabelo voou, indiscreto, e pousou nos seus dedos. Galanteador e apaixonado, ele o levou aos lábios, beijou-o, e como nos chamassem do jardim onde líamos à claridade do crepúsculo, ele marcou, com o fio imprudente, a página do livro que nos encantava. No dia seguinte, porém, meu noivo adoeceu, e morreu, sem que eu o visse. Amedrontados com a sua morte repentina, os seus parentes dispersaram os seus móveis, as suas roupas, os seus livros, distribuindo-os pelos pobres. E, entre os volumes atirados ao oceano do mundo, foi esse que se acha, hoje, em vosso poder.
- Continua... Continua... - pediu o poeta, pálido, com tremores nas mãos tateantes.
- Anos depois, - prosseguiu a visão, nervosa, aflita, precipitando as palavras, - anos depois, eu, por minha vez, morri e fui, pelos anjos, levada à presença de Deus misericordioso. Era pura e havia, na terra, espalhado pelos humildes, pelos simples, pelos pobres, as flores do meu coração. O Senhor fitou-me, porém, severo, e perguntou onde estava um dos fios do meu cabelo. E como lhe contasse como o perdera, ele me fulminou com a sentença terrível:
eu só entraria na mansão do eterno repouso, da perfeita bem-aventurança, no dia em que voltasse com o fio desaparecido; porque, nenhuma virgem é digna de viver entre os anjos, gozando as doçuras do paraíso, tendo deixado nas mãos de um homem um fio, que seja, do seu cabelo!
- E por que não te apoderaste dele há mais tempo? - indagou, mais tranqüilo, o poeta.
- Não foi possível, meu senhor. Há duzentos anos, quase, eu acompanho a marcha deste livro. Durante oitenta anos fiquei a seu lado, em uma biblioteca, esperando que alguém o pedisse, o abrisse, libertando o fio do meu cabelo. Ninguém o pediu, ninguém o abriu, ninguém o leu. Atravessei com ele o mar. Vi-o em várias mãos, sem que alguém, entretanto, folheasse a página de que dependia o meu destino. Sois vós o primeiro. Se, depois, recusardes o que vos suplico, morrerá, para mim, a última esperança de paz e libertação!
E torcendo as mãozinhas murchas, pálidas, como duas flores de cera:
- Tende piedade, meu senhor! Dai-me o fio do meu cabelo!
Comovido, abalado pelo espetáculo daquela angústia, Silvestre estendeu-lhe, na ponta dos dedos, o raiozito de sol pedido com tanta sofreguidão, com tanta doçura, com tanta insistência, pela visão dolorida.
- Toma. Leva-o... - disse, entregando-lho.
Com o vento fresco da madrugada, o poeta acordou. Olhou o livro aberto, sobre o qual pousava, ainda, espalmada, a sua mão emagrecida. Procurou o fio de ouro, que vira marcando a página, antes de adormecer. Não o encontrou.
O vento, com certeza, o havia levado...
Humberto de Campos O SERINGUEIRO
I
À semelhança de um inseto minúsculo e amedrontado que se refugiasse na base um penedo, fugindo a inimigos invisíveis mas certos, a povoação de Graça, com a sua capela, e a sua dúzia de casas, repousa, há mais de um século, no sopé da Ibiapaba. Às três horas da tarde, quando o sertão imenso, para os lados da Meruoca, ainda fulgura iluminado, já está ela mergulhada no seu manto cinzento, preparando-se para o descanso da noite. É que o sol, descendo por trás da serra cortada a pique, projeta sobre aquela parte do sertão a sombra larga da montanha, como se Deus a quisesse esconder, antes das outras povoações cearenses, contra os incontáveis perigos da terra e do céu.
Foi nesse pequeno recanto sertanejo que o Joaquim Lucrécio, partindo das margens do Acaraú, onde era lavrador, se deteve em 1878. O seu objetivo, de quem fugia ao flagelo que tudo devastava, era alcançar a Serra Grande por uma das ladeiras de Leste. Ao chegar, porém, às proximidades da encosta, caiu a primeira chuva. O Jaibara encheu, arrastando na descida detritos de árvores e ossadas de animais. E como a esperança de fartura voltasse ao coração dos homens, o retirante recebeu um convite para o serviço e levantou, à margem do rio, a pequenina casa de palha para abrigo da mulher e dois filhos, o João e a Carolina, que a morte poupara no êxodo.
Foi aí, sob a proteção da serra enorme e verde, que os dois irmãos se criaram, apurando a coragem nas lições da natureza e na áspera vida de privações. Enquanto a velha mãe gemia, entrevada, sobre a esteira de carnaúba estendida no chão de barro batido, e o pai, tostado pela soalheira e curtido pela miséria, procurava trabalho nas fazendas vizinhas, ia a menina à cacimba, no leito seco do rio, com o pote à cabeça, buscar a água para os serviços domésticos, ao mesmo tempo que o irmão, mais velho que ela dois anos, cortava, em companhia de outros da sua idade, as folhas tenras das carnaubeiras para extração de cera e aproveitamento das palhas na confecção de chapéus.
Assim cresceu a Carolina. Assim cresceu o João.
II
Aquela vida de penúria, em que se sucediam, às vezes, os dias em que o sustento de cada pessoa se limitava a um punhado de farinha e a um pequeno pedaço de rapadura, não podia, porém, perdurar sem protesto. Carolina tornava-se moça. Morena e pálida, opilada pela alimentação deficiente, possuía, contudo, os traços finos, delicados, do mameluco originário, em que predominavam, no entanto, as características da raça branca. Andava pelos quinze anos e não parecia ter mais de treze. Apenas, traindo a idade, os seios se lhe avolumavam opulentos, como uma árvore tenra que concentra toda a seiva destinada ao tronco no esplendor e na glória dos frutos. Os cabelos, cor de mel, apertados em trança descuidada, punham-lhe à mostra a testa bem feita, desenhando-lhe, ao mesmo tempo, a correção da cabeça pequena. Os olhos negros, pareciam mais negros na esclerótica acentuada pela anemia e os dentes mais alvos através dos lábios descorados pela miséria. Não fosse o vestidinho sujo e roto, de riscado grosseiro, e dir-se-ia uma dessas antigas imagens da Virgem, que tivesse permanecido sepultada durante séculos e perdido, ao contato da terra, a alvura fresca do marfim. O irmão, planta agreste do mesmo terreno pobre, desenvolvia-se com a mesma lentidão. Lia-se-lhe, entretanto, nos olhos pequenos, de luz concentrada, não a mesma resignação, mas o desejo incontido de romper as cadeias que o prendiam à terra madrasta, e partir pelo mundo em busca de pão, de dinheiro e de felicidade.
E esse dia chegou. Tinha ele dezessete anos quando soube, no Graça, que se achava no Pacujá um paraoara, um cearense enriquecido no Amazonas, o qual estava contratando trabalhadores para o serviço de seringal. O primeiro pensamento do sertanejo foi correr à casa, pedir licença ao pai, e abraçar a irmã e a velha mãe entrevada. Refletiu, porém, rapidamente. Se fosse pedir o consentimento paterno certamente não o obteria. O velho sentia-se doente, acabado. E com a convicção da morte próxima, não admitiria, naturalmente, que faltasse à companheira, e à filha moça, o único arrimo com que elas poderiam contar.
Seria melhor, pois, não tornar mais à casa, e partir sem o consolo, a dor e os riscos da despedida. No regresso, com o dinheiro economizado, redimiria, com a fartura no lar humilde, o pecado de ingratidão.
Partiu, assim, a pé, viajando à noite, para o Pacujá. Apresentou-se ao paraoara e foi aceito.
Três dias depois chegava a Camocim, onde o esperava o navio. Dois dias rolou no convés da proa, sacudido pelo balanço do mar. No terceiro surgiu-lhe no fundo de um estuário coalhado de navios uma cidade enorme, com os seus trapiches de mil pernas avançando sobre a água e as suas torres espetando o céu baixo, como chaminés de navios imensos, formados desde o porto pelas casas de três andares. Era Belém, o Pará. Outro navio pequeno, um "gaiola", achava-se, porém, à espera dele e dos companheiros. Uma barcaça levou-os, amontoados, como gado humano, de um para outro. E a viagem, agora por um rio, continuou. Do segundo dia em diante o "gaiola" começou a parar de quinze em quinze minutos, ou de hora em hora, atracando a pontes ligeiras, em que embarcava bolas de borracha, e desembarcava sacas e caixas de mercadorias. Dia e noite a mesma faina. Até que, uma noite, por volta das duas horas, todo o pessoal vindo com o paraoara teve ordem para preparar-se, a fim de desembarcar. Um apito na curva do rio e, em breve, aparecia uma pequena luz no alto de um barranco, dominando uma frágil ponte de tábuas. Sombras imprecisas moviam-se na sombra.
- Salta, gente! gritou o agenciador.
Sessenta e dois homens tristes, macerados pela viagem e pelos sofrimentos na terra do berço, desembarcaram, trazendo à mão, à cabeça, ou ao ombro, o seu saco, a sua trouxa, o seu baú.
E João Lucrécio estava entre eles.
III
Oito anos decorreram, acumulando-se sobre esse dia ou, antes, sobre essa noite. Confiado a outro seringueiro, veterano na faina, para que o iniciasse na extração do antigo ouro negro, o rapazola do Graça sentiu, logo nos primeiros dias, o inominável suplício do arrependimento.
As estradas de seringueira que lhe haviam sido destinadas ficavam em plena selva, longe dois dias do barracão. Para moradia, encontrara, já, a barraca de palha, com soalho de troncos de palmeira, rachados ao meio. Fora, ao lado da barraca, a pequena latada para a defumação da borracha, e que lhes servia, ao mesmo tempo, de cozinha. Próximo, rolava, o rio, para baixo, as suas águas escuras, deslizando entre duas paredes de vegetação compacta, de que se desgarravam caules de açaizeiros, como braços de condenados que, atravessando as grades de suas células, pedissem perdão ou socorro. E em torno à barraca humilde, sufocando-a, asfixiando-a, comprimindo-a, a mata imensa, ameaçadora, impenetrável, o tronco encostado ao tronco, a fronde presa à fronde, e os cipós amarrando tudo em um verde feixe compacto, no qual a estrada para o centro se abria pequena, estreita, insignificante como um buraco de rato na majestade de um muro.
Às três horas da manhã o companheiro levantava-se, empurrava a porta de esteira, empunhava o búzio, e um rugido de dor, de angústia, de saudade, cortava a solidão silenciosa. Outro búzio, ao longe, respondia, na mesma queixa resignada. E outro, ainda mais distante. Eram os galés daquele presídio, vasto como um mundo, que se comunicavam sem, às vezes, se conhecerem, dando a notícia de que ainda viviam. E o silêncio caía em seguida, sepultando, de novo, centenas de homens vivos.
Preparando o café, ingerido às pressas com farinha ou bolacha, tomava cada um o seu lampião de querosene, o facão, a machadinha, e penetrava a estrada de Seringueiras, abrindo no coração da selva espessa o olho vermelho do farol. Ao chegar a uma das árvores cuja posição determinava as oscilações da vereda ziguezagueante, - árvore mártir, sangrada mil vezes, durante anos seguidos, desde as raízes até a maior altura do tronco, seis ou oito metros acima do solo - o seringueiro subia os "mutás" ou giraus superpostos, indo lá em cima golpear a casca rugosa e o cerne generoso, que logo lhe respondiam jorrando o seu leite.
Fixadas, sob os golpes, as tigelinhas de folha, o homem descia, e continuava, silencioso como um fantasma, o seu caminho. Surpreendia-o nessa peregrinação a madrugada.
Encontrava-o o sol, de que ele tinha notícia apenas pela claridade doce que se coava pela copa das árvores, cuja vastidão lhe impedia a vista do céu. Às onze horas, enfim, o seringueiro desembocava outra vez, pelo lado oposto da estrada, diante da barraca.
Almoçava o feijão preparado na véspera. E reiniciava a romaria da madrugada, recolhendo num grande frasco de folha, no "boião", o leite recebido pelas tigelinhas, que ficavam junto às próprias árvores para o trabalho do dia seguinte. À tarde, chegava à barraca, defumava o leite, preparava a borracha. E posto ao fogão o feijão e o pedaço de carne seca ou de caça apanhada casualmente durante o dia, deitava-se, fatigado, na rede macia, suja, ouvindo a orquestra imensa, constituída por todas as vozes da natureza, que o insultavam, e o vaiavam, e o desafiavam, da sombra das folhas, da cavidade dos troncos, do cimo das árvores, da margem do rio - no coaxar dos sapos, no zumbir dos insetos, na reza do vento, no estalido dos galhos, no rugido das onças, acordadas para comer...
IV
Ao fim de oito anos de trabalho heróico e de economias desesperadas João Lucrécio solicitou a sua conta ao patrão. Tinha de saldo na casa nove contos de réis. Pediu uma ordem para lhe ser paga essa quantia no Pará, e embarcou no primeiro "gaiola". Viera menino, e voltava homem. Não era mais o mesmo, nem de figura, nem de alma. A natureza bárbara afeiçoara-o de novo, modelando-o à sua imagem. À tez queimada do caboclo do nordeste substituiu a amarelidão doentia, e opilada, dos que vivem na sombra. Um bigode alourado e grosseiro completava-lhe a fisionomia, que uma cicatriz aberta pela unha de uma onça encontrada certa manhã no seu caminho, modificara profundamente.
Ia, enfim, rever o seu Ceará, e, nele, o seu pai, a sua mãe, a sua irmã, aos quais nunca enviara a mais ligeira notícia. E perguntava a si mesmo:
- Viverão todos ainda?
Se alguém lhe pudesse responder, ter-lhe-ia dito que o seu sonho era vão. A mãe, a velha Rosminda, morrera pouco depois da sua partida, não de mágoa, porque em seu coração não havia mais lugar para o sofrimento, mas de miséria e de fome. O pai falecera mais tarde, vitimado pelo veneno de uma cobra, que o surpreendera na limpa de um roçado alheio. Não, porém, sem ter visto, na vida, a sua filha mais ou menos amparada, pois que a casara com o Vicente Monteiro, um rapaz das bandas do Cariré, que possuía, de seu, algumas cabeças de gado, a casa de taipa e um roçado de milho. Homem pobre, mas trabalhador e honrado.
Ao desembarcar em Camocim, João Lucrécio soube, logo, pelas pessoas que foram a bordo procurar serviço da estiva ou no desembarque de bagagens, que a seca lavrava, intensa, em todo o sertão. E se ninguém lhe desse a notícia, ele tê-la-ia adivinhado pelo movimento da pequena cidade marítima, arranchada sob as árvores da rua da frente, patenteando na fisionomia e na nudez toda a extensão do seu infortúnio. Intimamente, porém, rejubilou. A sua chegada, era, agora, oportuna, pois que levava, no dinheiro que lhe enchia o bolso, a saúde, a fortuna, a alegria. E imaginava, com volúpia íntima, o que seria o contentamento na casinha das margens secas do Jaibara, quando ali chegasse com as suas quatro malas pregueadas, e mostrasse à mãe entrevada, ao pai envelhecido, à irmã bonita, e ainda moça, os cortes de fazenda, as sandálias de couro, os brincos de plaqué, os lenços de cambraia vistosa, os trinta presentes, em suma, que lhes trazia. E ainda mais quando apalpassem o dinheiro, as cédulas de quinhentos, de duzentos e de cem mil réis, que eles, por lá, jamais tinham visto.
João Lucrécio desembarcou para um hotel, em frente, mesmo, ao trapiche a que atracara o vapor. Pela madrugada, tomava o trem, com passagem para a estação de Cariré. Às nove horas estava em Granja. Ao meio-dia em Sobral. E às três horas na pequena vila onde pretendia saltar, afim de arranjar condução para o Graça. Ao verem sair do carro a sua bagagem rica, e a sua figura de paraoara feliz, os retirantes que se abrigavam nas vizinhanças da estação cercaram-no, pedindo-lhe uma esmola, a mão estendida. O choro de vinte vozes, em que misturava a das mulheres, a dos velhos e a das crianças, era como uma reza alta, que se avolumava a cada instante. O seringueiro deu alguns níqueis, e procurou sair dali, naquela mesma tarde.
- Quer me comprar um cavalo e dois burros, moço? - indagou um fazendeiro que pretendia desfazer-se do que possuía, antes que a seca lhe matasse o que ainda restava.
- Quanto quer?
Feito o preço, João Lucrécio adquiriu os três velhos animais. E como se lembrasse ainda dos caminhos, e preferisse, para efeito da surpresa, viajar sozinho, mandou por as malas sobre os muares, e montando no cavalo de sela, tocou-o sertão a dentro, e partiu.
V
O sertão estava, então, todo seco, sem a sombra de arvoredo ou vestígio dágua, entre o sopé da Ibiapaba e a linha da Estrada de Ferro. Na quietude da tarde, João Lucrécio sentia isso.
Ao fundo, no horizonte, a serra azulava, como se corresse para ele, tão perto lhe parecia, na atmosfera sem vapores. De um lado e de outro do caminho, os mofumbos e marmeleiros agrestes estavam reduzidos a talos comburidos, como um tabocal após a passagem do fogo.
A noite caía lenta, envolvendo tudo, como um sudário imenso, lançado sobre a terra pela piedade divina. O céu, estrelado e baixo, parecia a cúpula enorme da tenda suntuosa de um poderoso rei oriental. As estrelas luziam tanto, e pareciam tão próximas, que iluminavam a estrada. Uma coruja começou a gargalhar à pequena distância, no galho em cruz de uma árvore morta. João Lucrécio persignou-se, arrepiado. Lembrou-se que nunca fizera isso no Amazonas, porque, por lá, mesmo nas horas de medo, nunca se lembrara de Deus. O cavalo e os burros resfolegavam, sopravam forte, quebrando a serenidade da noite. Grilos ziniam, insistentes. E ele, vivo, marchava, a passo, como um fantasma, pela tristeza dos caminhos mortos.
Em certo momento divisou, porém, à margem da estrada, uma casa humilde, sem luz.
Resolveu fazer alto ali, para continuar a viagem pela manhã. Aproximou-se tocando o cavalo na frente, puxando os muares pelo cabresto.
- Ó, de casa! - chamou.
A porta de madeira tosca abriu-se timidamente, e uma figura humana desenhou-se na meia escuridão.
- Boa noite! - saudou o paraoara.
- Deus lhe dê boa noite - respondeu uma voz de homem.
- Seria possível, amigo, eu passar a noite aqui, para seguir de madrugada?
- Se quiser, pode; mas, como o senhor sabe, por aqui não tem água nem p'ra bicho, nem p'ra gente.
- Isso é o menos - atalhou João Lucrécio, apeando-se. - Eu trago ração de milho e uma borracha com água. O que eu quero é só licença para ficar.
Meia hora depois, na salinha da casa pobre, ceava o paraoara o rancho comprado em Sobral:
um pedaço de carne, farinha, um quilo de bolacha, uma lata de sardinha e uma garrafa de vinho. Ao lado dele, junto ao tamborete improvisado em mesa, o dono da casa um caboclo de musculatura forte, escaveirado, acompanhava-o na refeição, a que se associava a mulher, esquelética, em cujos olhos afundados nas órbitas luziam a dor e a fome. Em poucos instantes o pequeno farnel foi todo devorado. E como se sentissem, todos, por um momento, felizes, o seringueiro pôs-se a falar, com a indiscrição alegre da meia embriagues.
- O senhor não é mesmo daqui.. - aventurou o dono da casa, atordoado também pelo vinho que aceitara dó hóspede, e que começava a atuar sobre a sua debilidade.
- Não, senhor - informou o paraoara - Eu sou do Rio Grande do Norte. Vim por aqui para passear... Fui p'ra Amazonas e fui feliz. Ganhei um dinheirinho, e agora vim ver isto por aqui...
Quero ver se compro alguma fazenda barata, lá para o pé da serra...
E, jovial, por efeito do álcool, e, não menos, por vaidade, para escandalizar a miséria alheia:
- Dinheiro é que não falta!
E arrancou do bolso um forte maço de cédulas, capeado por duas de quinhentos mil réis, que passou às mãos trêmulas do sertanejo e da mulher, que as examinaram, piscando.
Em seguida, os donos da casa armaram, mesmo na sala humilde, a rede do hóspede.
Desejaram-lhe boa noite, e recolheram-se, pensativos, para o fundo da cabana. Voava-lhes no cérebro o bando agoureiro pensamentos sinistros, que nenhum dos tinha coragem de confessar ao outro.
VI
Qual dos dois falou primeiro, não se poderia, talvez, descobrir. E ainda menos o que teria primeiro lembrado ao outro o insulto que constituía, perante Deus, a presença, ali, daquele estranho, tão despreocupado e tão rico, precisamente no dia em eles, tendo perdido todos os haveres, representados pelo gado morto de sede e pelo roçado destruído na fogueira do sol inclemente, pretendiam abandonar, a pé, aquelas terras adustas, afim de se unir em Sobral aos milhares de retirantes que viviam da caridade pública. A verdade é que, cerca de meianoite, quando se não ouvia na cabana escura senão o roncar compassado do viajante e, lá fora, em torno à casa, o chocalho dos animais por ele trazidos, os dois, marido e mulher, penetraram, pé ante pé, na sala pequena. Um baque surdo, e fofo, um gemido abafado, um barulho de líquido em jorro, estremecimentos de um corpo que cessa de viver, e foi tudo.
Minutos depois a enxada do antigo lavrador cavava, na escuridão da noite, atrás do curral vazio, uma cova estreita e rasa. E nela desaparecia, para sempre, com a rede em que adormecera, o paraoara feliz. Tiradas as peias dos animais, foram estes espantados para longe, afim de afastar suspeitas, se estas surgissem. Acesa uma vela de carnaúba, contaram os dois, de mãos sôfregas, no interior da casa, o dinheiro encontrado nos bolsos do assassinado. Havia quatro contos e duzentos mil réis.
Vamos ver a bagagem, - convidou o marido, com tremores na voz, como quem começa a despertar de um sonho terrível.
Abertas as malas foi examinado, às pressas, o que nelas havia. Cortes de chita, espelhos, anéis, broches baratos, vidros de perfume, pentes, miudezas para presentes humildes. E
latas de conservas, e doces. E roupas novas, algumas não vestidas ainda. De repente, no meio de tudo, um papel, uma conta, que talvez esclarecesse a identidade do morto.
- Lê tu, que sabes, - pediu o caboclo, passando a conta à mulher.
A sertaneja soletrou o primeiro nome. Soletrou o segundo, até o meio. Os lábios tremiam-lhe, como uma flor murcha acossada pelo vento. O papel caiu-lhe da mão, e a vela depois, apagando-se. E foi no escuro que ela, o estupor estampado na face, se atirou ao pescoço do companheiro.
- Vicente, meu marido da minh 'alma! - exclamou.
E agarrada ao esposo, num grito de desespero, os olhos escancarados na treva:
- Era... meu irmão!...
Humberto de Campos A MINA
A notícia daquela descoberta correra célere por toda a comarca, por toda a província, por todo o país. Há muito tempo se suspeitava a existência de uma opulenta jazida de ouro ali mesmo, na encosta da serra, entre a linha de córregos, que desabava da montanha; ninguém se havia aventurado, todavia, a uma pesquisa mais demorada, mais completa, mais eficiente, até que chegou da África do Sul, via Londres, especialmente contratado para estudar o terreno, aquele engenheiro tostado do e de chapéu de cortiça, que espantara logo a vila com a excentricidade das suas roupas e a bizarria das suas maneiras.
Informado da exploração feita pelo inglês, ordenou o coronel Jesuíno Botelho que se iniciassem logo as escavações, para não perder tempo. Os maquinismos aperfeiçoados e modernos estavam, já, em viagem, pedidos por telegrama; enquanto, porém, não chegavam, iriam os homens perfurando o grande poço, em busca do veeiro, que ficava, na opinião do técnico, a oitenta metros da superfície.
O coronel Botelho não era, como a generalidade dos fazendeiros de Itaobara, um espírito refratário ao progresso, ao aperfeiçoamento do homem, aos empreendimentos suavizadores da vida. Educado em um seminário de Ouro-Preto, adquirira, com alguns professores leigos, uma noção positiva do mundo, e dos seus fenômenos; a disciplina religiosa ficara-lhe, porém, como lastro do espírito, e era assim que ele se conduzia pela terra, entre os ímpetos de conquistas e recuos de superstição. Por mais de uma vez havia tomado iniciativas atrevidas, importando arados, cultivando o melhor solo da fazenda; chegada, entretanto, a época da colheita, detinha-se em casa, no seu quarto, dias inteiros, mandando, daí, despachar os trabalhadores, e entregando o milho, o arroz, o feijão, as batatas, à fome das cotias, das pacas, das capivaras, dos tatus e dos papagaios irrequietos.
A alegria com que o coronel via, naquele ano, cavar a terra, no lugar da mina de ouro era, por isso, motivo de surpresa para toda a gente que o conhecia.
- É a tal coisa, - dizia um, perverso - para o milho, o feijão, o arroz, ele é religioso, e acha que se deve cuidar só da alma; fala-se, porém, em ouro, e esquece tudo. Agora só pensa na mina!
- E o buraco já está fundo! - informava outro.
E estava, de fato. Não obstante os aparelhos primitivos empregados na obra atrevida, o poço media, já, setenta metros de profundidade, faltando apenas dez para o ponto em que devia começar a galeria. E o coronel não desanimava, não se arrependia, demonstrava, timorato, o menor propósito de recuo.
- Agora, vai mesmo! - diziam os trabalhadores, fazendo subir, nas caçambas vagarosas, o barro, a areia, a pedra arrancada às entranhas virgens da terra.
- O homem está doido! - observavam outros com ironia, assinalando, admirados, o progresso dos trabalhos.
Certo dia, achava-se o coronel à mesa do almoço com a família, quando um operário lhe foi dizer, ansiado pela rapidez da marcha, que haviam dado com a mina. As primeiras estrias de ouro tinham aparecido, estando começada, já, a abertura da galeria. Boca escancarada, de que o bigode ralo era simples reposteiro, o fazendeiro deu um pulo, desamarrou o guardanapo, e saiu, correndo, no rumo do poço. E foi na mesma carreira que se atirou para o elevador primitivo e tosco, descendo, aos solavancos, os oitenta e quatro metros daquela perfuração audaciosa.
A emoção havia sido, porém, forte demais para os seus nervos abalados. Surpreendido pela notícia no momento da refeição, correra quase um quilômetro, sem parar. E era o efeito dessa temeridade que o coronel ia sentindo à medida que o aparelho descia, e que atingiu proporções assustadoras, antes, mesmo, de chegar ao fundo da escavação.
- Levem-me para cima! Levem-me! - pediu Botelho, metendo a mão no colarinho da camisa, rompendo-a com violência. - Levem-me daqui. Quero morrer lá em cima. Eu sufoco! Eu morro!
Vagaroso, como sempre, o elevador pôs-se, de novo, a subir. E tal era a morosidade da sua marcha, que, ao chegar no alto, o coronel jazia sem sentidos, agarrado por baixo dos braços pelos dois homens que o acompanhavam.
Dois dias e duas noites esteve o velho fazendeiro completamente desacordado. E no seu sono, entre a morte e a vida, teve um sonho sinistro, horrendo, desvairado, que o agitava, como num pesadelo.
A princípio, a sua fazenda era um grande navio, que navegava na noite e no silêncio, dirigido por um comandante alto e magro, que andava sempre embuçado, passeando, soturno, no tombadilho, de um lado para outro. Passageiro da embarcação-fantasma, ele, Botelho, tentara, por várias vezes, travar palestra com o capitão. Este afastara-se, porém, no mesmo passo, sem uma palavra, sem um gesto, sem um olhar. De uma das vezes, indignado, resolveu pedir-lhe explicações daquela descortesia: foi ao seu encontro, tomou-lhe o caminho, e intimou-o:
- Olhe para mim, ou eu o esbofeteio!
Pala em cima dos olhos, o comandante quedou-se, calmo. E, como não atendesse à segunda intimação, avançou Botelho no seu rumo, e, de um safanão, arrancou-lhe violentamente o boné. E recuou, com um grito: diante dele estava, crânio calvo, órbitas vazias, dentes à mostra num sorriso sinistro, um esqueleto, cujas mãos apareciam sob as mangas do capote, chocalhando todos os ossos!
- Quem és tu? - gemera o coronel, recuando, espavorido, até à amurada.
- Não me conheces? - respondeu, fanhoso, o espetro apavorante, movendo o queixo sem carnes. - Eu sou a Morte. E tu, que tanto me temes, um simples passageiro do meu navio!
E irônico:
- Já viste os teus companheiros de viagem? Desce; vai vê-los.
À imposição das falanges nuas, que lhe indicavam uma escada, ele descera um buraco semelhante àquele da mina, mas cortado, lá em baixo, por uma grande galeria, na qual se abriam, de um lado e de outro, numerosos camarotes, divididos em beliches. Diante de cada beliche havia, porém, uma cortina de veludo preto, com unia cruz de galão dourado.
Suspendeu a primeira cortina, e recuou: o beliche era um caixão funerário, no qual repousava, estirado, um esqueleto. Ergueu outra cortina, e apresentou-se-lhe aos olhos o mesmo esquife, com o mesmo passageiro. Foi a outro camarote, a outro mais, e ainda a outro, e em cada um deles, quatro beliches, isto é, quatro caixões, e em cada caixão uma ossada. Cansado da peregrinação, queria, já, um beliche desocupado, quando despertou.
De salto, pôs-se de pé.
- E a mina? - indagou, pálido, mãos trêmulas, olhos arregalados.
- Está sendo aberta a galeria, - informou, alguém, da família.
- Tapem-na! Soterrem-na! Obstruam-na! - gritou, apavorado, as mãos na cabeça.
Nesta mesma noite, à luz de quarenta archotes, começava a ser enterrada, como uma enorme sepultura ao clarão de quarenta círios, a grande, a riquíssima, a famosa mina de Itaobara.
Humberto de Campos OS OLHOS QUE COMIAM CARNE
Na manhã seguinte à do aparecimento, nas livrarias, do oitavo e último volume da História do Conhecimento Humano, obra em que havia gasto catorze anos de uma existência consagrada, inteira, ao estudo e à meditação, o escritor Paulo Fernandes esperava, inutilmente, que o sol lhe penetrasse no quarto. Estendido, de costas, na sua cama de solteiro, os olhos voltados na direção da janela que deixara entreaberta na véspera para a visita da claridade matutina, ele sentia que a noite se ia prolongando demais. O aposento permanecia escuro. Lá fora, entretanto, havia rumores de vida. Bondes passavam tilintando.
Havia barulho de carroças no calçamento áspero. Automóveis buzinavam como se fosse dia alto. E, no entanto, era noite, ainda. Atentou melhor, e notou movimento na casa. Distinguia perfeitamente o arrastar de uma vassoura, varrendo o pátio. Imaginou que o vento tivesse fechado a ]anela, impedindo a entrada do dia. Ergueu, então, o braço e apertou o botão da lâmpada. Mas a escuridão continuou. Evidentemente, o dia não lhe começava bem.
Comprimiu o botão da campainha. E esperou.
Ao fim de alguns instantes, batem docemente à porta.
- Entra, Roberto.
O criado empurrou a porta, e entrou.
- Esta lâmpada está queimada, Roberto? - indagou o escritor, ao escutar os passos do empregado no aposento.
- Não, senhor. Está até acesa..
- Acesa? A lâmpada está acesa, Roberto? - exclamou o patrão, sentando-se repentinamente na cama.
- Está, sim, senhor. O doutor não vê que está acesa, por causa da janela que está aberta.
- A janela está aberta, Roberto? - gritou o homem de letras, com o terror estampado na fisionomia.
- Está, sim, senhor. E o sol está até no meio do quarto.
Paulo Fernando mergulhou o rosto nas mãos, e quedou-se imóvel, petrificado pela verdade terrível. Estava cego. Acabava de realizar-se o que há muito prognosticavam os médicos.
A notícia daquele infortúnio em breve se espalhava pela cidade, impressionando e comovendo a quem a recebia. A morte dos olhos daquele homem de quarenta anos, cuja mocidade tinha sido consumida na intimidade de um gabinete de trabalho, e cujos primeiros cabelos brancos haviam nascido à claridade das lâmpadas, diante das quais passara oito mil noites estudando, enchia de pena os mais indiferentes à vida do pensamento. Era uma força criadora que desaparecia. Era uma grande máquina que parava. Era um facho que se extinguia no meio da noite, deixando desorientados na escuridão aqueles que o haviam tomado por guia. E foi quando, de súbito, e como que providencialmente, surgiu na imprensa a informação de que o professor Platen, de Berlim, havia descoberto o processo de restituir a vista aos cegos, uma vez que a pupila se conservasse íntegra, e se tratasse, apenas, de destruição ou defeito do nervo óptico. E, com essa informação, a de que o eminente oculista passaria em breve pelo Rio de Janeiro, a fim de realizar uma operação desse gênero em um opulento estancieiro argentino, que se achava cego há seis anos e não tergiversara em trocar a metade da sua fortuna pela antiga luz dos seus olhos.
A cegueira de Paulo Fernando, com as suas causas e sintomas, enquadrava-se rigorosamente no processo do professor alemão: dera-se pelo seccionamento do nervo óptico. E era pelo restabelecimento deste, por meio de ligaduras artificiais com uma composição metálica de sua invenção, que o sábio de Berlim realizava o seu milagre cirúrgico. Esforços foram empregados, assim, para que Platen desembarcasse no Rio de Janeiro por ocasião de sua viagem a Buenos Aires.
Três meses depois, efetuava-se, de fato, esse desembarque. Para não perder tempo, achavase Paulo Fernando, desde a véspera, no Grande Hospital das Clínicas. E encontrava-se já na sala de operações, quando o famoso cirurgião entrou, rodeado de colegas brasileiros, e de dois auxiliares alemães, que o acompanhavam na viagem, e apertou-lhe vivamente a mão.
Paulo Fernando não apresentava, na fisionomia, o menor sinal de emoção. O rosto escanhoado, o cabelo grisalho e ondulado posto para trás, e os olhos abertos, olhando sem ver: olhos castanhos, ligeiramente saídos, pelo hábito de vir beber a sabedoria aqui fora, e com laivos escuros de sangue, como reminiscência das noites de vigília. Vestia pijama de tricoline branca, de gola caída. As mãos de dedos magros e curtos seguravam as duas bordas da cadeira, como se estivesse à beira de um abismo, e temesse tombar na voragem.
Olhos abertos, piscando, Paulo Fernando ouvia, em torno, ordens em alemão, tinir de ferros dentro de uma lata, jorro d'água, e passos pesados ou ligeiros, de desconhecidos. Esses rumores eram, no seu espírito, causa de novas reflexões.
Só agora, depois de cego, verificara a sensibilidade da audição, e as suas relações com a alma, através do cérebro. Os passos de um estranho são inteiramente diversos daqueles de uma pessoa a quem se conhece. Cada criatura humana pisa de um modo. Seria capaz de identificar, agora, pelo passo, todos os seus amigos, como se tivesse vista e lhe pusessem diante dos olhos o retrato de cada um deles. E imaginava como seria curioso organizar para os cegos um álbum auditivo, como os de datiloscopia, quando um dos médicos lhe tocou no ombro, dizendo-lhe amavelmente:
- Está tudo pronto... Vamos para a mesa... Dentro de oito dias estará bom. .
O escritor sorriu, cético. Lido nos filósofos, esperava, indiferente, a cura ou a permanência na treva, não descobrindo nenhuma originalidade no seu castigo e nenhum mérito na sua resignação. Compreendia a inocuidade da esperança e a inutilidade da queixa. Levantou-se, assim, tateando, e, pela mão do médico, subiu na mesa de ferro branco, deitou-se ao longo, deixou que lhe pusessem a máscara para o clorofórmio, sentiu que ia ficando leve, aéreo, imponderável. E nada mais soube nem viu.
O processo Plateu era constituído por uma aplicação da lei de Roentgen, de que resultou o Raio-X, e que punha em contacto, por meio de delicadíssimos fios de "hêmera", liga metálica recentemente descoberta, o nervo seccionado. Completava-o uma espécie de parafina adaptada ao globo ocular, a qual, posta em contacto direto com a luz, restabelecida integralmente a função desse órgão. Cientificamente, era mais um mistério do que um fato. A
verdade, era que as publicações européias faziam, levianamente ou não, referências constantes às curas miraculosas realizadas pelo cirurgião de Berlim, e que seu nome, em breve, corria o mundo, como o de um dos grandes benfeitores da Humanidade.
Meia hora depois as portas da sala de cirurgia do Grande Hospital de Clínicas se reabriam e Paulo Fernando, ainda inerte, voltava, em uma carreta de rodas silenciosas, ao seu quarto de pensionista. As mãos brancas, postas ao longo do corpo, eram como as de um morto. O rosto e a cabeça envoltos em gaze, deixavam à mostra apenas o nariz afilado e a boca entreaberta.
E não tinha decorrido outra hora, e já o professor Platen se achava, de novo, a bordo, deixando a recomendação de que não fosse retirada a venda, que pusera no enfermo, antes de duas semanas.
Doze dias depois passava ele, de novo, pelo Rio, de regresso para a Europa. Visitou novamente o operado, e deu novas ordens aos enfermeiros. Paulo Fernando sentia-se bem.
Recebia visitas, palestrava com os amigos. Mas o resultado da operação só seria verificado três dias mais tarde, quando se retirasse a gaze. O santo estava tão seguro do seu prestígio que ia embora sem esperar pela verificação do milagre.
Chega, porém, o dia ansiosamente aguardado pelos médicos, mais do que pelo doente. O
Hospital encheu-se de especialistas, mas a direção só permitiu, na sala em que se ia cortar a gaze, a presença dos assistentes do enfermo. Os outros ficaram fora, no salão, para ver o doente, depois da cura.
Pelo braço de dois assistentes, Paulo Fernando atravessou o salão. Daqui e dali, vinham-lhe parabéns antecipados, apertos de mão vigorosos, que ele agradecia com um sorriso sem endereço. Até que a porta se fechou, e o doente, sentado em uma cadeira, escutou o estalido da tesoura, cortando a gaze que lhe envolvia o rosto.
Duas, três voltas são desfeitas. A emoção é funda, e o silêncio completo, como o de um túmulo. O último pedaço de gaze rola no balde. O médico tem as mãos trêmulas. Paulo Fernando, imóvel, espera a sentença final do Destino.
- Abra os olhos! - diz o doutor.
O operado, olhos abertos, olha em torno. Olha e, em silêncio, muito pálido, vai se pondo de pé. A pupila entra em contacto com a luz, e ele enxerga, distingue, vê. Mas é espantoso o que vê. Vê, em redor, criaturas humanas. Mas essas criaturas não têm vestimentas, não têm carne; são esqueletos apenas; são ossos que se movem, tíbias que andam, caveiras que abrem e fecham as mandíbulas! Os seus olhos comem a carne dos vivos. A sua retina, como os raios-X, atravessa o corpo humano e só se detém na ossatura dos que a cercam, e diante das cousas inanimadas! O médico, à sua frente, é um esqueleto que tem uma tesoura na mão! Outros esqueletos andam, giram, afastam-se, aproximam-se, como um bailado macabro!
De pé, os olhos escancarados, a boca aberta e muda, os braços levantados numa atitude de pavor, e de pasmo, Paulo Fernando corre na direção da porta, que adivinha mais do que vê, e abre-a. E o que enxerga, na multidão de médicos e de amigos que o aguardam lá fora, é um turbilhão de espectros, de esqueletos que marcham e agitam os dentes, como se tivessem aberto um ossuário cujos mortos quisessem sair. Solta um grito e recua. Recua, lento, de costa, o espanto estampado na face. Os esqueletos marcham para ele, tentando segurá-lo.
- Afastem-se ! Afastem-se - intima, num urro que faz estremecer a sala toda.
E, metendo as unhas no rosto, afunda-as nas órbitas, e arranca, num movimento de desespero, os dois glóbulos ensangüentados, e tomba escabujando no solo, esmagando nas mãos aqueles olhos que comiam carne, e que, devorando macabramente a carne aos vivos, transformavam a vida humana, em torno, em um sinistro baile de esqueletos...
Humberto de Campos O JURAMENTO
- Nunca mais, meu prezado senhor, tive tranqüilidade na minha vida; e vinte séculos que viva, vinte existências que tenha na terra, serão para pagar com o remorso de cada dia, ou, antes, de cada noite, o horror daquela vingança!
~ "Cap Finisterre" havia deixado, na véspera, o porto do Havre, quando travamos relações, eu e aquele cavalheiro, no "bar" do navio. Era um homem velho, magro, de grande ossatura, tipo de Quixote dos Pampas, a que não faltava, sequer, a barbicha comprida e rala, suja como a dos bodes. Não obstante os meses passados no clima suave da Europa, a sua pele conservava aquela tonalidade escura e áspera das feias do vento e do sol. Os olhos, miúdos, vivos, desconfiados, escondiam-se órbitas fundas, sob as sobrancelhas pesadas, como duas onças em duas furnas, mascaradas de erva grosseira. Chamava-se Ramon Gonzalez y Gonzalez, e era, dizia ele, industrial à margem do rio Bermejo, no extremo norte da Argentina.
Possuía, ali, serrarias de madeira, além de algumas fazendas de gado, no sul, onde vivia ultimamente, em luta, sempre, com a natureza bravia.
- O caso, porém, que me atormenta a vida, meu caro senhor, ocorreu no norte, há trinta anos.
Eu tinha, então, quarenta.
A noite estava linda, como, em geral, as noites de estio, ao largo da costa francesa, à entrada do Atlântico. Uma lasca de lua, fina e loura, tomava posse do céu, em nome de Maomé, dando-lhe, com as suas estrelas, a feição de grande pavilhão turco. De baixo, do bojo do navio, subia o ronco fatigado das máquinas, no esforço esclerótico das caldeiras. E, de quando em quando, o ruído fresco de uma vaga arrebentada no costado de ferro, e caindo de novo, em forma de chuva grossa, sobre as espumas de outra onda nascida para morrer.
- Foi em Corrientes que eu a conheci, - começou o ancião, enquanto virava o seu terceiro "whisky and soda". - Filha de um velho amigo meu, era quase menina, quando a vi, na visita que fiz ao pai, meu antigo companheiro de colégio. E, ao regressar a Concepción dei Bermejo, onde ficavam as minhas propriedades, levava-a nos olhos, na alma, no coração.
Chamava-se Consuelo, era cândida e fugitiva como as espumas deste oceano que rebenta lá fora. Tamanha foi, em suma, a impressão que me deixou, que, um mês depois, eu regressava a Corrientes, para pedir-lhe a mão, em casamento.
- Casou...
- Não; não casei. Consuelo não quis, e o pai, vendo-a vinte e quatro anos mais moça do que eu - ela andava pelos dezesseis - não a contrariou. Conformei-me com isso, mas pedi-lhes que se conservassem meus amigos; que me não esquecessem; que me olhassem como um parente; que me fossem, enfim, visitar em Concepción, para que não ficasse, de tudo aquilo, o menor ressentimento. Dentro em mim, porém, rugia o jaguar do egoísmo, o despeito do leão velho, que não pudera devorar, como sonhara, a corça tenra que vira na campina.
Aquele coração havia de, um dia, pertencer-me. Era o meu juramento de morte.
Bateu na mesa, com a sua grande mão de esqueleto, e pediu:
- Garçon, outro "whisky"
Limpou a boca com as costas das mãos, como quem está habituado a beber nas tavernas ou no campo, às pressas, sobre o dorso de um cavalo. E reatou:
- No fim do ano, em Dezembro, foram a Concepción, visitar-me, o pai e a filha. Cerquei-os de gentilezas, de festas, de carinho. Fazíamos passeios longos, os três. E foi em um destes que se deu a desgraça.
- A desgraça?
- Sim, senhor. Tínhamos planejado uma visita ao alto Soledade, onde eu havia adquirido uma grande extensão de terras, para extração de madeiras. O senhor não conhece o alto Bermejo... Conhece? Era floresta virgem, soturna, impenetrada. Desembarcamos em Guahija, pequeno porto para exportação de lenha, e entramos pela mata, viajando a manhã toda. O
senhor não imagina o que são aquelas matas! Eu tenho a impressão de que as selvas do seu Amazonas são assim. Árvores que dois homens não abarcam, cerram fileiras, uma ao lado da outra, numa extensão de centenas de quilômetros. E lá em cima, sobre esses milagres de colunas poderosas, é o toldo verde e fechado, que não deixa passar gota de chuva e que o sol só atravessa, ao meio-dia, em forma de claridade... E começava a entardecer, quando fomos assaltados pelos índios xurupinás, que são os mais terríveis toda a região.
- E então?
- Então, foi o infortúnio. Presos, manietados com cipós, fomos conduzidos ao acampamento dos indígenas, sete léguas diante, mato a dentro... E como me recordo, ainda, dessa travessia pela floresta, tarde toda, e depois, noite fechada! Olhos arregalados de terror, os pulsos arroxeados pelos cipós, Consuelo não tinha uma lágrima, e caminhava mais arrastada do que pelos seus próprios pés. Os cabelos, os seus lindos cabelos negros e fartos, libertos da opressão do chapéu de feltro, rolavam-lhe pelos ombros, pelo colo, pela testa, cobrindolhe, às vezes, o rosto todo.
E abrindo um parêntese na narração:
- O senhor já viu coisa que mais excite um homem, despertando-lhe toda a bestialidade, do que o corpo da mulher martirizada? Semi-nua, com os lindos seios morenos pulando quase da camisa esfarrapada, o colo arranhado, o rosto porejando sangue, pelo esforço físico e pelo pudor, Consuelo acordava-me na alma de namorado sem esperança um pensamento diabólico. Eu marchava para a morte, mas marchava calmo, resignado, feliz. Talvez não trocasse, naquele momento, aquele caminho, recoberto de espinhos dilacerantes, pelo mais florido da terra!
Outra incidência:
- Porque, o senhor sabe, acaso, o que é amar uma criatura, sabendo que nunca a possuirá?
Já imaginou, porventura, o que é ver, saber, conhecer que a mulher que se ama, que se adora, e que nos despreza, vai cair nos braços de outro homem, dando a outrem, com o seu beijo, com a flor do seu corpo moço, a felicidade que sonhamos para nós? Se sabe, se imagina isso, pode compreender a minha serenidade, ao ver na iminência de ser destruída, sem crime da minha parte, e para sempre, a taça em que eu pretendia beber... Consuelo não seria minha, não me daria o seu beijo, o seu corpo, mas também, não pertenceria, nunca mais, a ninguém...
Mergulhou as mãos, nervosamente, nos magros cabelos grisalhos, arrepiados no crânio, como penas da crista de um pavão, e reatou:
- Antropófagos, os xurupinás devoraram, nesse mesmo dia, os dois homens da condução. No dia seguinte, pela manhã, comeram o meu amigo. Restávamos eu e Consuelo.
Uma pausa, e tornou:
- A mim, eu sabia que me não devorariam tão cedo. Eu estava abatido, cadavérico. A paixão vinha-me devorando, há meses, secretamente, como o fogo ao algodão. Estava quase ossificado. E eu sabia que o índio não come, nunca, a presa nessas condições. Prefere engordá-la, cevá-la, tratando-a durante semanas, durante um ano inteiro.
- E a moça?
- Consuelo era linda e forte. Vi quando a mataram, com uma pancada vigorosa no crânio...
Como são feios os miolos, aparecendo, ensangüentados, entre a pasta dos cabelos!... Vi quando um dos seus seios, tão redondo, tão rígido, tombado do jirau, rolou na areia do chão, onde um velho cachorro o tomou nos dentes, indo devorá-lo escondido... Vi quando a esquartejaram, quando a retalharam, quando a distribuíram, em pedaços sangrentos.
Impassível, como num sonho, eu via tudo. E Só despertei do meu pasmo, quando um dos índios, o chefe, que tostava o seu pedaço na fogueira fumarenta de gordura, me veio perguntar, em um gesto, que pedaço eu queria. Olhei as postas de carne fria, sobre as quais as moscas zumbiam, com fúria: a mão miúda, de dedos contraídos, em um dos quais estava, ainda, um anel que eu lhe dera; um dos pés, meio devorado e com as cartilagens penduradas; as entranhas, a cabeça quase esfacelada, pendurada a um esteio pelos cabelos;
a sua perna; a sua coxa; um dos seus braços, o mais lindo que eu tenho visto... Indiquei um pedaço de carne roxa, que aparecia, repugnante, entre as vísceras, o qual me foi trazido, e que eu comecei, também, a devorar.
Estremeceu todo, e concluiu, enquanto um arrepio de horror me sacudia:
- Era o coração. Havia cumprido o meu juramento...
E batendo, com força, na mesa:
- "Garçon", outro duplo!
Humberto de Campos RETIRANTES
Os últimos habitantes da vila deviam abandoná-la naquela noite. Desde que, com a continuação das ventanias doidas após o dia de São José, se perdera a esperança de inverno, os lavradores, deixando os roçados e a casa, haviam iniciado a descida para o litoral.
Pelas várzeas combustas, onde a lama rachara ao sol, partindo-se em escamas escuras como a carapaça de uma tartaruga monstruosa, branqueavam, aqui ali, os esqueletos do gado morto de sede e fome. Não se ouvia o pipilo de um pássaro ou o rumorejo de uma fronde. Apenas, de e em longe, quebrando a monotonia da solidão, um cardo abria as folhas sobre uma pedra, estendendo as mãos espinhentas e verdes, como se amaldiçoasse, mudo, as radículas que o acorrentavam. E nas caatingas mortas, o vento a investir contra os galhos secos, contra as flechas negras em que se haviam transformado os arbustos sem vida, como se, reconhecendo a sua culpa na extensão da calamidade, quisesse castigar-se, chicotear-se, flagelar-se com ele. E castigando-se, chicoteando-se, flagelando-se, corria, gemia, gania, levantando redemoinhos de poeira com os seus furiosos pés invisíveis.
Enferma em casa, nos arrabaldes da vila, a velha Raimunda acompanhava sem surpresa nem revolta a marcha da Inimiga. Vira morrer no terreiro, estorcendo-se, o genro, como assistira à agonia do marido, vinte anos antes, na seca de 88. Dias depois, morreu-lhe também a filha. Homens piedosos levaram os dois corpos ao cemitério, deixando-a sozinha na choça, estirada, com febre, sobre uma suja esteira de carnaúba.
À tarde, quando procurava raízes selvagens para comer, soubera, por umas mulheres retirantes, que a vila estava quase deserta. Os moradores mais resistentes e teimosos preparavam-se para fugir naquela noite, à primeira claridade da lua. Se ela não os acompanhasse na fuga, seria, em breve, magra e velha, o último pasto dos urubus esfomeados.
Como lhe seria possível, porém, fugir, se não existia na palhoça um único pedaço de pano com que velasse a nudez? Como poderia aliar-se à caravana dos últimos fugitivos se vivia, há duas semanas, sem um molambo sequer, sobre a pele engelhada? Que amigos lhe suportariam a companhia incômoda se ela os envergonharia pelas estradas com o triste espetáculo da sua miséria?
Um pensamento macabro iluminou-lhe, num clarão de relâmpago, o espírito brutalizado pela fome. Cadavérica e horrenda, com as falripas da cabeleira falha a tombar, grisalhas, sobre os ombros e as espáduas, onde os ossos furavam a pele suja, a velha encaminhou-se, cambaleando, para o casebre, levantou a custo a enxada de roça que pertencera ao genro, e tomou o caminho da várzea, onde os grilos trilavam aflitamente, anunciando a eclosão aérea das estrelas.
Anoitecia, quando a velha, afastando com esforço duas estacas da cerca, penetrou no cemitério. Olhou em torno, com os olhos em febre. Aves agoureiras, espantadas, fugiram num vôo rasteiro. No Cruzeiro tosco, emergindo de um tumulto de montes de areia recentes, e de cruzes apressadas e rústicas, gargarejavam o seu canto noturno, saudando a treva, precursora silenciosa da Morte.
Um frio súbito percorreu o corpo da megera, arrepiando-lhe os cabelos, que o suor empastava. Tomou, porém, da enxada, e parou, corajosa, diante de uma das sepulturas mais frescas, junto à porta da casa dos mortos. E pôs-se a cavar com fúria, num apelo desesperado às forças que lhe restavam. Ao balanço do seu corpo esguio, impelindo a enxada, os seios flácidos e compridos fustigavam-lhe as costelas e o ventre magro, oscilando, doidos, à semelhança de dois badalos sem eco de uma velha torre desmoronada. Os pés enfiavam-se pela areia frouxa, que o sol amornara. Os braços agitavam-se-lhe descompassados, secos, sem ritmo, precipitando os movimentos, num trabalho mecânico e diabólico.
De repente, a enxada, soou, surda. Um cheiro de carniça desprendeu-se da terra, subiu, empestou o ambiente. A virago abaixou-se sobre a cova rasa, e puxou para cima, a custo, o leve cadáver que ali dormia. A noite havia caído, trevosa e lúgubre, impedindo que ela reconhecesse o defunto. Viu, apenas, que era corpo de mulher. Com os dedos trêmulos, percorreu-lhe, tateando, a cintura frágil, encharcada de uma umidade repugnante, desapertou-lhe a saia, que lhe puxou pelos pés, desabotoou-lhe o casaco frouxo, arrancou-o em dois safanões, e, amassando as duas peças de roupa, sem olhar para trás, passou, de novo, a cerca, e saiu, nua e suja de terra, a correr desesperadamente para a várzea, rumo da estrada por onde desciam, dia e noite, as levas de retirantes.
Fatigada, tropeçou no esqueleto de uma alimária, e rolou por terra, a pequena distância do caminho. Desfaleceu. Quando recuperou os sentidos, por milagre das suas energias de ferro, era dia alto. Sentou-se na terra frouxa, e quente. Olhou em torno. E, os olhos fora das órbitas, escancarou a boca num grito que não teve forças para emitir.
Ao seu lado, amarfanhados e fétidos, estavam embolados, em trouxa, a saia e o casaco da filha...
Humberto de Campos VINGANÇA
Quando o caboclo Amâncio tomou por arrendamento as últimas quatro estradas de seringueiras do major Nataniel, Francisco das Chagas, cearense chegado há três anos do Canindé, já se achava estabelecido nas quatro outras que lhe ficavam vizinhas, e que faziam parte, todas, do seringal "Bom Sucesso". As madeiras que ele ia sangrar haviam descansado dois cortes e deviam dar bastante leite naquele verão. Essa vantagem ia custar-lhe, todavia, duplo trabalho inicial, com a limpa dos vãos obstruídos pela vegetação, e com a construção de outra barraca, por haver tombado, já, transformando-se em um monte de palha podre, aquela em que vivera o seu antecessor. Levantá-la-ia, entretanto, no mesmo lugar, para aproveitar o porto e os pés de cará, tornados selvagens pelo abandono. Dois dias de foice, desbastando os arbustos novos, poupar-lhe-iam quatro semanas de machado.
Ao fim de uma quinzena, quando as chuvas deixaram de fustigar a floresta, e o rio começou a baixar, estava o Amâncio na sua barraca de bossú a paxiuba, cujas paredes e cobertura de palha nova, a transformavam, quando batida de sol, em uma caixa de ouro, arrepiada de arabescos bizarros. Amarrada à frondosa e torta gameleira do porto, a "montaria" dançava ao sabor da correnteza e do vento, afrouxando e esticando a corda. E na barraca, ou no terreiro, a Mariana, cantarolando ininteligivelmente o dia todo, e a encher com a sedução bárbara do sexo aquele verde palmo do Deserto.
A mudança, do seringal "Maranguape" para o "Bom Sucesso", a que se abalançara o Amâncio, fora involuntariamente causada pela rapariga. Legitimamente casada, por um padre em desobriga, com o velho índio Martinho, ficara, quando este morreu, em mãos do mulato Isidoro, que assumira perante o coronel Dondon, proprietário das estradas que o índio ocupava, a responsabilidade da dívida do defunto. Quando o mulato foi assassinado pelo preto Leôncio, o coronel Dondon recolheu a rapariga ao barracão, como garantia da conta do finado. E como ele, Amâncio, possuía saldo na casa, ficou com a Mariana, e, para evitar a continuação das relações estabelecidas entre ela e o coronel, encerrou as suas transações com este, e mudou de patrão, levando a cabocla.
Mariana não era, positivamente, nem bonita, nem moça. Índia de raça pura, era gorda, e baixa, com a mesma largura nos ombros e nos quadris, e devia andar pelos quarenta anos. O
rosto redondo, sombreado e gorduroso, apresentava uma testa estreita, coroada de cabelos lisos e luzidios, que lhe desciam até à cintura. Tinha nariz chato, e olhos pequenos e negros, ligeiramente convergentes. A boca de tamanho regular e lábios finos, deixava em exposição, quando ria, as gengivas arroxeadas, em cuja orla corria uma fieira de dentes pontiagudos, cortados em bico de serra. Vestia, quase sempre, por gosto hereditário, saia e casaco de chita vermelha, os quais, anunciando-a de longe, davam a impressão de uma guará de penas rubras, pousando na proa das "montarias" ou pescando à beira do rio. Não tinha beleza nem graça. Mas era mulher, naquelas regiões em que há uma para dois mil homens, e, só por isso, era desejada, e por ser desejada, vivia contente, exprimindo o seu contentamento em melopéias, cujas palavras só ela entendia.
Achava-se o Amâncio instalado, já, há uma semana, na sua barraca nova, quando, uma tarde, o Chagas passou pelo seu porto, remando sozinho. A Mariana estava à margem do rio, de cócoras, lavando roupa, e, como de costume, cantarolando para si mesma. A saia, arregaçada até os joelhos, deixava à mostra as pernas morenas e grossas, iguais e sólidas como dois toros de madeira cortados no mesmo tronco. Ao defrontar o porto, levou o cearense a mão ao chapéu de carnaúba, em sinal de respeito. A cabocla respondeu ao cumprimento, e continuou a esfregar a roupa, mas sem olhar para o sabão. O jacumã do seringueiro roncou forte, rasgando a água. E quando a "montaria" do Chagas desapareceu na curva do rio, em que as margens eram dois muros de vegetação compacta, Mariana ainda esfregava o mesmo punho de camisa. Os seus olhos tortos acompanhavam o remador como dois novelos de linha preta cujas pontas se achassem amarradas à popa da embarcação, a qual, na sua marcha, os fosse pouco a pouco desenrolando.
Nessa tarde, até à noite, Mariana não cantarolou mais. No dia seguinte, porém, ao entardecer, passou a cantar alto, sentiu-se mais contente do que dantes. Soturno e desconfiado, o Amâncio, em quem não haviam desaparecido ainda a agudeza e perspicácia do selvagem primitivo, não custou a adivinhar o que se passava nas horas em que se achava ausente. Rara era a tarde em que não descobria, na ribanceira do porto, marca de uma proa de "montaria". E rara, também, a em que não encontrava a chaleira quente, com os vestígios de que, pouco antes da sua chegada, se tinha feito café. E se os olhos não lhe dissessem essas cousas, a alma lhe teria dito outras equivalentes, pois que, ao chegar à barraca, não encontrava mais as mesmas carícias gulosas, os mesmos abraços vibrantes de animalidade.
Antes de descobrir os passos do Chagas na areia molhada do seu porto, ou a terra frouxa do seu terreiro, já o caboclo os havia adivinhado no coração de Mariana. O coração das mulheres que amam em segredo e pecado é como os troncos que têm abelhas: basta que alguém lhes chegue o ouvido para escutar a zoada lá dentro.
Dias depois dessa descoberta, o Amâncio começou a aproximar-se, com boas maneiras, do Francisco das Chagas. Ao encontrá-lo no rio, parava de remar, detinha a marcha da "montaria" e, cofiando no queixo a barbicha escura e rala, punha-se a conversar sobre o tempo, sobre o rendimento das seringueiras, ou sobre a queda crescente do preço da borracha no barracão, dando sinais inequívocos de que lhe era agradável a sua camaradagem. Convidado por mais de uma vez, o cearense começou a freqüentar a barraca do Amâncio, com a presença deste, que se mostrava sempre comunicativo e obsequioso, servindo-lhe, conforme a demora, uma xícara de café ou um gole de aguardente. Até que, um dia, ficou combinada entre os dois aquela "espera" aos veados no igarapé dos Mutuns.
- Você vem mesmo, homem de Deus? - indagou o caboclo, como quem duvida.
- Venho, "seu" compadre; eu já não disse? Só se Deus Noss'enhor e São Francisco das Chagas do Canindé não quiserem.
E tocou no chapéu, num sinal de devoção.
Ao entardecer do dia aprazado, armado cada um com o seu rifle e levando a tiracolo a corda com que deviam trazer a caça graúda, meteram-se ambos na "montaria" Chagas e penetraram, meia légua rio acima, no estreito caminho dágua, remando com lentidão. A
floresta começava a mergulhar na noite, e parecia em êxtase para esse mistério. A quietação era absoluta. Ouvia-se o estalar dos ramos secos, a queda dos açaís maduros no espelho dágua, e o ruído dos jacumãs, ferindo a superfície lisa do igarapé. Há uma hora de transição, na selva, em que os animais do dia já se recolheram e em que os da noite ainda não estão acordados. Hora de trégua; hora de armistício dos seres e das coisas selvagens. E era essa hora que soava no relógio imenso da Natureza quando o Chagas e o Amâncio encalharam a "montaria" numa sapopemba, e percorreram os cem metros que os separavam da árvore em cuja fronde se deviam esconder, à espera dos veados que aí vinham comer as frutas miúdas caídas durante o dia. Só um pouco mais tarde, com o aparecimento da primeira estrela, os sapos romperam com a sua orquestra, enchendo a noite de milhões de vozes confusas, como se todos os troncos, todos os galhos, todas as raízes, todas as folhas, se transformassem de súbito em bárbaros instrumentos musicais.
Vencendo a vegetação rasteira e luxuriante das terras baixas e quase alagadas, chegaram os caçadores a um lugar mais alto, onde um bacurizeiro erguia a fronde elegante no meio de outras árvores de porte menor, cujo fruto era particularmente procurado pelos veados da região. Subiram, o Amâncio primeiro, o Chagas em seguida. Escolheram, para refúgio, um galho alto e sólido, aberto em forquilha e afogado em folhagem densa, de outra árvore que invadia com as suas ramagens a sombra do bacurizeiro. E a escuridão envolveu tudo, aumentando os rumores circunstantes.
Escachados no galho escolhido, os dois caçadores trocavam apenas uma ou outra palavra.
Sentia-se, porém, que um e outro estendiam por longe os fios do próprio pensamento, à semelhança de cigarras que lançassem o canto através do espaço, levando-o a distâncias que desconhecem. E o pensamento do nordestino errava, às vezes, tão distante dali, que ele nem se apercebia do movimento leve das mãos do companheiro, o qual acabava de amarrar uma das pontas da sua corda ao galho da árvore, e começava a experimentar, entre as folhas, um laço corredio e seguro, que havia na outra extremidade.
Noite alta, já, escutaram, os dois, o urro de uma onça, do lado oposto ao igarapé. E logo duas brasas esverdeadas se acenderam na treva. Duas outras fulgiram, pouco atrás. E a selva como que se calou apavorada, com a presença dos felinos sanguinários e hostis.
Aproveitando a atenção com que o companheiro perscrutava a escuridão ameaçadora, o Amâncio aproximou-se dele e, docente, passou-lhe por um dos pés, apertando-o de leve, o laço que havia feito na corda. De súbito, reunindo toda a sua força nos braços, o caboclo levou as mãos ambas aos peitos do cearense, lançando-o fora do galho. Um berro de surpresa e de dor alarmou a solidão, a corda esticou num estalo, o bacurizeiro estremeceu sacudido, e um corpo ficou bailando no ar, no escuro, a pouco mais de dois metros acima do solo. Ao grito apavorado e apavorante do homem, as onças fugiram, espantadas, em saltos elásticos, entre o estrépito seco de galhos e cipós rebentados na passagem.
- Ai!... Ai!... Ai!... Amâncio... Pelo amor de Deus... me salve!... Ai!... ai!... Amâncio, por que você fez isso?... Que é que eu lhe fiz, Amâncio .... Ai, meu São Francisco do Canindé!...
Quieto, o caboclo conservou-se calado. Os dois rifles, que se achavam entre a folhagem, estavam nas suas mãos. Podia descer, e ir-se embora; a sua vingança ainda não estava, entretanto, terminada. O Chagas soltou alguns gritos estrangulados, pedindo socorro.
Compreendendo, porém, a inutilidade desse esforço naquela solidão em que o homem era a mais estranha das sombras, voltou a gemer, espaçadamente. Estava de cabeça para baixo e, com o deslocamento da perna, impossibilitado de alcançar a corda com as mãos, para salvarse. E gemia há mais de uma hora quando luziram, de novo, a treva, os olhos da onça. Chagas gritou, para afugentá-la; mas a ameaça, em vez de amedrontar, incentivou o felino, que marchou, agachando-se, na direção do bacurizeiro. Outras onças urraram perto. Seis, oito, dez olhos verdes luziram na escuridão. De súbito, a primeira onça deu um salto, alcançando com os dentes e com uma das patas o corpo do seringueiro. Um grito de terror e de angústia espalhou-se pela mata. Mas as feras não fugiram. Pelo contrário, acorreram em bando, como se tivessem adivinhado, pela voz estrangulada da vítima, que ela estava sem defesa. E foi horrível, então, o que Amâncio presenciou, ou, antes. percebeu, imóvel, do seu esconderijo.
As ouças, em saltos enormes, disputavam-se os pedaços da carne do Chagas. Numa dança de corpos que se chocavam no ar, e de urros de raiva, estraçalhavam elas, no espaço, os membros do seringueiro. O galho em que se achava o Amâncio era sacudido, abalado pelas feras, quando estas alcançavam a corda, nos seus saltos rápidos e seguros, que se cruzavam na sombra. Segurando-se para não cair, o caboclo ouvia a queda do sangue na terra, como de um pote pequeno cuja água se derrama. Em certo momento, a corda parou de esticar, e o galho de ser agitado pelos felinos. Arrastando membros inteiros para as moitas próximas, as onças devoravam, rosnando, os pedaços que haviam arrebatado umas às outras. O Amâncio ouvia, perfeitamente, o roer dos ossos. Ao fim de algumas horas, os sapos deixaram de coaxar. As onças, satisfeitas, afastaram-se, para beber e dormir. A selva aquietava-se, como se lhe passassem a mão pelo imenso dorso verde, numa grande carícia voluptuosa. Uma claridade tênue varou as folhas. Pipilou o primeiro pássaro. Outros responderam. Com os dois rifles a tiracolo o Amâncio desceu do bacurizeiro. Ao chegar em baixo, olhou a corda.
Da extremidade desta, preso pelo tornozelo, pendia, sangrento e sujo, esfiapando as cartilagens, o pé esquerdo do Chagas, cuja roupa, reduzida a farrapos estraçalhados e sangrentos, jazia espalhada em torno, entre folhas machucadas e empapadas de sangue, de mistura com fragmentos de carne e pedaços de ossos roídos.
Humberto de Campos JESUS
A casa de José, o carpinteiro, em Nazaré, ficava à margem do caminho que leva a Tiberíades. Pequena e humilde, mais humilde parecia, ainda, pela ancianidade, e por não ser possível ao dono reconstruí-la. Edificada por Jacó, primogênito de Matran, tornara-se, por morte deste, propriedade do esposo de Maria, filha de Ana, da casa de Davi. E como o carpinteiro já se encontrasse velho e alquebrado de forças, ia deixando que o casebre se desmoronasse, açoitado pelos grandes ventos que sopravam no verão, das bandas do golfo de Caifa, e no inverno, da alta cordilheira que orna o país de Sichen. Sem cercas que a defendessem, era a casa rodeada de limoeiros, que embalsamavam o ar, e que a afogavam, com a suas frondes de um verde escuro, como punhados de mangericão em torno de uma rosa fanada.
Era à sombra de um desses limoeiros José trabalhava, quando fazia bom tempo, manejando, trêmulo, o seu serrote e a plaina primitiva. E era sob a copa de todos os outros que brincavam, a manhã toda, e a tarde inteira, as crianças das casas vizinhas. Atraídas para ali pela frescura do local, vinham elas, isoladamente, ou duas a duas, ou três a três, com o seu perfil judaico, os olhos muito vivos e chegados um ao outro, para as correrias habituais.
Trazia-as, muitas vezes, João, filho de Zacarias, antigo sacerdote do Templo, em Jerusalém.
O senhor, entre elas, da casa e dos limoeiros, era, porém, Jesus, filho do carpinteiro, mais moço do que João quase um ano, e que era ainda seu parente, pois que Maria, esposa de José, e Isabel, esposa do velho sacerdote, eram primas e, apesar da diferença de idade, amigas e confidentes.
As duas famílias, a de Zacarias como a do carpinteiro, traziam no espírito, constantemente, duas preocupações. Segundo a palavra dos Profetas, o povo de Israel teria de cair sob o jugo do estrangeiro, do qual o livraria, no entanto, um grande Rei, que viria disfarçadamente à terra, com o sangue de Davi. A primeira parte das profecias estava cumprida. Os sucessores dos Macabeus haviam ateado a guerra civil na Judéia, e invocado, em certo momento, o auxílio dos romanos, que tinham escolhido entre eles um rei, de nome Herodes, o qual reinava em Jerusalém. E a outra, a mais grave e difícil, parecia, agora, em via de realização.
Efetivamente, nove anos antes, achando-se Zacarias sozinho no Templo, em Jerusalém, incensando o altar, Ouvira um ruído, que lhe parecera o de um grande pássaro em vôo.
Volvera, lento, o rosto, e estacara, surpreso. Diante dele, vestido de uma túnica diáfana, e que parecia feita com o fumo do turíbulo, estava um mancebo de fisionomia resplandecente, de cujas espáduas saíam grandes asas, e que lhe dissera, em palavras sem mistérios, que sua esposa, Isabel, lhe daria, dentro de alguns meses, um filho varão. Dissera isto, e desaparecera.
Suspeitando dos próprios olhos e dos próprios ouvidos, duvidava o sacerdote do próprio entendimento. Se a espôsa, na mocidade, não lhe dera um filho, como lho daria, agora, quando os dois, ele e ela, já se sentiam velhos? Que fazer, pois, naquela emergência? Narrar o sucedido? Contar à mulher, e aos íntimos, a ocorrência do Templo? Melhor seria, talvez, não pecar pela palavra, quem já pecava, incrédulo, pelo pensamento. E desse dia em diante, aguardando os acontecimentos de cada hora, os seus lábios se selaram para o mundo, enquanto a sua alma se descerrava, inteira, para os olhos de Deus.
Semanas depois, o mesmo Enviado aparecia, belo e fulgurante, na casa do carpinteiro, em Nazaré. Levava àquele outro lar uma notícia idêntica. Maria, esposa de José, seria mãe. e o seu filho, neto de Reis, seria o Rei da Judéia.
De acordo com o anunciado, Isabel tivera, em verdade, um filho, que tomou o nome de João.
E Maria concebera outro, que era, agora, essa triste criança, de seis anos, sob cujos olhos, de uma estranha doçura, as outras vinham, de longe, brincar à sombra cheirosa dos limoeiros.
Desde o nascimento do menino, em Belém, quando iam àquela cidade para serem recenseados por ordem de Augusto, o carpinteiro e a esposa se haviam convencido dos altos destinos do filho. Daquele infante dependia, desde aquela hora, a sorte do Povo de Deus. Daí os cuidados de que o rodeavam, a cautela com que o vigiavam dia e noite, o susto com que acompanhavam as suas menores enfermidades. Naquele pequenito moreno, de olhos claros e fisionomia meiga, estava, não apenas o filho único, mas o Rei; não unicamente o rebento miraculoso de um casal que ia desaparecendo sem prole, mas o Salvador de uma raça, prometido pelas profecias do fundo remoto dos séculos.
Jesus havia nascido, entretanto, tão alegre como os outros meninos de Nazaré. Ao se lhe enrijar o pequeno corpo, de linhas modelares e puras, procurara correr, como os outros, e, como os outros, subir às árvores, roubar o ninho aos pássaros, ou banhar-se no lago, quando a família ia a Genezaré ou a Tiberíades. Mal, porém, tentava ia dessas distrações infantis, a mãe acorria aflita, ou acorria o pai, preocupado, detendo-lhe o gesto ou o desejo. E essa diferença de tratamento acordava-lhe dúvidas no espírito e no coração. Por que, sendo o mundo tão vasto, e a vida tão boa, só lhe não cabia, a ele, a alegria de ser livre como as crianças? Aquelas ondas cariciosas do lago, e aqueles ninhos de rouxinol dos olivais, teriam sido feitos unicamente para Mateus, filho de Marta, para Barnabé, filho de Manassés, para Eleazer, filho de Josué, ou, mesmo, para João, seu primo, tão violento que só procurava brinquedos de guerra, em que sempre saía vencedor? Por que, ainda, a curiosidade de toda a gente, em torno da sua pessoa: o sorriso de zombaria de uns, ao apontá-lo de passagem, e o respeito comovido de outros, - alguns dos quais chegavam, até, a ajoelhar na poeira dos caminhos para beijar-lhe, chorando, a fímbria grosseira da túnica?
Sob os limoeiros copados, cujas ramas, aqui e ali, roçavam o chão, as crianças brincavam, correndo em algazarra, simulando combates de judeus e romanos. Por cima das ramagens, o céu era todo azul e ouro, e uma brisa fresca soprava, como uma carícia, das bandas do lago.
Balouçado por ela, o limoal escrevia em hebraico, aqui e ali, no solo pedregoso, com letras de luz abertas na sombra, pequenos poemas misteriosos. Tudo era, em torno, festivo e jovial. As próprias aves, tontas de luz, cantavam mais alto.
Sentado junto ao muro limoso de um poço, Jesus, ele só, estava triste.
- Pai, - havia pedido, momentos antes, ao carpinteiro, - deixa-me brincar com os outros!
- Não, meu filho; não podes, - respondera, paternal, o ancião, passando a mão trêmula e rude pelos seus cabelos castanhos. - E se caísses, em uma dessas correrias, que seria de nós, e do teu Povo?
Aquelas palavras eram, para ele, um mistério. Que significavam elas? Que Povo era esse, que era seu, e que ele não conhecia?
Os seus olhos, doces, e mansos, encheram-se de sombra. Uma lágrima correu, lenta e límpida, parando aqui e ali, pela sua face morena, vindo deter-se ao canto da boca miúda, pondo, nela, um desagradável gosto de sal.
Jesus de Nazaré começava a sofrer, nesse dia, a tristeza de ter nascido Deus...
Humberto de Campos O POÇO DOS MARIDOS
Fernandina Sobreira havia sido, até os vinte e três anos, uma das moças mais requestadas e formosas dos salões do Rio de Janeiro. Muito clara, cabelos castanhos, olhos suavemente azuis, porte mediano, nenhuma a sobrepujava nas maneiras, na elegância, na distinção e, principalmente, na graça de um sinalzinho petulante, que lhe dava ao rosto, na face esquerda, o retoque de uma brejeirice encantadora. Aquele sinalzinho era, podia-se dizer, o ponto final da formosura. Ao escrever o poema da beleza feminina, Deus havia posto, ali, a última palavra do derradeiro capítulo.
Os anos foram-se, porém, sucedendo, uns aos outros, como gotas da mesma clepsidra; e o certo é que, aos vinte e oito, a moça não havia encontrado marido. Amigas mais feias, ou, antes, menos bonitas, iam, uma a uma, recebendo o seu noivo, constituindo o seu lar, multiplicando o seu sangue; e ela, somente ela, de tantas que eram, lá se deixara ficar na casa de seu pai, cercada de admiradores, atordoada de lisonja, mas sem ver um homem que a convidasse, leal e sincero, para a constituição legal de um ninho em comum. A Belita Simpson, que não tinha os seus olhos nem o seu sorriso, havia encontrado o Dr.
Mascarenhas, advogado estudioso e jovem, e lá andava pela Europa em passeio de núpcias, percorrendo as cidades, experimentando os climas, visitando os museus. A Alice Martins era, agora, mme. Lopes Taveira, arrastando pelo braço, nos salões e na Avenida, o grande médico seu marido. A Totinha casara com um deputado, e dava empregos, e a Tecla Meireles com um capitalista, e dava recepções. Só ela, que fora a mais graciosa, a mais elegante, a mais cobiçada, ali estava sozinha no seu leito de solteira, sentindo aproximar-se, após uma alvorada chilreante de pássaros, uma tarde triste, lúgubre, amortalhada em cinza e silêncio!
Onde andava com a sua matilha e com os seus pagens o seu Príncipe Encantado, que não vinha, rápido, alarmando a floresta com as buzinas de caça, ao encontro da sua Princesa Adormecida?
Sem irmãs nem irmãos, que lhe dessem o conforto de uns sobrinhos pequeninos, Fernandina sentia-se oprimir, afogar, asfixiar, pelo instinto maternal do coração. O pai, alquebrado, não podia mais conduzi-la, com tanta freqüência, como dantes, a festas, a passeios, a teatros.
Uma primeira ruga riscou-lhe a fronte lisa, partindo, como um fio telegráfico sem destino, o canto dos olhos. Combatida à força de loções, de ungüentos, de pomadas, multiplicou-se, dividiu-se, repartiu-se, abrindo novos caminhos para as lágrimas. E foi nessa idade, com o sol da mocidade em franco declínio, que Fernandina adormeceu e teve, uma noite, um sonho que a desiludiu.
Ao fechar os olhos, umedecidos em torno por uma loção que lhe haviam receitado, sentiu-se, de repente, transportada a uma grande campina, no fim da qual ressoavam harpas e citaras, que ela procurava e não via. Embevecida, olhava para o lado de onde lhe vinham aquelas vozes embaladoras, quando sentiu, de repente, que alguém lhe tocava no ombro. Voltou-se, assustada, e caiu de joelhos, gemendo:
- Minha madrinha! Minha madrinha! Amparai-me!
Ao seu lado, radiosa e doce, mal pisando a terra, sorria a imagem de Santa Rosa de Lima, sua madrinha e protetora, à qual havia rezado contritamente, aflitamente, antes de adormecer, pedindo a graça de um mando. Sorriso nos lábios, auréola à cabeça, mãos sobre o peito, a Santa Rosa fitava-a com ternura, quando, carinhosa, ordenou:
- Minha filha, vem...
E puseram-se a andar pela campina, uma ao lado da outra, mas tão leves, tão brandas, tão ligeiras, as duas, que nem pesavam sobre o relvedo orvalhado. Súbito, ouviram vozes. A
planície havia desaparecido e Fernandina estava, agora, diante de um grande poço, em torno do qual se aglomeravam, apertando-se, empurrando-se, disputando, dezenas, centenas, milhares de moças. Espremendo uma, afastando outra, a rapariga chegou à beira do abismo, e viu: de dentro, saía, vagarosa, uma corda, puxada por um sacerdote, na qual vinha amarrado, de sete em sete palmos um homem, que as mulheres, em cima, recebiam debaixo de gritaria.
- Que é isso? - indagou, tímida, Fernandina, a uma desconhecida que lhe ficara ao lado.
- Então você está aqui, e não sabe?
E como percebesse a sinceridade daquela pergunta:
- Isto, aqui, é o Poço dos Maridos, o lugar de onde eles vêm. Essas moças que aqui vê, estão esperando cada uma aquele que lhe é destinado.
- E a senhora já encontrou o seu? - indagou Fernandina, admirada.
A outra baixou os olhos, e confessou:
- Não, senhora. Estou aqui há doze anos. Felizmente, ainda não perdi a esperança...
A rapariga ia rir da sua vizinha quando os seus olhos descobriram, do outro lado do poço, várias fisionomias amigas, debruçadas, todas, para o fundo insondável do abismo. Eram a Belita Simpson, a Alice Martins, a Dorinha Tavares, a Abigail Queiroz, a Ninita, a Mana da Graça, a Lúcia, a Vidinha, a Tude, a Graziela... E à medida que a corda subia, puxada incessantemente pelo sacerdote, desgarrava-se dela um homem jovem, ou velho, feio, ou bonito, a cujo pescoço pulava logo um vulto feminino, que nunca o tinha visto, mas que o esperava ansiosamente à beira do poço. E assim viu ela sair o Dr. Mascarenhas, o Lopes Taveira, o comandante Maia Cunha, o Dr. Casemiro Alves, o tenente Alberto Wellington, em cujos braços se atiraram, logo, a Belita, a Alice, a Tecla, a Totinha, a Maria da Graça, que lá se iam, felizes, pela campina, com os seus maridos...
De repente, Fernandina sentiu uma agitação íntima, um susto, uma inquietação deliciosa, uma espécie de pressentimento. Uma vontade de fugir, de esquivar-se, agitou-lhe os nervos, mas os pés a detiveram, autoritários, no mesmo lugar. Alguma coisa de grave, de inesperado, ia, necessariamente, acontecer. E estava ela nessa angústia, nessa tortura, encantada, quando a Santa, sua madrinha, lhe apareceu, de novo, anunciando-lhe:
- Minha filha, olha para o fundo do poço. Teu noivo, o homem que te é destinado para marido, está para chegar. É o oitavo, depois deste, que saiu agora.
O ímpeto de Fernandina foi o de atirar-se à Santa, abraçando-a, apertando-a, cobrindo-a de beijos gulosos, de furiosa gratidão. Era preciso, porém, olhar para o fundo do poço, e receber com os olhos, de longe, o seu prometido; a ansiedade dominou-a, curvando-a sobre o abismo. Debruçada para dentro, contou os vultos que se divisavam agarrados à corda:
- Um... dois... três... quatro... cinco... seis... sete... oito...
Era aquele. De longe, na meia escuridão, não lhe podia divisar as feições nem avaliar a idade. O coração batia-lhe, inquieto, sôfrego, descompassado. Um suor frio corria-lhe por todo o corpo, numa vertigem. As pernas tremiam-lhe, mal sustentando o peso do busto, amparado ao muro do poço. A manivela continuava, porém, a rodar, manejada pelo padre, e a corda a subir, trazendo gente. Agora, faltavam apenas quatro. Ele era o quinto. Apesar da penumbra, Fernandina via-lhe, já, as feições. Era jovem, sim! Jovem e bonito. Na sua coqueteria instintiva a moça levou as duas mãos ao cabelo, afofando o penteado. Mais um movimento da manivela e a claridade exterior atingiu-o. Chicoteado pelo jato de luz o rapaz ergueu o rosto, e encontrando, em cima, os olhos dela, encarou-a, e sorriu. Fernandina quase desmaia, de gozo, de prazer, de ventura. Toda ela era alvíssaras de carne, alvíssaras de nervos, alvíssaras de coração Agora, ele era o segundo. Olhos nos olhos, embebidos um no outro, as suas mãos já se tocavam, quase. Fernandina sorria e chorava. Mais uma volta da manivela, e estaria ele nos seus braços. Esperava, como se fosse um século, a passagem desse grão de areia na ampulheta da eternidade, quando um grito reboou, alarmando a multidão.
- Fujam! Fujam! - avisou alguém.
A massa humana recuou, espavorida, deixando Fernandina, sozinha, à beira do poço.
- A corda vai partir-se! - bradou a mesma voz, com terror.
Atordoada, a moça, voltou-se, e viu. Um pouco acima da sua cabeça, no ponto que passava pelo carretel, o cabo desfiava-se, rápido, ameaçando romper-se. Soltando um grito, a rapariga estendeu as mãos, aflita, louca, desesperada, para o fundo do poço. Era, porém, tarde.
Rodopiando com o peso, o cabo se havia destorcido de repente, estalando num ruído seco, atirando, com um estrondo surdo, a sua carga humana no fundo do abismo!
Um grito de raiva, de angústia, de dor alucinante, alarmou, àquela hora da noite, a família Sobreira. Pessoas da casa acorreram, em trajes de dormir.
Curvada para fora do leito, os braços estendidos para o chão, o rosto lavado de lágrimas, Fernandina chorava nervosamente, aflitamente, agoniadamente, no seu primeiro ataque de histeria.
Humberto de Campos LADRÃO!...
A sala do júri da cidade provinciana enchera-se, desde o amanhecer, da melhor gente, não só do lugar, do perímetro urbano, como de todo o município e, ainda, dos municípios vizinhos. O
processo que naquele dia se ia julgar, era, talvez, o mais sensacional formado na comarca.
Tratava-se, na opinião geral, de um desses casos de degradação pela miséria ou pelo vício, da queda inesperada de um rapaz ainda novo, e dos mais considerados na sociedade local, da revelação, em suma, de um caráter baixo e depravado, que se disfarçara, até então, sob a roupagem do brio, da honra e das boas maneiras.
Amplo e simples, o salão do tribunal era uma grande peça com doze janelas, na ala direita do andar térreo e único da Câmara Municipal. Sobre um estrado, a mesa pesada e tradicional, para o juiz e os auxiliares. Em frente ao magistrado, o tosco banco dos réus. Ao lado, separado por uma grade convencional, os membros do conselho de sentença. Do lado oposto, a tribuna, pequeno púlpito de roça. E atrás, como no recinto de um cinema, os bancos para os espectadores, nos quais a multidão se comprimia, abanando-se com os leques, com os lenços, com os chapéus. Pintadas recentemente, as paredes eram brancas, de cal.
Nestas, uma nódoa única, e essa mesma, sagrada: a imagem do Crucificado, a cabeça pendente, os braços abertos e flácidos ao peso do corpo, como num conforto triste aos que fossem, como ele, vitimas da justiça dos homens.
Embrulhado na sua toga, o juiz apareceu, cercado pelo silêncio geral. Era um homem alto, seco, de tez tostada, bigode curto e grisalho. Houve um movimento de cadeiras. A campainha soou, como nos atos litúrgicos. E a uma ordem do magistrado, entrou o réu, entre dois soldados.
Abelardo Padilha Porto era acadêmico de medicina no Rio quando, com a morte do pai, teve de interromper os estudos e regressar precipitadamente à sua cidade natal. Os negócios do velho agricultor não tinham corrido bem, nos últimos tempos. Endividado, os credores, logo após a morte do devedor, haviam-se apossado da fazenda, da casa, do gado, das plantações.
E se ele, e a velha mãe, ainda viviam na propriedade, era apenas enquanto esta não era vendida, para rateio judiciário do produto. Era esta a sua situação de pobreza, e de vergonha iminente, quando se deu o crime, que espantara a cidade.
Entre os estabelecimentos mais movimentados da rua do Sal, estava o do português Antônio Rocha, constituído por uma casa de secos e molhados, cujo comércio diário subia a várias centenas de mil réis. A casa de negócio do gordo comerciante era, como em geral sucede no interior, o desdobramento, apenas, da sua casa de moradia. Com quatro portas de frente, três pertenciam ao armazém, e uma, apenas, à família, instalada nos fundos do prédio. A entrada para a casa de residência era, assim, independente; e feita por um corredor, comunicando-se, embora, a sala de jantar com o armazém, para o trânsito dos moradores.
Era aí, segregada do mundo, sem uma janela por onde olhasse a rua, que vivia, há dois anos, uma das moças mais bonitas da modesta cidade provinciana. Casada por necessidade, escondera no seu coração, ao entregar-se para sempre ao homem que era o seu marido, uma afeição que lhe nascera na infância, e que sabia correspondida. Por vários anos relutara, na esperança de uma longínqua felicidade. E quando não pudera mais, quando a velha mãe, já tuberculosa, lhe anunciou que não duraria muito na terra, foi que resolveu aceder ao pedido de casamento do vendeiro português, entregando-lhe o seu corpo e o seu destino sem, contudo, entregar-lhe a sua alma.
A chegada de Abelardo Padilha ao município, para liquidar os negócios paternos, havia abalado, fundo, o coração de Santinha Rocha. Amava-o como nos tempos de menina, e, se a sua virtude, a sua condição de mulher honesta, lhe não permitiam mais a realização de um sonho que alimentara desde criança, restava-lhe, pelo menos, o consolo de dar-lhe, na situação que atravessava, uma demonstração concreta, e pura, da sua amizade de irmã.
Possuía economias, feitas pouco a pouco, possuía jóias, que o marido lhe havia dado; e tudo aquilo seria dele, do homem a quem amara sempre, daquele que fora, na vida, a única esperança do seu destino irremediável. E se ela possuía meios, recursos sem aplicação, por que não o socorria, evitando-lhe uma vergonha, e, com a vergonha, a miséria, a fome, e, quem sabe? o suicídio aos olhos da pobre mãe entrevada? Urgia, pois, chamá-lo, falar com ele, socorrê-lo. Procurá-lo, não ser ia possível, pois que o marido não a deixava sair desacompanhada. O remédio, era, portanto, fazê-lo vir à sua casa, sem testemunhas, na noite em que Antônio estivesse ausente.
O processo era perigoso, mas era o único. Ademais, onde a estrada escura e coberta de espinhos que o Amor não ilumine e recubra de flores? E foi instado, solicitado, insistido, por dois, cinco, dez bilhetes de coração, que o Abelardo aquiescera em penetrar, naquela noite triste, na casa do comerciante.
Antônio da Rocha havia saído, já há meia hora, em visita a um amigo, quando o vulto do antigo estudante surgiu à esquina, à claridade medrosa do pequeno lampião solitário. Parou, olhou em torno, examinando a rua. Não havia ninguém. Cauteloso, mergulhou de novo na sombra, e caminhava cosido com a parede, quando, em frente, exatamente, à porta do Antônio da Rocha, ouviu o seu nome, num sussurro, que o fizera estremecer:
- Abelardo... Entra!...
E logo duas mãos esguias, geladas, que apertavam as suas no escuro, e que, posta a porta no trinco, pois que o marido havia levado a chave, o conduziam, amigas, para a sala de jantar.
Pondo o coração nas palavras, a moça contou-lhe, nervosa, os olhos cheios dágua, o motivo daquela temeridade. Que ele não fizesse mau juízo da sua virtude, da sua seriedade de mulher. Amava-o, sem dúvida; mas amava-o com saudade, não com esperança. Quem o havia chamado ali, não era a noiva, era a irmã, a companheira dos outros tempos. Queria-o de todo o coração. E não consentiria que ele, e principalmente sua mãe, tão idosa e tão santa, passassem pela vergonha de serem postos na rua, sem um abrigo ou um pedaço de pão.
- Não é uma esmola que te dou, Abelardo; é um empréstimo que te faço! - disse, estendendolhe um maço de cédulas, que o rapaz, com a vergonha no rosto, recusava aceitar.
Nesse momento, porém, a porta estalou na fechadura.
- Meu Deus!... O Antônio!... - gemeu a moça, com olhos de terror.
E como alucinada, empurrando o rapaz pela porta que dava para o armazém:
- Foge!... Foge!... Pelo amor de Deus!...
E enfiando-lhe o dinheiro no bolso do casaco, às pressas:
- Toma!... Foge!...
Pesado e mole, com a atenção emaranhada nas cifras, o vendeiro levou, ainda, alguns minutos para limpar os pés no capacho, trancar a porta, experimentar os ferrolhos; e minutos tão longos que, quando chegou à sala de jantar, a mulher já estava no quarto de dormir, simulando o primeiro sono.
Antônio da Rocha fora criado, porém, com espírito de prudência e sentido de previsão. Três vezes por semana, antes de deitar-se, tomava de uma vela e percorria, examinando meticulosamente os menores recantos, os dois compartimentos do armazém. E naquela noite, mandava-lhe a consciência, mecanicamente, que cumprisse aquela obrigação.
A vela na mão esquerda, a direita no bolso da calça, o comerciante caminhava, despreocupado, entre pilhas de charque e sacos de arroz, quando ouviu, de súbito, um rumor de papéis remexidos. Estacou desconfiado e, depois de prestar melhor ouvido ao barulho, regressou ao quarto de dormir, apanhando o revólver e dizendo, para a mulher:
- Temos ladrão em casa... Vem cá!
- Antônio!... - exclamou a moça, sentando-se repentinamente na cama, as mãos na cabeça.
Tomando aquela exclamação como um grito de medo, Antônio da Rocha marchou, resoluto, para o armazém. E, à porta do compartimento das vendas, gritou:
- Quem está aí?
E outra vez:
- Se não responder, eu atiro!
E esse tempo, o comerciante, que apagara a vela, havia já alcançado o comutador da eletricidade. E quando uma onda de claridade se espalhou pela casa, iluminando tudo, Antônio da Rocha estacou, estarrecido: diante dele, encostado a uma das prateleiras, estava o "doutor" Abelardo Padilha, corretamente vestido, a fisionomia serena, tendo nas mãos, amontoadas em pilhas, várias mercadorias apanhadas apressadamente no escuro: latas de leite condensado, vidros de conserva, maços de fósforos, um queijo, um pequeno embrulho de café.
- O senhor... um ladrão!... - exclamou o vendeiro, a boca torcida, em uma ironia que era, ao mesmo tempo, de raiva e prazer.
A essas palavras, Abelardo Padilha estremeceu. Uma onda de sangue inundou-lhe o rosto, cegando-o. Teve ímpetos de atirar tudo aquilo para o lado, e estrangular o miserável que assim o insultava. Lembrou-se, porém, de Santinha, da sua reputação, do seu destino, do dever, que lhe cabia, de salvá-la, dando a sua honra de homem pela sua honra de mulher. E, baixando a cabeça, deixou cair, tudo aquilo, com estrondo, no chão.
E ali estava, agora, diante da cidade toda, para ser julgado.
- O acusado - indagou o juiz, a voz pausada e serena, - o acusado confessa que penetrou, altas horas da noite, em um estabelecimento comercial, cujas portas se achavam fechadas...
Que motivo o levou ali?
- O roubo, sr. juiz! - declarou Padilha, a voz trêmula.
E mergulhando a cabeça entre os braços desatou a chorar...
Humberto de Campos HERODES
O vapor fluvial que demandava a região do Xingú, no Baixo-Amazonas, acabava de atracar ao pequeno trapiche do barracão ribeirinho, suspenso nas águas sobre duzentas antenas de madeira, no ponto em que o rio Mapuá se bifurca para melhor abraçar a floresta alagada, e onde eu vivia sozinho, com um miserável seringueiro empaludado. A água escura, quieta durante um mês, ondulava, agora, nervosa, assustada pelo choque das hélices da embarcação civilizada. Seringueiros opilados, com os olhos quase escondidos no rosto inchado e terroso, olhavam, de longe, debruçados no alpendre de zinco do armazém, o "gaiola" formigante de marinheiros e de "brabos", o qual havia deixado dias antes, e voltaria a rever em breve, um mundo que eles não veriam mais. Um espanto, um susto alegre, uma inquietação feliz, parecia apossar-se das coisas, em torno, naquela festa de meia hora.
Dentro de alguns minutos, o navio desceria a corrente do rio, deixando tudo, de novo, mergulhado no silêncio e na morte.
Embarcada a borracha amassada com a lama na terra e com o sangue dos meus homens, e recebidas as mercadorias destinadas aos seringais do centro, o comandante do "gaiola"
chamou-me ao seu camarote, e pediu-me que recebesse no barracão, como um serviço à sua pessoa e à casa comercial a que a embarcação pertencia, um doente que vinha a bordo e que talvez não resistisse aos múltiplos inconvenientes da viagem. Se melhorasse, eu devia mandá-lo, numa canoa, para a foz do rio, onde o reembarcaria, no regresso. Disse-me isso enquanto me servia um cálice de vinho do Porto e eu admirava, com inveja, os gabes dourados que lhe enfeitavam o boné branco e o fardamento cuidado. Sem refletir muito sobre a responsabilidade que assumia, subornado pela gentileza daquele homem que me levava a civilização e a perfídia no gargalo de uma garrafa, aquiesci sem relutância. E os marinheiros desembarcaram para o barracão, onde os mosquitos chiavam na sombra, o corpo macilento de um indivíduo de quarenta anos, mais ou menos, em cujas linhas fisionômicas, a enfermidade, e o meio em que ultimamente vivia, haviam alterado os traços de uma antiga distinção. Nos seus olhos escuros, que a febre incendiava intermitentemente, boiavam a revelação de uma vida civilizada, a reminiscência de sociedades polidas, a lembrança inequívoca de um ambiente invulgar. A barba negra e cerrada, pontilhada de fios de prata, tentava esconder os traços finos, indícios de origem, do rosto moreno e cavado, que o paludismo esverdeara. As mãos pequenas e magras que a alisavam, traíam, porém, a dissimulação, denunciando no gesto elegante e no feitio gracioso a companhia em que se haviam educado. Ao menor movimento, pareciam comprimir, ainda, a pelica de uma luva ou uma cintura de mulher.
Desaparecido o vapor na curva do rio, tratamos, eu e o meu companheiro, de alojar o nosso hóspede. Enquanto os seringueiros, remando as suas "montarias", subiam os dois braços fluviais para um novo degredo de trinta dias, dávamos nós, ao enfermo, o compartimento mais abrigado que havia em nosso ninho de abutres. Pusemos-lhe à disposição os nossos cobertores, o nosso quinino, as nossas bolachas, que ele agradecia com desconfiada dignidade, como se estivesse prisioneiro de selvagens.
Ao fim de dois dias, durante os quais a febre não o abandonou, aumentando em horas certas, em solavancos que lhe faziam bater os dentes e chocalhar os ossos, éramos amigos, quase íntimos. A solidão identifica as almas, e a desgraça as aproxima. No degredo há uma ânsia permanente de confidências. Fiz-lhe, por isso, as minhas, contei-lhe a minha existência heróica e atormentada. E ele já me havia dito que era do Rio de Janeiro, onde se formara em medicina, e onde exercera a profissão durante dois lustros, com alto sucesso mundano.
Abandonara o sul por fastio da vida, e procurara a Amazônia para refazer os sentidos, entorpecidos da ciência, bêbados de civilização.
À noite do terceiro dia, bateram, porém, à porta do meu quarto. Era o caboclo, meu companheiro, que, encolhido, as mãos unidas no peito, a cabeça guardada nos ombros, tiritando, matracando as maxilas sem dentes, assaltado também pela febre, me vinha chamar para ver o nosso hóspede, que regougava sinistramente no seu aposento. Levantei-me às pressas e atravessei o alpendre. A noite sem lua estava toda enfeitada de estrelas, que se miravam no espelho quieto do rio. A floresta, na outra margem, era como um grande muro de bronze edificado sobre uma lâmina de aço, que lhe duplicava o perfil. Mil vozes retalhavam o silêncio em pedaços miúdos, tornando-o indivisível. Batráquios e insetos pareciam procurar um ponto vago no tempo e no espaço afim de enfiar o alfinete sonoro do seu grito. Uma pirarara fez espadanar a água, de súbito, em luta com algum peixe de grande vulto, e partiu, como um torpedo, agitando a superfície do rio. A alma da Natureza dormia, mas o seu corpo velava, no ritmo inconsciente da vida.
À porta no quarto do enfermo, parei, escutando. Não havia luz, lá dentro. Da escuridão vinha, porém, uma agitação de esqueleto, como se os demônios estivessem mudando, àquela hora, o ossuário de um cemitério. Chamei pelo meu novo amigo, e a sua resposta foi um uivo estrangulado, seguido de um resfolegar de bomba hidráulica, em que se misturavam na garganta e nos brônquios o ar da vida e a espuma da morte. Acendi uma vela e depois de lhe olhar o rosto, angustiosamente alterado, preguei a estearina no soalho, para aquecer alguns goles dágua, em um caneco de ágata. O trabalho era, entretanto, difícil. Incomodados pela luz, que se ia refletir na lama através das frestas do tabuado, os jacarés, que dormiam em baixo do barracão, davam rabanadas furiosas nas tábuas, abalando-as, aos bufos. E eu, para evitar que a vela tombasse, amparava-a com uma das mãos, segurando com a outra o caneco dágua, que precisava aquecer.
Com água quente, a que adicionara algumas gotas de acônito, o frio diminuiu progressivamente ficando apenas a febre alta, a devorar o doente. E foi nesse estado que o meu enfermo, num equilíbrio súbito das suas faculdades de raciocínio, me confessou, com grandes pausas, como se eu fosse um ministro de Deus; a sua história terrível.
- Eu lhe vou deixar, meu amigo, - disse, começando, - eu lhe vou deixar, como herança da minha gratidão, o segredo triste do meu destino e da minha miséria. Uma lição do mundo é sempre um tesouro. E eu lhe vou entregar, com as mãos vermelhas de sangue, as chaves do cofre da minha vida.
Os olhos brilharam-lhe sinistros, reproduzindo a chama da vela, como se guardassem dois esquifes. Interrompeu-se, de repente, como se se tivesse arrependido. Um largo silêncio, cortado apenas pela sua respiração agitada e pela vaia fina de um grilo escondido em toda parte, encheu o quarto. Depois, continuou:
- Na sua idade, eu tinha a alma congestionada de sonhos, e o coração repleto de ambições, que me torturavam. Não eram sonhos de riquezas, desejos de domínio, ambições de poderio.
Não queria comandar os homens, que, para mim, não existiam; queria dominar as mulheres, que, para mim, eram tudo na terra. Queria-as a todas, e como não as tinha a todas, votava rancor aos homens que possuíam as que não eram minhas. Era sentimental e egoísta; mas de um egoísmo doentio, que chegava ao delírio Maridos, noivos, namorados, eram atingidos, todos, pela peçonha do meu despeito, pela baba do meu ódio. Um beijo estalado na boca de outro, um sorriso mandado a outro que não a mim, envenenava-me, dava-me uma noite de insônia. Que as mulheres lindas não fossem minhas; mas, também, que não fossem de outros braços, de outros lábios, de outra luxúria.
Um regougo, semelhante ao de uma onda numa urna marinha, interrompeu-o. Tossiu e, vencendo uma dispnéia angustiosa, reencetou, com dificuldade:
- Essa preocupação turvava até as minhas conquistas felizes, o meu prazer, as minhas horas de ventura. Quando eu me apossava de um coração ou de um corpo que pertencia a um esposo, a um amante, a um namorado mais velho do que eu, essa mesma posse era perturbada pela visão do que fariam comigo mais tarde, quando eu fosse tomando na terra o lugar deles, e outros homens mais novos tomassem o meu. Os maridos, os amantes, os noivos de agora, seriam vingados. Dentro de alguns anos viriam outros homens; mais jovens, mais vigorosos, mais arrogantes, que tomariam, por sua vez, minha noiva, minha mulher, minhas amantes. E comecei a odiar os homens.
Os sapos, nas duas margens do rio soturno, espaçavam o coaxar ensurdecedor, a que se misturavam ainda as mil vozes, os mil gritos, os mil anseios da noite que declinava. O
enfermo calou-se por um instante, e reatou, ainda mais opresso, repetindo a última frase:
- Comecei a odiar os homens... Eram meus inimigos, inimigos da minha ventura. Se eu os não matasse, eles me matariam, mais tarde, na velhice, impiedosamente, ferindo-me no coração... Pensei que fosse enlouquecer... Meu pai morreu louco... Eu tenho um irmão, louco, no Hospício, no Rio de Janeiro... Mas, era preciso que, depois de mim, não viesse ninguém que me disputasse as minhas mulheres!
Como se tivesse medo de mim, olhou-me fixamente, à luz da vela, os olhos febris, dizendo, rouco, num ímpeto:
- E comecei a matar os homens que nasciam!
Senti um arrepio de terror. O doente percebeu o meu espanto, leu-o nos meus olhos e na minha palidez, mas continuou:
- Minha profissão favorecia-me. Modifiquei a minha especialidade, entregando-me à obstetrícia e à pediatria. Ia receber os meus pequeninos inimigos à porta da vida, e declaravalhes guerra. As mulheres eram perdoadas, abençoadas, amparadas. Os homens, não; a esses, eu perseguia implacavelmente com todas as armas traiçoeiras da minha ciência, e só os abandonava no túmulo, sob as lágrimas e as rosas das mães inconsoláveis... A minha clínica de crianças era uma hecatombe. Fui, entre elas, um lobo num rebanho!
Uma nova pausa, mais funda e mais longa, sacudida pela respiração ansiada.
Reatou:
- Um dia, suspeitaram. Era o escândalo, que se anunciava. Era a condenação, que vinha. Era a prisão infalível. E eu fugi!
E num arranco:
- Fugi, matando crianças pelo caminho!
Um tremor mais forte de todo o seu corpo sacudiu a rede até os punhos. Esperei que continuasse. Como a pausa fosse demorada e as suas convulsões me enchessem de pavor, corri para o alpendre, a respirar o hálito da manhã, que nascia. Quando voltei, o aposento estava em silêncio. Apenas o pavio da vela, que eu deixara no soalho, agonizava, num lago de cera derretida.
Chamei o meu hóspede. Estava morto.