Muitos anos depois
I
Tinha vinte e sete anos o padre Flávio, quando começou a carreira de pregador para a qual se sentia arrastado por uma vocação irresistível. Teve a felicidade de ver começada a sua reputação desde as primeiras prédicas, que eram ouvidas com entusiasmo por homens e mulheres. Alguns inimigos que a fortuna lhe dera por confirmação do seu mérito, diziam que a eloqüência do padre era insossa e fria. É pena dizer que esses adversários do padre vinham da sacristia, e não da rua.
Bem pode ser que entre os admiradores do padre Flávio alguns fossem mais entusiastas das suas graças que dos seus talentos — para ser justo, gostavam de ouvir a palavra divina proferida por uma graciosa boca. Efetivamente o padre Flávio era uma soberba figura; a sua cabeça tinha uma forma escultural. Se a imagem não ofende os ouvidos católicos, direi que parecia Apolo convertido ao Evangelho. Tinha magníficos cabelos pretos, olhos da mesma cor, nariz reto, lábios finos, a testa lisa e polida. O olhar ainda que sereno, tinha uma expressão de severidade, mas sem afetação. Aliavam-se naquele rosto a graça profana e a austeridade religiosa, como duas coisas irmãs, dignas igualmente da contemplação divina.
O que o padre Flávio era no aspecto, era-o também no caráter. Pode-se dizer que era cristão e pagão ao mesmo tempo. A sua biblioteca constava de três grandes estantes.
Numa estavam os livros religiosos, os tratados de teologia, as obras de moral cristã, os anais da Igreja, os escritos dos Jerônimos, dos Bossuets e dos Apóstolos. A outra continha os produtos do pensamento pagão, os poetas e os filósofos das eras mitológicas, as obras de Platão, de Homero, de Epíteto e Virgílio. Na terceira estante estavam as obras profanas que não se ligavam essencialmente àquelas duas classes, e com que ele se deleitava nas horas vagas que lhe deixavam as outras duas. Na classificação dos seus livros, o padre Flávio viu-se algumas vezes perplexo; mas resolvera a dificuldade de um modo engenhoso. O poeta Chénier, em vez de ocupar a terceira estante, foi colocado na classe do paganismo, entre Homero e Tíbulo. Quanto ao Telêmaco de Fénelon, resolveu o padre deixá-lo sobre a mesa de trabalho; era um arcebispo católico que falava do filho de Ulisses; exprimia de algum modo a feição intelectual do padre Flávio Seria puerilidade supor que o padre Flávio, consorciando assim os escritos de duas inspirações opostas, fizesse dos dois cultos um só, e abraçasse do mesmo modo os deuses do templo antigo e as imagens da Igreja cristã. A religião católica era a da sua fé, ardente, profunda, inabalável; o paganismo representava a sua religião literária. Se encontrava no discurso da montanha consolações para a consciência, tinha nas páginas de Homero deliciosos prazeres ao seu espírito. Não confundia as odes de Anacreonte com o Cântico dos cânticos, mas sabia ler cada livro, a seu tempo, e tinha para si (coisa que mesma lhe perdoara o padre Vilela) que entre as duas obras havia alguns pontos de contacto.
II
O padre Vilela que entrou por incidente no período acima, tinha uma grande parte na vida do padre Flávio. Se este abraçara a vida religiosa foi por conselho e direção do padre Vilela, e em boa hora o fez porque, dos seus contemporâneos, nenhum honrou melhor o hábito sagrado.
Educado pelo padre Vilela, Flávio achou-se aos dezoito anos com todos os conhecimentos que podiam prepará-lo para as funções religiosas. Contudo estava resolvido a seguir outra carreira, e tinha já em vista o curso jurídico. O padre Vilela esperava que o moço escolhesse livremente a profissão, não querendo comprar mediante uma condescendência de rapaz o futuro arrependimento. Uma circunstância que interessa à história fez com que Flávio abraçasse a profissão sacerdotal a que já o dispunham, não somente a instrução do espírito, mas também a severidade dos costumes.
Quando num dia de manhã, à mesa do almoço, Flávio declarou ao padre que queria servir à Igreja, este que era sincero servidor dela, sentiu imenso júbilo e abraçou o moço com efusão.
— Eu não podia pedir, disse Vilela, melhor profissão para o meu filho.
O nome de filho era o que lhe dava o padre e com razão lhe dava, porque se Flávio não lhe devia o ser, devia-lhe a criação e a educação.
Vilela fora muitos anos antes vigário em uma cidade de Minas Gerais; e aí conhecera um lindo menino que uma pobre mulher educava como podia.
— É seu filho? perguntou-lhe o padre.
— Não, reverendíssimo, não é meu filho.
— Nem afilhado?
— Nem afilhado.
— Nem parente?
— Nem parente.
O padre não perguntou mais nada, suspeitando que a mulher ocultava coisa que não podia dizer. Ou fosse por essa circunstância, ou porque o menino lhe inspirava simpatia, o fato é que o padre não perdeu de vista aquela pobre família composta de duas pessoas.
Naturalmente caridoso, não poucas vezes o padre ajudava a mulher nas necessidades de sua vida. A maledicência não deixou de abocanhar a reputação do padre com respeito à proteção que dava à mulher. Mas ele tinha uma filosofia singular: olhava por cima do ombro os caprichos da opinião.
Como o menino já tivesse oito anos, e não soubesse ler, quis o padre Vilela começar a educação dele e a mulher agradecida aceitou os obséquios do padre.
A primeira coisa que o mestre admirou no discípulo foi a docilidade com que ele ouvia as lições e afinco e zelo com que as estudava. É natural da criança preferir os brincos aos labores do estudo. O menino Flávio fazia do aprender uma regra e do brincar uma exceção, isto é, primeiro decorava as lições que o mestre lhe dava, e só depois de as ter sabidas é que se ia divertir com os outros rapazes seus companheiros.
Com este merecimento, tinha o menino outro ainda maior, era o de uma inteligência clara, e imediata compreensão, de maneira que ia entrando nos estudos com pasmosa rapidez e inteira satisfação do mestre.
Um dia, adoeceu a mulher, e foi caso de verdadeira aflição para as duas criaturas a quem ela mais estimava, o padre e o pequeno. Agravou-se a moléstia a ponto de ser necessário aplicarem-se os sacramentos. Flávio, já então de doze anos, chorava que fazia dó. A
mulher expirou beijando o menino:
— Adeus, Flávio, disse ela, não te esqueças de mim.
— Minha mãe! exclamou o pequeno abraçando a mulher.
Mas ela já o não podia ouvir.
Vilela pôs-lhe a mão sobre o coração, e voltando-se para Flávio disse:
— Está com Deus.
Não tendo ninguém mais neste mundo, o menino ficara à mercê do acaso, se não fosse Vilela que imediatamente o levou consigo. Como já havia intimidade entre os dois, não foi difícil ao pequeno a mudança; contudo nunca se lhe varria da memória a idéia da mulher que ele, não só chamava mãe, como até a tinha por isso, visto que não conhecera outra.
A mulher, na véspera de morrer, mandou pedir ao padre lhe viesse falar. Quando ele chegou, mandou sair o pequeno e disse-lhe:
— Vou morrer, e não sei o que há de ser de Flávio. Não ouso pedir-lhe, reverendíssimo, que o tome para si; mas quisera que fizesse alguma coisa por ele, que o recomende a algum colégio da caridade.
— Descanse, respondeu Vilela; eu me incumbo do rapaz.
A mulher olhou agradecida para ele.
Depois fazendo um esforço tirou debaixo do travesseiro uma carta lacrada e entregou-a ao padre.
— Esta carta, disse ela, foi-me entregue com este menino; é escrita por sua mãe; tive ordem de lhe entregar quando ele completasse vinte e cinco anos. Não quis Deus que eu tivesse o gosto de cumprir a recomendação. Quer V. Revmª. incumbir-se dela?
O padre pegou na carta, leu o sobrescrito que dizia assim: A meu filho.
Prometeu entregar a carta no prazo indicado.
III
Flávio não desmentiu as esperanças do padre. Os seus progressos eram espantosos.
Teologia, história, filosofia, línguas, literatura, tudo isso estudou o rapaz com pasmosa atividade e zelo. Não tardou que excedesse ao mestre, porquanto este era apenas uma inteligência medíocre e Flávio possuía um talento superior.
Como boa alma que era, o velho mestre tinha orgulho na superioridade do discípulo.
Conhecia perfeitamente que, de certo tempo em diante, os papéis estavam trocados: era ele quem teria de aprender com o outro. Mas a própria inferioridade fazia a sua glória.
— Os olhos que descobrem um brilhante, dizia o padre consigo, não fulgem mais que ele, mas alegram-se com tê-lo achado e dado ao mundo.
Não vem ao caso referir os sucessos que deslocaram o padre da sua freguesia em Minas para a corte. Veio o padre residir aqui quando Flávio contava já dezessete anos. Tinha alguma coisa de seu e podia viver independente, em companhia de seu filho espiritual, única família sua, mas quanto bastava aos afetos do seu coração e aos hábitos intelectuais.
Flávio já não era então o pobre menino de Minas. Era um elegante rapaz, belo de feições, delicado e severo de maneiras. A educação que tivera em companhia do padre dera-lhe uma gravidade que realçava a pureza de suas feições e a graça do seu gesto. Mas por cima de tudo isso havia um véu de melancolia que tinha duas causas: o próprio caráter dele, e a lembrança incessante da mulher que o criara.
Vivendo em casa do padre, com a subsistência que permitiam as posses deste, instruído, admirado, cheio de esperanças e de futuro, Flávio recordava sempre a vida de pobreza que tivera em Minas, os sacrifícios que a boa mulher fizera por ele, as lágrimas que algumas vezes derramaram juntos quando chegava a faltar-lhes o pão. Não esquecera nunca o amor que aquela mulher lhe consagrara até a morte, e o zelo extremo com que o tratara. Em vão procurara na memória alguma palavra mais ríspida da parte de sua mãe:
só conservava a lembrança de afagos e amores.
Apontando aqui estas duas causas permanentes da sua melancolia, não quero exagerar o caráter do rapaz. Pelo contrário, Flávio era um conversador ameno e variado. Sorria freqüentemente, com ingenuidade, com satisfação. Gostava da discussão; a sua palavra era quase sempre animada; tinha entusiasmo na conversação. Havia nele uma feliz combinação de dois sentimentos, por modo que nem a melancolia o tornava enfadonho, nem a alegria insuportável.
Profundamente observador, o discípulo do padre Vilela aprendeu cedo a ler estes livros que se chamam corações antes de os estimar e aplaudir. A sagacidade natural não estava ainda apurada pela experiência e pelo tempo. Aos dezoito anos julga-se mais pelo coração que pela reflexão. Nessa idade acontece sempre pintarmos um caráter com as cores dos nossos próprios afetos. Flávio não podia escapar absolutamente a esta lei comum, que uns dizem ser má e outros querem que seja excelente. Mas o moço ia-se pouco a pouco acostumando ao trato dos homens; a vida retirada que vivera desenvolveu-lhe o gosto da solidão. Quando começou a travar relações não contava uma só que lhe fosse imposta por nenhuma intimidade passada.
O padre Vilela, que tinha por si a experiência da vida, gostava de ver no rapaz esse caráter temperado de entusiasmo e reserva, de confiança e receio. Parecia ao padre, em cujo espírito já rolava a idéia de ver o discípulo servo da Igreja, que o resultado daquilo seria distanciar-se o rapaz do século e aproximar-se do sacerdócio.
Mas o padre Vilela não contava com esta crise necessária da juventude chamada amor, que o rapaz não conhecia também a não ser pelos livros do seu gabinete. Quem sabe?
Talvez esses livros lhe fizessem mal. Acostumado a ver o amor, com a lente da fantasia, deleitando-se com as sensações poéticas, com as criações ideais, com a vida da imaginação, Flávio não tinha a menor idéia da coisa prática tanto se absorvia na contemplação da coisa ideal.
Semelhante ao homem que só houvesse vivido no meio de figuras esculpidas em mármore, e que supusesse nos homens o original completo das cópias artísticas, Flávio povoava a sua imaginação de Ofélias e Marílias, ansiava por encontrá-las, amava-as antecipadamente, em solitárias chamas. Como era natural, o moço exigia mais do que poderia dar a natureza humana.
Foi então que se produziu a circunstância que lhe abriu mais depressa as portas da Igreja.
IV
Não é preciso dizer de que natureza foi a circunstância; os leitores já o terão adivinhado.
Flávio fazia poucas visitas e não conhecia gente. Ia de quando em quando a duas ou três casas de família onde o padre o apresentara e aí passava algumas horas que no dizer das pessoas da casa eram minutos. A hipérbole era sincera; Flávio possuía o dom de conversar bem, sem demasia nem parcimônia, equilibrando-se entre o que era fútil e o que era pesado.
Uma das casas a que ia era a de uma D. Margarida, viúva de um advogado que enriquecera no foro e deixara à família boa e larga riqueza. A viúva tinha duas filhas, uma de dezoito anos, e outra de doze. A de doze era uma criança querendo ser moça, um lindo prefácio de mulher. Qual seria o livro? Flávio não fez nem respondeu a esta pergunta.
A que desde logo lhe chamou a atenção foi a mais velha, criatura que lhe aparecia com todos os encantos imaginados por ele. Chamava-se Laura; estava no pleno desenvolvimento da mocidade. Era diabolicamente bela; o termo será impróprio, mas exprime perfeitamente a verdade. Era alta, bem formada, mais imponente que delicada, mais soberana que graciosa. Adivinhava-se-lhe um caráter imperioso; era dessas mulheres que, emendando a natureza, que as não fez nascer no trono, fazem-se rainhas por si mesmas. Outras possuem a força da fraqueza; Laura não. Seus lábios não eram feitos para a súplica, nem seus olhos para a meiguice. Lhe fosse preciso adquirir uma coroa — quem sabe? —, Laura seria lady Macbeth.
Semelhante caráter sem a beleza, seria quase inofensivo. Laura era formosa, e sabia que o era. Sua beleza era dessas que arrastam logo a primeira vista. Possuía os mais belos olhos do mundo, grandes e negros, olhos que despendiam luz e nadavam em fogo. Os cabelos, igualmente negros e abundantes, trazia-os penteados com arte especial, por modo que lhe dessem à cabeça uma espécie de diadema. Coroavam assim uma testa branca, larga, inteligente. A boca, se o desdém não existisse, inventava-o certamente.
Toda a figura tinha uma expressão de desdenhosa gravidade.
Lembrara-se Flávio de ficar namorado daquela Semíramis burguesa. Como o seu coração era ainda virgem, caiu logo do primeiro golpe, e não tardou que a serenidade da sua vida se transformasse em tempestade desfeita. Tempestade é o verdadeiro nome, porque à medida que os dias iam passando, o amor crescia, e crescia o receio de se ver repelido ou talvez menoscabado.
Flávio não tinha ânimo de se declarar à moça, e esta parecia estar longe de lhe adivinhar os sentimentos. Não estava longe; adivinhara-o logo. Mas o mais que o seu orgulho concedeu ao mísero amador foi perdoar-lhe a paixão. No rosto nunca se lhe traiu o que sentia. Quando Flávio olhava para ela, embebido e esquecido do resto do universo, Laura sabia tão bem disfarçar que nunca traía a sua sagacidade.
Vilela reparou na tristeza do rapaz; mas como ele não lhe dizia nada, teve a prudência de lhe não perguntar por isso. Imaginou que seriam amores; e como desejava vê-lo no sacerdócio, a descoberta não deixou de o aborrecer.
Havia porém uma coisa pior do que não ser sacerdote, era ser infeliz, ou ter empregado mal o fogo do seu coração. Vilela pensou nisto e mais aborrecido ainda ficou. Flávio andava cada vez mais melancólico e até lhe pareceu que emagrecia, donde o bom padre concluiu logicamente que devia ser paixão incurável, atentas as relações íntimas em que estão a magreza e o amor, na teoria romântica.
Vendo aquilo, e prevendo que o resultado podia ser funesto ao seu amigo, Vilela estabeleceu de si para si um prazo de quinze dias, findo os quais, se Flávio não lhe fizesse confissão voluntária do que sentia, ele lha arrancaria à força.
V
Daí a oito dias teve ele a ventura inefável de ouvir da própria boca de Flávio que queria seguir a carreira sacerdotal. O rapaz dizia aquilo com tristeza, mas resoluto. Vilela recebeu a notícia como eu tive já ocasião e dizer aos leitores, e tudo se preparou para que o neófito fizesse as primeiras provas.
Flávio resolvera adotar a vida eclesiástica depois que da própria Laura teve o desengano.
Repare a leitora que eu não digo ouviu, mas teve. Flávio não ouviu nada. Laura não lhe falou quando ele timidamente confessou que a adorava. Seria uma concessão. Laura não fazia concessões. Olhou para ele, ergueu a ponta do lábio e começou a contar as varetas do leque. Flávio insistiu; ela retirou-se com um ar tão frio e desdenhoso, mas sem um gesto, sem nada mais que indicasse a menor impressão, ainda que fora de ofensa. Era mais que despedi-lo, era esmagá-lo. Flávio curvou a cabeça e saiu.
Agora saltemos a pés juntos alguns pares de anos e vamos encontrar o padre Flávio no princípio da sua carreira, tendo justamente pregado o seu primeiro sermão. Vilela não cabia em si de contente; os cumprimentos que Flávio recebia era como se ele os recebesse; revia-se na sua obra; aplaudia-se no talento do rapaz.
— Minha opinião, reverendo — dizia-lhe ele um dia ao almoço —, é que irás longe...
— À China? perguntou sorrindo o outro.
— Longe é para cima; replicou Vilela; quero dizer que hás de subir, e que ainda terei o gosto de te ver bispo. Não tens ambições?
— Uma.
— Qual?
— A de viver sossegado.
Esta disposição não agradava muito ao reverendo padre Vilela, que, sendo pessoalmente despido de ambições, desejava para o seu filho espiritual um elevado lugar na hierarquia da Igreja. Não quis porém combater o desprendimento do rapaz e limitou-se a dizer que não conhecia ninguém mais apto para ocupar uma sede episcopal.
No meio dos seus encômios foi interrompido por uma visita; era um rapaz quase da mesma idade do padre Flávio e seu antigo companheiro de estudos. Atualmente tinha um emprego público, era alferes porta-bandeira de um batalhão da Guarda Nacional. A estas duas qualidades juntava a de ser filho de um negociante de grosso trato, o sr. João Ayres de Lima, de cujos sentimentos políticos dissentia radicalmente, visto que estivera no ano anterior com os revolucionários de 7 de abril, enquanto que o pai era muito inclinado aos restauradores.
Henrique Ayres não fizera grande figura nos estudos; não fez sequer figura medíocre. Era doutor apenas, mas bom coração e rapaz de bons costumes. O pai quisera casá-lo com a filha de um negociante seu amigo; mas Henrique tendo dado imprudentemente o coração à filha de um escrivão de agravos, opôs-se com todas as forças ao casamento. O pai, que era bom homem, não quis obrigar o coração do rapaz, e desistiu da empresa. Aconteceu então que a filha do negociante casou com outro e a filha do escrivão começou a dar corda a um segundo pretendente com quem veio a casar pouco tempo depois.
Estas particularidades são necessárias para explicar o grau de intimidade entre Henrique e Flávio. Foram eles naturalmente confidentes um do outro, e falaram (outrora) muito e muito dos seus amores e esperanças com a circunstância usual entre namorados que cada um deles era o ouvinte de si mesmo.
Os amores foram-se; a intimidade ficou. Apesar dela, desde que Flávio tomara ordens, e já antes nunca mais Henrique lhe falara de Laura, conquanto suspeitasse que a lembrança da moça não se lhe apagara no coração. Adivinhara até que a repulsa da moça o atirara ao sacerdócio.
Henrique Ayres foi recebido como um íntimo da casa. O padre Vilela gostava dele, principalmente porque era amigo de Flávio. Além disso, Henrique Ayres era um rapaz alegre, e o padre Vilela gostava de rir.
Desta vez, entretanto, não vinha alegre o alferes. Trazia os olhos desvairados e a cara sombria. Era um rapaz bonito, elegantemente vestido à maneira do tempo. Contava um ano menos que o padre Flávio. Tinha o corpo muito direito, em parte porque a natureza o fizera assim, em parte porque andava, ainda à paisana, como se levasse a bandeira na mão.
Vilela e Flávio perceberam logo que o recém-chegado tinha alguma coisa que o preocupava; nenhum deles, entretanto, o interrogou. Trocaram-se algumas palavras friamente, até que Vilela, percebendo que Henrique Ayres desejaria conversar com o amigo, deixou a mesa e saiu.
VI
Henrique, apenas ficou só com Flávio, atirou-se-lhe aos braços e pediu que o salvasse.
— Salvar-te! exclamou Flávio. De quê?
Henrique sentou-se outra vez sem responder e pôs a cabeça nas mãos. O padre insistiu com ele para que dissesse o que havia, fosse o que fosse.
— Cometeste algum...
— Crime? sim, cometi um crime, respondeu Henrique; mas, descansa, não foi nenhum roubo nem morte; foi um crime que felizmente se pode reparar..
— Que foi então?
— Foi...
Henrique hesitou. Flávio instou para que confessasse tudo.
— Eu gostava muito de uma moça e ela de mim, disse enfim o alferes; meu pai que sabia do namoro, creio que o não desaprovava. O pai dela, entretanto, opunha-se ao nosso casamento... Noutro tempo tu já saberias destas coisas; mas agora, não me atrevi nunca a falar-te nisso.
— Continua.
— O pai opunha-se; e apesar da posição que meu pai ocupa, dizia à boca cheia que nunca me admitiria em sua casa. Efetivamente nunca lá entrei; falávamos poucas vezes, mas escrevíamos a miúdo. As coisas iriam assim até que o ânimo do pai se voltasse a nosso favor. Uma circunstância, porém, ocorreu e foi o que me precipitou a um ato de loucura. O pai queria casá-la com um deputado que chegou há pouco do Norte.
Ameaçados disso...
— Ela fugiu contigo, concluiu Flávio.
— É verdade, disse Henrique sem ousar encarar o amigo.
Flávio esteve algum tempo calado. Quando abriu a boca foi para censurar o ato de Henrique, lembrando-lhe o desgosto que iria causar a seus pais, não menos que à família da moça. Henrique ouviu silenciosamente as censuras do padre. Afirmou-lhe que estava disposto a tudo, mas que o seu maior desejo era evitar o escândalo.
Flávio pediu todas as informações precisas e dispôs-se a reparar o mal pelo melhor modo que pudesse. Soube que o pai da moça em um juiz da casa da suplicação. Saiu logo a dar os passos necessários. O intendente da polícia tinha já as informações do caso e corriam agentes seus em todas as direções. Flávio obteve o auxílio do padre Vilela, e tudo andou tão a tempo e com tão boa feição, que antes das ave-marias as maiores dificuldades ficaram aplanadas. Foi o padre Flávio quem teve o gosto de casar os dois jovens pássaros, depois do que dormiu em plena paz com a consciência.
Nunca o padre Flávio tivera ocasião de freqüentar a casa do sr. João Ayres de Lima, ou simplesmente do sr. João Lima, que era o nome corrente. Andara entretanto em todo aquele negócio com tanto zelo e amor, mostrara tamanha gravidade e circunspeção, que o sr. João Lima ficou morrendo por ele. Se perdoou ao filho foi unicamente por causa do padre.
— Henrique é um maroto, disse João Lima, que devia assentar praça, ou ir ali viver alguns meses no Aljube. Mas não podia escolher melhor advogado, e é por isso que eu lhe perdoei a tratantice.
— Verduras da mocidade, obtemperou o padre Flávio.
— Verduras, não, reverendo; loucuras é o verdadeiro nome. Se o pai da rapariga não queria dar-lhe, a dignidade, não menos que a moralidade, o obrigava a um procedimento diverso do que teve. Enfim, Deus lhe dê juízo!
— Há de dar, há de dar...
Conversavam assim os dois no dia seguinte ao do casamento de Henrique e Luísa, que era o nome da pequena. A cena passava-se na sala de visitas da casa de João Lima à Rua do Valongo, defronte de uma janela aberta, ambos sentados em cadeiras de braços de jacarandá, tendo de permeio uma mesa pequena com duas xícaras de café em cima.
João Lima era um homem sem cerimônias e muito fácil de criar amizade a alguém. Flávio pela sua parte era extremamente simpático. A amizade criou raízes dentro em pouco tempo.
Vilela e Flávio freqüentavam a casa de João Lima, com quem moravam o filho e a nora na mais doce intimidade.
Doce intimidade é uma maneira de falar.
A intimidade durou apenas alguns meses e não foi de toda a família. Uma pessoa havia em quem o casamento de Henrique produziu desagradável impressão; foi a mãe dele.
VII
Dona Mariana Lima era uma senhora agradável na conversa, mas única e simplesmente na conversa. O coração era esquisito; é o menos que se pode dizer. O espírito era caprichoso, voluntarioso e ambicioso. Ambicionava um casamento mais elevado para o filho. Os amores de Henrique e o seu imediato casamento foram um desastre para os planos de futuro.
Quer isto dizer que D. Mariana desde o primeiro dia começou a odiar a nora. Escondeu-o o mais que pôde, e só pôde esconder durante os primeiros meses. Afinal o ódio fez explosão. Foi impossível no fim de certo tempo viverem juntas. Henrique foi morar em casa sua.
Não bastava à senhora D. Mariana odiar a nora e aborrecer o filho.
Era-lhe preciso mais.
Soube e viu a parte que teve o padre Flávio no casamento do filho, e não só o padre Flávio como de algum modo o padre Vilela.
Naturalmente criou-lhes ódio.
Não o manifestou entretanto logo. Ela era profundamente dissimulada; tratou de disfarçar o mais que pôde. Seu fim era expeli-los de casa.
Eu disse que D. Mariana era agradável na conversa. Era-o também na fisionomia.
Ninguém diria que aquele rosto amável escondia um coração de ferro. Via-se que tinha sido formosa; ela mesma falava da sua beleza passada com um resto de orgulho. A
primeira vez que o padre Flávio a ouviu falar assim, teve má impressão. Notou-lhe D.
Mariana e não se conteve que lhe não dissesse:
— Reprova-me?
O padre Flávio conciliou seu amor à verdade com a consideração que devia à esposa do amigo.
— Minha senhora, murmurou ele, eu não tenho direito para tanto...
— Tanto vale dizer que me reprova.
Flávio calou-se.
— Cuido, entretanto, continuou a esposa de João Lima, que não me gabo de nenhum crime; ter sido bonita não é coisa que ofenda a Deus.
— Não é, disse gravemente o padre Flávio; mas a austeridade cristã pede que não façamos caso nem tenhamos orgulho das nossas graças físicas. As próprias virtudes não nos devem ensoberbecer...
Flávio estacou. Reparou que estava presente João Lima e não quis continuar a conversa por extremo desagmdãvel. Mas o marido de D. Mariana nadava em contentamento.
Interveio na conversa.
— Continue, padre, disse ele; isso não ofende e é justo. A minha santa Eva gosta de recordar o tempo da sua beleza; já lhe tenho dito que é melhor deixar o louvor aos outros;
e ainda assim fechar os ouvidos.
D. Mariana não quis ouvir o resto; retirou-se da sala.
João Lima deitou a rir.
— Assim, padre! nunca as mãos lhe doam.
Flávio estava profundamente incomodado com o que se passara. Não queria de nenhum modo contribuir para um desaguisado de família. Demais, já percebera que a mãe de Henrique não gostava dele, mas não podia atinar com a causa. Fosse qual fosse, julgou prudente afastar-se da casa, e assim o disse ao padre Vilela.
— Não creio que tenhas razão, disse este.
— E eu creio que tenho, retorquiu o padre Flávio; em todo caso nada perdemos em afastarmo-nos por algum tempo.
— Não, não me parece razoável, disse Vilela; que culpa tem João Lima nisto? Como explicar a nossa ausência?
— Mas...
— Demos tempo ao tempo, e se as coisas continuarem do mesmo modo.
Flávio aceitou o alvitre do seu velho amigo.
Costumavam eles passar quase todas as tardes em casa de João Lima, onde tomavam café e onde conversavam das coisas públicas ou praticavam de assuntos pessoais. Às vezes dava-lhe João Lima para ouvir filosofia, e nessas ocasiões era o padre Flávio quem falava exclusivamente.
D. Mariana, desde a conversa que acima deixo referida, mostrara-se cada vez mais fria com os dois padres. Sobretudo com Flávio, as suas demonstrações eram mais positivas e solenes.
João Lima não reparava em nada. Era um bom homem que não podia supor houvesse alguém a quem desagradassem os seus dois amigos.
Um dia porém, ao saírem de lá, disse Flávio a Vilela:
— Não lhe parece que o João Lima está um pouco mudado hoje?
— Não.
— Creio que sim.
Vilela abanou a cabeça, e disse rindo:
— Andas visionário, Flávio!
— Não sou visionário; percebo as coisas.
— As coisas que ninguém percebe.
— Verá.
— Quando?
— Amanhã.
— Pois verei!
No dia seguinte houve um inconveniente que os impediu de ir à casa de João Lima.
Foram em outro dia.
João Lima mostrou-se efetivamente frio com o padre Flávio; com o padre Vilela não alterou o seu modo. Vilela notou a diferença e deu razão ao amigo.
— Na verdade, disse ele ao saírem os dois do Valongo, onde morava João Lima, pareceu-me que o homem hoje não te tratou como de costume.
— Do mesmo modo que anteontem.
— Que haverá?
Flávio calou-se.
— Dize, insistiu Vilela.
— Que nos importa isso? disse o padre Flávio depois de alguns instantes de silêncio.
Gostou de mim algum tempo; hoje não gosta; não o censuro por isso, nem me queixo. É conveniente que nos acostumemos às variações do espírito e do coração. Pela minha parte não mudei a seu respeito; mas...
Calou-se.
— Mas? perguntou Vilela.
— Mas não devo voltar lá.
— Ah!
— Sem dúvida. Acha bonito que freqüente uma casa onde não sou bem aceito? Seria afrontar o dono da casa.
— Bem; não iremos mais lá.
— Não iremos?
— Sim, não iremos.
— Mas por que razão há de Vossa Reverendíssima...
— Porque sim, disse resolutamente o padre Vilela. Onde tu não fores recebido com prazer, eu não posso decentemente meter os pés.
Flávio agradeceu mais esta prova de afeição que lhe dava o seu velho amigo; e procurou demovê-lo do propósito em que se achava; mas foi em vão; Vilela persistia na resolução anunciada.
— Bem, disse Flávio, irei lá como dantes.
— Mas essa agora...
— Não quero privá-los da sua pessoa, padre-mestre.
Vilela procurou convencer ao amigo de que não devia ir se tinha escrúpulo nisso. Flávio resistiu a todas as razões. O velho padre coçou a cabeça e depois de meditar algum tempo, disse.
— Pois bem, eu irei só.
— É o melhor acordo.
Vilela mentia; sua resolução era não ir mais lá, desde que o amigo não ia; mas ocultava esse plano, pois que era impossível fazê-lo aceitar por ele.
VIII
Decorreram três meses depois do que acabo de narrar. Nem Vilela nem Flávio voltaram à casa de João Lima; este foi uma vez à casa dos dois padres com a intenção de perguntar a Vilela porque razão deixara de o visitar. Achou-o só em casa; disse-lhe o motivo da sua visita. Vilela desculpou-se com o amigo.
— Flávio anda melancólico, disse; e eu que sou tão amigo dele, não o quero deixar só.
João Lima franziu o sobrolho.
— Anda melancólico? perguntou ele no fim de algum tempo.
— É verdade, continuou Vilela. Não sei que tem; pode ser moléstia; em todo o caso não o quero deixar só.
João Lima não insistiu e retirou-se.
Vilela ficou pensativo. Que quereria dizer o ar com que o negociante lhe falara a respeito da melancolia do amigo? Interrogou as suas reminiscências; conjecturou à larga; nada concluiu nem encontrou.
— Tolices! disse ele.
A idéia porém não lhe saiu mais do espírito. Tratava-se do homem a quem mais amava;
era razão para que o preocupasse. Dias e dias gastou em espreitar o misterioso motivo;
mas nada alcançou. Zangado consigo mesmo, e preferindo a tudo a franqueza, Vilela resolveu ir diretamente a João Lima.
Era de manhã. Flávio estava a estudar no seu gabinete, quando Vilela lhe disse que ia sair.
— Deixa-me só com a minha carta?
— Que carta?
— A que me deu, a misteriosa carta de minha mãe.
— Vais abri-la?
— Hoje mesmo.
Vilela saiu.
Ao chegar à casa de João Lima ia este sair.
— Preciso falar-lhe, disse-lhe o padre. Vai sair?
— Vou.
— Tanto melhor.
— Que ar sério é este? perguntou Lima rindo.
— O negócio é sério.
Saíram.
Sabe o meu amigo que eu não tenho sossegado desde que desconfiei de uma coisa...
— De uma coisa!
— Sim, desde que desconfiei que o meu amigo tem alguma coisa contra o meu Flávio.
— Eu?
— O senhor.
Vilela olhou fixamente para João Lima; este baixou os olhos. Foram andando assim silenciosamente durante algum tempo. Era evidente que João Lima queria ocultar alguma coisa ao padre-mestre. O padre é que não estava disposto a que se lhe escondesse a verdade. Ao fim de um quarto de hora Vilela rompeu o silêncio.
— Vamos lá, disse ele; diga-me tudo.
— Tudo o quê?
Vilela fez um gesto de impaciência.
— Para que procura negar que há alguma coisa entre o senhor e o Flávio. É isso que eu desejo saber. Sou amigo dele e seu pai espiritual; se ele errou desejo castigá-lo; se o erro é seu, peço licença ao senhor para castigá-lo.
— Falemos de outra coisa...
— Não; falemos disto.
— Pois bem, disse João Lima com resolução; dir-lhe-ei tudo, com uma condição.
— Qual?
— É que há de ocultar tudo a ele.
— Para quê, se merecer corrigi-lo?
— Porque é necessário. Não desejo que transpire nada desta conversa; é tão vergonhoso isto!...
— Vergonhoso!
— Desgraçadamente, é vergonhosíssimo.
— É impossível! exclamou Vilela não sem alguma indignação.
— Verá.
Seguiu-se um novo silêncio.
— Eu era amigo de Flávio e admirador das suas virtudes como dos seus talentos. Era capaz de jurar que nunca um pensamento infame lhe entraria no espírito...
— E então? perguntou Vilela trêmulo.
— E então, repetiu João Lima com placidez; esse pensamento infame entrou-lhe no espírito. Infame seria em qualquer outro; mas em quem traz vestes sacerdotais... Não respeitar nem o seu caráter, nem o estado alheio; cerrar os olhos aos laços sagrados do matrimônio...
Vilela interrompeu a João Lima exclamando:
— Está doido!
Mas João Lima não se molestou; referiu placidamente ao padre-mestre que o seu amigo ousara desrespeitar-lhe a esposa.
— É uma calúnia! exclamou Vilela.
— Perdão, disse João Lima, disse-me quem podia asseverar.
Vilela não era naturalmente manso; conteve-se a custo ao ouvir estas palavras do amigo.
Não lhe foi difícil perceber a origem da calúnia: era a antipatia de D. Mariana. Admirou-se que descesse a tanto; no seu íntimo resolveu dizer tudo ao jovem sacerdote. Não deixou porém de observar a João Lima:
— Isso que me diz é impossível; houve certamente equívoco, ou... má vontade; acho que seria principalmente má vontade. Não hesito em responder por ele.
— Má vontade por quê? perguntou João Lima.
— Não sei; mas alguma havia em que eu já reparam ainda antes do que se deu ultimamente. Quer que seja inteiramente franco?
— Peço-lhe.
— Pois bem, todos temos defeitos; sua senhora, entre boas qualidades que possui, tem alguns e graves. Não se zangue se lhe falo assim; mas é preciso dizer tudo quando se trata de defender como eu a inocência de um amigo.
João Lima não dizia palavra. Ia cabisbaixo ouvindo as palavras do padre Vilela. Ele sentia que o padre não estava longe da verdade; conhecia a mulher, sabia por onde pecava o seu espírito.
— Eu creio, disse o padre Vilela, que o casamento de seu filho influiu na desafeição de sua esposa.
— Por quê?
— Talvez não fosse muito do agrado dela, e ao Flávio se deve o bom desfecho que teve aquele negócio. Que lhe parece?
Não respondeu o interlocutor. As palavras de Vilela trouxeram-lhe à memória algumas que ouvira à mulher em desabono do padre Flávio. Era bom e fraco; arrependia-se facilmente. O tom decisivo com que falou Vilela profundamente o abalou. Não tardou que ele mesmo dissesse:
— Não desconheço que é possível um equívoco; o espírito suscetível de Mariana podia errar, era mais natural que ela se esquecesse de que tem um resto das suas graças para só se lembrar de que é uma matrona... Perdão, falo-lhe como amigo; releve-me estas expansões em tal assunto.
Vilela dirigiu a João Lima no caminho em que entrava. No fim de uma hora estavam quase de acordo. João Lima encaminhou-se para casa acompanhado de Vilela; iam já então calados e pensativos.
IX
Ao chegarem à porta quis Vilela retirar-se. Souberam porém que Flávio estava em cima.
Os dois olharam um para o outro, Vilela atônito, João Lima fulo de cólera.
Subiram.
Na sala estavam D. Mariana e o padre Flávio; ambos de pé, em frente um do outro, Mariana com as mãos de Flávio entre as suas.
Os dois estacaram à porta.
Seguiu-se um longo e profundo silêncio.
— Meu filho! meu amigo! exclamou Vilela dando um passo para o grupo.
D. Mariana tinha soltado as mãos do jovem sacerdote e deixara-se cair numa cadeira;
Flávio tinha os olhos baixos.
João Lima adiantou-se calado. Parou em frente de Flávio e encarou-o friamente. O padre ergueu os olhos; havia neles uma grande dignidade.
— Senhor, disse Lima.
D. Mariana levantou-se da cadeira e atirou-se aos pés do esposo.
— Perdão! exclamou ela.
João Lima empurrou-a com um braço.
— Perdão; é meu filho!
Eu deixo ao leitor imaginar a impressão deste lance de quinto ato de melodrama. João Lima esteve cerca de dez minutos sem poder articular palavra. Vilela olhava espantado para todos.
Enfim rompeu a palavra o negociante. Era natural pedir uma explicação; pediu-a; foi-lhe dada. João Lima exprimiu toda a sua cólera contra Mariana.
Flávio lastimara do fundo d’alma a fatalidade que o levou a produzir aquela situaçõa.No delírio de conhecer sua mãe, não se lembrara de mais nada; apenas leu a carta que lhe fora entregue pelo padre Vilela, correra à casa de D. Mariana. Ali tudo se explicara; Flávio preparava-se para sair e não voltar ali mais se fosse preciso, e em todo caso não divulgar o segredo nem ao padre Vilela, quando este e João Lima os surpreenderam.
Tudo estava perdido.
D. Mariana recolheu-se ao Convento da Ajuda onde faleceu no tempo da guerra de Rosas. O padre Flávio obteve uma vigaria no interior de Minas, onde veio a falecer de tristeza e saudade. Vilela quis acompanhá-lo, mas o jovem amigo não o consentiu.
— De tudo o que me poderias pedir, disse Vilela, é isso o que mais me dói.
— Paciência! respondeu Flávio; eu preciso da solidão.
— Tê-la-ás?
— Sim; preciso da solidão para meditar nas conseqüências que o erro de um pode trazer a muitas existências.
Tal é a moralidade desta triste história.
Edição referência: http://www2.uol.com.br/machadodeassis
Publicado originalmente em Jornal das Famílias 1874