Textos
Textos para uso geral de domínio público.

Goivos e Camélias

O Dr. Lemos encontrou-o algumas vezes na rua. Andava com o ar inspirado de todos os poetas nóveis que se supõem apóstolos e mártires. Cabeça alta, olhos vagos, cabelos grandes e caídos; algumas vezes abotoava o paletó e punha a mão ao peito por ter visto assim um retrato de Guizot; outras vezes andava com as mãos para trás.
O Dr. Lemos falou-lhe a terceira vez que o viu assim, porque das duas primeiras o rapaz esquivou-se por modo que não pode deter-lhe o passo. Fez-lhe alguns elogios às suas produções.
Expandiu-se-lhe o rosto:
– Obrigado, disse ele; esses elogios são o melhor prêmio das minhas fadigas. O povo não está preparado para a poesia: as pessoas inteligentes, como o doutor, podem julgar do merecimento dos outros. Leu a minha Flor pálida?
– Uns versos publicados no domingo?
– Sim.
– Li; são galantíssimos.
– E sentimentais. Fiz aquela poesia em meia hora, e não emendei nada. Acontece-me isso muita vez. Que lhe parecem aqueles exdrúxulos?
– Acho-os exdrúxulos.
– São excelentes. Agora vou levar algumas estrofes que compus ontem. Intitulam-se À beira de um túmulo.
– Ah!
– Já assinou o meu livro?
– Ainda não.
– Nem assine. Quero dar-lhe um volume. Sai brevemente. Estou recolhendo as assinaturas. Goivos e Camélias; que lhe parece o título?
– Magnífico.
– Achei-o de repente. Lembraram-me outros, mas eram comuns. Goivos e Camélias, parece que é um título distinto e original; é o mesmo que se dissesse: tristezas e alegrias.
– Justamente.
Durante esse tempo, ia o poeta tirando do bolso uma aluvião de papéis. Procurava as estrofes de que falara. O Dr. Lemos quis esquivar-se, mas o homem era implacável; segurou-lhe no braço.
Ameaçado de ouvir ler os versos na rua, o doutor convidou o poeta a ir jantar com ele.
Foram a um hotel próximo.
– Ah! meu amigo, dizia ele em caminho; não imagina quantos invejosos andam a denegrir o meu nome. O meu talento tem sido o alvo de mil ataques; mas eu já estava disposto a isto. Não me espanto. A enxerga de Camões é um exemplo e uma consolação. Prometeu, atado ao Cáucaso, é o emblema do gênio. A posteridade é a vingança dos que sofrem os desdéns do seu tempo.
No hotel procurou o Dr. Lemos um lugar mais afastado, onde não chamassem muito a atenção das outras pessoas.
– Aqui estão as estrofes, disse Luís Tinoco conseguindo arrancar de um maço de papéis a poesia anunciada.
– Não lhe parece melhor lê-las à sobremesa?
– Como quiser, respondeu ele; tem razão, porque eu também estou com fome.
Luís Tinoco era todo prosa à mesa do jantar; comeu desencadernadamente.
– Não repare, dizia ele de quando em quando; isto é o animal que se está alimentando. O
espírito aqui não tem culpa nenhuma.
À sobremesa, estando na sala apenas cinco fregueses, desdobrou Luís Tinoco, o fatal papel e leu as anunciadas estrofes, com uma melopéia afetada e perfeitamente ridícula. Os versos falavam de tudo, da morte e da vida, das flores e dos vermes, dos amores e dos ódios; havia mais de oito ciprestes, cerca de vinte lágrimas, e mais túmulos do que um verdadeiro cemitério.
Os cinco fregueses jantantes voltaram a cabeça, quando Luís Tinoco começou a recitar os versos; depois começaram a sorrir e a murmurar alguma coisa que os dois não puderam ouvir.
Quando o poeta acabou, um dos circunstantes, assaz grosseiro, soltou uma gargalhada. Luís Tinoco voltou-se enfurecido, mas o Dr. Lemos conteve-o dizendo:
– Não é conosco.
– É, meu amigo, disse ele resignado; mas que lhe havemos de fazer? quem entende a poesia para a respeitar em toda a parte?
– Deixemos este lugar, disse o Dr. Lemos; aqui não compreendem o que é um poeta.
– Vamos!
O Dr. Lemos pagou a conta e saiu atrás de Luís Tinoco, que deitou ao rideiro um olhar de desafio.
Luís Tinoco acompanhou-o até à casa. Recitou-lhe em caminho alguns versos que sabia de cor. Quando ele se entregava à poesia, não à alheia, que o não preocupava muito, mas à própria, podia-se dizer que tudo mais se lhe apagava da memória; bastava-lhe a contemplação de si mesmo.
O Dr. Lemos ia ouvindo calado com a resignação de quem suporta a chuva, que não pode impedir.
Pouco tempo depois saíram a lume os Goivos e Camélias, que todos os jornais prometeram analisar mais de espaço.
Dizia o poeta no prólogo da obra, que era audácia da sua parte “vir assentar-se na mesa da comunhão da poesia, mas que todo aquele que se sentia dentro de si o j’ai quelque chose là, de André Chenier, devia dar à pátria aquilo que a natureza lhe deu”. Em seguida pedia desculpa para os seus verdes anos, e afirmava ao público que não tinha sido “embalado em berço de seda”.
Concluía dando a benção ao livro e chamando a atenção para a lista dos assinantes que vinha no fim.
Esta obra monumental passou despercebida no meio da indiferença geral. Apenas um folhetinista do tempo escreveu a respeito dela algumas linhas que fizeram rir a toda a gente, menos o autor, que foi agradecer ao folhetinista.
O Dr. Lemos perdeu de vista o seu poeta durante algum tempo. Digo mal; só perdeu de vista o homem, porque o poeta de quando em quando lhe aparecia metido em alguma produção literária, que o Dr. Lemos invariavelmente lia para se benzer da estéril pertinácia de Luís Tinoco. Não havia ocasião, enterro ou espetáculo solene, que escapasse à inspiração do fecundo escritor. Como o número de suas idéias fosse mui limitado, podia-se dizer que ele só havia escrito um necrológio, uma elegia, uma ode ou uma congratulação. Os diferentes exemplares de cada uma destas coisas eram a mesma coisa dita por outro modo. O modo porém constituía originalidade do poeta, originalidade que ele não teve a princípio, mas que se desenvolveu muito com o tempo.
Infelizmente enquanto se entregava com ardor às lides literárias, esquecia-se o poeta das lides forenses, donde lhe vinha o pão. Anastácio queixou-se um dia desta desgraça ao Dr. Lemos, numa carta que acabava assim: “Não sei, meu amigo Sr. Lemos, aonde irá parar este rapaz. Não lhe vejo outra conclusão: hospício ou xadrez.”
O Dr. Lemos mandou chamar o poeta. Elogiou-lhe as suas obras com o fim de lhe dispor o espírito a ouvir o que ia dizer. O rapaz expandiu-se.
– Ainda bem que eu ouço de quando em quando alguma voz animadora, disse ele; não sabe o que tem sido a inveja a meu respeito. Mas que importa? Tenho confiança no futuro; o que me vinga é a posteridade.
– Tem razão, a posteridade é que vinga das maroteiras contemporâneas.
– Li há dias num papelucho, que eu era um alinhavador de ninharias. Percebia a intenção.
Acusava-me de não meter ombros a obra de mais largo fôlego. Vou desmentir o papelucho: estou escrevendo um poema épico!
– Ai! disse o Dr. Lemos consigo, adivinhando alguma leitura forçada de poema.
– Podia mostrar-lhe alguma coisa, continuou Luís Tinoco, mas prefiro que leia a obra quando estiver mais adiantada.
– Muito bem.
– Tem dez cantos, cerca de 10.000 versos. Mas quer saber a minha desgraça?
– Qual é?
– Estou apaixonado...
– Realmente, é uma desgraça na sua posição.
– Que tem a minha posição?
– Creio que não é excelente. Dizem-me que se tem descuidado um pouco das suas obrigações do foro, e que brevemente lhe vão tirar o emprego.
– Fui despedido ontem.
– Já?
– É verdade. Se ouvisse o discurso com que eu respondi ao escrivão, diante de toda a gente que enchia o cartório! Vinguei-me.
– Mas... de que viverá agora? seu padrinho não pode, creio eu, com o peso da casa.
– Deus me ajudará. Não tenho eu uma pena na mão? Não recebi do berço um tal ou qual engenho, que já tem dado alguma coisa de si? Até agora nenhum lucro tentei tirar das minhas obras;
mas era só amador. Daqui em diante o caso muda de figura; é necessário ganhar o pão, ganharei o pão.
A convicção com que Luís Tinoco dizia estas palavras entristeceu o amigo do padrinho. O Dr.
Lemos contemplou durante alguns segundos, - com inveja, talvez, - aquele sonhador incorrigível, tão desapegado da realidade da vida, acreditando não só nos seus grandes destinos, mas também na verossimilhança de fazer de sua pena uma enxada.
– Oh! deixe estar! continuou Luís Tinoco; hei de provar-lhes, ao senhor e a meu padrinho, que não sou tão inútil como lhes pareço. Não me falta coragem, doutor; quando me faltasse, há uma estrela...
Luís Tinoco calou-se, retorceu o bigode, e olhou melancolicamente para o céu. O Dr. Lemos também olhou para o céu, mas sem melancolia, e perguntou rindo:
– Uma estrela? Ao meio-dia é raro...
– Oh! não falo dessas, interrompeu Luís Tinoco; lá é que ela devia estar, ali no espaço azul, entre as outras suas irmãs, mais velhas do que ela e menos formosas...
– Uma moça!
– Uma moça, é pouco; diga a mais gentil criatura que o sol ainda alumiou, uma sílfide, a minha Beatriz, a minha Julieta, a minha Laura...
– Escusa dizê-lo; deve ser muito formosa se fez apaixonar um poeta.
– Meu amigo, o senhor é um grande homem; Laura é um anjo, e eu adoro-a...
– E ela?
– Ela ignora talvez que eu me consumo.
– Isso é mau!
– Que quer? disse Luís Tinoco enxugando com o lenço uma lágrima imaginária; é fado dos poetas arderem por coisas que não podem obter. É esse o pensamento de uns versos que escrevi há oito dias. Publiquei-os no Caramanchão Literário.
– Que diacho é isso?
– É a minha folha, que eu mando de quinze em quinze dias... E diz que lê as minhas obras!
– As obras leio... Agora os títulos podem escapar. Vamos porém ao que importa.
Ninguém lhe contesta talento nem inspiração fecunda; mas o senhor ilude-se pensando que pode viver dos versos e dos artigos literários. Note que os seus versos e os seus artigos são muito superiores ao entendimento popular, e por isso devem ter muito menos aceitação...
Este desenganar com as mãos cheias de rosas, produziu salutar efeito de ânimo de Luís Tinoco; o poeta não pode sofrear um sorriso de satisfação e bem-aventurança. O amigo do padrinho concluiu o seu discurso oferecendo-lhe um lugar de escrevente em casa de um advogado. Luís Tinoco olhou para ele algum tempo sem dizer palavra. Depois:
– Volto ao foro, não? disse ele com a mais melancólica resignação deste mundo. Minha inspiração deve crescer outra vez a empoeirar-se nos libelos, a aturar os rábulas, a engrolar o vocabulário da chicana! E a troco de que? A troco de uns magros mil-réis, que eu não tenho e me são necessários para viver. Isto é sociedade, doutor?
– Má sociedade, se lhe parece, respondeu o Dr. Lemos com doçura, mas não há outra à mão, e a menos de não estar disposto a reformá-la, não tem outro recurso senão tolerá-la e viver.
O poeta deu alguns passos na sala; no fim depois minutos estendeu a mão ao amigo.
– Obrigado, disse ele, aceito; vejo que trata de meus interesses, sem desconhecer que me oferece um exílio.
– Um exílio e um ordenado, emendou o Dr. Lemos.
Daí a dias estava o poeta a copiar razões de embargos e de apelação, a lastimar-se, a maldizer da fortuna, sem adivinhar que daquele emprego devia nascer uma mudança nas suas aspirações. O
Dr. Lemos não lhe falou durante cinco meses. Um dia encontraram-se na rua. Perguntou-lhe pelo poema.
– Está parado, respondeu Luís Tinoco.
– Deixa-o de mão?
– Concluí-lo-ei quando tiver tempo.
– E a folha?
– Deve saber que acabei com ela; não lha mando há muito tempo.
– É verdade, mas podia ser um esquecimento. Muito me conta! Então acabou o Caramanchão Literário?
– Deixei-o morrer no melhor período de vitalidade: tinha oitenta assinantes pagantes...
– Mas então abandona as letras?
– Não, mas... Adeus.
– Adeus.
Pareceu simples tudo aquilo; mas tendo-se ganho alguma coisa, que era empregá-lo, o Dr.
Lemos deixou que o próprio poeta lhe fosse anunciar a causa do seu sono literário. Seria o namoro de Laura?
Esta Laura, preciso é que se diga, não era Laura, era simplesmente Inocência; o poeta chamava-lhe Laura nos seus versos, nome que lhe parecia mais doce, e efetivamente o era. Até que ponto existiu esse namoro, e em que proporções correspondeu a moça à chama do rapaz? A história não conservou muita informação a este respeito. O que se sabe com certeza é que um dia apareceu um rival no horizonte, tão poeta como o padrinho de Luís Tinoco, elemento muito mais conjugal do que o redator do Caramanchão Literário, e que de um só lance lhe derrubou todas as esperanças.
Não é preciso dizer ao leitor que este acontecimento enriqueceu a literatura com uma extensa e chorosa elegia, em que Luís Tinoco metrificou todas as queixas que pode ter de uma mulher um namorado traído. Esta obra tinha por epígrafe o nessun maggior dolore do poeta florentino.
Quando ele a acabou e emendou, releu-a em voz alta, passeando na alcova, deu o último apuro a um ou outro verso, admirou a harmonia de muitos, e singelamente confessou de si para si que era a sua melhor produção. O Caramanchão Literário ainda existia; Luís Tinoco apressou-se a levar o escrito ao prelo, não sem o ler aos seus colaboradores, cuja opinião foi idêntica à dele. Apesar da dor que o devia consumir, o poeta leu as provas com o maior desvelo e escrúpulo, assistiu à impressão dos primeiros exemplares da folha, e durante muitos dias releu os versos até cansar. Do que ele menos se lembrava era da perfídia que os inspirou.
Esta porém não era a razão do sono literário de Luís Tinoco. A razão era puramente política.
O advogado, cujo escrevente ele era, tinha sido deputado e colaborava numa gazeta política. O seu escritório era um centro, onde iam ter muitos homens públicos e se conversava largamente dos partidos e do governo. Luís Tinoco ouviu a princípio essas conversas com a indiferença de um deus envolvido no manto da sua imortalidade. Mas a pouco foi adquirindo gosto ao que ouvia. Já lia os discursos parlamentares e os artigos de polêmica. Da atenção passou rapidamente ao entusiasmo, porque naquele rapaz tudo era extremo, entusiasmo ou indiferença. Um dia levantou-se com a convicção de que os seus destinos eram políticos.
– A minha carreira literária está feita, disse ele ao Dr. Lemos quando falaram nisto; agora outro campo me chama.
– A política? Parece-lhe que é essa a sua vocação?
– Parece-me que posso fazer alguma coisa.
– Vejo que é modesto e não duvido que alguma voz interior o esteja convidando a queimar as suas asas de poeta. Mas, cuidado! Há de ter lido Macbeth... Cuidado com a voz das feiticeiras, meu amigo. Há no senhor demasiado sentimento, muita suscetibilidade, e não me parece que...
– Estou disposto a acudir à voz do destino, interrompeu impetuosamente Luís Tinoco. A
política chama-me ao seu campo; não posso, não devo, não quero cerrar-lhe os ouvidos. Não! as opressões do poder, as baionetas dos governos imorais e corrompidos, não podem desviar uma grande convicção do caminho que ela mesma escolheu. Sinto que sou chamado pela voz da verdade. Quem foge à voz da verdade? Os covardes e os ineptos. Não sou inepto nem covarde.
Tal foi a estréia oratória com que ele brindou o Dr. Lemos numa esquina numa esquina onde felizmente não passava ninguém.
– Só lhe peço uma coisa, disse o ex-poeta.
– O que é?
– Recomende-me ao doutor. Quero acompanhá-lo, e ser seu protegido; é o meu desejo.
O Dr. Lemos cedeu ao desejo de Luís Tinoco. Foi ter com o advogado e recomendou-lhe o escrevente, não com muita solicitude, mas também sem excessiva frieza. Felizmente o advogado era uma espécie de S. Francisco Xavier do partido, desejoso como ninguém de aumentar o pessoal militante; recebeu a recomendação com a melhor cara do mundo, e logo no dia seguinte, disse algumas palavras benévolas ao escrevente, que as ouviu trêmulo de comoção.
– Escreve alguma coisa, disse o advogado, e traga-me para ver se lhe achamos propensão.
Não foi preciso dizer-lho duas vezes. Dois dias depois, levou o ex-poeta ao seu protetor um artigo extenso e difuso, mas cheio de entusiasmo e fé. O advogado achou defeitos no trabalho;
apontou-lhe demasias e nebulosidades, frouxidão de argumentos, mais ornamentação que solidez;
todavia prometeu publicá-lo. Ou fosse porque lhe fizesse estas observações com muito jeito e benevolência, ou porque Luís Tinoco houvesse perdido alguma coisa da antiga suscetibilidade, ou porque a promessa de publicação lhe adoçasse o amargo da censura, ou por todas estas razões juntas, o certo é que ele ouviu com exemplar modéstia e alegria as palavras do protetor.
– Há de perder os defeitos com o tempo, disse ele mostrando o artigo aos amigos.
O artigo foi publicado e Luís Tinoco recebeu alguns apertos de mão. Aquela doce e indefinível alegria que ele sentira quando estampou no Correio Mercantil os seus primeiros versos, voltou a experimentá-la agora, mas alegria complicada de uma virtuosa resolução; Luís Tinoco desde aquele dia sinceramente acreditou que tinha uma missão, que a natureza e o destino o haviam mandado a terra para endireitar os tortos políticos.
Poucas pessoas se terão esquecido do período final da estréia política do ex-redator do Caramanchão Literário. Era assim: “Releve o poder, - hipócrita e sanhudo, - que eu lhe diga muito humildemente que não temo o desprezo nem o martírio. Moisés conduzindo os hebreus à terra da promissão, não teve a fortuna de entrar nela: é o símbolo do escritor que leva os homens à regeneração moral e política, sem lhe transpor as portas de ouro. Que poderia eu temer? Prometeu atado ao Cáucaso, Sócrates bebendo a cicuta, Cristo expirando na cruz, Savonarola indo ao suplício, John Brown esperneando na forca, são os grandes apóstolos da luz, o exemplo e conforto dos que amam a verdade, o remorso dos tiranos, e o terremoto do despotismo”.
Luís Tinoco não parou nestas primícias. Aquela mesma fecundidade da estação literária, veio a reproduzir-se na estação política, o protetor, entretanto, disse-lhe que era conveniente escrever menos e mais assentado. O ex-poeta não repeliu a advertência, e até lucrou com ela, produzindo alguns artigos menos desgrenhados no estilo e no pensamento. A erudição política de Luís Tinoco era nenhuma: o protetor emprestou-lhe alguns livros, que o ex-poeta aceitou com infinito prazer. Os leitores compreendem facilmente que o autor dos Goivos e Camélias não era homem que meditasse uma página de leitura; ele ia atrás das grandes frases, - sobretudo das frases sonoras, - demorava-se nelas, repeti-as, ruminava-as com verdadeira delícia. O que era reflexão, observação, análise parecia-lhe árido, e ele corria depressa por elas.
Algum tempo depois houve uma eleição primária. O publicista sentiu que havia em si um eleitor, e foi dizê-lo afoitamente ao advogado. O desejo não foi mal aceito; trabalharam-se as coisas de modo que Luís Tinoco teve o gosto de ser incluído numa chapa e a surpresa de ficar batido.
Batê-lo foi possível ao governo; abatê-lo, não. O ex-poeta, ainda quente do combate, traduziu em largos e floreados períodos o desprezo que lhe inspirava aquela vitória dos adversários. A esse artigo responderam os amigos do governo com um, que terminava assim: “Até onde quererá ir, com semelhante descomedimento de linguagem, o pimpolho do ex-deputado Z.?”
Luís Tinoco quase morreu de júbilo ao receber em cheio aquela descarga ministerial. A
imprensa adversa não o havia tratado até então com a consideração que ele desejava. Uma ou outra vez, haviam discutido argumentos seus: mas faltava o melhor, faltava o ataque pessoal, que lhe parecia ser o batismo de fogo naquela espécie de campanha. O advogado, lendo o ataque, disse ao ex-poeta que a sua posição era idêntica à do primeiro Pitt quando o ministro Walpole lhe respondeu chamando-lhe moço em plena câmara dos comuns, e que era necessário repelir no mesmo tom a ofensa ministerial. Luís Tinoco ignorava até aquela data a existência de Pitt e Walpole; achou todavia muito engenhosa a comparação das duas situações, e com habilidade e cautela perguntou ao advogado se lhe podia emprestar o discurso do orador britânico “para refrescar a memória”. O
advogado não tinha o discurso, mas deu-lhe a idéia dele, quanto bastou para que Luís Tinoco fosse escrever um longo artigo acerca do que era e não era pimpolho.
Entretanto, a luta eleitoral lhe descobrira um novo talento. Como fosse necessário arrengar algumas vezes, fê-lo o pimpolho a grande aprazimento seu e no meio de palmas gerais. Luís Tinoco perguntou a si mesmo se lhe era lícito aspirar às honras da tribuna. A resposta foi afirmativa. Esta nova ambição era mais difícil de satisfazer; o ex-poeta o reconheceu , e armou-se de paciência para esperar.
Aqui há uma lacuna na vida de Luís Tinoco. Razões que a história não conservou, levaram o jovem publicista à província natal do seu amigo e protetor, dois anos depois dos acontecimentos eleitorais. Não percamos tempo em conjenturar as causas desta viagem, nem as que ali o demoraram mais do que queria. Vamos já encontrá-lo alguns meses depois, colaborando num jornal com o mesmo ardor juvenil, de que dera tanta prova na capital. Recomendado pelo advogado aos seus amigos políticos e parentes, depressa criou Luís Tinoco um círculo de companheiros, e não tardou que assentasse em ali ficar algum tempo. O padrinho já estava morto; Luís Tinoco achava-se absolutamente sem família.
A ambição do orador não estava apagada pela satisfação do publicista; pelo contrário, uma coisa avivava a outra. A idéia de possuir duas armas, brandi-las ao mesmo tempo, ameaçar e bater com ambas os adversários, tornou-se-lhe idéia crônica, presente, inextinguível. Não era a vaidade que o levava, quero dizer, uma vaidade pueril. Luís Tinoco acreditava piamente que ele era um artigo do programa da Providência, e isso o sustinha e contentava. A sinceridade que nunca teve quando versificava os seus infortúnios entre suas palestras de rapazes, teve-a quando enterrou a mais e mais na política. É claro que, se alguém lhe pudesse em dúvida o mérito político, feri-lo-ia do mesmo modo que os que lhe contestavam excelências literárias; mas não era só a vaidade que lhe ofendiam, era também, e muito mais a fé, - fé profunda e intolerante, - que ele tinha de que o seu talento fazia parte da harmonia universal.
Luís Tinoco mandava ao Dr. Lemos, na corte, todos os seus escritos da província, e contavalhe singelamente as suas novas esperanças. Um dia noticiou-se que a sua eleição para a assembléia provincial era objeto de negociações que se lhe afiguravam propícias. O correio seguinte trouxe notícia de que a candidatura de Luís Tinoco entrara na ordem dos fatos consumados.
A eleição fez-se e não deu pouco trabalho ao candidato fluminense, que à força de muita luta e muito empenho pode ter a honra de ser incluído na lista dos vencedores. Quando lhe deram notícia da vitória, entoou a alma de Luís Tinoco um verdadeiro e solene Te Deum Laudamus. Um suspiro, o mais entranhado e desentranhado de quantos suspiros jamais soltaram homens, desafogou o coração do ex-poeta das dúvidas e incertezas de longas e cruéis semanas. Estava enfim eleito! Ia subir o primeiro degrau do Capitólio.
A noite foi mal dormida, como na véspera da publicação do primeiro soneto, e entremeada de sonhos análogos à situação. Luís Tinoco via-se já troando na assembléia provincial, entre os aplausos de uns, as imprecações de outros, a inveja de quase todos, e lendo em toda a imprensa da província os mais calorosos aplausos à sua nova e original eloqüência. Vinte exórdios fez o jovem deputado para o primeiro discurso, cujo assunto seria naturalmente digno de grandes rasgos e nervosos períodos. Ela já estudava mentalmente os gestos, a atitude, todo o exterior da figura que ia honrar a sala dos representantes da província.
Muitos grandes nomes da política haviam começado no parlamento provincial. Era verossímil, era indispensável até, para que ele cumprisse o mandato imperativo do destino, que saísse dali em pouco tempo para vir transpor a porta mais ampla da representação nacional. O expoeta ocupava já no espírito uma das cadeiras da Cadeia velha, e remirava-se na própria pessoas e no brilhante papel que teria de desempenhar. Via já diante de si a oposição ou o ministério no chão, com quatro ou cinco daqueles golpes que ele supunha saber dar como ninguém, e as gazetas a falarem, e o povo a ocupar-se dele, e o seu nome a repercutir em todos os ângulos e uma pasta a cair-lhe nas mãos, ao mesmo tempo que o bastão do comando ministerial.
Tudo isto, e muito mais imaginava o recente deputado, embrulhado nos lençóis, com a cabeça no travesseiro, e o espírito a vagar por esse mundo fora, que é a coisa pior que pode acontecer a um corpo mortificado como estava o dele naquela ocasião.
Não se demorou Luís Tinoco em escrever ao Dr. Lemos, e contar-lhe as suas esperanças e o programa que tencionava observar, desde que a fortuna lhe abria mais ampla estrada na vida pública. A carta tratava longamente do efeito provável da sua primeira oração, e terminava assim:
“Qualquer que seja o posto a que eu suba; qualquer, entenda bem, ainda aquele que é o primeiro do país, abaixo do imperador (e creio que irei até lá), nunca me há de esquecer que ao senhor o devo, à animação que me dispensou, à recomendação que fez de mim. Parece-me que até hoje tenho correspondido à confiança dos meus amigos; espero continuar a merecê-la”.
Inauguram-se enfim os trabalhos. Tão ansioso estava Luís Tinoco de falar que logo nas primeiras sessões, a propósito de um projeto sobre a colocação de um chafariz, fez um discurso de duas horas que demonstrou por A + B que a água era necessária ao homem. Mas a grande batalha foi dada na discussão do orçamento provincial. Luís Tinoco fez um longo discurso em que combateu o governo geral, o presidente, os adversários, a política e o despotismo. Seus gestos eram até então desconhecidos na escala da gesticulação parlamentar; na província, pelo menos, ninguém tivera nunca a satisfação de contemplar aquele sacudir de cabeça, aquele arquear de braço, aquele apontar , alçar, cair e bater com a mão direita.
O estilo também não era vulgar. Nunca se falou de receita e despesa com maior luxo de imagens e figuras. A receita foi comparada ao orvalho que as flores recolhem durante a noite; a despesa à brisa da manhã que as sacode e lhes entorna um pouco de sereno vivificante. Um bom governo é apenas brisa; o presidente atual foi declarado siroco e pampeiro. Toda a maioria protestou solenemente contra essa qualificação injuriosa, ainda que poética. Um dos secretários confessou que nunca do Rio de Janeiro lhes fora uma aura mais refrigerante.
Infelizmente os adversários não dormiam. Um deles, apenas Luís Tinoco acabou o discurso entre alguns aplausos dos seus amigos, pediu a palavra e cravou longo tempo os olhos no orador estreante. Depois sacou do bolso um maço de jornais e um folheto, concertou a garganta e disse:
– “Mandaram-nos do Rio de Janeiro o nobre deputado que me precedeu nesta tribuna.
Diziam que era uma ilustração fluminense, destinada a arrasar os talentos da província.
Imediatamente, Sr. presidente, tratei de obter as obras do nobre deputado.
“Aqui tenho eu, Sr. presidente, o Caramanchão Literário, folha redigida pelo meu adversário, e o volume dos Goivos e Camélias. Tenho lá em casa mais outras obras. Abramos os Goivos e Camélias.
O Sr. Luís Tinoco – O nobre deputado está fora da ordem! (Apoiados).
O orador – Continuo, Sr. presidente, aqui tenho os Goivos e Camélias. Vejamos um goivo.


Fonte:
ASSIS, Machado de. Histórias da meia-noite. São Paulo : LEL, [s.d.]. p. 176-246. (Coleção obras
ilustradas de Machado de Assis, v.1).

Texto proveniente de:
A Biblioteca Virtual do Estudante Brasileiro
A Escola do Futuro da Universidade de São Paulo
Permitido o uso apenas para fins educacionais.

Texto-base digitalizado por:
Jacqueline Rizental Machado – Curitiba/PR

Este material pode ser redistribuído livremente, desde que não seja alterado, e que as informações
acima sejam mantidas.



Compartilhe esse texto!

O que você achou desse texto?

Comente abaixo e participe!

0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
0
Os comentários não representam a opinião do site e seus parceiros. A responsabilidade do conteúdo da mensagem é unicamente do autor do comentário.