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Textos para uso geral de domínio público.

Apologos: contos para criança

Os vizinhos — O’ João, se te fosse dado pedir ao Senhor alguma coisa, que lhe pedias tu ?
— Eu? bem pouco. Pedia-lhe saude para mim e para os meus, mais a sua benção sobre as minhas terras que, d’uns tempos a esta parte, andam bem precisadas do favor divino.
— Só isso?
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Pois então se Deus apparecesse e quizesse amercear-te, só lhe pedias essa miseria?
—Para mim seria a melhor fortuna.
E tu?
—Eu? Ah! eu . . . Havia de pedir tanto ouro, tanto! que eu e a minha gente, dia e noite contando-o, não chegassemos, ao fim da vida, a saber a somma exacta da nossa fortuna.
—E para que tanto dinheiro?
—Ora! para ser o homem mais rico do mundo.
—Mas não o mais feliz.
—Como não? Que entendes tu por felicidade?
—Eu entendo que a felicidade é a saude do corpo e a paz do espirito.
—Pois cá para mim é o dinheiro.
Quem tem dinheiro tem tudo.
—Nem tudo.
Entraram numa trilha que cortava o cannavial viçoso.
APOLOGOS 9 Rompia clara e fresca a manhan.
Passarinhos cantavam nos ramos e as aguas brandas que discorriam punham no ar agradavel murmurio. O sino da igreja rustica, onde os dois homens haviam ouvido a missa do Natal, bimbalhava festivamente.
E elles lá iam com os seus altos cajados, por entre as hervas discutindo a felicidade.
Os sitios eram contiguos: limitava-os uma cerca de espinhos. Junto á primeira porteira, o que ambicionava a fortuna incontavel, despediu-se do companheiro.
— Então adeus, João. E olha que o Senhor não ficaria mais pobre se quizesse realisar o teu desejo. Adeus!
E o outro respondeu caminhando:
— E eu ficaria contente e renderia commovidas graças á sua misericordia.
Entrou o ambicioso no terreiro do 10 APOLOGOS
seu sitio e, ainda não avistara a casa, quando lhe pareceu ouvir alegre som metallico como de peças de ouro que rolassem tinindo. Estugou os passos ansiosos com o coração aos saltos, e, ao chegar á varanda, viu, sobre a mesa, um grande sacco transbordando de ouro. E eram dobrões novos, reluzentes como se houvessem sahido, naquella mesma manhan, da cunhagem. A mulher e os dois filhos empilhavam as moedas, tanto, porém, que viram o homem apparecer, correram a annunciar-lhe a boa nova.
« Entrara ali um formoso menino e, sem dizer palavra, deixára sobre a mesa aquelle sacco de ouro. Como lidassem com elle para que dissesse quem era, donde vinha, apenas respondera: Que era portador dum presente de Deus. E, com taes palavras, desapparecera. »
Lembrou-se, então, o homem da conversa que tivera com o vizinho e sorriu APOLOGOS 11 pensando : « Se Deus assim tão de prompto attendeu ao meu pedido avultado, por certo não deixou o delle sem resposta. » Pobre João! Como se ralará de inveja quando souber da minha riqueza.
Logo, porém, sem agradecer ao Senhor o generoso presente, disse para a mulher e para os filhos:
— Bem. Não percamos tempo. Ha ahi muito que contar. Vamos vêr quantos dobrões ha no sacco, que nem por isso é tão grande como podia ser. Em menos de meia hora poderemos ter a tarefa acabada.
E os quatro, em volta da mesa, puzeram-se a contar as moedas. Á medida que perfaziam um conto separavam as pilhas e assim cobriram a mesa e foram depois arrumando nos aparadores e nos bancos.
Veiu a noite, e o sacco sempre a despejar moedas.
Uma luz amarella aclarou o interior 12 APOLOGOS
da casa. As quatro criaturas allucinadas iam e vinham acastellando dobrões. Os moveis já estavam cobertos, passaram a juntá-los no chão. E não sentiam os dias nem as noites:
contavam fascinadas pelo ouro.
A casa encheu-se. Arrastaram o sacco para o paiol e o paiol ficou a deitar fóra.
Passaram ao moinho e abarrotaram-no;
recolheram ás tulhas, á abegoaria, a todos os cantos onde pudessem enthesourar. Por fim, como o sacco não se esvasiava, fôram empilhando mesmo no terreiro e ao longo dos caminhos onde as plantas haviam mirrado.
João, o modesto, logo ao passar a porteira do seu sitio, ficou deslumbrado vendo os seus milhos ostentando pendões viçosos, o seu feijoal alastrando, a sua vinha carregada, a fonte manando copiosamente, todo o seu gado nédio e luzidío, pastando afogado em hervas APOLOGOS 13 que haviam nascido em terreno sáfaro que sempre respondera com ingratidão a todo o tracto e ao mais penoso granjeio.
E ainda não sahira do pasmo quando viu apparecer á porta do casebre, que uma roseira recente floria e perfumava, a mulher, que elle deixara no leito, tolhida e ardendo em febre, rindo, robusta e córada, como no tempo em que a vira, ainda donzella e a pedira por noiva.
Comprehendendo immediatamente que, em tudo aquillo, andara a mão benefica de Deus, antes de acudir á mulher, que o chamava, ajoelhou-se e agradeceu o milagre. Erguendo-se, então, encaminhou-se á casa e a mulher, atirando-se-lhe nos braços, disse:
— Appareceu aqui um formoso menino e, tomando do regador, que ali estava, sahiu a regar as terras e, onde cahia a agua, fosse entre pedras, logo 14 APOLOGOS
rebentava a planta. O gado, depois de beber, de entrezilhado que estava, ficou assim como o vês; os milhos murchos cresceram e apendoaram ; o feijoal alastrou, o arroz veiu logo a flux, as arvores cobriram-se de flores, a fonte entrou a manar e, para maior espanto meu, quando abri os paióes, vi que estavam atulhados.
— E que te disse o menino?
— Sorriu e desappareceu; e foi o seu sorriso que me poz como estou. Logo sentime outra : pude andar e com tanta facilidade e ligeireza que corri todo o sitio e vi que todo elle está ricamente coberto de flores e de frutos.
— Foi Jesus que aqui esteve, disse o bom homem.
— Nem podia ser outro, confirmou a mulher.
E João, pensando no vizinho, disse, sem sombra de inveja:
— Se foi Deus que nos fez assim APOLOGOS 15 felizes, tambem a sua graça deve ter chegado ao nosso vizinho.
— Como sabes? perguntou a mu lher.
E João narrou a conversa que haviam entretido, depois da missa, atravessando o cannavial que se dourava ao sol.
— Deve estar, a esta hora, a contar o seu ouro.
— Não é mais feliz do que nós, disse a mulher.
— Não é, de certo, affirmou João, vendo chegar, a zumbir, um louro enxame de abelhas procurando cortiço onde aboletar-se.
Correram dias, correram mezes. Todos os sabbados João descia ao mercado e já havia comprado uma carreta para transportar os produtos da sua abençoada herdade, que prosperava a mais e mais, quando, uma vez, perguntaram-lhe pelo vizinho:
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« Que era feito de tal homem que nao apparecia? »
João sorriu lembrando-se da manhan do Natal.
« Para que havia elle de incommodar-se em lidas penosas se tinha, com certeza, mais ouro do que todos os reis da terra? » Quiz, entretanto, convencer-se e, esvasiada a ultima ceira, subiu para a carreta resolvido a passar nas terras do vizinho.
Logo que avistou a porteira travou-selhe o coração presago. Um mattagal intonso cobria os caminhos; os talhões, outrora viçosos, desappareciam afogados em urtigas. Nem uma ovelha balava e do casebre não subia o fumo denunciador da vida. Estava tudo entristecido e calado como um cemiterio.
João foi guiando lentamente o animal e o carro rangia por entre as hervas altas que haviam reconquistado o terreno, dantes tão rico em flôr e em fruto.
APOLOGOS 17 Diante da porteira desceu e, depois de muito haver batido, resolveu penetrar com um presentimento de desgraça. E foi.
O terreiro era um matto bravio. A
parietaria trepava nos muros tendidos do casebre. Aves sinistras abalaram vendo aproximar-se o homem curioso.
João, parando no terreiro, bradou para o casebre escancarado. Não teve resposta.
Resolveu caminhar e foi.
Ouando chegou ao limiar da casa viu pilhas e pilhas de moedas de ouro; tocando, porém, em uma d’ellas estremeceu ao vê-la desfazer-se em pó. Proseguiu.
Por toda a parte eram montões de ouro, mas como as taboas do soalho oscillassem, a fortuna logo rolava convertida em poeira. E
João seguiu até a sala de jantar.
Em volta da mesa estavam quatro esqueletos curvados sobre montes de 2 18 APOLOGOS
esqueletos e esconder-se-lhe no craneo como na propria lura.
Não se conteve então: recuando as-
APOLOGOS 19 sombrado afastou-se da casa maldita e, mal chegou á porteira, ouviu grande estrondo como um desmoronamento. O casebre aluira e uma poeirada negra escurecia os ares.
João persignou-se e, subindo para a carreta, tocou o animal fugindo áquelle sitio malsinado, lembrando-se do ambicioso desejo do vizinho, que Deus satisfizera:
«Tanto ouro, tanto! que elle e a sua gente, dia e noite, contando-o, não chegassem, ao fim da vida, a saber a somma exacta da fortuna.» E ali tinham elles o ouro : poeira, sómente poeira.
Os desgraçados haviam succumbido á fadiga e á fome contando, sem pausa, as moedas que inexoravelmente transbordavam do sacco inesgotavel.
Quando avistou, por entre as arvores, a sua cazinha alegre, toda em verdura, e viu o seu gado robusto e a sua cultura exuberante, de novo rendeu gra-
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ças ao Senhor que ouvira o seu voto e lhe recompensara largamente o desejo modesto, dando-lhe a saude, que é a riqueza do corpo, e a tranquillidade, que é a fortuna do espirito.
E os seus haveres eram mais que sufficientes, porque não só lhe davam para a abastança como ainda deixavam sobras que eram repartidas em esmolas.
E assim, acudindo ao pobre, demonstrava ao Senhor a sua gratidão. E o outro, no proprio premio tivera o justo castigo da sua desmarcada ambição.
E foi assim que Jesus infante satisfez os desejos dos dois vizinhos.
O pescador Todas as tardes, quando o sol sanguineo, descendo no horizonte afogueado, parecia apagar-se nas aguas lisas do rio; quando as jandaias, em grandes nuvens verdes, passavam chalrando na direcção das ilhas, a piróga do moço pescador deslisava ligeira, rio acima, serena, ao som dos remos.
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Era um lindo e guapo mancebo: moreno e forte, d’olhos e cabellos negros. Mais duma donzella corria á barranca quando lhe ouvia a voz afinada e seguia-o enamoradamente com o olhar apaixonado até que elle se perdia num dos igapós, entre ramas.
Não havia pescador tão ousado nem tão feliz como elle. Quando os outros, no tempo das cheias, receiavam as aguas temerosas, elle sahia sózinho, cantando, ia lançar a rede longe e voltava com o barco cheio de pescado, não porque precisasse, senão por vaidade — para que vissem que não se abrigára em remanso, mas affrontára as aguas revoltadas tirando os grandes peixes que não chegam ás margens e só vivem nos lugares profundos.
A mãi, numa tarde borrascosa, disse, querendo prendê-lo:
— Não te afoites, filho. A prudencia é companheira segura e não é valentia APOLOGOS 23 provocar a Morte nos abysmos. Se a tempestade cahir acolhe-te a algum porto e deixa que os ventos amainem e que as ondas se abonancem. Não te arrisques inutilmente.
A intrepidez é do bravo; a temeridade é do louco. Ouve-me, porque eu falo-te com o coração.
Ai! de mim se te perderes nas aguas traidoras. Os outros gabam-te a coragem e são taes louvores que te estão encaminhando á perdição.
Julgas, talvez, que é só pela tua audacia que vais affrontar a morte? É a tua vaidade que te arrasta, filho. E a vaidade é perfida como a yára que vive no fundo dos rios attrahindo, com o seu canto, os imprudentes como tu.
Muitos dos que te gabam rejubilarão no dia em que succumbires, porque a inveja de tudo tira partido e, elevando-te, ella quer que subas bem alto para que a queda seja mortal. Não te fies.
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Quando o tempo estiver firme sahe com o teu barco; em noites tormentosas faze como os demais que se deixam ficar seguros e agasalhados, gosando o calor do fogo, ouvindo o vento gemer nos ramos das arvores e a agua do rio escachoar nas pedras.
Sahes, és o único que a tanto se aventura em frágil piróga e, quando passas ao largo e vês em terra uma luzinha de choça, murmuras, com a vaidade a encher-te o coração:
«Ha ali alguém a pensar em mim.» E
accendes a tua lanterna para que a vejam de terra e digam :
«Lá vai Amadeu. Não ha outro de tanta coragem.»
Sabes que assim exaltam a tua audacia e é para que murmurem á tua passagem: «Lá vai o mais valente pescador das ilhas», que andas imprudentemente a desafiar a morte.
Quando a gloria acena á audacia, APOLOGOS 25 comprehende-se que um homem arrisque a sua vida; mas que proveito tiras tu de taes actos de louco? Deixas meu coração em soffrimento e, se pereceres, nem mesmo, talvez, o lodo do rio me restitua o teu cadaver para que eu o sepulte carinhosamente, marcando o tumulo com uma cruz e regando-o com as minhas lagrimas.
Não te deixes levar pelas palavras, enganadoras. És bravo, espera occasião opportuna para mostrares teu animo.
Ninguém tem maior interesse na tua gloria do que eu.
O moço, que caminhava para o portinho, não deu attenção ás palavras da velha e, desatracando a piróga, que zimbrava na mareta, remou fazendo-se ao largo.
A tarde conturbava-se a mais e mais:
relampagos inflammavam as nuvens pesadas e coriscos zebravam a densidão do horizonte. A folhagem das arvores 26 APOLOGOS
parecia de bronze — dura e immovel na calmaria mórna. Aves passavam apressadas, em vôo largo, recolhendo aos ninhos ou ás luras e as aguas do rio desciam, rolavam grossas, escuras, refulgindo sinistramente quando o céu flammejava.
A piróga subia. De outras, que proejavam ligeiras á terra, pescadores perguntavam ao moço ousado:
— Vais sahir com tal tempo?
— Porque não?
— Cuidado! O rio cresce e o temporal não tarda.
— Não é só com o luar que se avista o rumo; o relampago tambem alumía.
— Olha lá! As yáras fazem maldades nas noites sem estrellas.
— Dizem que são formosas e eu ainda as não vi. Queira Deus que hoje as encontre em meu caminho.
E lá ia. Ao passar perto das ilhas levantava a voz cantando para annun-
APOLOGOS 27 ciar-se ás donzellas e gosava, ufano, imaginando que todas pediam por elle, ajoelhadas diante das imagens milagrosas, accendendo lampadas e fazendo promessas.
Adensavam-se as trévas. O moço pescador tentou, por vezes, accender a lanterna, mas o vento logo a apagava.
Ao livido clarão do relampago via a agua negra, o céu negro, a massa escura do arvoredo das ilhas e as montanhas longinquas.
As rijas lufadas levantava-se marulho formidavel, galhos estalavam e cahiam nagua, descendo na correnteza. Raios estrondavam, e a piróga, á mercê das ondas enfurecidas, mal obedecia á pá do pescador.
Sem vêr na escuridão, Amadeu ouvia o rio rugir furioso e tiritava encharcado sob o aguaceiro torrencial.
Aquella hora a pobre mãi chorava 28 APOLOGOS
afflicta, pedindo o favor de Deus, e nas cabanas das ilhas quantos pequeninos corações batendo por elle, quantos lábios vermelhos balbuciando rezas !
Ah ! se elle conseguisse escapar, tirar-se daquelle perigo, como o haviam de admirar e, nas feiras, quando elle passasse airoso, affluiria gente para vê-lo e diriam á boca pequena :
« E o pescador que não teme as tempestades e ri das yáras que sobem á tona das aguas quando não ha estrellas no céu.»
Ao luzir dum relampago elle viu que estava a pouca distancia de terra. Animou-se e, remando esforçadamente, conseguiu atracar. Prendeu a piróga e saltou na ilhota que a Providencia lhe deparara. Estava salvo.
Ali podia esperar que a tormenta serenasse e, com a luz da manhan, regressaria á cabana tranquillisando a pobre velha e maravilhando a gente que, com APOLOGOS 29 certeza, já o julgava perdido, sossobrado naquellas aguas que roncavam com tamanho fragor, arrancando violentamente grandes arvores das ribanceiras.
Encolheu-se, retransido e com medo, ouvindo, atravez da zoada do vento e do estrondo das aguas, o fremito das onças apavoradas.
Já se sentia perto, ouvia o estralejar dos ramos sob as pesadas patas e, olhando, via reluzirem na treva as pupillas phosphorejantes dos terriveis felinos. Mas era tudo illusão do pavor: só tempestade reinava assoberbando o rio.
E, de novo, poz-se Amadeu a pensar na volta triumphante e nas palavras que diriam os que o vissem apparecer cantando, a remar a piróga carregada de peixe.
Peixe ... Sim, era necessario que levasse algum para que os invejosos não dissessem, menoscabando-o : «Que elle, APOLOGOS
em vez de andar sobre as aguas, acolhera-se covardemente a alguma ponta de terra. »
A prova era indispensavel e, se a atroada da tormenta aconselhava prudencia, o desejo de ser admirado, a ambição dos louvores impellia-o ao perigo e, como fôra feliz salvando-se naquella ilhota, a mesma fortuna havia de segui-lo na aventura arriscada a que se ia metter.
Pensando nos companheiros e nas donzellas e já ouvindo, na imaginação, os elogios á sua coragem, saltou na piróga e fez-se ao largo.
O rio esbravejava. Grandes troncos aboiavam levados na correnteza; remoinhos ferviam ameaçadoramente e, ao clarear dos relampagos, elle entrevia o abysmo no qual a piróga valia tanto como uma leve folha.
Um tronco abalroou-a impellindo-a com violencia e um grande jorro d’agua, APOLOGOS 31 assaltando-a pela prôa, advertiu o imprudente moço do perigo.
Ai! delle, era tarde. Poz-se a remar com desespero, mas a piróga não resistia ao impeto das aguas e, girando, descia vertiginosamente aos encontrões nas arvores, emmaranhando-se em camalótes, sem que o esforço do pescador a pudesse salvar.
A pesca! Um peixe, ao menos, que servisse de prova aos que duvidassem da sua afoiteza. E o temporal rugia.
Passando, levado na correnteza, via na treva, a um e a outro lado, luzes que assignalavam cabanas. Onde estaria a delle, pouco além do portinho, entre coqueiros?
Em todas, por certo, pediam a Deus por elle.
Gritou. Pobre voz que o vento levou como levava as folhas das arvores!
E as aguas cresciam medonhas.
Um ramo roçou-lhe o rosto. Estremeceu lembrando-se das yáras traidoras 32 APOLOGOS
que arrastam os pescadores imprudentes para o fundo das aguas.
Deviam ser ellas que cercavam a sua pequenina piróga. Ai! Delle ... Nunca mais folgaria nos serões ouvindo os cantos alegres, dançando o sapateado á luz do luar.
E porque se precipitára? Não o guiára a mão benigna da Providencia áquella ilhota?
Não achara elle refugio seguro naquelle surgidouro? Porque o deixára? por vaidade e era a vaidade que o ia levando para a morte.
E nunca mais falariam nelle, outros teriam os amores das lindas moças emquanto que elle, rolando, desappareceria para o sempre no lodo do rio, como dissera a mãi por entre lagrimas presagas.
Um relampago fulgurou e, subito, sem que lhe desse tempo de desviar a piróga, um grande tronco virou-a.
Amadeu nadou enfraquecidamente, lutando com as aguas e com a treva APOLOGOS 33 e, no delirio, parecia que, de todos os lados, vozes o acclamavam victoriando-o.
Exhausto de forças desceu ao fundo das aguas; ainda num derradeiro, supremo esforço emergiu á tona e pareceu3 34 APOLOGOS
lhe ouvir uma voz, a voz da sua velha mãi, chamando-o : «Amadeu » !
Tentou gritar: a agua abafou-lhe o grito e o rio rolou soberbo, tocado pela tempestade.
Hoje, quem se lembra do moço pescador? só a pobre mãe que o chama com a voz da saudade. Os mais, sempre que alludem á sua morte, dizem: «O que o matou foi a vaidade.» E as velhas accrescentam: «Foi castigo do céu.»
As duas princezas Como lhe não houvesse nascido um varão que fosse o seu successor, empunhando com magestade o sceptro e brandindo a lança rija e aguda, o velho rei vivia melancolicamente entre as filhas, que eram duas, ambas de formosura rara, mas de constituições differentes.
A mais velha, nascida sob o signo sangrento de Saturno, era alta e robusta, afoita e agil como um caçador de tigres.
Na sua recámara tudo falava de caçadas e guerras. Pelas paredes eram paineis bellicosos, tropheus d’armas, es-
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cudos, em um dos quaes, finamente polido por alfageme perito, todas as manhans reflectia-se o rosto moreno da princeza, cujos olhos negros brilhavam como dois carvões que centelhas vivazes accendessem.
As pelles que forravam o soalho eram de feras que ella mesma caçára nos juncaes ou nas mattas.
Nada ali havia que lembrasse a mulher.
Dir-se-ia a tenda de um chefe de hoste em vez de camara de princeza real.
Ainda menina — contavam os areheiros palacianos — quando os clarins vibravam no campo de manobra, chamando a exercicio a fina flôr dos guerreiros, descendo precipitadamente as escadas do paço, que eram do mais fino marmore, balaustradas de prata, ella invadia a casa d’armas e, escolhendo entre as lanças a de ferro mais fino, com um escudo embraçado, reclamava o seu negro e fogoso ginete e, antes que o pa- APOLOGOS 37 38 APOLOGOS
gem lhe apresentasse o estribo, lésta e sorrindo, saltava na sella e upa! lá ia, cabello solto ao vento, divinamente bella, divinamente heroica, formar entre os cavalleiros cujas armas brilhavam ao sol.
O velho rei, do balcão do paço, entre os aulicos, contemplava-a com orgulho, e, quando os esquadrões, com estropeada estrondosa, vinham, d’arremettida, seguindo o pendão real que palpitava ao vento, o primeiro ginete que vingava a trincheira era negro e sobre elle sorria, córada, a lança em riste, o escudo ao peito, a princeza, linda como o proprio genio da guerra que os poetas celebravam nos seus cantos.
A mais moça... Oh! a mais moça! Vê-la era entre donzellas, fiando sêda, bordando a ouro, com uma harpa aos pés, sempre afinada para acompanhar-lhe a voz.
Vê-la era nos perfumados meandros APOLOGOS 39 do parque onde as rosas eram mais abundantes ou na sua camara, toda alfaiada de tapeçarias, nas quaes os artistas haviam figurado episodios pastoris e scenas commovedoras da piedade dos eremitas.
O perfume das flores tornava o ambiente delicioso e, como tudo era paz em tão encantador recinto, as borboletas entravam com intimidade, pousavam na sêda das cortinas brancas, ficavam, ás vezes, como adormecidas, entre os lotus das tapeçarias, ou iam afoitamente até a dona mimosa de tantos penhores e acariciavam-na com meiguice, como se a tomassem por uma grande flôr.
Emquanto a mais velha pensava em justas e em montarias, ella interrogava, em segredo, os camaristas, informando-se do soffrimento do povo e, sahindo, nunca se encontravam as duas irmans porque, se uma ia a caminho dos arsenaes e das tercenas, ia a outra em 40 APOLOGOS
visita á pobreza, espalhando, bondosamente, a esmola e o carinho.
O rei tinha a mais moça em conta muito inferior e, quando dizia : — Minha filha — todos s a b i a m de quem falava e, para o lisonjearem, logo gabavam a galhardia da mais velha.
Nesse tempo as guerras eram frequentes. Ás vezes uma cidade, que adormecera em paz, acordava com um exercito fervilhando em volta dos seus muros.
Correndo a noticia de que o rei valetudinario já não podia com o peso de uma lança, um principe vizinho armou APOLOGOS 41 a sua gente e, com copioso material de guerra, apresentou-se ante as portas da cidade.
Tomado assim de surpresa, o monarcha convocou os generaes e combinava com elles o plano de defesa quanda a filha, acobertada d’aço e empunhando uma lança, rompeu na sala do conselho e falou offerecendo-se para levar á victoria o exercito glorioso.
O rei sorriu de alegria e de orgulho; os cortezãos louvaram a intrepidez da donzella. Só um velho, cuja cabeça era mais alva do que o íinho córado ao luar, ousou levantar a voz contrariando a temeraria:
— Senhor, sou dos que mais amam a princeza: estes braços, hoje enfraquecidos, acalentaramm-na quando era pequenina.
Amo-a como se minha filha fosse e veneroa como minha senhora, que é. Tenho-a visto entre os guerreiros, terçando como os melhores e levan-
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do o seu ginete aos pontos mais arriscados.
As armaduras acobertam o corpo e defendem-no dos golpes, mas não houve ainda alfageme que temperasse uma couraça para o coração e a melhor peça do arnez é ainda, senhor, o animo.
Vossa filha póde brilhar em exercidos, mas não a mandeis a combates, que não é de mulheres tal officio. Outras batalhas, e não menos rudes, vencem ellas, mas com armas bem differentes das que manejamos.
Dai o régio pendão a um guerreiro e as nossas armas repellirão as lanças do invasor.
Não vos illudais ouvindo o coração quando se trata da Patria.
Pasmaram todos do atrevimento do velho fidalgo e a princeza, afogueada em furor, não mais pediu o commando do exercito, mas conhecendo a fraqueza paterna, fez do pedido exigencia e o APOLOGOS 43 rei, ali mesmo, a investiu do poder supremo, apresentando-a aos generaes calados.
E sahiram alvoroçadamente as tropas levando á frente, em negro e ardego ginete, a atrevida donzella.
Instantes depois fóra, ao sol, estrondavam as armas.
Á primeira investida os inimigos recuaram, tanto, porém, que se espalhou a noticia de que era uma mulher que dirigia a batalha, logo a soldadesca, que ia cedendo o terreno, voltou á acção com tal denodo que, antes do sol baixar por traz das verdes collinas, do numeroso e aguerrido exercito do velho rei jazia no campo a melhor parte e o resto, destroçado, fugia alijando as ar-
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mas e, entre os ginetes que mais corriam, via-se um, negro, cavalgado por um guerreiro que soluçava.
Abriram-se as portas da cidade e o negro ginete passou levando, em galope desabrido, o cavalleiro lindo que chorava.
Dois mezes durou o cerco, dois grandes mezes crueis e a cidade gemia curtindo sêde, porque o inimigo havia destruído os aqueductos, quando a princeza mais moça resolveu falar ao pai que a desgraça prostrara.
Encontrou-o na camara, com a face mais envelhecida e os olhos consumidos pelo pranto. Ajoelhando-se diante delle pediu-lhe a donzella para sahir a entender-se com o inimigo. Mirou-a o pai com espanto e, depois de angustioso silencio, disse-lhe, por entre lagrimas:
— Como queres sahir, filha ultima do meu amor, se dos meus guerreiros nem um só resta para guardar-te?
APOLOGOS 45 —Nem eu os quizera, senhor, ainda que os houvesse. Disse e, voltando-se graciosamente, mostrou o cortejo de donzellas, companheiras frageis que a seguiam sempre. Com ellas vou e com ellas passarei por entre as tendas do inimigo até chegar á do principe que nos avexa.
—E como poderás garantir-te contra gente tão vil?
—Senhor, levo no seio um punhal que me defenderá, se preciso fôr, não se voltando contra o inimigo que sorriria, e com razão, do gesto presumpçoso e ridiculo, mas cravando-se no proprio seio em que vai. Eu vou apenas pedir.
—E acreditas que tal tyranno ceda aos teus rogos?
—Sou fraca como devo ser: se a minha boca não conseguir domá-lo, meus olhos, que vão cançados de chorar, ainda darão lagrimas por vós.
E a princeza partiu.
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Na manhan seguinte, uma atalaia, que vigiava em uma torre, desceu a annunciar que as tendas haviam desapparecido e que, para os lados das montanhas, densa nuvem de poeira escondia o grande exercito que se retirava.
Correu todo o povo ás muralhas, o rei subiu ao torreão e todos viram que o soldado dissera a verdade.
O rei olhava ainda quando viu vir, entre virgens, seguida de muitas lanças, a princeza mimosa.
Os guerreiros que a acompanhavam pararam a curta distancia das muralhas e, logo que ella entrou na cidade, retrocederam silenciosos. O velho rei, que descera a recebê-la, acolheu-a nos braços e, com muitas lagrimas de alegria, perguntou commovido:
— Que fizeste para abrandar o coração do monstro?
— Senhor, nem sei dizer como consegui o que a todos parecia um sonho. APOLOGOS 47 Ia falar quando os soluços me travaram a voz. Sei que levantei os olhos porque vi a face rude do guerreiro. Eu acreditava que faria muito, mas ... Não encareçais a minha victoria porque, em verdade, nada fiz. Não me culpeis, porém, senhor, que sou mulher.
— E por isso venceu, porque tuda vence a fraqueza da mulher mimosa, disse, entre os cortezãos, o mais velho de todos.
O premio da traição Havia mais de um anno que o aguerrido exercito do poderoso Rei das Montanhas sustentava o sitio, apertando-o a mais e mais, sem que os da pequenina cidade dessem signaes de fraqueza. Parecia que se retemperavam no soffrimento, tirando da angustia maior energia e mais empenho em resistir ao conquistador, que se irritava com a valentia de tão desapercebida praça, elle, que vira, á sua passagem, arriarem-se as pontes dos mais soberbos castellos e abrirem-se as portas das mais orgulhosas cidades e recebera, na sua tenda de APOLOGOS 49 purpura, pareas e vassalagem de tantos principes e ricos homens.
Os seus mais experimentados cabos de guerra murmuravam desgostosos da sua contumacia e já corriam no acampamento lendas maravilhosas que, a seu modo, explicavam a resistencia da cidade.
Umas affirmavam que certo magico, pactuado com demonios, abastecia a cidade e havia quem jurasse haver visto enormes aguias cortarem os ares levando nas garras fardos e ceirões.
Outras garantiam que os sitiados haviam cavado galerias subterraneas pelas quaes recebiam soccorro. Havia até quem estivesse convencido de que na rija praça não existia viv’alma, jurando que eram duendes que appareciam entre as ameias, arrojando explosivos ou mostravam-se nas torres ao clarão das almenáras.
O rei não dormia, desesperado.
Pa recia-lhe humilhação infamante tão te3 50 APOLOGOS
nacissima resistencia. Que diriam os seus inimigos quando soubessem que elle levantara o cerco, desanimado, sem poder colher ás mãos um só dos habitantes da pequenina cidade?
Uma noite, percorria elle, a longas passadas, a sua tenda, arrancando furiosamente as barbas, quando um velho e astuto general pediu para falar-lhe. Recebeu-o immediatamente imaginando que, provado em tantas guerras e sempre fertil em traças felizes, trazia bem ajustado plano de assalto e, fazendo-o sentar-se, ordenou: que falasse.
E disse o velho em tom calmo:
— Parece, senhor, que, a ferro e fogo, tão cedo não lograremos victoria sobre tal gente. A cidade é pequena, mas os animos são grandes. Ha mais de um anno que temos aqui as tendas assentadas e ainda não pudemos abrir brecha na cinta de muralhas por traz da qual tanto nos hostilisam.
APOLOGOS 51 Os mais valentes soldados do vosso exercito mostram-se desanimados e muitos, não podendo achar explicação natural para tão espantosa resistencia, vêm nella influencias maravilhosas e isso é bastante para que os mais ousados se acobardem.
Estou convencido de que se os sitiados tentassem uma sortida delles seriam os primeiros triumphos. A superstição amolga a coragem.
Venho suggerir a V. M. um meio que, se não é leal e airoso, dá-nos, com certeza, a victoria que almejamos.
Deixemos de parte as armas que nada pódem contra as pedras inabalaveis das muralhas e, em vez dos clarins soarem, que sôe a voz de pregoeiros offerecendo avultada somma a quem entregar a cidade.
O que não fazem pontas agudas de lanças e gume de espadas, fazem as moedas.
A principio o rei, que era um ver-
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dadeiro homem de guerra, valente e generoso, repelliu a proposta por achá-la repugnante, mas o amor proprio foi mais forte do que o brio, e na manhan seguinte, calados os clarins, ouviram-se vozes altas apregoando o suborno.
O dia passou sem resposta. Veiu a tarde silente. Por fim a noite baixou. Já o rei estava sem esperança de colher o resultado que lhe fôra promettido pelo astuto general, quando um homem livido, esfarrapado, appareceu no acampamento pedindo para falar-lhe.
O monarcha recebeu-o no seu pavilhão faustosamente empavesado e o homem, prostrando-se com a face na terra, declarou:
« Que ouvira as palavras do pregão e que por ellas viera trazendo a chave de uma das portas da cidade, cuja defesa lhe fôra confiada e, certo de que principe tão valoroso honraria a sua palavra, a seus pés deixava o meio unico APOLOGOS 53 de poder o exercito penetrar na praça inexpugnavel, que estava abastecida de meios para resistir ainda durante um anno e contava com todos os seus habitantes, não só os homens válidos, mas os velhos e ainda as mulheres e as crianças que se empenhavam, com inquebrantavel furia, na defesa, preferindo a morte heroica á vergonha humilhante da rendição. »
Dizendo palavras taes o miseravel fez entrega da chave. O monarcha contemplouo em silencio, alisando vagarosamente a barba longa; depois, chamando um dos generaes, disse que cumprisse a promessa que fôra annunciada pelos pregoeiros; e accrescentou :
— E tomai a chave, que aqui está, que abre a porta occidental da cidade, e lançai-a por cima das muralhas, para que não se diga que venci com infamia tão vil a gente tão valorosa.
Voltando-se então para o esperto ge-
54 APOLOGO 55 APOLOGOS
neral que o contemplava maravilhado, disse:
— E agora, meu amigo, levantemos as tendas, não fiquemos aqui inutilmente. Se quando havia um traidor não conseguimos vencer, que poderemos conseguir agora que, astuciosamente, fizemos sahir o unico miseravel?
E, na manhan seguinte, enroladas as tendas, o grande exercito moveu-se lentamente tomando a direcção das Montanhas.
Não se deu o traidor por affrontado com as nobres palavras que ouviu. Alegre com o ouro que lhe foi contado, deixou o acampamento e, com um ultimo olhar aos muros da cidade heroica, cuja honra vendera, foi-se pelos campos traçando planos de vida faustosa e regalada.
Os soldados que o viam passar injuriavam-no — porque ao proprio a 56 APOLOGOS
quem ella aproveita a traição repugna. O
homem, surdo a apodos e assuadas, lá ia e desappareceu no bosque, contente com a fortuna que levava.
Caminhou todo um longo dia e toda uma noite ao lado do carro que transportava o seu ouro e, ao romper da manhan, cançado, resolveu dormir algumas horas, protegido pelas grandes arvores de uma floresta, para refazer-se e poder continuar a viagem em direcção á cidade que escolhera para habitar.
Deitando-se sobre as folhas seccas logo adormeceu. Longe, porém, de achar no somno o repouso de que carecia, delle apenas tirou tormento.
Sonho atroz perseguiu-o: Viu a cidade em chammas, com as casas estalando e ruindo em braseiro; as ruas alagadas de sangue sobre o qual boiavam cadaveres e elle seguia, vadeando a sangueira, á procura da sua casa.
Mas os mortos, á sua passagem, er-
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guiam-se com aspecto tragico, ameaçadores e, como elle tivesse de atravessar o cemiterio, viu abrir-se um tumulo e lançar de si livido espectro que esque-
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letos perseguiam e nelle reconheceu a propria mãi.
E os perseguidores bradavam: « Maldita sejas tu que geraste o monstro que nos trahiu, abrindo a cidade ao inimigo que profanou a terra sagrada sobre a qual viviam, entre flores e frutos, os filhos que deixamos!»
E o espectro, a bracejar desesperadamente, fugia procurando encafuar-se nos mausoleus que encontrava, mas de todos rompiam brados, subiam labaredas e o trasgo proseguia na carreira até que desappareceu em trevosa furna onde bailavam demonios.
O miseravel acordou afflicto, sentou-se no seu leito silvestre e ficou a pensar. Ia alto o sol, os passarinhos piavam nos ramos.
Atrelando os animaes ao carro, poz-se a caminho, mas a fome apertava e elle resolveu comer alguma coisa numa APOLOGOS 59 estalagem que apparecia, com um largo alpendre coberto de folhagens floridas.
Entrando encommendou um bom alalmoço e certo vinho velho de que lhe falara o estalajadeiro.
Veiu o cantaro e, como a sede era grande, o homem encheu um copo; levandoo, porém, á bôca sentiu gosto de sangue.
Chamou o estalajadeiro e disse-lhe irritado:
— Este vinho sabe a sangue!
O alberguista pasmou e, levantando o copo á altura dos olhos, á luz do sol, sorriu das palavras que ouvia.
— O vinho é puro e do melhor que ha nestes lugares e, provando, concluiu:
Não ha outro que se lhe compare em sa bor e em arôma.
Para demonstrar a verdade do que dizia, offereceu-o á prova a quantos ali se achavam e o louvor foi unanime: « Que o vinho era excellente!»
O homem levou, de novo, o copo aos 60 APOLOGOS
labios, mas arrevessou sentindo o mesmo gosto de sangue.
Desesperado pagou e partiu e todos ficaram a rir das caramunhas que elle fizera quando insistira em provar o vinho.
Em caminho, como a sêde apertasse, vendo luzir uma fonte, demandou-a. A agua era fresca e limpida. Curvou-se o traidor com as mãos em concha, e, sofrego, sorveu um grande gole, logo, porém, o rejeitou golfando-o. A agua era amarga como a do mar ou como as lagrimas.
— Estranho gosto tem a agua desta fonte...! disse, pondo-se a caminho, com a sêde a abrasar-lhe as entranhas.
Foi então que se lhe deparou um pomar carregado de frutos maduros. Bateu á cancella e, vendo apparecer uma velhinha, offereceu-lhe uma moeda se ella consentisse que elle comesse á vontade.
Era demasiada a recompensa. A
velhinha franqueou-lhe o pomar louvando-lhe a generosidade. APOLOGOS 61 Tomou o homem o primeiro fruto, partiu-o: a polpa era cinza. Tomou o segundo: a polpa era sangue.
Sem dizer palavra, acabrunhado, sahiu á estrada e lá foi com o seu carro cheio de ouro.
Chegando á cidade que escolhera para residir, tratou immediatamente de comprar um palacio e installou-se com fausto.
Na sua recámara, decorada por artistas, havia nymphas bailando em campo de flores.
Estava elle uma manhan deitado quando notou que as figuras moviam-se afflictamente como procurando fugir a um perigo.
De repente abalaram todas a correr e, á medida que passavam diante dos seus olhos assombrados, elle nellas reconhecia pessoas da sua cidade: parentes, amigos que o injuriavam e amaldiçoavam.
Sem poder descançar um minuto e attribuindo todos os seus soffrimentos 62 APOLOGOS
ao ouro maldito, resolveu abrir mão da fortuna restituindo-a ao poderoso Rei das Montanhas, que já se havia recolhido á sua côrte.
— Senhor, disse, apresentando-se ao monarcha, venho trazer o que me des tes por premio de um crime infame. Melhor fôra que me houvesseis justiçado no vosso campo quando vos procurei naquella noite nefanda.
O rei encarou-o carrancudo e respondeu em lentas palavras:
— Justiça fiz eu fornecendo-te a ouro equivalente á grandeza do teu crime vil e só lamento que me não seja dado prolongar a vida dos homens, por que tornaria a tua eterna para que eterno fosse o teu tormento e eterna a tua vergonha. Vai e leva o teu ouro. Moedas taes não as quero eu no meu erario.
E expulsou-o com um gesto desprezivel, com mais asco do que repelliria um leproso.
Os tres grãos de milho Certo mancebo, cuja infancia venturosa fôra o mimo dos pais, perdendo-os, achou-se só no mundo, sem amparo nem conselho, tendo, por haveresr as terras ferteis dum sitio onde havia um paiol abarrotado de milho.
Julgando que nunca se esgotaria tamanha provisão deixou-se ficar em casa, a comer e a dormir, vendendo, a quem o buscava, o milho que herdara.
As terras abandonadas foram perdendo o viço e o matto, crescendo vigoroso, em pouco suffocou as sementeiras.
64 APOLOGOS
Uma manhan, ainda nos dias fartos, estava o soberbo e preguiçoso herdeiro a balançar-se na rede, quando um pobre homem passou pedindo esmola.
Era um desgraçado que habitava na vizinhança, tendo apenas uma choça e alguns palmos de terra.
O herdeiro, ouvindo a voz do pobre, longe de compadecer-se, sorriu e, por esmola, atirou-lhe, com desprezo, tres grãos de milho.
Foi-se o pobre sem dizer palavra e o preguiçoso ficou-se a rir balançando-se na rede.
Correram tempos. Já o matto bravo chegava á casa e o rapaz, fiado sempre no paiol de milho, vivia descuidadamente, quando, recorrendo ao celleiro, achou-o vasio por que toda a provisão havia passado ás mãos dos compradores.
Só então, comprehendendo a sua miseria e sem animo de atirar-se ao tra- APOLOGOS 65 66 APOLOGOS
balho, descorçoado, poz-se a lamentar-se e chorava, quando viu chegar, em formoso cavallo, um homem forte e bem posto, que ao dar com elle em tão miseravel condição, deteve o animal e perguntou :
—Que tendes? Porque assim vos lamentais?
—Morro á mingua! soluçou o infeliz.
Tinha um sitio fertil e as hervas más tomaram-m’o. Tinha um paiol abarrotado de milho e esgotou-se. Nada mais possuo.
—A culpa é vossa, disse o cavalleiro.
Julgando que nunca acabaria a herança que tivestes de vossos pais, abandonas-tes a terra que, dantes, não negava frutos. Se vos não sentis com animo para cuidar do sitio, vendei-m’o. A mim darão bom premio as terras que dizeis estereis e, como pegam com o meu sitio, faz-me conta comprá-las para dilatar a minha lavoura. Entremos em ajuste. E combinaram. APOLOGOS 67 Justamente no dia em que o rapaz recebia do homem o preço estipulado, perguntou-lhe o comprador:
— Sabeis com que dinheiro vos pago?
com o que me deram os tres grãos de milho que, desprezivelmente, me atirastes. Leveios commigo e, como não tinha ferramenta, com as próprias mãos fiz uma cova na terra e a terra devolveu-me o deposito muitas vezes dobrado. Plantando os grãos que vieram, consegui um canteiro, deu-me o canteiro uma roça, deu-me a roça um campo e fui sempre trocando os lucros por novos beneficios: primeiro em sementes, depois em gado, depois em machinas e hoje, com elles, adquiro as terras de onde sahiu o capital modesto com que comecei a grangear fortuna.
Vêde agora o que fiz com tres grãos de milho e perseverança no trabalho e comparai com o que vos acontece, não obstante haverdes possuido terras vas-
68 APOLOGOS
tas e um grande paiol attestado de cereal.
Não soubestes aproveitar os bens que herdastes e, mais uma vez, com a vossa desgraça, fica confirmado que a fortuna, seja embora incontavel, cede á miseria quando é mal dirigida.
O ouro foge por entre os dedos como a agua e a terra é um cofre seguro e maravilhoso que restitue centuplicado o beneficio que se lhe faz.
Sem mais dizer — e dissera o bastante — o lavrador deu as redeas ao cavallo e foise.
O lenhador Ainda escuro, com as estrellas vivas no céu, lá sahia o lenhador a caminho da floresta. Machado ao hombro, a marmita á ilharga, lá ia elle para a faina diaria de abater os troncos.
Fosse o inverno rigoroso, de gelar, ou abrasasse o sol, o homem não se resentia.
70 APOLOGOS
Robusto e ambicioso, mal o gallo cantava punha-se de pé e, sem mesmo volver os olhos para o pequenino filho, que dormia num berço de vime, sahia apressado, sempre receioso de chegar tarde, como se as pobres arvores, que o seu cortante machado detorava, pudessem fugir, como fugiam os animaes ariscos, mal lhe sentiam os passos nas folhas seccas do bosque.
A casa ficava entregue á mulher que preparava a alimentação, cuidava dos demais deveres domesticos e ainda, apesar de fraca e enfermiça, fazia renda que ia vender á cidade.
Era o marido com os pesados carros de lenha e ella com o cestinho cheio de lindas rendas.
Os que a viam, tão pallida e tão magra, sempre a tossir, lastimavam-na:
« Pobre mulher! tão doente e sempre a trabalhar, porque nem aos domingos descança e, se vem á missa, é mais APOLOGOS 71 para mostrar, no adro da igreja, as suas rendas, do que para pôr-se em graça, porque nem para cuidar da alma lhe sobram instantes.»
Ás vezes davam-lhe esmolas a ella, humilhando-se, agradecia beijando as moedas. E o filho? Pobre criança! tão enfesadinho, sempre a choramigar. Se alguma senhora mais caridosa perguntava por elle, a mãi, com voz chorosa, respondia:
— Ah! minha boa senhora, soffre e como não ha de soffrer o coitadinho se tenho os peitos mirrados? Bem faço eu por contentá-lo, mas o leite é tão pouco e, ainda assim, tão dessorado que o pobrezinho parece que soffre mais quando o achego ao collo. Deus não se compadece de nós..
Entretanto os que viam o lenhador entrar na cidade, todas as tardes, com grandes carros empilhados de troncos, murmuravam:
72 APOLOGOS
« Mas onde porá esse homem o dinheiro que ganha? Não ha dia em que não appareça com uma carrada de lenha e que a não venda. A mulher auxilia-o com o seu trabalho. Moram em uma choupana em terras próprias. Que farão elies do dinheiro?»
Se a interrogavam, ella sahia sempre com a mesma resposta gemida: «As molestias levam tudo quanto fazemos. Não ha dinheiro que chegue. Nem sei que seria de nós se não fosse a caridade de certas pessoas que nos valem com esmolas.»
Quem visitasse a choupana do lenhador, á beira da floresta, ficaria com o coração doído, tanta era a miseria entre aquelles fendidos muros, ennegrecidos de fuligem. O leito era uma enxerga de palha de milho, a mesa era uma taboa mal acepilhada. Nem arca possuiam: era em velhos caixotes que guardavam a roupa.
APOLOGOS 73'
No tempo do inverno o vento bravio esfusiava por mil frinchas e a chuva jorrava do tecto colmado encharcando o interior que ficava em pocilga. Ah! mas se, á noite, alguém pudesse seguir o casal — o lenhador e a mulher — que, a portas fechadas, á luz duma candeia fumarenta, conversavam baixinho na sala lugubre, havia de pasmar do que ouvisse e visse.
Quando o pequenito adormecia, enrolado em trapos immundos, lá iam os dois para um quarto e, trancando-se, o lenhador, acocorado, punha-se a raspar a terra do solo até pôr a descoberto uma lage; levantava-a com esforço e, no fundo duma cóva, brilhavam á luz pilhas de moedas de ouro e prata. Riam, então, de prazer contemplando, adorando tamanha fortuna. E a mulher, com soberbia, contava:
— Sabes quem me deu hoje uma esmola á porta da igreja? Luiza. Custou-
74 APOLOGOS
me conter o riso. A Luiza, imagina! que vive a bater roupa nas pedras do rio, a dar esmolas como grande dama. Recebi, que não sou tola, e cá está a moedinha de cobre á espera de outras para que as troques em prata.
O lenhador sorria e, deslumbrados, ficavam os dois á beira da cova, tiritando e roendo codeas de pão duro que a mulher trouxera da caridade.
E assim viviam avaramente, accumulando moedas e affectando penuria.
Uma noite o lenhador sonhou que, ao entrar na floresta, vira fender-se uma grande arvore e apparecer dentro delia o genio da matta. Era um gigante, todo verde, cujos cabellos eram compridos cipós, cujos braços eram grossos galhos, cujos pés eram immensas raizes, que assim lhe falou em voz retumbante:
«Homem forte, o teu machado inclemente vai devastando a minha flo-
APOLOGOS 75 76 APOLOGOS
resta, dentro em pouco não terei uma arvore que me abrigue e serei forçado a refugiar-me no seio da terra. Venho fazer-te uma proposta: se a aceitares poderás abandonar o machado, porque terás fortuna maior do que a do homem mais rico da cidade. Queres? »
E o lenhador, em sonho, respondeu:
—Sim! Quero.
—Então assigna com o teu sangue o que está escripto nesta folha verde e eu te conduzirei ao lugar em que se acha o thesouro. E o genio apresentou ao lenhador uma larga folha d’arvore na qual estavam escriptas estas palavras luminosas:
«Comprometto-me a nunca mais levantar o machado contra as arvores da floresta sob pena de ser por ellas esmagado.»
Promptamente, picando uma veia do braço, tirou o sangue com que assignou o compromisso e o genio, tomando-o facilmente nos braços, levou-o a um canto APOLOGOS 77 do bosque, perto duma fonte, sitio que elle conhecia por o haver, muita vez, procurado com sêde e, cavando á beira d’agua, fez apparecer um grande cofre de ferro, enferrujado e poído, e, abrindo-o, viu o lenhador que estava cheio, até ás bordas, de moedas de ouro.
— É teu, disse-lhe o genio, leva-o.
Lembra-te, porém, das palavras que assignaste.
E o lenhador jurou que as cumpriria e logo, curvando-se, quiz carregar o cofre, mas o genio offereceu-se para levá-lo á choupana.
Foi com o ruido alegre das moedas de ouro que o lenhador acordou e logo, despertando a mulher, contou-lhe o sonho que tivera.
—E se eu fosse á fonte? Que dizes?
—Ora !... Quem se fia em sonhos...!
—Quem sabe lá! Conheço o lugar a que me levou o genio. Vou até lá com uma enxada, cavo... É um pouco de 78 APOLOGOS
trabalho, mas podemos ficar mais ricos do que o Daniel, que tem um palacio e terras fartas de lavoura e gado. Vou, não custa.
Bem póde ser um aviso de Deus.
—Mas ainda é cedo, homem. Pouca mais é de meia noite.
—Chegarei á fonte de madrugada. Póde ser que outro tenha tido o mesma sonho e assim, quando lá chegar, já não encontrará o thesouro.
Levantou-se, vestiu-se e partiu.
A manhan era fria e nevoenta. O lenhador caminhava tiritando, a esfregar as mãos, muito encolhido num velho capote.
Quando chegou á floresta, na ansia de descobrir o thesouro, deitou a correr e ainda era escuro quando parou, fatigado, á beira da fonte que vira em sonho.
Estava exactamente como lhe apparecera — com as aguas limpidas brihando sobre um leito raso de areia branca.
APOLOGOS 79 Pelos ramos começavam os passaros a piar.
— É aqui! exclamou o ambicioso, atirando a primeira enxadada á terra.
E poz-se a cavar cantando.
De repente ouviu um som metallico e a enxada tremeu-lhe nas mãos. Estremeceu de emoção e cavou com mais pressa, dizendo:
«Pois querem vêr que é verdade!»
Subito, como no sonho, viu apparecer um velho cofre enferrujado e poído e, apesar da grande excitação em que ficou, ouviu distinctamente uma voz que dizia:
« Lembra-te, lenhador, das palavras que assignaste! »
Relanceou o olhar em volta e, não vendo viv’alma, só se preoccupou com o thesouro.
Ah! o rico dinheiro, a bella fortuna em reluzentes moedas de ouro!
Abriu o cofre e contemplou extasiado os dobrões que lampejavam. De repen-
80 APOLOGOS
te, curvando-se, tentou levantar o cofre; o peso era grande e o lenhador teve de desistir da empreza.
Cobriu o achado cuidadosamente e voltou a buscar o carro tirado por tres juntas de bois e chamar a mulher para que lhe ajudasse a transportar, em saccos, da fonte até á clareira em que devia ficar o carro, todo aquelle poder de dinheiro.
Foi necessario cavar mais funda a cova no quarto escuro da cabana para guardar as moedas, quantas! trazidas da floresta.
Á noite, com um lume de gravetos perto da enxerga, transidos de frio, os dois conversavam e a mulher dizia:
— Agora, sim ! Eu sempre queria que esses pobretões que por ahi andam vissem a nossa riqueza. Podiamos ter um palacio todo de marmore, mais vasto e mais rico do que o do Daniel, que APOLOGOS 81 tanto se ufana com a miseria de umas moedas. E se comprasses uma casa e a mobilasses com luxo? Haviamos de vêr toda essa gente a nossos pés, a pedir-nos coisas...
E nós a rir, hein?
O homem não falava, a pensar na riqueza, ambicionando um thesouro maior.
Tanto, porém, com elle lidou a mulher que elle disse, por fim, em tom de angustia:
— Em que penso? perguntas. Penso que devo tornar á floresta com o machado porque se me não virem mais com o carro de lenha entrarão a desconfiar e talvez cheguem a descobrir a verdade. Ai! de nós se derem por ella...! Quem nos dará mais pão para a nossa fome, mais roupa para o nosso frio? Demais, quem nos diz que não ha outros cofres na floresta? Tornando eu com o machado ás arvores o genio, para defendê-las, mostrar-me-á outro thesouro.
Então, sim — ficarenos ricos, ricos como eu desejo.
6 82 APOLOGOS
— Mas não te lembras das palavras do genio e do documento terrivel que assignaste? Vê lá! Acho que devemos trabalhar, mas sem perjurio. O muito querer póde perder-nos.
—O genio! Falas no genio! Ora, o genio só me appareceu em sonho. Porque não o vi eu na floresta?
—Mas achaste o thesouro.
—Sim, achei o thesouro... Ora, adeus!
Quanto mais, melhor! Eh! sús! APOLOGOS 83 que não tarda a manhan. Dá-me o machado e o capote e até logo! Mais uma carrada de lenha e o genio que se rale.
E foi-se.
Entrando na floresta logo descobriu uma grande arvore, caminhou direito a ella e levantou o machado atirando um golpe fundo ao tronco. Poz-se a seiva a correr e elle talhava, cantando, talhava sem pena, quando um estalo secco annunciou-lhe que a arvore pendia.
Quiz fugir, mas sentiu-se enleiado num cipoal, os pés como que se lhe haviam cravado na terra. Debateu-se, gritou vendo a immensa arvore inclinar-se com estrépito medonho.
Lembrou-se, então, das palavras do gênio... Ainda lutou, mas a arvore, como se, subitamente, a impellisse um grande vento arriou fragorosamente esmagando sob o seu tronco o lenhador ambicioso.
O paralytico Paralytico e cego, preso na treva e na immobilidade, como se vivesse carregado de ferros, no fundo de um carcere escuro, o pobre rapaz jazia enco-
APOLOGOS 85 lhido num catre, o mesmo em que a mãi o deitou quando, ao retirar-lhe p peito da boca, percebeu que os seus lindos olhos não reflectiam a luz e, mais tarde, compadecida, viu que os seus membros tolhidos negavamse a conduzi-lo.
Tamanino ainda, sem comprehender a vida, o misero sorria nas palhas, contente com os rumores que ouvia em torno do seu presidio e a alma se lhe foi dilatando apertadamente no corpo engelhado como o germen duma arvore forte que se desenvolvesse num vaso.
O instincto da liberdade fê-lo, um dia, pedir que o levassem ao campo fronteiro á casa. Queria sentir o sol, ouvir os passaros, palpar as arvores, gosar o aroma agradavel das flores.
Carregaram-no piedosamente e, num leito de folhas, á sombra duma arvore, guardado pelos irmãos mais moços, que corriam e saltavam alegremente em volta delle, o desgraçado ficou sentindo o 86 APOLOGOS
sol, attento ao murmurio mais leve dum lacrimal, ao sussurro dum ramo tocado pela brisa. Volta e meia um dos irmãos, parando esbaforido junto delle, perguntava:
— Estás contente?
E elle, sorrindo e rolando os olhos brancos, sem pupillas, tristes como dunas estéreis, respondia:
— Sim, aqui fóra é melhor. E mais bonito, accrescentava — porque, para elle, a belleza era a sensação. E elle sentia o calor, sentia o perfume, ouvia as aguas correntes e os passarinhos que esvoaçavam. Mas uma tristeza pungialhe a alma: elle não sentia tanto o seu mal pelo soffrimento que lhe infligia como pela inarcia a que o forçava.
Como eram felizes os que podiam ir á floresta buscar os troncos, aos pomares colher os frutos, aos pastos levar o gado, remar um barco no rio, domar um pôtro na campina ou pôr em movimen-
APOLOGOS 87 to o moinho que rangia esfarinhando o grão, ao rolar d’agua. Que tristeza para a sua alma captiva!
Um dia, como os irmãos brincassem perto delle, o paralytico chamou-os e, sentindo-os a seu lado, pediu-lhes uma semente de arvore. Um dos irmãos correu ao pomar e, sem grande demora, tornou com o que pedira o coitado.
— Aqui tens a semente. Se é para a sentires pouco terás que sentir, tão pe quenina é; entretanto póde dar uma arvore que nos agasalhe a todos á sua sombra e que produza tantos frutos que um só carro não baste para transportá-los. Aqui a tens. E entregou-lh’a.
O misero, sempre sorrindo, pôz-se a rolar a semente entre os dedos. Por fim falou aos irmãos que lh’a trouxeram:
— Procurai um lugar onde fique bem uma arvore que dê repouso e sombra aos fatigados e possa regalar com os seus frutos a quem os procure com fome.
88 APOLOGOS
—Ali ha um bom lugar, disse o mais moço.
—Faze, então, uma cova.
Aberta que foi a cova, o paralytico pediu que o carregassem para junto della e, com esforço, voltado de flanco, passando, repassando a mão, achou-a sob os dedos.
Sorrindo deitou nella a semente, puxou a terra, cobriu-a e, contente, pediu aos irmãos que, de novo, o levassem para a sombra em que costumava ficar.
Desde esse dia teve o pararytico uma preoccupação feliz.
Mal amanhecia chamava um dos irmãos e pedia-lhe que fosse vêr se a semente já havia dado o seu rebento. « Ainda é cedo », diziam-lhe ; e elle esperava. Uma manhan, porém, um dos pequenos deu-lhe a desejada noticia:
— Já rebentou e está linda!
Pobre cego! não poder vê-la . . .Mas com que alvoroço elle recebia as noticias dos progressos da sua arvorezinha.
APOLOGOS 89 90 APOLOGOS
Que alegria!
Justamente a arvore toucava-se das primeiras flores quando o paralytico adoeceu gravemente. Ardendo em febre pediu, uma noite, que lhe abrissem as janellas do quarto. Queria sentir, na aragem nocturna, o perfume das flores dá sua arvore. Não contente, porém, com o aroma, quiz ter no seu catre um punhado das flores.
Um dos irmãos correu a satisfazer-lhe o desejo.
Vieram as flores, foram espalhadas na enxerga e o moribundo, sentindo-lhes o perfume, sorria desvanecido e, como o sacerdote se curvasse para ouvi-lo de confissão, elle murmurou tranquillamente:
— Que vos hei de eu dizer, meu padre?
Fui justo. Só uma tristeza, ás vezes, traziame inveja á alma: era a de passar pela vida sem deixar um beneficio.
— E que poderieis fazer, meu filho? APOLOGOS 91 Deus levará em conta a vossa boa vontade.
— E tambem o que fiz, meu padre?
Todo o homem, ainda o mais fraco, deve procurar o bem para o seu semelhante, cada qual á medida das suas forças. O que não póde edificar uma cidade que construa uma casa; o que não se sente com força de trabalhar pela Patria que cuide do seu lar.
Eu, padre, fui justo e plantei uma arvore.
Disse e expirou serenamente.
A união Prevenido por um camarada das perversas intenções do sanguinario bandido que andava a asssolar a região arrombando paioes, furtando rezes nas pastagens, incendiando as culturas e assassinando os que, com maior coragem, ousavam defender os seus bens, o fazendeiro ameaçado, que era o mais rico do lugar, resolveu dirigir-se aos vizinhos expondo-lhes os riscos que todos correriam se não se ligassem contra o quadrilheiro que dispunha de gente numerosa e bem armada.
APOLOGOS 93 Montou a cavallo e lá se foi aos sítios próximos pedir soccorro.
O primeiro a quem narrou o que soubera do camarada encolheu-se na rede e, fingindo contrariedade por não poder corresponder ao pedido que lhe era feito, disse :
— Ah! meu amigo, não ima- .
gina quanto me pesa não poder servi-lo no momento, mas como hei de distrahir a minha gente se ando atarefado com a colheita? Pudesse eu e não negaria o auxilio que me pede, mas que hei de fazer?
O fazendeiro insistiu:
— Não é só o senhor que anda a .
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colher, todos nós lavradores estamos occupados nesse serviço, mas que será da nossa riqueza se o homem cruel appare-cer á frente da sua gentalha? Teremos de fugir abandonando, não só a colheita como a casa e todos os bens e ainda nos poderemos considerar felizes se escaparmos á sanha de tão perverso ladrão.
O outro, sempre encolhido, cocou a cabeça e respondeu:
— Demais, vizinho, porque nos havemos de incommodar se o homem anda ainda tão longe? É verdade que elle ameaçou, mas da ameaça á acção vai muito.
Esperemos.
— E acredita o vizinho que elle, depois que sahir do seu antro, nos dê tempo para organisarmos a defesa? Não. É prudente que não nos encontre desapercebidos e é até possivel que recúe e desista do crime que projecta só com a noticia dos nossos aprestos.
— Não, vizinho; esperemos. APOLOGOS 95 Diante de tanta indolencia o fazendeiro retirou-se dirigindo-se a outro vizinho e, falando-lhe como falara ao primeiro, o homem respondeu-lhe com indifferença:
— Que quer o vizinho que eu faça se a questão não é commigo, senão com o senhor, que é rico? Aqui não chegou ameaça alguma. Porque hei de eu sahir a campo quando não fui provocado nem corro perigo algum?
— Sim, por emquanto a questão é commigo, mas será ámanhan com o senhor e com todos os outros, grandes e pequenos agricultores da zona: desde os que possuem vastas propriedades prosperas até o que apenas tem uma choupana na escosta do monte. Eu só não poderei resistir ao assalto e ficarei á mercê do assassino e, no dia em que elle me houver vencido, a mim que sou o mais forte, que podereis vós outros fazer?
O que proponho é a alliança, a união das forças para a defesa commum. Collocan- 96 APOLOGOS
do-se a meu lado, o senhor defende as minhas terras, mas tambem garante as suas, e deixando-me perecer entrega-se ao inimigo.
— Não, não. Cuide cada qual de si, vizinho.
Foi-se o fazendeiro e, entrando em outra casa, expoz o motivo da sua visita. O
plantador, que era covarde, impressionado com o que ouvira, nem respondeu á proposta:
—Que vou eu fazer!? Ai! de mim. Que vou eu fazer!? O melhor é deixar a casa e as terras e tratar de garantir a vida longe, em lugar seguro.
—E o vizinho não pensa na familia?
Que será della quando achar-se desagasalhada e faminta? Todo homem deve defender a sua propriedade e, como o vizinho só nada poderá fazer contra o bandido, venha commigo e, engrossando a minha tropa, defenderá o seu sitio desaffrontando a nossa região. APOLOGOS 97 Mas o pobre homem tremia e, pallido, como se já ouvisse a estropeada dos cavalleiros assaltantes, repetia tremulamente: « O melhor é fugir! O melhor é fugir! » E não houve argumentos que o convencessem.
Foi-se o fazendeiro contristado e viu, á beira d’agua, um trabalhador. Chamou-o e, como falara aos anteriores, assim lhe falou.
—E então um ajuste?
—Como ajuste?
—Quer o senhor que eu peleje defendendo as suas terras?
—As nossas, meu amigo.
—Ora, as nossas... O senhor tem léguas de campos e mattas que vão por ahi além; e eu? que possuo? esta horta que é menos do que o menor terreiro da sua fazenda.
—Isso mesmo perderá o amigo, disse o fazendeiro. E na união das forças que se firma a liberdade. Para que a casa 7 98 APOLOGOS
não soffra é necessário que a cidade tenha defensores. Basta que se parta um elo para que deixe de existir a cadeia.
O homem meneou com a cabeça, deu d’hombros e contimuou a trabalhar á beira d’agua.
Desanimado, o fazendeiro retrocedeu resolvido a esperar, com os seus poucos homens, a farandula do bandido. Não contava com a victoria porque, além dos inimigos serem numerosos, eram homens provados em combates. Morreria no limiar da sua casa defendendo a sua propriedade, porque assim morreria com honra.
Succedeu, porém, que o bandido, avisado por um dos espiões, soube o que fazia o fazendeiro e logo, reunindo em conselho no fundo da sua caverna, falou á cáfila:
— Meus amigos, ainda que eu confie APOLOGOS 99 na vossa bravura, não acho prudente sahirmos contra o fazendeiro que a juntou gente e espera-nos. Ha sitios na redondeza, vamos primeiro por elles e, reunindo o que acharmos, poderemos, em seguida, derrotar o soberbo lavrador. Os outros são fracos, nem se atreverão, por certo, a resistir.
Os bandidos applaudiram o plano astuto do chefe e, na manhan seguinte, fazendo uma grande volta pela floresta, a quadrilha chegou ao sitio do primeiro homem procurado pelo fazendeiro.
Estava o indolente a dirigir a colheita quando os cavalleiros irromperam pondo em debandada os trabalhadores. O homem mal teve tempo de montar a cavallo e, á toda a brida, ganhar a estrada refugiando-se num bosque de onde podia vêr a sua casa e as suas culturas e ouvir os gritos lamentosos dos filhos que os assaltantes acutilavam.
« Ah ! porque não me liguei com o 100 APOLOGOS
APOLOGOS 101 fazendeiro? Porque não dei ouvidos ás suas palavras prudentes!? »
E chorava quando viu as labaredas rubras que subiam lançando-se, com estrondo, do tecto dos seus paióes. Era toda a sua fortuna, todo o seu trabalho perdido. E
seus filhos, pobrezinhos! Lembrou-se, então, de pedir misericordia ao fazendeiro e lá foi, a todo o correr do cavallo, lamentando-se.
Em caminho encontrou o covarde que fugia e, espalhando-se a noticia terrivel, todos os plantadores foram abandonando as suas propriedades, correndo a refugiar-se na fazenda do homem rico.
Elle recebeu-os com humanidade e, como os colonos e os camaradas houvessem seguido os patrões, o fazendeiro reuniu-os á sua gente, armou-os e contou quinhentos combatentes. Então, tomando o commando, sahiu pelas trilhas para alcançar os bandidos, surprendê-los e derrotá-los.
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Era noite negra quando avistaram um clarão de incendio ao longe. Era a choupana da encosta do monte que ardia.
— Ai! de mim, suspirou o desgraçado dono, todo o meu trabalho perdido.
Ali nasci, ali pretendia morrer como morreram meus pais e o fogo lá vai consumindo tudo quanto fiz. Ai! de mim.
Ouvindo as tristes queixas dos infelizes, o fazendeiro tirou-se do silencio :
— Bem avisados fostes, negaste-vos todos ao meu appello julgando que eu tinha apenas em vista o meu interesse quando me preoccupava com o bem commum, porque não póde haver paz nem póde medrar a fortuna em uma região, em um paiz quando o invasor se installa em um dos seus pontos. Assim, se uma dôr apparece em um membro, todo o corpo resente-se e basta, ás vezes, uma pequena chaga descuidada para que a morte entre por ella no organismo.
APOLOGOS 103 Não me quizestes ouvir em tempo e agora, depois do soffrimento, vindes a mim. Praza a Deus que possamos repellir o inimigo.
Ainda vencendo, ha de ficar-vos a vergonha de haverdes recuado e tereis de reconstituir a fortuna que, por desidia, imprudencia ou pusilanimidade, perdestes.
Os homens, pondo a razão ao lado do fazendeiro, ouviam em silencio.
Chegando ao ponto em que flammejava o incendio, tratou o fazendeiro de observar a posição dos bandidos e viu-os sentados em volta duma fogueira, banqueteando-se. Não lhes deu tempo e, precipitando-se sobre elles com a sua gente, fez tamanha carnificina que o sangue, correndo a golfos, apagou a fogueira que os miseraveis haviam ateiado.
Nem um só escapou e, ao clarear d’alva, no campo do combate, o fazendeiro falou aos homens que se lamentavam:
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— Eis-nos, emfim, livres do flagello que nos trazia em constante sobresalto.
Agora podemos viver tranquillamente, sem necessidade de distrahir os homens do serviço para seguirem os passos do meliante.
Eu, louvado Deus! nada perdi. Vós outros ficastes com as vossas terras arrasadas. O que nellas havia desappareceu.
Recomeçai e tende sempre de memoria a lembrança deste successo exemplar, APOLOGOS 105 porque o bem de todos depende do perfeito equilibrio e o que se faz pela terra natal fazse pela fortuna e pela honra. Somos muitos, mas o nosso dever é um só.
O que eu vos propunha era a salvação, tomastes as minhas palavras como ditadas pelo egoismo e tivestes o premio da desconfiança injusta.
Assim como foi comnosco, podia ser com o paiz e o mal seria do todo se uma parte fosse vencida e desmembrada: pela ferida viria o mal ao corpo e morte á Liberdade.
Que vos aproveite a lição dolorosa. E
agora celebremos o triumpho sem mais lamentos. A terra ahi está, sempre fertil, para refazer a vossa fortuna.
E todos os homens, arrependidos, acompanharam humildemente o fazendeiro victorioso.
O espelho maravilhoso Uma manhan, ao nascer do sol, alvoroçou-se a cidade com um estridente soar de charamelas e estrondoso rufar de tambores. Ainda que não houvesse motivo de receio de surpreza de guerra, não só porque o principe, que era excellente, vivia em paz com todos os vizinhos, como tambem porque as muralhas eram fortes e seguras eram as sentinellas que, do alto das torres, onde, á noite, flammejavam almenáras, vigiavam attentamente campo e monte, muitos burguezes deixaram o leito alvoroçados.
Os primeiros que sahiram a saber APOLOGOS 107 a causa daquelle desusado ruido voltaram tranquillamente annunciando que não se tratava de gente armada, mas d’uma turba de escravos que vinha precedendo um magico da Persia, possuidor dum espelho maravivilhoso.
Como era tempo de|
feira a cidade regorgitava de estrangeiros de todas as regiões:
pastores cobertos de pelles conduzindo rebanhos;
agricultores com os carros abarrotados de cereaes e de frutas; homens robustos das serras com feras e aves; mercadores com fardos preciosos de sêda e lan, outros com ri-
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quezas em joias e em lavrados, armas e louçainhas. Até alguns, aparceirados com piratas, expunham, em pavilhões sumptuosos, mulheres de varias castas, preconisando-lhes a mocidade e a belleza.
Com a chegada do magico todas as attenções voltaram-se para o espelho maravilhoso e logo o povo começou a affluir á barraca que o persa levantára a um canto retirado, em frescas sombras silentes.
Quem primeiro o procurou foi uma linda moça que, ao ouvir falar em espelho, logo imaginou que se tratava de um mostrador de belleza, dum desses servos da elegancia que tanto concorrem para a vaidade feminina. Mas o magico, um velho que recebia sentado em alto coxim de sêda, sob um esperavel bordado a ouro, sorriu da ingenua donzella e disse-lhe affavelmente:
— Não é para vós que trago o espelho maravilhoso. Para reflectir a vossa APOLOGOS 109 belleza, quando vos não bastasse qual quer limpido remanso de ribeira ou ainda a agua da celha em que bebe o vosso anho, bastariam os olhos dos que vos seguem enamorados. Não é para reproduzir traços do corpo que trago de tão longes terras e com tão penoso trabalho objecto de tão rara virtude. O meu espelho, donzella, só reflecte o espirito.
Poucos são os homens que se reconhecem. Este, porque decorou umas tantas regras dos livros, já se julga mais sabio do que o proprio Aristoteles e, impando de vaidade, atravessa as multidões com ar superior, olhando-as do alto da sua presumpção que elle, na estulticie fátua, toma por sabedoria. Aquele, porque, na guerra, com arreganho impulsivo, conse guiu passar entre os inimigos sem ser attingido por uma lança ufana-se proclamando-se mais valoroso do que Achilles e mais astuto nos ardís do que o principe de Ithaca. *
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Encontrais, muitas vezes, em vosso caminho um homem em torno do qual o povo se aperta com ansia de ouvir-lhe a palavra: nada vale — é um ôdre cheio de vento: espetai-o com a ponta da critica e vereis que só despéde ignorancia e basófia.
A fama tem algo das religiões. Ninguem se atreve a contestar publicamente um ponto de fé, não porque o tenha por verdadeiro e irrefutavel, mas porque é sempre perigoso sahir irreverentemente contra a opinião da maioria.
O sceptico, por commodidade ou prudencia, acompanha e subscreve o juizo commum; se o tomardes á parte e o interrogardes com habilidade, ouvir-lhe-eis a palavra ironica, eivada de descrença.
Dá-se o mesmo com a fama. O que faz o meu espelho maravilhoso é justamente o util serviço de descobrir aos homens o verdadeiro merito. Se sabeis de alguem que seja digno do respeito APOLOGOS 111 dos seus contemporaneos e da veneração dos posteros pelo seu talento ou pela sua virtude, mandai-o cá e vereis o meu espelho fulgurar como um astro, ao esplendor do genio ou á claridade suave da bondade. Ide!
E a donzella, meio vexada, deixou a barraca do magico e sahiu pela cidade repetindo as palavras que ouvira.
Ora, entre os homens que gozavam da melhor fama, o mais celebrado pelo muito que parecia saber, porque sobre todas as coisas discorria abundantemente e com grande soberba, era Basilicão, o magnifico.
Basilicão era a maravilha, o orgulho da cidade. Se, por acaso, os das terras vizinhas falavam dos seus monumentos, da riqueza das suas minas, da fertilidade dos seus campos, da graça das suas mulheres, os povos da nobre cidade, encolhendo superiormente os hombros, diziam, com altivez:
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APOLOGOS 113 « Nós temos Basilicão!»
Basilicão vivia regaladamente dessa nomeada e a sua fama ia crescendo á medida que os dias passavam, sempre vasios das annunciadas e esperadas producções do seu inegualavel espirito.
Tanto que se soube da virtude do espelho, logo correram aduladores ao palacio do homem sapiente pedindo-lhe que fosse á barraca do persa, não para pôr á prova o seu genio, admirado e proclamado por todos, mas para mostrar áquelle estrangeiro que a cidade possuia o maior espirito do tempo.
Basilicão sorriu — oh! o sorriso de Basilicão! — e, mandando sahir a sua guarda de corpo e o seu alfario, ajaezado de ouro, lá se foi, resplandecente de pedrarias e espalhando a divina graça dos seus acenos fagueiros, tão disputados como as bênçãos do céu, a caminho da barraca do magico.
Ao entrar no recinto, o velho, que 8 114 APOLOGOS
era profundo em conhecer as almas, não se abalou com o ar orgulhoso do sapiente nem com o fausto de que elle se cercara.
Basilicão sentou-se em um escabello de marfim e, como o velho lhe dissera que o valor do seu espirito se revelaria no espelho em chammas proporcionaes, perguntou, lançando os olhos ás colgaduras sumptuosas, aos pannos finos que fechavam a barraca e aos altos tapetes e pelles que a forravam:
«Se não era prudente prevenirem-se com bombas d’agua para o caso possivel dum incendio.»
O velho sorriu e respondeu tranquillamente:
« Que o clarão do genio sempre illumina, nunca devasta. » E, tirando dum cofre de cedro o precioso espelho, entregou-o ao celebrado homem.
Os do cortejo, impressionados com as palavras do colosso, recuaram prudente-
APOLOGOS 115 mente e Basilicão, depois de retorcer os bigodes, derreando, com orgulho, a admirada cabeça, levantou o espelho ante o rosto.
Houve quem fechasse os olhos receiando cegar pelo deslumbramento, mas o espelho, em vez de refulgir, nublou-se: nem uma centelha, pequenina e ephemera, como as que saltam das fogueiras, brilhou na face polida do encantado reflector — só nuvens appareceram, rolando confusamente como grosso fumo que sobe de lenha verde.
Quanto á fulguração, a tremenda, a incendiaria fulguração — debalde a esperaram.
Basilicão levantou-se despeitado e logo, com aravia copiosa, declarou que o principe, que era honesto e justo, não devia consentir que permanecesse em seus dominios um feiticeiro que mentia desfaçadamente e deslustrava, sem temor, as glorias da cidade.
Immediatamente aduladores corre-
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ram com uma requesta ao principe e voltaram seguidos de guardas com ordem de levarem o magico a uma das portas da cidade.
Não se amofinou o persa, conhecedor dos homens, e, reunindo a sua bagagem, antes do cerrar da tarde, poz-se a caminho em direcção á porta do Norte, sorrindo da ingenuidade daquella gente que se deixava fascinar e embahir por um intrujão.
Ia elle vagarosamente, entre os da sua turba e os da guarda, já perto da porta que demandava, quando viu que do cofre sahia claridade intensa. Deteve-se e, abrindo o estojo do espelho, viu que rutilava como se reflectisse o proprio sol.
Olhou em volta e só achou os guardas e a sua gente. Voltando-se, então, para o moço official que commandava a escolta, perguntou-lhe se, por ali perto, naquelle agreste arvoredo, vivia alguem.
APOLOGOS 117 — Sim, vive um velho eremita. E um nobre homem que, por miseria, nem ousa apparecer na orla dos caminhos. Tece elle mesmo a roupa com que se veste, aproveitando a lan que as ovelhas deixam ficar nos espinhaes bravios. Nutre-se de frutos e dizem que passa os dias e as noites em oração, no fundo da caverna que habita ou no cimo do outeiro contemplando os astros.
Pediu o magico licença para visitar o solitario e, sendo-lhe concedida, enveredou pela floresta, seguido da guarda que o acompanhava.
No fundo da caverna triste, onde o sol difficilmente penetrava, jazia o eremita sentado, com um grande livro aberto sobre os joelhos agudos. Em volta, amontoavamse rolos de largas folhas escuras nas quaes appareciam caracteres traçados.
Tão embebido estava na leitura que não deu pela presença dos homens e o 118 APOLOGOS
magico poude, á vontade, fixar o espelho e foi tão vivo o brilho que o bosque todo, bem que o sol já houvesse descahido no occaso, ficou illuminado como em pleno dia de verão.
Chegaram, então, á caverna e o ancião, dando com aquella mó de gente que lhe parecia ter surgido da terra, poz-se de pé, a tremer, escondendo-se com melindroso vexame, entre as seccas folhagens.
APOLOGOS 119 O magico adiantou-se e, chamando-o amigamente, pediu-lhe informações sobre a sua vida: Porque se afastára do mundo e que fazia em tão deserto desterro?
— Senhor, respondeu, com modestia, o solitario, aprendo as noções da vida. Aqui vivo feliz. O mundo é para os fortes, para os espiritos superiores. Que poderia eu fazer naquelle immenso viveiro d’aguias? Seria inevitavelmente devorado e foi para evitar a morte que aqui me refugiei.
Lá, os que me vissem miseravel e com a attenção devotada aos livros, ririam da minha pobreza e da minha loucura. Aqui não. Quem me virá descobrir entre estas arvores? Vós viestes, sem duvida, porque, como rico senhor que sois, andais á caça e foi seguindo o rastro ligeiro dalguma lebre arisca que chegastes a este ermo. Não foi a curiosidade que vos trouxe, senão o acaso, por vezes 120 APOLOGOS
brincalhão, que vos guiou a tal lugar. Aqui vivo e aqui espero morrer entre estas boas arvores, que são a minha familia e estes passaros, que eu ouço e que me ouvem, quando, ás vezes, me dá para recitar os hymnos que componho. Quem sou? Para que vos hei de dar o meu nome? Pouco lucrareis com elle. Sou um homem como a arvore é arvore.
E o magico, sempre sorrindo, disse:
— Enganais-vos, suppondo que aqui viemos por acaso. Foi o vosso merito que nos trouxe. Iamos pela estrada larga quando senti o poder do vosso genio e, guiando-me pela bussola que trago, vim ter ao vosso eremiterio.
Debalde vos retirais. O verdadeiro merito é como o fogo vivo: ainda que o abafem rebenta e quanto maior fôr a accumulação de versas, tanto maiores serão as labaredas que delle hão de subir.
Basilicão, que é ôco como o tronco pôdre, onde só vive o caruncho, tem-se APOLOGOS 121 em conta de arvore frondosa ; vós, que tanto valeis, deixais-vos morrer neste deserto. Ha, porém, alguma coisa que confunde o orgulho fátuo de Basilicão e exalta o vosso valor — é a verdade.
Os homens não se conhecem e é este o seu maior defeito — o ignorante é ousado, o sabio é timido. Um, para impôr-se, faz-se pedante; outro, para esconder-se, humilhase e o que geralmente se vê é a mediocridade vencendo, por ser atrevida e o valor esquecido por não querer affrontar.
Se o erro governa, a culpa não é dos imbecis, mas dos que valem, porque se o pedantismo dos tolos é ridiculo, o retrahimento dos sabios é condemnavel.
Aquelle que sabe e cala-se é como o avarento que amealha thesouros. O conselho dos sabios é a providencia dos povos.
A princeza Parisada Em certo reino do Oriente, cujo monarcha recebia tributo e vassallagem de trinta riquissimas provincias, espalhou-se a noticia de que, em longinqua região de grande esterilidade, toda de areaes e rochas, onde raros arbustos enfesados esgalhavam ramos seccos e aguas de minguadas fontes refrescavam oasis, em alta e agreste montanha, um genio deixára tres maravilhosos dons que pertenceriam a quem os conseguisse alcançar.
* Reminiscencia das Mil e uma noites.
APOLOGOS 123 Tanto que foi sabida tal noticia organisaram-se caravanas e, todos os dias, pela porta mais larga, que abria sobre o deserto, desde que as sentinellas, á primeira luz, franqueavam o transito até que fechavam a cidade real, era um lento e rumoroso desfilar de gente e d’animaes.
Correram annos e, diariamente, sem descontinuar, sahiam bandos como se a população da cidade se fosse, aos poucos, mudando e esquecendo a aprazivel capital do reino maravilhoso e forte.
Tinha o rei tres filhos: dois mancebos e uma donzella e como, uma tarde, elle alludisse, com pezar, ao despovoamento da cidade — porque, de tantos ho-
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mens que haviam partido, nem um só regressara — o mais velho dos principes, que era temerario, offereceu-se para ir á remota montanha, não só para saber do destino do numeroso povo, como tambem para haver o cobiçado thesouro.
Quiz o rei oppôr-se ao que lhe parecia empreza de morte, mas tanto lidou o principe que o amor paterno teve de ceder.
Concedida a licença, pediu o moço intrepido uma guarda escolhida e, uma manhan, ao som de trombetas de guerra, disse adeus á cidade e foi-se.
Correram dias, correram mezes, um anno triste passou e do principe não vinham novas. Cobriu-se o reino de luto e o rei, inconsolavel, lamentava a perda do seu herdeiro, quando o principe mais novo assim lhe falou:
— Pai e senhor, deixai-me sahir no rastro do meu irmão. Darei com elle e com a gente que o precedeu e, se lograr descobrir os dons do genio, tra-los-ei commigo.
APOLOGOS 125 Revoltou-se o monarcha contra a imprudencia do filho; o mancebo, porém, inflexivel na sua resolução, a nada cedeu e, cercando-se duma guarda airosa, sahiu, como o irmão mais velho, pela porta maior que abria sobre o deserto.
Correram dias, correram mezes, um anno triste passou sem que do principe viessem novas. O rei envelhecia e, percorrendo, a largos e lentos passos, os salões merencoreos do palacio, arrancava punhados de cabellos lamentando a sua miseria, pensando nos filhos perdidos que eram a sua esperança e o seu orgulho.
Andava elle, uma tarde, em atormentado desespero, quando viu chegar Parisada, a princeza, que lhe falou docemente:
« Que a deixasse partir. Iria á salvação dos principes, confiada na sua ventura. Se perecesse, pequena seria a per-
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da comparada ás que já soffrera o reino com o desapparecimento dos seus leaes e valorosos defensores. »
Foi um clamor no paço. O velho monarcha prorompeu em brados ameaçando a princeza que se manteve calada e humilde, mas decidida.
Tão firme permaneceu, surda a rogos e ameaças, que o rei concedeu a licença para que ella não a tomasse com escandalosa rebeldia.
Desesperançado e como se lhe fizesse APOLOGOS 127 os funeraes, quiz o rei que ella levasse um sequito luzido e provisões copiosas para que nada lhe faltasse naquella jornada fatal.
Negou-se a princeza a aceitar tantas offertas e só, montando um ginete forte, madrugou nas arêas do deserto.
Foi.
Longos e longos dias caminhou ao sol, sem agua e sem refrigerio e, ao cabo dum mez de andar penoso, ao descer um declive orlado de espinhaes, viu, encostado á rocha, um ancião veneravel.
A barba, longa e alva, cobria-lhe o peito, os olhos rolavam sem brilho dentro das fundas orbitas, as mãos seccas tremiam-lhe pousadas na pedra.
Inclinando a cabeça á estropeada do ginete, o velho falou brandamente:
— Quem quer que sejais, vinde a mim, que não vejo, e instillai nos meus olhos um pouco d’agua fresca.
Ouviu a princeza o pedido e, condoí-
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da da sorte do miserando, fez, com sollicitude, o que lhe fora implorado e logo alumiaram-se os olhos do centenario. Então, fitando a donzella, assim falou o ancião:
— Filha, seja Deus por ti e comtigo. Sei que vais á montanha encantada, ouve o que a outros tenho dito, ainda que em pura perda, porque a todos faltava a energia necessaria para empreza tão alta.
Tres raras prendas existem no cimo da montanha, e são: a Arvore que fala, o Passaro que canta e a Agua amarella. Da Arvore basta que tomes um galho e que o leves comtigo: plantado em qualquer terreno logo frondejará. Da Agua basta que tragas o que couber na amphora que has de encontrar junto á fonte. O Passaro virá pousado em teu hombro. Mas ouve e attende, que o passo é difficil.
Logo que fores sentida no começo da APOLOGOS 129 ladeira, romperão contra ti, de todos os lados, insultos, improperios, toda a sorte de vaias discordantes. Vai teu caminho sobranceira, não te voltes por curiosidade ou medo: são as pedras que bramam para que não prosigas e fiques igualmente petrificada.
As pedras são os que, por fraqueza, não conseguiram chegar ao cimo collimado e, attendendo ao alarido, voltaram o rosto soffrendo logo o prestigio que os inutilisou.
Vai por diante e alcançarás o premio da tua superior indifferença e, á volta, se quizeres ser generosa, como convem que sejam os vencedores, verte sobre cada uma das pedras uma gota d’agua encantada e logo as verás mudarem-se em homens que descerão comtigo ornando o teu triumpho. Vai!
Parisada prendeu o seu ginete a uma arvore e, repetindo no coração as palavras do centenario, dirigiu-se corajosamente para a montanha encantada.
9 130 APOLOGOS
Logo que resoaram nos pedrouços os seus primeiros passos, levantou-se retumbantemente uma grita estrondosa:
APOLOGOS 131 apupos e insultos vis, diatribes e pragas, assobios e gargalhadas. Todas as pedras entraram a bradar, desde o calhau, que lhe rolava debaixo dos pés, até o rochedo alcantilado que avultava como uma torre.
Ella seguia indifferente, sem voltar o rosto, lembrando-se do conselho do ancião e, passando atravez do barbariso da inveja, chegou ao bosque onde se achavam reunidas as tres prendas do genio.
Quebrou um galho da arvore que enchia a espessura de suavissimo canto, tomou no punho o passaro que falava dizendo os seus louvores e, apanhando a amphora que jazia junto á fonte, encheu-a d’agua dourada.
Logo se desfez o encanto e toda a montanha, que era escalvada e merencorea, cobriu-se d’arvores frondosas onde cantaram passaros, fontes rebentaram e as aguas limpidas precipitaram-se com alegre rumor por fraguedos graciosos.
132 APOLOGOS
Os espinhaes desabrolharam em flores e o sol, que parecia banido daquelles lugares tristes, brilhou na folhagem e refulgiu nas aguas.
Ella, então, poz-se a descer vagarosamente fazendo como lhe dissera o velho.
Não via pedra onde não vertesse uma gota d’agua e assim foi desencantando os que ali estavam petrificados.
Mas o seu coração só se aquietou quando duas pedras mudaram-se nos dois principes. Abraçou-os chorando lagrimas felizes e, seguida da turba immensa, que a acclamava, chegou á base da montanha onde se achava o solitario e, como lhe agradecesse o conselho, delle ouviu estas ultimas palavras:
— Filha, este é o meio que têm os fortes de vencer no mundo que, como esta montanha, está cheio de pedras inuteis. Os que não podem alcançar o ideal tornam-se tropeços no caminho: são pedras que bramam. Para vencer é APOLOGOS 133 necessario não dar ouvidos á voz dos inertes.
Como venceste hoje, vencerás ámanhan se procederes com a mesma superioridade.
E a princeza poz-se a caminho do reino e, durante oito longos dias e oito longas noites, na larga porta que abria sobre o deserto, desfilaram as caravanas dos que regressavam da montanha do encanto.
O diamante A floresta era densa, obscura, tão intricada que, mais dum viajante ousado, nelia se havia perdido, sem atinar com o caminho na rede complicada de enviezadas trilhas que, em vez de levarem aos campos, abalsavam o caminheiro que ia ter ás grutas em que se enlapavam feras.
Como não havia outra passagem para os campos geraes senão atravez da floresta, o lenhador, que tinha a sua choupana á sombra das primeiras arvores, todas as vezes que se aprofundava APÓLOGOS 135 naquella solidão nemorosa, levava comsigo o filho e ia-lhe indicando as picadas, dizendo-lhe os rumos que seguiam e, por meio de golpes nos troncos, assignalava todas as direcções.
O pequeno, que era esperto, prestava a maior attenção ás palavras do velho e, em pouco tempo, a floresta não tinha segredos para elle, porque o afoito menino, deixando o pai a lenhar, internava-se, cruzando o verde labyrintho de extremo a extremo, correndo ás fontes, se sentia sede, trepando ás arvores, se a noite o surprendia longe.
Sempre, porém, que tornava á choupana, ima-
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ginava uma desculpa mentirosa para que o pai, que era severo, não o castigasse.
Eram historias de animaes que o haviam perseguido, quédas que dera, vozes afflictas que ouvira e o velho, ou porque acreditasse, ou porque tivesse pena do menino, que chegava faminto e tiritando de frio, com as roupas humidas, relevava a estroinice e lá ia, machado ao hombro, para o rude trabalho.
A mãi, porém, boa e virtuosa mulher, chamava carinhosamente o filho e dizia-lhe:
— Porque mentes? Nada viste nem ouviste na floresta. Ficaste a brincar e a procurar ninhos e, com a escuridão da noite, temendo os animaes, buscaste algum esconderijo até que luzisse a manhan. Foi isto, não?
Elle tentava confirmar a mentira, insistia convidando a velha a acompanhá-lo a certa clareira para ouvir as vo-
APOLOGOS 137 zes; ella, porém, continuava a desmenti-lo e vencia-o, por fim.
— Não mintas, meu filho. A mentira é manto esfarrapado e curto que não consegue jamais esconder a verdade.
Quem mente corre grandes riscos e açaba sendo desprezado de todos. A verdade fica e, a qualquer tempo invocada, apparece perfeita. A mentira é baforada de fumo que logo se desmancha no ar.
O mentiroso, contando um facto que não viu, quando, mais tarde, o quer repetir, embaraça-se nas proprias tramas e o embuste, com que procurou illudir, serve de teia para enredá-lo. Dize sempre a verdade porque quem anda com ella anda com Deus.
Um dia lembrou-se o lenhador de aproveitar a intelligencia do filho e disselhe:
— Já estás um rapaz e pódes ganhar a tua vida prestando-nos algum auxilio.
Conheces todos os caminhos da floresta 138 APOLOGOS
e, como eu começo a sentir-me alquebrado, vai tu substituir-me como guia quando aqui apparecer algum viajante com destino aos campos geraes. São homens generosos. Um delles, possuidor de grandes riquezas, deume este diamante que vale uma fortuna.
E tirou do bolso do cinto de couro uma pedra branca que scintillava.
Ao vê-la, o pequeno ficou deslumbrado e logo offereceu-se para encaminhar o primeiro viajante que viesse bater á porta da choupana.
A velha, porém, que era prudente, á noite, tanto que viu o filho adormecido, recriminou o marido por lhe haver mentido.
— Porque mentiste ao pequeno?
Julgando fazer um bem, fizeste um mal irreparavel, porque no dia em que elle descobrir que o que lhe mostraste não é mais do que um pedaço de crystal sem valor, descrerá de tudo quanto lhe dis-
APOLOGOS 139 seres e, recebendo dos viajantes a merecida paga do seu trabalho, julgar-se-á sempre lesado e voltará á madraçaria. Fizeste mal porque não póde exigir a verdade aquelle que dá exemplos de mentira.
O lenhador encolheu os hombros e deitou-se, sem dar importancia ás palavras da mulher.
As grossas nuvens dissipavam-se annunciando os dias dourados, já os ventos não gemiam no bosque e as aguas, mais mansas, corriam com suave murmurio. As madrugadas eram alegres, cheias de luz e sonoras de chilros; as campinas reverdeciam, as franças das altas arvores enfeitavam-se de flores quando, uma tarde, tres homens appareceram á porta da choupana, montando negros cavallos ajaezados de prata, com pistolas nos coldres e adágas atravessadas á cinta.
Eram aventureiros que seguiam le-
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vados pelas noticias dos ricos descobertos nos corregos que desciam da montanha.
O lenhador, que jantava, sahiu a recebê-los hospitaleiramente e como o mais velho dos tres pedisse um guia que os conduzisse atravez da floresta, o pequeno, que estava a um canto, alvoroçou-se imaginando logo que, ao fim da viagem, aquelle homem de barba tão negra, que trazia armas tão ricas, lhe daria um diamante maior do que o que lhe mostrára o pai.
Estava elle a pensar nessa fortuna quando ouviu as palavras do lenhador que falava ao mais velho dos homens:
— Levar-vos-á meu filho que, melhor do que eu, conhece as trilhas da floresta. Com elle, em quatro horas suaves, chegareis aos campos. Partireis ao luzir da manhan. Agora vinde refazer-vos á mesa, vós e os vossos companheiros, contentando-vos com o que póde offerecer um pobre lenhador.
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Abancaram-se os homens, regalando-se, á farta, com o que lhes foi servido; em seguida recolheram-se ao quarto que a boa velha preparara aceiadamente.
Ao dealbar, ainda com a luz da lua, sahiram guiados pelo pequeno. Iam vagarosamente gosando o silencio, o frescor e o perfume da floresta, quando o guia, que era garrulo, entrou a falar das suas aventuras e, como os homens não fossem tambem dos mais calados, a conversa animou-se.
Foi então que o menino, esgotado o repertorio das narrativas maravilhosas, alludiu ao grande diamante que lhe mostrara o pai e não o descreveu como o vira, exagerou-lhe o tamanho e o brilho, affirmando que era maior que um ovo e que, no escuro da noite, alumiava como uma lampada.
Entreolharam-se os homens e o mais velho, que era astuto, perguntou:
APOLOGOS 143 « Como havia o lenhador adquirido tamanha preciosidade? »
Repetiu o pequeno o que ao pai ouvira e os tres, com palavras estranhas, conversaram longamente até que chegaram á ourela da floresta onde começavam os campos.
O pequeno recebeu pelo trabalho uma moeda de ouro e, contente, cantando, retrocedeu, sem sentir que era acompanhado. Vinha a imaginar o emprego que daria áquella riqueza. Féra que rompesse da matta não o tiraria das cogitações.
Chegando á casa narrou todas as peripécias da jornada, reservando-se, porém, de dizer que falára do diamante.
Á noite, depois da ceia frugal, recolheram-se todos. Elle deitou-se no seu catre e, insomne, imaginando-se riquissimo, com muitas moedas de ouro como a que lhe haviam dado os homens, ficou a rolar nas palhas e rolava, quando ou-
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viu um grito agudo que atroou a acanhada e adormecida choupana. Quiz levantar-se, mas o medo tolheu-o.
Gritaram de novo, soaram pancadas como de portas impellidas por um vento forte; depois recahiu o silencio.
Apenas, de vez em vez, passava um gemido abafado.
Só quando os passarinhos cantaram e uma fita de sol desceu por um intersticio do tecto, foi que elle se sentiu com animo de sahir, vêr o que houvera em casa: porque haviam gritado com tanta angustia, que rumor estranho fôra aquelle que estrondára no silencio.
Sahiu pé ante pé, perscrutando medroso e, na pequena sala de jantar mal alumiada, descobriu um corpo immovel.
APOLOGOS 145 Escancarou a porta — o sol entrou e, á luz, reconheceu o pai que agonisava em uma poça de sangue. Atirou-se de joelhos, soluçando.
Aos seus gritos desesperados respondeu uma voz que o chamava. Correu ao quarto e achou a velha mãi ensanguentada, a arrastar-se difficilmente.
— Ah! filho, os tres homens que hontem daqui sahiram comtigo... Foram elles! Voltaram á noite porque lhes falaste no diamante que te mostrou teu pai.
Entraram no quarto e eu só os senti quando golpeavam o pobre homem. Pude escapar a tempo, nem era a mim que elles buscavam, senão ao desgraçado que tinha o cinto de couro que os perversos retalharam, fugindo arrebatadamente com a pedra que julgavam preciosa.
Foste tu o causador da nossa desgraça — ou antes: foi teu pai com a mentira e foste tu com a indiscreção.
Teu pai mentiu-te, affirmando que 10 146 APOLOGOS
era um precioso diamante o que não passava de um caco de crystal, e tu ainda exageraste a mentira, incitando com ella a ambição dos assassinos.
E agora, que será de nós sem elle que era o nosso amparo?
Ahi tens o triste effeito da mentira que, se enganou a uns, que por ella se tornaram criminosos, mais fatal foi ao que a produziu, querendo estimular ao trabalho com uma illusão. O meio era deshonesto, o resultado foi triste.
— Que, ao menos, te aproveite o exemplo.
E, ajoelhando-se junto do cadaver do esposo, a velha desatou a chorar desesperadamente.
A sabedoria do principe Certo rei de um paiz immenso que largos e fundos rios regavam, fertilisando campos de fartas searas trabalhados por um povo forte, sentindo-se alquebrado pela idade e pelas grandes fadigas do governo, nem sempre sereno — duas guerras renhidas haviam longamente ensanguentado os primeiros annos do seu reinado — falou, um dia, ao seu mais intimo conselheiro sobre a necessidade de preparar o principe para o destino que o esperava: dirigir o povo e assegurar a honra e a fortuma da nação.
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Não bastava que o futuro monarcha soubesse resolver, com facilidade, um problema complicado, indicar, pelos seus nomes, as estrellas do céu, descrever os reinos vastos da terra com os seus mares, os seus rios, as suas montanhas e a sua historia;
responder, com discernimento, ás objecções dos ministros; presidir aos conselhos e conduzir, com garbo, os bailes da côrte.
Convinha que tambem aprendesse a cavalgar um ginete e a brandir uma lança para que não se portasse com fraqueza no caso dos povos tributarios levantarem-se em insurreição ou inimigos ameaçarem a paz e a honra do reino.
O conselheiro, que era homem de tino, applaudiu a lembrança do soberano e, entre os dois velhos, que conversavam á sombra dos castanheiros do parque, ficou assentado que a educação do principe seria commettida a um famoso mestre d’armas, cavalleiro destro e a melhor lança do reino.
APOLOGOS 149 O principe, logo que teve conhecimento da resolução paterna, lançando de si os brinquedos pueris, poz-se a saltar contente e pediu um cavallo, uma rija espada e um escudo de bem polido aço que rebrilhasse ao sol.
— Vede, senhor, é o vosso sangue que referve naquellas veias. É a vossa alma que anima aquelle jovem coração. Pódem os homens repousar tranquillos 150 APOLOGOS
porque temos quem nos garanta a paz, companheira da fortuna; disse o conselheiro a quem o principe era tão caro como se seu filho fôsse, porque o vinha acompanhando desde o dia do nascimento.
— Dizes bem, eu revejo-me no infante.
Mas, se queres que te fale com franqueza, receio que lhe succeda algum desastre. É por demais afoito e os ginetes não respeitam as qualidades dos homens. Sou de parecer que primeiro aprenda todas as regras de bem cavalgar antes de arriscar-se na sella e que tambem se exercite á quintana (*) antes de medirdir-se em justa.
Ha na sala d’armas o manequim de um ginete acobertado e nelle poderá o principe, sem perigo, fazer-se cavalleiro (*) Manequim que servia para o adestramento dos que se exercitavam nas armas. Montado sobre um eixo, com um chicote em punho, se era mal tocado voltava-se repentinamente flagellando o inesperto esgrimista.
APOLOGOS 151 antes de aventurar-se no campo da lide, em ardego cavallo de guerra.
— Senhor, disse o avisado conselheiro, as regras são uteis, mas a experiencia é tudo. Homens de muita theoria nem sempre brilham quando delles se ha mister.
O alfageme que conhece o tempero da espada e açacala-a e afia nem por isso póde medir-se com o veterano experimentado em batalhas.
Perguntai ao vosso melhor soldado se conhece a composição do aço do seu montante e elle vos dirá que sabe apenas que corta, abola elmos e atravessa a mais rija couraça.
Bom é que o principe conheça as regras, mas não será num cavallo empalhado que elle se ha de fazer cavalleiro e homem de acção.
Não quiz o rei attender ás claras razões do velho conselheiro e, sempre apprehensivo e medroso, falou ao mestre 152 APOLOGOS
d’armas para que fosse adestrando o principe no cavallo de madeira.
Apesar da má vontade do infante, que só desejava correr, galopar na largueza dos campos, o mestre d’armas, obediente ás ordens do monarcha, começou a preparar o futuro guerreiro.
Todas as manhans lá desciam os dois para o grande salão onde reluziam as pesadas armaduras e o principe, cavalgando o ginete immovel, ia aprendendo o manejo e, um a um, os nomes de todas as peças da armadura. Depois, brandindo a lança e a espada, atirava-se á quintana a golpes desabridos.
O rei descia, ás vezes, e ficava maravilhado da sabedoria do filho que respondia, sem vacillar, a todas as perguntas do mestre d’armas e acertava, com precisão, na quintana, sem perder um só bote. O
conselheiro ouvia, em silencio, os gabos do monarcha. Uma vez, porém, não se podendo conter, falou:
APOLOGOS 153 — Não vos fieis, senhor. O cavallo que o principe, tão altaneiro, aderençar é apenas uma figura: o sendeiro mais lerdo leva-lhe vantagem. Não basta chegar á posição, é preciso saber mantê-la, e uma coisa é recitar de memoria uma pagina, outra coisa é executar com exito um plano. A
bravura, o brilho, a calma e o tino só se adquirem na acção. Aqui me tendes como exemplo vivo do que digo.
A mim tambem mandaram ensinar musica e, estou em affirmar que, em todo o reino, não ha outro que, como eu, conheça os accidentes.
Leio, á primeira vista, a pagina musical mais difficil que me apresentarem, entretanto sou incapaz de disputar com o rude pastor que 154 APOLOGOS
leva o rebanho ao som da frauta, porque não me ensaiei em instrumentos e só com as regras me contentei. V. M. verá, mais tarde, que as minhas palavras não foram exageradas.
— E que diz o mestre d’armas?
— Senhor, o mestre d’armas nada tem a dizer. Faz o que deve, cumprindo as ordens que recebeu do seu rei.
— Elle que não protesta é porque entende que está como convem.
— A prática responderá por elle, Magestade.
Um dia, aproximando-se as grandes festas da primavera, que eram celebradas com jogos floraes e justas em campo raso, querendo apresentar galhardamente o principe, mandou o rei chamar o mestre d’armas.
Logo que o valente instructor appareceu, curvando-se, com reverencia, dian-
APOLOGOS 155 te do throno, o rei dirigiu-lhe a palavra ferindo o motivo da entrevista:
— Não tarda o mez de maio, disse, já se preparam os balcões para a lide.
Ha grandes nomes inscriptos e eu quero que tambem figure o do principe entre os que devem ser apregoados pelo arauto. Vê se lhe falta alguma coisa e dize em tempo para que eu a tudo proveja, afim de que o povo possa justamente orgulhar-se daquelle que, dentro em pouco, será o seu rei.
O mestre d’armas conservou-se calado, cabisbaixo, passando, repassando a mão pela barba farta que lhe rolava em ondas alvas sobre o peito robusto.
— Vamos, responde! intimou o rei.
— Que hei de eu responder a V. Magestade? O principe conhece, como nenhum outro cavalleiro, todas as regras da equitação e posso jurar por minha honra que a esgrima não tem segredos para elle, tão destro é em brandir a lan- 156 APOLOGOS
ça e a espada como em manejar o punhal e ninguem sabe mais do que o meu discipulo aparar com segurança um golpe no escudo.
Se V. Majestade pedir-lhe a regra mais complicada elle, immediatamente, a dirá; se exigir o nome da mais insignificante peça da armadura, no mesmo instante terá a resposta.
Tudo sabe, como nenhum outro, apenas...
Curvou a cabeça e ficou em silencio.
—Porque te calas? Continua! Sê franco.
—Senhor, o principe nunca soffreou um ginete nem jámais experimentou a commoção de achar-se ante um adversario de valor. O cavallo em que elle se tem exercitado é de madeira e palha, como a quintana que serve de alvo aos golpes da sua lança e uma coisa, senhor, é a ficção, outra é a realidade.
Conheci um homem que sabia os nomes e a direcção de todas as estradas do vosso reino sem nunca as haver trilha-
APOLOGOS 157 do. Um dia, sahindo a viajar, perdeu-se e teria perecido na floresta se um lenhador ignorante não lhe houvesse apparecido tirando-o do labyrintho d’arvores por uma estreita vereda.
Os livros são como a luz do sol, mas a claridade não basta a quem anda, é preciso o conhecimento dos caminhos, que só as viagens dão.
Dizei ao besteiro:
Levanta a besta, acompanha o passaro no vôo e, quando o tiveres bem em mira, desfere o tiro. E a regra. Se elle, entretanto, não praticar ao ar livre, nunca conseguirá, senão por acaso, attingir o seu alvo.
O principe é um cavalleiro admiravel e uma lança de respeito, mas... no cavallo de palha e contra a inoffensiva quintana.
— Queres, então, dizer que, se elle sahir a campo...?
— Fará tristissima figura e talvez lhe 158 APOLOGOS APOLOGOS 159 custe vexame a afoiteza porque, como é brioso e bravo, ha de querer arrojar-se e pagará cara a temeridade.
Enfureceu-se o rei com as palavras do mestre d’armas e, na tarde do mesmo dia, desceu ao parque, fez chegar um corcel e ordenou ao principe que o montasse.
Não se fez o mancebo rogar e, avançando, metteu o pé no estribo, mas a um repellão do animal, que era fogoso, perdeu o equilibrio e teria cahido se o seu mestre d’armas, que contava com o desastre, não houvesse acudido a tempo.
— Agora, senhor, vinde á sala d’armas e vereis que cumpri as vossas ordens. O
principe, no cavallo de pau, é um cavalleiro incomparavel... só no cavallo de pau.
Regras não lhe faltam, tem-nas de sóbra. O
que lhe falta, senhor, é saber montar a cavallo.
Frutos de ouro Todas as manhans, ao romper d’al-va, o velho lavrador sahia a percorrer o pomar examinando, uma a uma, vagarosamente, as arvores maravilhosas.
Detorava-lhes os ramos seccos, arrancava-lhes dos galhos as hervas parasitas e a vermina hostil que lhes sugava a seiva, ablaquecia a terra em volta dos troncos para que as raizes ganhas sem força ao sol, canalisava a agua em azequias e as arvores medravam lindas, frondosas, com vigor viçoso de saude, garantindo ao lavrador, não só a for-
APOLOGOS 161 tuna como o regalo de largas sombras nos dias abafados do verão.
O que havia de extraordinario nas bellas arvores é que não frutificavam como as outras. Os seus frutos eram de ouro fino e, no tempo da colheita, o lavrador enchia com elles grandes cofres.
Na epocha da florescencia redobravam os cuidados do velho. Era, então, 11 162 APOLOGOS
vê-lo na dura faina, a carpir, a mondar, a varrer o ramalho e as versas, a limpar os regos, a fincar espantalhos para afugentar os passaros e os frutos nasciam, a principio esverdeados, como cobertos duma crosta de azinhavre, amadurecendo, porém, luziam de ouro puro, entre a verde folhagem.
O velho, então, com pequenas ceiras, sahia a colher retirando das arvores maravilhosas o premio do seu trabalho. Tanto, porém, que terminava a colheita, longe de se deixar ficar em preguiçosa inercia, voltava á acção, robustecendo as arvores com o adubo, examinando-as da raiz á fronde para que nellas não ficasse animalejo nocivo, nem alastrasse mal que começava.
As brocas eram logo combatidas com energia, as formigas, que minavam e afofavam a terra, eram anniquiladas.
Se uma tempestade passava, com graniso e ventos, o velho lá se mettia no APOLOGOS 163 pomar dias e dias, incançavelmente, e não é mais sollicita nem mais carinhosa com os hospedes de uma enfermaria a irman piedosa do que era o rendeiro com as suas arvores e, não só as tratava, ainda lhes dirigia palavras carinhosas como se ellas pudessem ouvi-lo e entendê-lo.
Quem sabe? Talvez o ouvissem e entendessem porque pareciam sentir, alegrar-se quando elle lhes afagava mimosamente os troncos escalavrados ou quando, devagar, docemente, tirava um ramo secco e estancava a seiva que ficava a gottejar da ferida, como se fosse sangue.
Certo parente, ouvindo falar da riqueza do velho, procurou-o com ambição. O
lavrador, que era lhano e de muito agasalho, recebeu-o na sua casa, comprehendendo immediatamente que o homem o visitava, não porque se interessasse por sua saude, como dizia, mas 164 APOLOGOS
APOLOGOS 165 porque queria conhecer o segredo da sua fortuna que crescia com os outonos.
Na mesma tarde, posto que já cahissem as sombras da noite, quiz o parente vêr as arvores maravilhosas.
— E tarde para sahirmos, disse-lhe o lavrador; sópra um vento gelado e, se eu penso na fortuna, não me descuido da saude. Ai! das pobrezinhas se eu adoecer!
Ha tantas molestias para as plantas como as ha para os homens e, quem as quizer ter viçosas, ha de trazê-las sempre vigiadas e bem tratadas. Agora é tarde para irmos vêlas. Ámanhan cedo, com a primeira luz, lá iremos, parente amigo e podereis, com vagar, examiná-las todas, uma a uma, desde as pequeninas, que ainda não floreceram, até as velhas que começam a enfraquecer, apesar dos meus cuidados. Mas é lei da vida — já lhes chegou o tempo: deram quanto podiam dar e eu não exijo senão o que é possivel.
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Agora lá andam os mastins rondando o pomar para que os ladrões não o estraguem na pressa do furto.
Vamos á ceia que nos espera e, antes que cantem os passarinhos, estarei á beira do vosso leito, chamando-vos.
Escusado é dizer que o homem ambicioso não conseguiu conciliar o somno.
Revolvia-se no leito, que era macio e forrado de linho fresco e, escutando as vozes nocturnas, imaginava distinguir o tilintar dos frutos de ouro.
Quando o velho, ao lusco-fusco, entrou no quarto do hospede, já o encontrou de pé, á janella, olhando o terreiro ainda ennevoado.
— Eh! sempre fostes mais madrugador do que eu, homem da madrugada, exclamou, a rir, o velho, comprehendendo que o outro passara a noite em ansiosa vigilia.
— É verdade, acordei cedo. Os passarinhos vieram cantar no peitoril da APOLOGOS 167 janella, saltei da cama, vim para aqui ouvilos. Lá andam elles.
— Bem, vamos, então, ao pomar. Es perai-me aqui um momento emquanto prendo os mastins e vinde ao meu primeiro chamado.
Ficou o ambicioso em impaciencia, alongando os olhos para a massa de verdura que, lá ao longe, além da ribeira, fechava o horisonte. Eram as arvores, as ricas arvores!
Lá estavam ellas carregadas de frutos de ouro.
— Vinde, parente, disse o velho. Já não ha perigo.
E o ambicioso, em grande pressa, sahiu ao chamado, juntando-se ao lavrador que o foi levando a mostrar-lhe todas as plantas que cresciam na sua terra, pequena, mas bem tratada.
— Com a fortuna que tendes, parente, já podieis ser senhor de todas estas terras de rio a monte.
— Sim, são terras bravas, estou cer- 168 APOLOGOS
to de que m’as dariam por pouco, mas de que me serviria tamanho estirão se o não posso cultivar? Mais vale uma horta medrando em volta da casa do que cinco léguas de chavascal. Contento-me com aquillo que meus olhos podem alcançar, porque não ha feitor que os valha e, nesta terra pequena não ha torrão que eu não conheça, agua cujo sabor me seja estranho, planta que não tenha visto nascer.
E, assim discorrendo, entraram os dois no pomar. As arvores estavam carregadas, acenosas, tocando o chão com os ramos pesados de frutos que rebrilhavam.
Accenderam-se os olhos cupidos do hospede.
— Deus do céu! Mas não ha rei na terra que possua thesouro comparavel ao vosso, exclamou. A mim disseram que as arvores produziam ouro, mas eu nunca acreditei em taes palavras. Agora APOLOGOS 169 que vejo não sei explicar tão extraordinario caso. Para dizer que tendes pacto com o inferno...
— Não, parente amigo, não ha no que vêdes nada que não tenha vindo de Deus. Eu tudo devo ao Senhor e ao meu esforço. Se alguem vos falou em sortilegio, é pessoa que me não conhece, que nunca visitou a minha casa onde tudo é pureza e honradez.
O outro, tão embebido estava na contemplação, que não ouviu as palavras do lavrador. Por fim exclamou, a arder em ganância:
— Ah! se o parente me fizesse a esmola de umas mudas destas arvores, como eu viveria feliz! Nunca mais os meus pequenos soffreriam frio e fome, os meus pobres pequenos que andam rotos e descalços pelas estradas.
— Levai quantas quizerdes, parente.
Escolhei á vontade e eu ficarei contente se souber que as arvores vos tiraram 170 APOLOGOS
da miseria, fazendo com que os vossos filhos conhecessem o conforto e a fartura.
O hospede sorriu agradecido e logo, com açodamento, poz-se a tirar mudas.
Tantas tirou que foram necessarios tres grandes carros para transportá-las.
O velho, para ajudá-lo, poz-se tambem a cortar algumas, mas com tal vagar, com tal cuidado que, emquanto o outro, a rijos e desatinados golpes, separou duzentos galhos, elle não conseguiu reunir senão dez.
E, com a fresca da tarde, agradecendo o presente, lá foi o homem acompanhando os tres carros de ramos.
O velho ficou pensativo e, á noite, diante da candeia que illuminava a sua sala alegre, poz-se a murmurar:
« Para que tantas se elle não póde cuidar de todas?! »
Mezes depois, uma manhan, appare-ceulhe o homem desolado.
APOLOGOS 171 —Parente, de tantas mudas que daqui levei, só dez repontaram; as outras morreram. Lá estão esturricadas como se as houvesse queimado um fogo vivo.
—Medraram as que eu cortei, disse o velho, porque procedi com mais attenção cio que vós, vendo o galho que mais convinha e cortando-o como devia. Ide e tratai as dez arvores e ellas vos darão a fortuna.
Voltou o homem consolado e passaram primaveras e outonos até que, a um fim de tarde, elle reappareceu nas terras do velho, queixoso:
—Parente, as arvores lá estão e não produzem. Parece que o encanto está na terra do vosso pomar.
—Talvez, disse o avisado lavrador. E
possivel que assim seja, mas eu vou comvosco para vêr as vossas arvores. E, fechando a porta, soltou os mastins vigilantes e lá foi ás terras do ambicioso.
Logo que entrou no pomar, sorriu 172 APOLOGOS
tristemente vendo a herva brava, alta e forte e, pelos ramos, as parasitas e os insectos devastadores.
—Ah! parente amigo, como quereis que as vossas arvores produzam ouro se as deixais abandonadas? Todas as arvores dão frutos de ouro, mas é preciso que o cultivador as cuide regando-as com o suor, livrando-as dos bichos damninhos, compondo-as quando os temporaes retorcem-nas e quebram-nas. Todas as arvores dão frutos de ouro quando o lavrador não as esquece. Como quereis fortuna se tudo deixais á lei da natureza?
A Providencia faz muito, mas é necessario que o homem lhe desbrave o caminho. Para que a agua chegue á vossa horta haveis de cavar o rego e como hão de as arvores produzir se estão abafadas pelo hervaçal e numa terra mais dura e secca do que o granito?
Querieis o milagre? Ah! parente, os APOLOGOS 173 milagres somos nós que os fazemos e não ha santo mais milagroso do que o homem trabalhador.
Vêde — as vossas arvores são filhas das minhas, entretanto o meu pomar reluz e o vosso, que é mais novo, eriça-se em espinhaes. A culpa é das arvores? Pensai bem: a culpa é vossa que não as preparastes como convinha.
Parente amigo, não basta ter terras vastas e grande cópia de arvoredo: para a fortuna chega um pequeno pomar que possa ser tratado, vigiado pelo dono e as arvores responderão aos cuidados com a abundancia.
Não conteis com o milagre. Todas as arvores dão frutos de ouro, mas para que o dêem é preciso que o homem seja para a arvore o que é Deus para o homem.
Experimentai e vereis.
Mais vale o pouco aproveitado do que o muito esquecido.
A arvore que cantava Certa manhan o rei, que promettera a mão da princeza a quem conseguisse chegar ao reino das fadas, foi avisado de que certo mancebo desejava falar-lhe para referir episodios maravilhosos da viagem que emprehendera ao paiz encantado, onde mortal algum jámais chegara, O rei ficou em alvoroçada curiosidade e todos os aulicos agitaram-se com a noticia, sendo immediatamente despachada ordem para que o mancebo fosse introduzido na sala do throno, onde APOLOGOS 175 o monarcha o esperava entre os nobres da sua côrte.
A princeza não desviava os lindos olhos da porta por onde devia entrar o ousado moço que, por seu amor, arriscara a vida entre gnomos e dragões, que taes eram os guardas das sete portas de bronze da capital do reino das fadas e sorriu, alegremente commovida, com duas rosas vivas nas faces, vendo apparecer o heroe, que era jovem, formoso e senhoril.
Inclinando-se graciosamente diante do rei e d’aquella que seria sua, se as provas confirmassem o que allegara, poz-se a narrar a sua viagem, longa e penosa, por entre penhascos, atravez de campinas eriçadas de espinheiros, cheia de episodios interessantes, aos quaes nem faltaram combates que teve de travar com anões que surgiam, aos milhares, das moutas de violetas, com um soido impertinente que era a voz das 176 APOLOGOS
«fe,____
APOLOGOS 177 suas tubas, enristando espinhos, que eram as suas lanças.
Descreveu os immensos e alfombrados jardins, as fulgurantes montanhas de crystal, os vastos palacios de jaspe e onix sustentados por fortes columnas de porphyro e ladrilhados a agathas e topazios.
Falou dos gigantes, altos como torres, que guardavam rebanhos de carneiros de vello de sêda lustrosa e chavelhos de ouro;
falou das formosas mulheres, que tanta vez admirára nos prados floridos, banhando-se nas mansas ribeiras coalhadas de nenuphares, aderençando ginetes, mais alvos do que a neve ou remontando-se, em carros prefulgentes que eram tirados por aguias brancas.
Todos ouviam-no interessados e, ao cabo da narração, como o rei pedisse uma prova, porque não bastavam palavras, mostrou o moço uma roman de ouro, cujas bagas eram preciosos rubis, 12 178 APOLOGOS
dizendo havê-la colhido no pomar do palacio da rainha das fadas.
O rei e a princeza admiravam o formoso fruto quando um dos cortezãos, homem invejoso e que tambem pretendia a mão da donzella real, adiantou-se dizendo:
— O fruto é lindo, senhor, mas bem póde ter sahido da officina de algum ourives. Se veiu de galho d’arvore, outros iguaes tenho eu visto em montras de joalheiros.
Todos os cortezãos concordaram com o fidalgo, mas o rei, que sympatisara com o mancebo, pediu-lhe outra prova do que dissera.
— Senhor, disse o jovem, tenho commigo o bastante para convencer, não só a V. M. como a todos os nobres da côrte.
E, fitando os olhos no invejoso, perguntou:
— No vosso andar pelo mundo já vistes, por acaso, arvore que cantasse, APOLOGOS 179 desferindo accentos tão suaves como os desfere a mais afinada garganta?
— Confesso que ainda não vi, não poude deixar de responder o odioso fi dalgo.
E todos entreolharam-se com visiveis signaes de duvida, alguns sorriram, tomando, talvez, por louco ao moço pretendente. Elle, porém, tirando do bolso da vestia uma semente, apresentou-a ao rei, dizendo:
— Senhor, foi no parque do palacio da rainha das fadas que vi e ouvi a arvore que canta. Era linda a noite: de luar e animada pelos sylphos luminosos, pequeninos como lavandiscas, que iam duma a outra flôr. Uns sentavamse nas petalas, outros escondiam-se nas corollas, rindo. Eu caminhava quando ouvi o canto delicioso.
Julguei, a principio, que era uma das fadas que desafiava os rouxinoes, mas um elfo esvoaçou sussurrando a 180 APOLOGOS
uma pequenina sylphide : « É a arvore que canta. » E eu, seguindo-lhe o vôo, cheguei ao sitio onde ficava a arvore e, toda a noite, deliciado, deixei-me estar a ouvi-la, até que a manhan rompeu e a arvore calou-se.
Trago commigo uma semente da arvore que canta. Plantai-a no vosso parque e, antes de uma semana, tereis a arvore frondosa, provando, com os seus gorgeios, a verdade do que vos disse.
Aceitou o rei a proposta. Mas o invejoso fidalgo, que só pensava em desfazer-se do rival, que tão depressa conquistará as graças da princeza, disse severamente:
— Senhor, é justo que se faça a experiência, mas para que se não diga que fostes victima de um embusteiro, que se lhe dê um prazo improrogavel ao fim do qual lhe caiba o premio ou seja punido como merece ser todo aquelle que mente ao seu rei.
APOLOGOS 181 — Dou-lhe um mez, disse o soberano.
— Dois, delongou a princeza. Mas o mancebo replicou:
— Basta-me uma semana, nem mais um dia requeiro. Se, ao fim do prazo, não se houver realisado o que eu disse, que o carrasco me venha buscar na prisão em que devo ficar.
E, assim dizendo, entregou ao rei a semente preciosa.
— Planta-a tu mesmo, disse o monarcha ao invejoso. Planta-a no parque, perto das janellas dos meus aposentos, para que eu seja o primeiro a ouvir-lhe o canto.
E o mancebo, que se sujeitára á condição, desceu, entre guardas, para a prisão do palacio.
De posse da semente maravilhosa, o cortezão perverso desceu ao parque com toda a côrte e, emquanto o jardineiro abria uma cova, poude, sorratei-
182 APOLOGOS
ramente, substituir a semente por um seixo que foi logo coberto sem que os do grupo dessem pela troca e, certo da victoria, voltou-se radiante, dizendo:
— Dentro de uma semana teremos uma arvore a cantar, se a não tivermos lá fóra, ao sol, balançando um corpo no seu galho secco.
Referia-se á forca em que devia ser justiçado o seu formoso rival.
Recolhendo ao seu palacio, desceu ao subterrâneo e lá, bem no fundo, cavando um fosso, deixou ficar a semente, cobrindo-a com terra e pedrouços para que não vingasse, e, tranquillo —
porque tinha por inevitavel a morte do APOLOGOS 183 mancebo — subiu, dizendo que fôra á adega escolher um vinho precioso para offerecer ao rei no dia do seu proximo anniversario.
Todas as manhans a princeza, muito interessada na victoria do mancebo e tambem curiosa de ouvir o canto da arvore, abria a janella e, nada ouvindo, descia ao parque e ia examinar o sitio em que fôra plantada a semente. Nada!
E a princeza chorava pezarosa, lamentando que tão guapo moço acabasse na forca por seu amor.
Os cortezãos sorriam. O proprio rei, impaciente, não occultava o seu despeito, louvando a subtileza do fidalgo que o ia vingar exemplarmente da mystificação do embusteiro. « Que morra! » bradava enfurecido.
E os dias passavam.
Na vespera de findar o prazo foram á prisão e acharam o moço dormindo tão tranquillamente que os proprios guar-
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das tiveram pena de despertá-lo. Mas o fidalgo, para gosar a sua crueldade, chamou-o:
— Eh! amigo, expira ámanhan o pra zo que pediste e da arvore não ha signal na terra do parque. Andam operarios na praça a levantar a forca em que, ao romper d’alva, se fará justiça ao teu procedimento vil.
Os olhos do mancebo relampejaram d’ódio. Logo, porém, contendo-se, respondeu serenamente ao fidalgo:
— Se a semente foi plantada, a arvore cantará antes da minha morte.
E, de novo, deitou-se nas palhas do carcere.
Ao alvorecer do dia fatal as trombetas soaram chamando os burguezes á grande praça onde fôra levantada a forca.
A tropa estendia-se em duas alas, desde o palacio real até o sitio do sup-
APOLOGOS 185 plicio. As janellas ficaram apinhadas de curiosos e era tamanha a agglomeração nas ruas que iam ter á praça que os soldados difficilmente mantinham as posições sendo, ás vezes, forçados a repellir a turba com violencia para contê-la á distancia, deixando livre a passagem por onde devia transitar o sinistro cortejo.
O palacio do invejoso dava a frente para a praça, fronteiro ao paço em cujo balcão o rei e a princeza, cercados de camaristas e damas, esperavam o condemnado.
Ao clangor das tubas o povo ondulou apertando-se a mais e mais e logo appareceu a carreta em que vinha o mancebo, d’alva, manietado, entre soldados que empunhavam lanças. Um esquadrão de cavallaria acompanhava o tragico vehiculo.
Justamente quando chegava á forca 186 APOLOGOS
o mancebo estremeceu e, no silencio commovido que se fizera, ouviram todos uma voz suavissima, cantando. O condemnado sorriu e, erguendo os olhos para o balcão real, disse:
— Senhor, é a arvore que canta. Escutai-a.
E todos, extasiados, procuravam a direcção do canto.
O fidalgo, pouco antes alegre, triumphante, empallidecia á janella do seu palacio, e a voz, cada vez mais meiga, soava docemente.
De repente alguém disse na multidão, apontando o palacio do invejoso: « É d’ali que vem o canto! » E uma turba immensa avançou contra o palacio, aos brados; mas as portas, que eram de bronze, resistiram ao choque.
O rei, então, que começava a suspeitar do fidalgo, desceu á praça e, entre os seus archeiros, intimou o vassallo a abrir-lhe as portas. O miseravel obede-
APOLOGOS 187 ceu, recebendo o monarcha no vestibulo, zumbrido, com um suor gelado a escorrer-lhe da fronte. E a voz, cada vez mais suave, encantava com a sua melodia.
188 APOLOGOS
— Quem canta no teu palacio?
perguntou o rei serenamente. Dize a verdade se não queres que os meus archeiros levem-te daqui arrastado ao patibulo que fizeste levantar na praça.
— Senhor, é a arvore que canta.
— Onde a plantaste?
— No subterraneo do palacio.
— Leva-me, quero vê-la.
Caminhando humilhado, o fidalgo desceu á adéga tenebrosa e humida, precedendo o rei e a sua comitiva, e lá estava a arvore frondosa, verde, florida e cantando.
— E que plantaste no parque real?
— Um seixo, senhor.
E, sem achar palavra para defender-se, o vilissimo homem prostrou-se aos pés do rei pedindo apenas a vida.
O soberano desprezou-o e, subindo em passos ligeiros, atravessou a praça, ordenando que conduzissem á sua presença o moço condemnado.
APOLOGOS 189 A princeza exultava e maior foi a sua alegria quando, ao apparecer o moço, o rei o levou ao balcão, apresentando-o ao povo como — o promettido noivo de sua filha.
Estrugiram acclamações e, não fosse a soldadesca, e o palacio do invejoso teria sido varejado pela multidão indignada.
E a arvore cantava docemente e o seu canto vencia o vozear da turba.
Bem dissera o moço:
« Se a semente foi plantada, a arvore cantará antes da minha morte ».
A verdade é como a semente da arvore que cantava: tráiam-na com os sophismas, abafem-na, releguem-na da luz, que ella rebentará fulgurante, dando a victoria á justiça e confundindo o traidor.
O lume No templo, sob a guarda vigilante de numerosos sacerdotes, que se revesavam á beira do altar, fulgurava irradiante a divina chamma conquistada ao sol.
Renovada de anno em anno, ao fim do inverno, quando rebentavam os primeiros brotos primaveris, era considerada como o espirito do proprio deus luminoso que afugentava as feras e fecundava as lavouras, trazendo ao homem o calor vivificante, depois dos longos e transidos dias de neve e vento.
APOLOGOS 191 A cerimonia do renovamento do lume era feita com a maior solemnidade no primeiro dia da primavera.
Na torre altissima do templo reuniam-se todos os sacerdotes revestidos dos seus trajos resplandecentes e as virgens, de branco, com os incensorios de ouro; e, diante do altar de mármore, onde se juntava a lenha aromatica, que se devia inflam-mar ao raio solar, dando a chamma divina, o summa sacerdote mantinha o espelho ustorio.
Um lento mover do fino ramalho, um leve enrugar das folhas seccas annunciavam a chegada do calor.
Pouco a pouco, aquecendo-se a mais 192 APOLOGOS
e mais a lenha, o aroma evolava-se. Subito uma centelha brilhava no bordo da folha mais secca e,. crescendo em risca, verminava; outra fulgia e um fumo subtil desprendia-se do altar e, como se a lenha vivesse, movia-se, curvava-se, crepitava até que a flamma desejada explodia alegre.
Logo os cantos triumphaes saudavam-na e as harpas, soando em unisono, annunciavam ao povo o fogo renascido.
Era, então, uma festa na cidade. A nova era levada a todos os cantos e, com ella, chegava aos corações a esperança de messes fartas, de prospera paz e do favor divino.
No templo, a chamma transferia-se ao alampadario de sete luzes, sendo a cinza da lenha sagrada recolhida ao ciborio de ouro, que era conservado nos subterraneos do templo, em nichos de marmore.
Todos os homens da cidade acudiam APOLOGOS 193 ao templo com lampadas e fachos resinosos, a buscar o novo lume, companheiro da vida, amigo do lar e era uma procissão radiante pelas ruas floridas, pelos campos verdes, pelos montes durante dias e noites até que o summo sacerdote mandava correr a grade de prata que separava da nave do templo o recinto sacrosanto reservado ao lume.
Ai! do que não se apressava com a sua lampada ou com o feixe de ramas para levar o lume astral — passava um anno triste, de desfortuna e apprehensões, porque o trigo não espigava, o gado morria ou trasmalhava-se e, se a morte o arrebatava durante o período melancólico, a sua alma errava, perdida no espaço, debatendo-se em sombras den13 194 APOLOGOS
sas, sem acertar com o caminho de esplendor que leva ao Paraiso.
Os que desejavam iniciar-se nas sciencias encerravam-se no templo e, durante sete annos, guardavam o lume solar.
Tanto fitavam os olhos na luz que ella os penetrava indo aclarar o espirito que se accendia como a lenha da ara quando sobre ella incidia o raio ethereo, e, cada qual, segundo o seu gosto e conforme o dictame do coração, sahia com a sua lampada a espalhar pelo mundo o esplendor que possuia. Não havia prodigio que os iniciados da luz não realisassem: desejavam e tanto bastava para que logo se cumprisse o seu desejo.
Quatro mancebos que haviam, juntos, velado, sete annos, o sagrado lume, deixaram o templo na mesma manhan e, despedindo-se, tomaram caminhos diversos.
Cada qual, entrando na grande vida, logo se dispoz a um destino.
APOLOGOS 195 O primeiro, mal descera a escadaria do templo, viu um pobre homem que gemia deitado á sombra de limoeiros, com uma ulcera a roer-lhe a perna. Tomou a sua lampada e, applicando á chaga o lume divino, immediatamente a sarou e o homem ergueu-se sorrindo e cobriu-o de bençãos, voltando alegre ao seu campo que, por abandono, já se havia embravecido em mattagal.
Pela treva das florestas, em noites tormentosas, atravez de campos coalhados de gado, nos ermos retiros dos montes, nas viellas escuras dos bairros pobres, onde quer que houvesse um enfermo soffrendo, ahi lampejava a flamma que o piedoso iniciado conquistára, á força de vigilias, no templo do sol.
E as bençãos dos humildes acompanhavam-no e os deuses, no Paraiso, louvavam o procedimento do bom homem que tão bem applicava a luz que adquirira.
196 APOLOGOS
O segundo encontrara a sêde flagellando a cidade e os campos. Os homens levantavam clamores doridos cercando as fontes escassas; as culturas mirravam e os rebanhos succumbiam sedentos nas estradas quentes onde os passarinhos, d’azas abertas, piavam avidos.
Com o favor da luz divina, foi-se por montes, seguido d’homens, direito a uma fonte limpida e copiosa e, trabalhando sem repouso e incitando ao trabalho os operarios, em pouco tempo trouxe á cidade e espalhou pelos campos a fartura d’agua que descobrira, graças á luz divina.
E a multidão, satisfeita, entoou louvores ao homem illuminado que tão bem applicára a sciencia adquirida nos sete annos de vigilia.
E os deuses, no Paraiso, sorriam agradados, vendo que o homem soubera aproveitar o bem que a luz lhe favorecera, transformando-o em beneficio para os seus irmãos.
APOLOGOS 197 O terceiro caminhava despreoccupadamente quando, ao passar por um carcere, ouviu gemidos lamentosos. Deteve-se e, informando-se de quem gemia, soube que era um homem que jazia em ferros no fundo duma masmorra, dizendo-se innocente do crime de que o accusavam.
Pediu para vê-lo e, tanto que entrou no prisão, logo accendeu a sua lampada e, na projecção da luz, viram todos apparecer o nome do verdadeiro criminoso.
Logo o innocente, que encanecera no soffrimento, foi posto em liberdade e o verdadeiro reu veio occupar o cepo que, durante tanto tempo, elle tivera por companheiro unico do infortunio.
Os homens louvaram aquella suave justiça e os deuses, no Paraiso, applaudiram a misericordia.
O ultimo, possuidor, como os primeiros, duma lampada divina, logo ao deixar o templo, correu a encerrar-se.
198 APOLOGOS
Á noite, quando as estrellas luziam no céu, debruçando-se á janella da casa que habitava, sombrio, com o coração fechado á ternura, só pensando nas palavras que lhe dissera o summo sacerdote com relação ao poder da chamma solar — que se prestaria a realisar todos os desejos dos iniciados —
quiz experimentá-la e, como, ao longe, ondulava, ao luar, um campo de trigo, logo desejou vê-lo incendiado.
Immediatamente um fogo vivo alastrou, subiu, avassallando a viçosa cultura. A
noite tornou-se de purpura e o fumo ennevoou o luar.
A grita da gente rustica, surprendida no somno pelas labaredas violentas, e o aterrado mugir dos bois e o balar assustado dos cordeiros fugindo desatinadamente ao incendio, chegavam ao homem cruel sem lhe doer no coração.
Elle contemplava, sorrindo, o excidio triste, orgulhoso do seu poder, igual APOLOGOS 199 200 APOLOGOS
ao de um deus, e sorria quando as vozes dos homens entraram a proferir maldições contra o perverso que tão mal procedia com a pobre gente e os animaes inoffensivos.
E os deuses, no Paraiso, revoltaram-se contra o mau homem que fizera de um bem o instrumento cruel da mais negra perversidade.
No primeiro dia da primavera, quando no templo já se moviam sacerdotes e virgens para a solemnidade do fogo novo, acharamse reunidos os quatro iniciados que, no anno anterior, haviam terminado o cyclo das vigilias.
Logo que o primeiro chegou diante do altar, onde a lenha aromatica começava a inflammar-se, uma fagulha, destacando-se, ficou a brilhar sobre a sua cabeça como se fosse uma estrella.
Ajoelhou-se o segundo, ajoelhou-se o terceiro e o milagre luminoso repro-
APOLOGOS 201 duziu-se no silencio maravilhado da assistencia. Á vez do quarto o lume, até então pacifico, cresceu na lenha, enfurecido, como soprado por um grande vento de vingança e logo que o sahio ajoelhou-se uma labareda violenta apartou-se do lume da ara e, como uma serpente, envolveu-o nos seus anneis abrasadores.
Sacerdotes e virgens recuaram assombrados e o homem, contorcendo-se, rolando, escabujando, pedia, aos gritos, que o livrassem daquelle supplicio.
E a chamma raivosa envolvia-o, devorava-o e, antes que pudessem acudir, o miseravel ficou denegrido, carbonisado e o fogo não o deixou senão depois que do corpo nada mais restava que a cinza.
Impressionado, o summo sacerdote desceu a consultar o oraculo e uma grande voz atroou o templo, dizendo:
« É assim que se vingam os deuses 202 APOLOGOS
justiceiros. A luz divina é dada aos que a procuram e torna-se, em poder dos seus donos, um elemento passivo: beneficio, quando é dirigida para o bem; maldade, quando é applicada com intenção cruel.
Não basta ser iniciado do sol, é preciso ter coração para que os bons effeitos da luz aproveitem aos homens.
A chamma divina deve ser usada como meio de esclarecer, de illuminar as sombras do mundo e não como fogo destruidor. Os que a utilisam com amor transformam o proprio odio em brandura e convertem as impurezas em perfeições.
Dos quatro iniciados tres souberam applicar o que lhes foi dado e as bençãos dos homens gratos foram os primeiros premios que tiveram. O ultimo, homem sem estranhas, transformou a graça divina em pernicioso elemento de devastação, incendiando campos em fruto, abrasando casaes tranquillos, queimando rebanhos que dormiam.
APOLOGOS 203 Se o mesmo dom coube aos quatro, porque só um o havia de destinar ao mal?
Tenham os justos a recompensa que mereceram e que as cinzas do corpo do perverso sejam espalhadas no espaço para que o vento as disperse. »
O summo sacerdote, que ouvira as palavras do oraculo, tornou á torre onde todos o esperavam ansiosos e, junto do altar sagrado, falou aos que nelle tinham os olhos:
« O genio é um bem dos deuses, lume divino que arde no cerebro dos homens predestinados. Os que o possuem podem chegar ás maiores glorias, mas para que mereçam os louvores dos seus pares e obtenham as graças celestiaes é necessario que saibam applicar a fortuna que possuem.
Se o genio é uma grandeza, a bondade é uma excellencia e o homem mais digno é aquelle que mais se preoccupa 204 APOLOGOS
com o bem geral procurando, com a força do seu espirito, corrigir os males e minorar o soffrimento dos infelizes.
Dos quatro iniciados do sol tres aqui estão triumphantes e glorificados pelos proprios deuses; o outro, senhor de um lume magnifico, de tanto esplendor como o que rebrilha na lampada dos justos, é um monte de cinza maldita porque foi impiedoso, abusando da força que possuia e empregando em maldade o prestigio do seu genio.
Melhor seria que nunca se houvesse encaminhado a esta casa santa porque, assim como a luz, na mão do homem clemente e asisado, é pharol que esclarece, em poder do perverso é chamma que devasta. Que vos sirva a lição que acabam de dar os deuses. »
Disse e soprou para o ar as cinzas do homem cruel.
O cavaleiro taciturno Na véspera da grande justa com que o rei resolvera celebrar a victoria do principe real sobre as hordas barbaras dos homens do deserto, que tanto se haviam aproximado da cidade que as senti-nellas, do alto dos muros, distinguiam as grosseiras feições dos chefes, que andavam por entre as tendas de pelles do numeroso acampamento, tres cavallei-ros, que haviam acudido ao reclamo dos arautos, encontraram-se na mesma esta-lagem e, fazendo recolher os seus gine-tes, entregaram as armas aos escudeiros 206 APOLOGOS
para que as polissem, afiando os gumes e aguçando as pontas.
A cidade rejubilava em festas. Eram bandos de cantores pelas ruas, musicos tangendo instrumentos, pelotiqueiros e jograes; domadores de feras com ursos que bailavam e tigres que saltavam barreiras; magos lendo os destinos e, como o thesouro ficáar abarrotado com o ouro que os barbaros vencidos haviam deixado nas tendas, fámulos do palacio distribuiam moedas e era um alarido, que se ouvia ao longe, da multidão arrojando-se atropelladamente sobre as mancheias de ouro que nem chegavam á terra porque as mãos ambiciosas mesmo no ar as apanhavam.
APOLOGOS 207 Os tres cavalleiros, á hora do jantar, que foi servido debaixo duma vinha, entabolaram conversa dizendo, cada qual, de onde viera, em que feitos já havia provado as armas, as corôas que tinha conquistado, os adversarios que havia vencido.
Dois delles, esvasiando seguidamente os copos, que o estalajadeiro se apressava em encher, tornaram-se garrulos. O terceiro, calado e sobrio, olhava o céu que se enfeitava com as côres vivas do crepusculo.
— Ámanhan, por esta hora, um de nós terá á cinta a espada de ouro incrustada de pedras com que o rei honrará o vencedor do combate. Somos tres. Qual de nós será o afortunado? Eu conto vencer.
Não me falta coragem e o meu mestre d’arrnas ensinou-me um bote que reputo infallivel.
— Talvez seja o meu, que outro não ha mais destro nem mais inesperado, 208 APOLOGOS
disse o segundo cavalleiro. Tive occasião de o experimentar em apertado combate contra dois formidaveis espadachins que me assaltaram em estreita passagem da serra, quando eu trazia uma mensagem para o rei, nos fins da guerra.
E o primeiro retrucou: — Sem desfazer no teu jogo, digo-te que confio seguramente em certo bóte, rápido e seguro, em que me adestrou meu mestre d’armas que é, incontestavelmente, o espadachim mais valente do reino, porque, apesar dos annos que lhe vergam os hombros, ainda não encontrou cavalleiro que o vencesse.
Ninguém o conhece senão eu, posso affirmar.
—Pois eu não troco o meu segredo pelo vosso.
—Experimentemos! disse o primeiro levantando-se de golpe.
—Experimentemos! concordou o segundo.
Reclamando, então, as espadas, que APOLOGOS 209 os escudeiros apressadamente trouxeram, sahiram para o horto e travaram-se valentemente.
As laminas, que eram de boa tempera, chocavam-se despedindo fagulhas e os mancebos, excitados pelo combate, procuravam ferir-se e, com a ansia de defesa e de ataque, usavam de todos os botes que conheciam.
O terceiro, sempre calado, acompanhava, com interesse, o furioso duello que teria tido sangrento remate se o estalajadeiro não interviesse com prudencia, lembrando aos mancebos que era conveniente repousarem para que se não sentissem no dia seguinte quando tivessem de terçar pelo premio ambicionado.
Esbaforidos, suando, arquejando, recolheram-se os dois, e diante do cantaro de vinho, discutiram os golpes que haviam trocado, dignos de ser cantados pelos bardos que glorificavam a valentia dos homens.
14 210 APOLOGOS
O terceiro, que não perdera um só movimento, uma só palavra dos que deviam ser seus competidores na liça, sempre silencioso, levantou-se e, como a lua começava a brilhar nas folhas lustrosas das arvores e a brisa soprava fresca, recendendo a flores, sahiu a gosar docemente a luz e o perfume, indo s e n t a r - se num banco rustico, junto á fonte. Os dois, quando o viram retirar-se, vagaroso e mudo, sorriram e o primeiro murmurou ironico:
— Parece que não teremos ámanhan o gosto de rebater os golpes do nosso companheiro. Tão impressionado ficou com o que fizemos que já se vai afas-
APOLOGOS 211 tando pensativo, talvez a preparar-se para voltar á sua aldeia e recomeçar o tirocinio com o seu canhestro mestre d’armas.
O taciturno parecia contemplar as estrellas do céu e, tão entretido ficou, sob a folhagem, á beira d’agua, que não deu pela retirada dos companheiros.
O estalajadeiro, que nada perdera do que disseram e fizeram os cavalleiros, quando a casa ficou em silencio, sentandose á mesa, com a mulher, diante da ceia, disse-lhe em confidencia:
— Ou eu muito me engano ou o dono da espada de ouro, que o rei destina ao vencedor do repto que se vai ferir ámanhan, é aquelle homem macambusio que ali está debaixo da vinha gosando a fresca.
Não se póde dizer que seja valente, nem tão pouco covarde porque, emquanto os outros falaram, jactando-se de 212 APOLOGOS
proezas e temeridades, elle manteve-se em silencio, contentando-se com ouvir a parolagem. Os outros, sem se lembrarem de que com elle se hão de medir ámanhan, querendo, cada qual, ser mais esperto e mais destro, desafiaram-se e sahiram a bater-se no horto e o mazorro, emquanto elles trocavam golpes, não os deixou com o olhar de sorte que, para mim, os dois imprudentes vão para a arena como os captivos que se batem a corpo descoberto contra gladiadores bem armados e acobertados.
Bravatearam, bravatearam descobrindo todos os seus segredos ao adversario cauteloso que, se fôr hábil, tirará partido da garrulice.
Riram-se elles do ar reservado, da attitude discreta do que lá está ao relento.
Queira Deus que se não arrependam de tanto haverem falado.
Emfim, a meu vêr, o premio será do calado.
APOLOGOS 213 A indiscreção é sempre compromettedora. Quem sabe, guarde o que sabe para o momento opportuno.
O repto é ámanhan e ámanhan veremos qual dos tres é o mais forte, a qual dos tres será cingida a espada de ouro.
Quando se apresentaram na liça os tres guerreiros, revestidos de suas brilhantes armaduras, o povo, que enchia o vasto recinto, acclamou-os. Os escudeiros traziam as armas e logo que o arauto deu o signal de combate, o taciturno adiantou-se sem arrogancia e, diante da tribuna real, saudou galhardamente o rei e os principes.
O primeiro mancebo que, na vespera, tanto basofiara em façanhas, imitou-o e não foi menos gracioso ante a tribuna real.
Logo, pondo-se frente a frente, ao resoar das tubas, atacaram-se. O taciturno aparava, com segurança, os gol-
214 APOLOGOS
pes e firme, como se estivesse preso ao chão da liça, conservava-se calmo, em contraste com o outro que investia com furia.
Repentinamente, lembrando-se do golpe terrivel que lhe ensinára o mestre de armas, o mancebo vibrou-o e, com tanta certeza de alcançar o rival, que levantou um brado de triumpho.
Mas o adversario, que já o esperava, rabateu-o com firmeza, e, tirando partido da perturbação em que ficára o mancebo, podendo atravessar-lhe o peito com a espada, contentou-se com desarmá-lo.
Estrugiram acclamações e ainda as trombetas soavam clangorosas, quando o segundo cavalleiro desceu á arena, indo curvar-se ante a tribuna real.
Esperou-o, com a mesma calma, o taciturno e, como lhe conhecia todos os recursos de esgrimista, não se perturbou com os arranques impetuosos — tran-
/
APOLOGOS 215 quillo, tratava apenas de defender-se e, com tanta superioridade o fazia, que nem dava mostras de estar em luta, senão em divertimento.
Quando lhe aprouve dar fim ao combate, atacou com afoiteza e segurança e, ainda que o contendor fosse corajoso e destro, não poude resistir muito tempo e, ferido no punho, deixou cahir a espada, retirando-se cabisbaixo ao atroar dos clamores dos assistentes que saudavam a dupla victoria do impassivel.
Logo soaram as tubas e o rei, levantando-se na tribuna, entre os principes e os fidalgos, proclamou a victoria leal do taciturno e, recebendo-o na sua presença, cingiu-lhe a espada de ouro.
O estalajadeiro, que acompanhára todas as peripecias do combate, no momento em que o astuto cavalleiro, ajoelhado diante do rei, recebia o premio e prestava juramento de nunca lançar mão da espada preciosa, tão nobre e es-
216 APOLOGOS
/
APOLOGOS 217 forçadamente conquistada, senão em defesa da patria, da honra ou da crença, segredou á mulher que o acompanhara:
— Que te disse eu? Ahi tens a prova. Os outros vangloriaram-se e, por vaidade ou rebentina imprudente, descobriram todos os segredos que possuiam e que, certamente, de muito lhes teriam servido na prova de sangue.
O taciturno não fez mais que observar, de sorte que, além se ser bravo e agil, ainda trazia a vantagem de conhecer todos os recursos dos adversarios.
Perdeu-os a lingua solta. Se se houvessem conservado em silencio não se teriam enfraquecido. Foi a propria indiscreção que os venceu.
Não são os que mais falam os que mais sabem e ha palavras imprudentes que compromettem como denuncias. O taciturno venceu porque soube calar-se e só na hora em que convinha deu prova do que sabia.
218 APOLOGOS
A prudencia, sendo mestra, guiando a coragem, é a melhor armadura das que forram guerreiros.
Por uma falha de arnez vai a lança ao coração, por um segredo descoberto chegase ao mais intimo d’alma.
A gota d’agua e as nuvens Os pastores mais velhos juravam não haver, em memoria d’homem, lembrança de tão rigorosos sóes, queimando aquelles ferteis lugares, como os do abrasado verão que passava, lento e suffocante.
De tantos rebanhos que pasciam nas achadas e pelos verdes reconcavos alegrando, com as suas vozes, o agreste silencio, poucas ovelhas restavam, essas mesmas entresilhadas, balando tristemente no fundo das grotas seccas.
Mantendo-se o céu sempre azul, sumindo-se, chupados pela terra, os derra-
220 APOLOGOS
deiros fios d’agua, quasi todos os zagaes abandonaram as pasturas montesinas descendo á planície com o fato dizimado.
Na serra ficaram apenas dois moços resistindo ao flagello, esperando que se rompessem as nuvens que atravessavam o céu, fartas d’agua, rolando além dos cimos remotos.
Um dos moços, preguiçoso e desanimado, depois d’um dia de penoso andar por fraguedos e balsas, á cata de fonte ou arroio, tornou ao seu tugurio descorçoado e, sem pensar no rebanho que ia, aos poucos, ficando reduzido, resolveu entregar-se á Providencia, certo de que ella o havia de soccorrer.
O outro, mais activo e corajoso, metteu-se ao matto, invadiu cavernas, desceu a grotões a vêr se encontrava um broto d’agua a saltar da terra ou toalha espumante a alagar penedo porque não lhe parecia possivel que aquellas rochas, APOLOGOS 221 222 APOLOGOS
sempre tão copiosamente lavadas, seccassem dum momento para outro.
Ao cabo de muita fadiga, viu um escasso lacrimal instillando d’alteroso alcantil e, contente, partiu a levar a noticia ao companheiro.
Encontrou-o deitado á sombra, lamentando a sua miseria e, em torno d’elle, os magros animaes esfalfados, avidos, baliam baixinho como em queixa triste.
Sem conter a alegria deu parte da sua fortuna, descrevendo o sitio em que encontrára agua.
—Rio ou fonte? perguntou o lerdo pastor.
—Nem rio nem fonte: é uma lagrima lenta que pinga da pedra.
Pareceu ao outro tão minguada a ração que nem se quiz fatigar descendo ao recesso sombrio.
— Mana gota a gota o manancial que encontraste e que é isso para a sêde /
APOLOGOS 223 /
dos animaes? Não será com gotas d’agua que hei de salvar o pouco que me ficou do rebanho. Se se tratasse de fonte ou corrego, onde os pobrezinhos bebessem até á saciedade, eu desceria comtigo supportando o sol que abrasa; mas por tão pouco não quero aggravar o soffrimento com o cançaço.
—Mas se houvesse fonte ou corrego nós não lamentariamos a inclemencia do sol e a serra estaria animada, como dantes, com todos os pastores nos seus campos e todos os pastos cobertos de gado. É justamente por ser a época de tão apertada miseria que me alegro com o achado que fiz. Vem!
—Não, disse o outro; as nuvens ennegrecem e incham a mais e mais annunciando as desejadas chuvas. Com um só dia de aguaceiro as fontes rebentarão de novo e as aguas desfiarão das rochas.
—E emquanto não chove? 224 APOLOGOS
O moço encolheu os hombros com indifferença.
Vendo que o não decidia, o outro partiu levando aos hombros duas urnas.
Logo que chegou ao alcantil procurou aproveitar as duas gotas que manavam ^ das arestas no rebanho.
Os animaes, sem alegira, abatidos, estiravam-se na relva queimada, arquejando.
O céu quente, estava todo doirado e, por toda a serra, cantavam cigarras. As folhas seccas estalavam sob os pés do pastor e subia de todos os pontos um cheiro adusto.
APOLOGOS 225 Pacientemente, vágarosamente, foi o moço conduzindo ovelhas e borregos, guiando-os, por escolhidos caminhos faceis, para o sitio amavel e, quando lá chegou, antes mesmo de procurar um ponto resguardado onde se agasalhasse, correu a vêr as urnas e descobriu no fundo de ambas a agua que subia e brilhava, tremendo com o insistente e vagaroso lentejar.
Anoiteceu com luar e o moço, deitado na palha, sem somno, pensava em noites iguaes áquella, nos tempos ferteis, quando todos os pastores juntos discorriam, cantavam á beira do lume, ouvindo o rolar das aguas beneficiadoras.
E o companheiro? Elle, ao menos, buscára aquella gota d’agua, soubera descobri-la e ouvia-lhe o soído pausado, certo de que, ao clarear da manhan, teria com que dessedentar-se e ás ovelhas. E o outro? Lá estava á espera das nu15 226 APOLOGOS
vens que passavam no céu, sombrias, levando agua para outras regiões mais felizes.
Pastor e gado adormeceram.
Ao romper d’alva, com o canto jocundo dos passarinhos e o murmúrio da brisa nas folhas, o moço, acordando e ouvindo o lepido ruido do estellicidio, correu ás urnas e achou-as quasi cheias.
Alegre, reunindo o pequenino rebanho e o rafeiro que o guardava, abeberou-os com a agua duma das urnas e, aproveitando a da outra, regou a terra no sitio em que pretendia ficar e logo sentiu a gratidão das hervas abeberadas: como que acordaram do torpor estival em que jaziam respondendo, com o viçor, ao inesperado beneficio.
Tornaram as urnas ás gotas do alcantil e o rebanho, contente e reanimado, poz-se a correr no bosque catando as folhinhas tenras.
Passaram-se dias e dias. As nuvens APOLOGOS 227 /
não se desfazíam em chuva, a mais e mais as hervas serranas mirravam esturricadas, mas o alcantil não negava o seu pouco e já o pastio reverdecia á volsa do rancho de palha do moço activo e o rebanho e o cão refaziam-se saciados.
Lembrou-se, então, o moço do companheiro e subiu a vê-lo no tugurio da serra.
Caminhando, notava pelas trilhas a devastação da secca. Planaltos que seus olhos avistavam, planaltos outrora viçosos, eram pardos e arrasados taboleiros de resequidos gravetos; os leitos dos corregos eram vallos pedregosos e longe, nas chans avelludadas, nem um filete d’agua luzia.
Ao sahir numa clareira viu um esqueleto de ovelha, outro adiante, ainda outro; os corvos haviam-se fartado nos miseros animaes. Seguia e, num fosso, descobriu o cão de pastoreio que o outro tanto estimava.
E o dono? Achou-o tambem.
Estava estendido, como morto, jun-
228 APOLOGOS
to a uma arvore, os olhos semi-cerrados, a boca entreaberta. Ajoelhou-se e, tomando a borracha que levava a tiracollo, chegou-a aos labios do desfallecido.
Logo que sentiu o refresco o desgra-
/
çado abriu os olhos e, fitando-os no companheiro, sorriu tristemente:
— E Deus! murmurou. E Deus que nos abandona! As nuvens passam, todos os dias, carregadas d’agua, passam devagar, como zombando do nosso soffrimento, e vão despejar longe, talvez APOLOGOS 229 no mar. Essa é, então, a misericordia divina? Vi morrerem, uma a uma, todas as minhas ovelhas, hoje seria a minha vez se não viesses em meu soccorro. Achaste por ahi algures fonte ou corrego. Eu bem sabia que nem todos haviam estancado. De mim não se compadeceu o Senhor. Também...
quem sou eu para merecer a compaixão de Deus!?
— Não blasphemes, disse o pastor: se chegaste a tal extremo de ti somente te deves queixar, que não procuraste remedio contra o flagello. Deus não quer inertes nem desalentados: o preguiçoso e o pusillanime são inuteis para o mundo e fracos perante Deus. Sem iniciativa e coragem, actividade e esforço, nada se consegue.
Eu, procurando, achei as gotas do alcantil e, perseverando pacientemente com ellas, salvei-me e salvei o que era meu e ainda revigorei as plantas quasi mortas e vim a tempo de chamar-te á vida.
230 APOLOGOS
Confiavas demasiadamente em Deus.
Deitado e rezando, delle esperavas tudo, contando com as nuvens do espaço. Se houvesses imitado o meu exemplo não terias soffrido tanto. Eu aproveitei o pouco e, todas as noites, ajuntando as gotas, achava, de manhan, com que abeberar o gado e regar o pasto; e tu, com os olhos nas nuvens carregadas d’agua que passavam no céu, ias acabando entre as ovelhas mortas de sêde.
Eu nunca confiei nas illusões: achei mais seguro o pouco do rochedo do que a abundancia que, todos os dias, passava entre o céu e a terra.
As nuvens eram mais copiosas, não nego, mas estavam tão longe e é tão incerto desfazerem-se... e a gota pingava sempre da pedra enchendo as urnas.
Foi o teu mal, e esse é o mal de muitos:
deixar o pequeno bem, que é certo, pelas illusões immensas que vagam nas alturas.
O invalido y Sempre que o aleijado passava, os meninos, reunindo-se á sombra da mangueira, rompiam em assuada, atiravam-lhe torrões, galhos seccos e o velhinho seguia in-differente.
Devia ter mais de sessenta annos. Era alto, magro, tinha os cabellos brancos cortados muito rente, o rosto moreno e engelhado. Faltava-lhe sgs^
232 APOLOGOS
o braço esquerdo e a manga do casaco pendia nesse lado molle, chata, solta ao vento.
Uma manhan, mal o avistaram na estrada, os meninos correram para a mangueira e, como a arvore estava carregada de frutos verdes, colheram alguns e, com elles, puzeram-se a alvejar o velhinho.
Um dos frutos attingiu-o nas costas com tal violencia que o desgraçado, curvando-se, não poude calar um gemido e, parando, a estorcer-se de dores, voltou-se para os meninos e suspirou: « Ingratos! » Duas grossas lagrimas rolaram-lhe pelos sulcos das faces e, vendo-as, disse, penalisado e arrependido, o mais novo dos meninos :
— Coitado do velho! está chorando.
Vamos vê-lo.
Elle sentara-se na relva, arquejante e ali o foram achar os seus algozes, que o remorso tornára meigos.

234 APÓLOGOS
Dando por elles o velho sorriu com tristeza, disfarçando o soffrimento, e o mais novo perguntou compadecido:
—Magoamos-te, bom velho?
—Sim, meu menino: magoastes-me e mais fundamente do que pensais. É o meu coração que está soffrendo. Sentai-vos aqui commigo e não receieis de mim. Nada vos posso fazer, que sou velho e, ainda que me sobrassem forças, eu nada vos faria. Tenho um netinho da vossa idade e, por elle, tudo perdôo ás crianças.
Sentai-vos e dizei-me: Porque me perseguis?
Que mal vos hei feito e porque rides de mim?
Os pequenos não acharam que responder e o velho continuou:
— Bem sei eu porque me achais ridiculo — é porque me falta um braço e porque ando vagarosamente arrimado a um bordão. Ah!
meus meninos, o braço que me falta dei-o eu por vós. Foi para que vos não faltassem a sombra APOLOGOS 235 d’aquella arvore frondosa e a agua da ribeira, o carinho de vossos pais e a belleza desta terra que amamos, que o dei e sem lamentar a perda. Outros deram a vida, eu tambem te-la-ia dado e, mais duma vez, a expuz — se a Morte não a levou, foi porque o bom Deus a escudou com a sua bondade.
Eu não provocaria o vosso riso se me houvesse deixado ficar em repouso, quando vossos pais tremeram com a noticia da aproximação de um inimigo cruel que ameaçava, não só a riqueza da terra, como o brio dos homens que nella nasceram.
Eu vivia feliz: era moço e nada me faltava em casa de meus pais e tinha noiva, meus meninos, linda moça que ficou chorando quando parti para a guerra. E
porque deixei descanço e amores? porque preferi os riscos dos combates, os soffrimentos e as incertezas das jornadas temerosas e a saudade, que é uma 236 APOLOGOS
angustia que opprime o coração a todos os instantes? porque me affirmaram que o inimigo já havia passado a fronteira e vinha arrasando campos e trucidando a pobre gente indefesa Quem me falou foi o velho vigario do meu lugar. Falou a mim e a todos que foram á igreja ouvir a prédica patriotica que elle fez, tendo a bandeira desfraldada diante do altar, como para mostrar que tinhamos obrigação) de defender, com o mesmo empenho, a religião e a terra.
E disse que se não nos decidissemos a tomar armas pela Patria, os campos que viamos, tão verdes e cheios de flores, as aguas que os regavam, que eram as alegres ribeiras, o gado que os cobria, os passaros que esvoaçavam cantando, tudo quanto os nossos olhos alcançavam e que era nosso, seria, em pouco, do inimigo. E os homens livres passariam a viver como escravos e a nossa bandeira APOLOGOS 237 seria rasgada, feita em farrapos e arrastada no lôdo com vilipendio.
Lembro-me ainda do que elle referiu acerca de certo principe thebano chamado Meneceu que se sacrificou pela Patria matando-se na caverna de um dragão.
Tornei á casa pensativo e, pelo caminho, olhando os prados felizes e vendo aquella gente honrada e satisfeita que lavrava os seus campos, aquellas mulheres que amamentavam os filhos á sombra das arvores, toda aquella belleza, toda aquella felicidade, disse commigo:
— Pois é possivel que percamos tudo isso e tenhamos de viver, no futuro, como escravos, nós que nascemos livres, 238 APOLOGOS
e que outra lingua, trazida pelo conquistador, venha substituir a que herdamos dos nossos maiores, na qual os nossos poetas cantaram as nossas glorias e minha mãi ensinou-me a falar a Deus? Outras vozes hão-de soar nestes sitios? Não!
Foi nesse momento, meus meninos, que comprehendi a grandeza desta palavra:
« Patria », que não quer dizer simplesmente a terra em que se nasce, mas abrange tudo: o passado, as tradições, a historia.
Patria é o solo que pisamos, é a agua que nos dessedenta, é a arvore que nos dá sombra, é o fruto, é o lenho, é a ave que vem cantar a alvorada no tecto palhiço da nossa cabana; é o animal que vive na floresta, é a cantilena com que a jovem mãi adormece no berço o filho pequenino e é o hymno forte que a multidão entôa.
Deus está todo na hostia e na me-
APOLOGOS 239 nor partícula. Pois a Patria é como Deus.
Quando parti para a guerra levei uma pequenina flõr do meu campo e essa flôr sêcca, menor que a metade da unha do meu dedo minimo, continha toda a minha Patria, porque me recordava a terra, o céu e as gentes que eu deixara.
No furor do combate quantos vi eu cahir, quantos! Esses perderam mais do que eu: morreram por nós assegurando-nos a liberdade.
Sois ainda muito jovens e não tendes da vida senão noções ligeiras. Quando conhecerdes bem o mundo, virá aos vossos corações o arrependimento do mal que me fizestes.
Se, seguindo uma escura estrada, fosseis assaltados por ladrões e um homem, sahindo em vossa defesa, ficasse ferido, ririeis dos seus gemidos? não, sem duvida, porque, se não fôsse elle, 240 APOLOGOS
terieis succumbido aos golpes dos perversos, ou, pelo menos, terieis sido roubados na vossa fortuna. Mais fiz eu por vós porque, não só defendi a riqueza, como tambem salvei a vossa honra do ultraje que a ameaçava.
Olhais para mim sorrindo porque me vedes sem braço, mas eu o dei por vós e por vossos pais, meus meninos, e, talvez não vivesseis na fartura em que viveis se outros pobrezinhos, como eu, não fossem deixar no campo da batalha a vida ou apenas um braço ou uma perna.
Não me arrependo do que fiz. Soffro, mas para minha felicidade bastam-me a alegria que vejo em todos, a tranquillidade e a grandeza da minha terra.
Aqui não vêdes o meu braço, é possivel, porém, que o encontreis na historia da nossa terra : revolvei-a bem e lá o achareis.
O que apparece é a gloria, que é como a flôr, no fundo, porém, estão os elemen-
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APOLOGOS 241 tos que concorreram para a sua existencia.
Que se vê na rosa? a flor apenas, mas para que ella seja assim formosa é necessario que o seu canteiro seja adubado, não é verdade? e o adubo transforma-se em corpo, em côr e em perfume, Se analysassemos a grandeza das nações, achariamos os grandes sacrificios, as grandes dedicações, o heroismo e a virtude, que dão a flôr magnifica do Progresso.
Que é um braço? direis — bem pouco, em verdade, mas a folha que cahe da arvore e morre no charco concorre, com a sua mesquinhez, para alimentar a floresta.
Eu dei á Morte, por amor da minha terra e dos meus patricios, o que ella de mim quiz tomar e confesso, meus meninos, que me doeu menos o ferimento que recebi na batalha do que a vossa ingratidão de hoje.
Lá eram inimigos que eu combatia e vós sois meus irmãos pela 16 242 APOLOGOS
Patria e, por vós, dei eu o meu sangue.
Direis que nem ereis nascidos nesse tempo;
mas não sois gratos ao homem que plantou aquella mangueira que vos agasalha com a sua sombra e vos regala com seus frutos?
Quem foi elle? os vossos proprios pais ignoram o seu nome, entretanto o seu beneficio ahi está, vós o encontrastes na terra. Assim o bem que vos fiz tambem o haveis de encontrar, não só na terra, como em tudo que é da Patria — no seu poderio e na sua honra.
Rir de mim é mais do que ingratidão, é falta de patriotismo porque, se hoje sou o valetudinario que vêdes, fui, nesse tempo amargurado, um dos depositarios da Honra da nação e, para mantê-la, bati-me até o ultimo esforço, perdendo o braço cuja falta tanto vos faz rir.
Esta é a minha historia... Ainda a achais ridicula?
Os meninos, que ouviram attentamente a narração do velhinho, mos-
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APOLOGOS 243 \
traram-se arrependidos do que haviam feito e, desde então, tornaram-se os melhores protectores do invalido que, a rir, quando elles sahiam a recebê-lo, dizia acompanhando-os vagarosamente por entre as arvores do parque:
—D’ora avante não direi que só a Patria ganhou com o meu sacrificio, vós tambem me suppris, com a bondade, a falta do braço que perdi na guerra.
—Que por nós perdeste, disse o mais novo dos meninos.
—Por vós, por todos, por tudo, meu menino; pela nossa Patria adorada que bem merece dos seus filhos um pequeno sacrificio de amor.
FIM


PORTO
Livraria Chardron, de Lélo & Irmão, L.da
E d i t o r e s — Rua das Carmelitas, 144
AlLLAUD, BERTRAND — LlSBOA-PARIS
1924


Domínio Público Gov.BR


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