Sermão XII (1639)
I
O fim que há tanto tempo desejam as calamidades deste Estado, e os meios oportunos eficazes que, ou lhe faltam, ou lhe não aproveitam, é tudo, nem mais nem menos, o que em duas figuras coroadas nos representa S. Mateus no texto que propus. Que é o que padece o Brasil? Que é o que deseja tão longamente? O que padece é a guerra, o que deseja é a paz. E quando esta, na infelicidade dos sucessos presentes, parece mais desesperada e sem remédio, para exemplo do remédio e para alento da esperança, oportunamente nos representa o Evangelho a diferença de dois reinados imediatamente sucessivos, um tão famoso, no que padecemos, como outro felicíssimo, no que desejamos.
David autem rex genuit Salomonem (Mt. 1,6): Davi rei - diz o evangelista -gerou a Salomão. - Mas com que mistério, que na série destas gerações tudo é misterioso? Por que foi Davi o pai e Salomão o filho? Por que reinou primeiro Davi, e Salomão depois? Não pudera Davi suceder a Salomão, assim como Salomão sucedeu a Davi? Segundo a ordem da natureza, sim, pudera; segundo a significação do mistério, não. O reinado de Davi todo foi inquieto e perturbado com guerras, e infestado de inimigos.
O de Salomão, como ele mesmo diz, não teve inimigos que o inquietasse: Non est satan, neque occursus malus (2)- todo foi sossegado e opulento na mais alta e deleitosa paz. Isto mesmo trouxeram escrito no fado de seus nascimentos, ou no prognóstico e profecia dos nomes um e outro rei: Davi quer dizer manu fortis, Salomão, pacificus. Gerou, pois, o rei guerreiro ao pacífico, e o pacífico sucedeu ao guerreiro, porque a paz é filha da guerra, e à guerra sucede a paz. Muito é que de uma mãe tão feia e tão descomposta nasça uma filha tão formosa e tão modesta? Mas por isso as antigos chamaram à guerra bellum, não por ironia ou antífrase, como muitos cuidam, senão porque da guerra nasce a bela paz.
Se a alguma guerra se deve legitimamente esta venturosa sucessão, é verdadeiramente a nossa. Não é o mesmo o fim de todas as guerras. Uma move a vaidade, outra a cobiça, outra a justiça e necessidade. A que move a vaidade, tem por fim o triunfo; a que move a cobiça tem por fim o despojo; a que move a justiça, ou é movida da necessidade, tem por fim a paz; e tal é a nossa: Pacem debet habere voluntas, bellum necessitas - diz Santo Agostinho: A paz há de ser sempre voluntária, e a guerra forçada; só a necessidade há de obrigar à guerra, mas a vontade sempre há de desejar a paz.
Já antes o tinha dito Marco Túlio, tão filósofo como repúblico, e tão repúblico como eloqüente. - A
guerra, diz, tomada por temeridade, é dos brutos; a forçada, e por necessidade, dos homens. Como homens, pelejamos pela conservação da paz, e não pela ambição da vitória; como justos, só pretendemos defender o próprio, e não conquistar o alheio; como soldados, só tomamos as armas contra as armas, e se pode dizer com mais verdade dos nossos o que Roma contava dos seus: Sola gerat miles, quibus arma coerceat, arma(3). - Sendo, pois, tão justificada, tão racional, e tão inocente a nossa guerra, e sendo a paz filha legítima da guerra, só quando a guerra é legítima, como foram as de Davi, muita razão tínhamos por certo, não só de desejar, mas de esperar que dela, como a de Salomão, nascesse também a nossa paz. A guerra nove anos há já que a padecemos, tempo e número bastante para que dela nascesse este suspirado parto, do qual, porém, até agora não temas outros sinais mais que as dores.
Com esta comparação costuma a Escritura encarecer as grandes dores: Ibi dolores ut parturientis(4)
- e que parte há neste vastíssimo corpo, ou mais vizinha, ou mais remota, que as não padeça grandes, e cada dia maiores? O mar infestado, os portos impedidos, as costas com perpétuos rebates ameaçadas, as campanhas taladas, as lavouras abrasadas, as casas despovoadas e destruídas, as cidades e vilas arruinadas, os templos e os altares profanados, as pessoas de todo estado e condição, de todo o sexo e idade desacatadas, e por mil modos oprimidas; as prisões, os desterros, as pobrezas, as fomes, as sedes; uns mortos nos bosques, outros mirrados nos desertos, fugindo dos homens para ser pasto das aves e das feras; as mulheres e meninos inocentes entregues à fúria e voracidade dos bárbaros, e os mesmos cadáveres, com horror da natureza, incestamente afrontados; as mortes desumanas a sangue frio, as traições, as crueldades, as sevícias, os martírios, e tantos outros gêneros da herética tirania, contrários a toda a fé e direito das gentes, e de nenhum modo compreendidos debaixo do nome de guerra: esta é a guerra que padecemos. Esta é, torno a dizer, a guerra que padecemos, e estas as dores, cujos gemidos passados por tanto mar chegam tarde e frios à Europa, ou enganada, ou esquecida (5). A chaga cresce, o veneno estende-se, e já bate às portas do coração; a constância se não desmaia, não sei se duvida, e tudo, nas experiências de tantos anos, mais promete desesperações que remédio.
Mas, ó filha de Davi e de Salomão, ó virgem poderosíssima do Rosário, que havia de ser de nós, se essas entranhas de piedade, onde trouxestes a Deus, não fossem o nosso presídio. O nosso amparo, o nosso remédio, e toda a nossa esperança? Isto é o que determino pregar hoje, e não como assunto meu, senhora, senão como preceito vosso. No ano de mil e quatrocentos e setenta e cinco, achando-se em grande aperto a insigne e mui católica cidade de Colônia, bloqueada por todas as partes de um poderoso exército de inimigos hereges, de que naturalmente se não podia defender, devastada já, e ocupada toda a campanha, e sem esperança de socorro humano, apareceu a Virgem Santíssima a frei Jacobo Sprenghero, prior do convento dos pregadores, e lhe mandou que logo pregasse e exortasse a todos a devoção do Rosário, e lhe prometesse em seu nome, que por meio dela, não só a cidade, mas toda a província ficaria livre da opressão e temor das armas inimigas (6). Assim o mandou, assim o prometeu, e assim o cumpriu a poderosíssima Rainha dos Anjos, e o exército dos hereges, vencido e desbaratado de outro poder superior e invisível, não só não chegou a bater a cidade, mas, deixadas a campanha e toda a província, mal se pôde recolher, fugindo para donde viera. Agora pergunto à Bahia, a todo o Brasil: A Virgem Maria, Mãe de Deus, não é a mesma? Os poderes do seu Rosário não são os mesmos? A nossa fé católica e romana não é a mesma? Os intentos das armas heréticas e inimigas não são os mesmos? Pois, se a nossa devoção, e as nossas orações forem as mesmas, porque não experimentaremos o mesmo favor e os mesmos socorros da Senhora do Rosário?
Só me podeis dizer que aquele pregador teve revelação, e foi mandado, e eu não. Enganais-vos.
Assim como a Virgem Maria mandou àquele pregador que pregasse o Rosário à Colônia, assim me manda também a mim que o pregue à Bahia. E por que me atrevo a afirmar isto com tanta asseveração? Porque aos ministros da palavra de Deus, as revelações que se fazem a um são preceitos para os outros. Pregando S. Paulo e S. Barnabé em Antioquia, como muitos dos judeus não quisessem receber o Evangelho, disseram-lhes os dois apóstolos que, suposta aquela sua incredulidade, eles se passavam a pregar aos gentios, porque assim lho tinha mandado o Senhor: Sic enim praecepit nobis Dominus. - E quando mandou o Senhor aos apóstolos que, não aceitando os judeus a sua doutrina, a fossem pregar aos gentios? Os mesmos Paulo e Barnabé o disseram, e é prodigiosa prova do que eu digo: Sic enim praecepit nobis Dominus: Posui te in lucem gentium, ut sis in salutem usque ad extremum terrae (7). - Quer dizer que o Senhor lhes tinha mandado a eles que pregassem o Evangelho aos gentios, porque o mesmo Senhor tinha revelado a Isaías que aos gentios se havia de pregar o Evangelho. - Pois, essa revelação feita a Isaías, é preceito para Paulo e Barnabé de pregarem o mesmo: Sic enim praecepit nobis Dominus? - Sim, porque as revelações feitas a um pregador são preceitos para os outros. Suposta, pois, aquela revelação e este preceito, tudo o que hoje disser da virtude do Rosário e seus poderes não se deve ouvir como assunto ou discurso pregado por mim, senão como mandado pregar pela mesma Virgem Santíssima. E para que a rudeza de minhas palavras não seja totalmente indigna de tão soberano preceito, peçamos à mesma Senhora me assista com sua graça. Ave Maria.
II
David autem rex genuit Salomonem. - Aquela catástrofe admirável que os profetas prometeram ao mundo renovado, quando as lanças se convertessem em arados para cultivar a terra, e as espadas em foices para segar e recolher os frutos, nenhuma outra coisa significa aos homens de maior alvoroço e gosto que a alegre e desejada paz, depois da triste, comprida e detestada guerra. Destes antiquíssimos e sagrados exemplares tomaram a mesma metáfora, e a prosseguiram elegantissimamente, assim os poetas gregos como os latinos, entre os quais Alciato - admitido já pelos mais severos juízes ao colégio do Parnaso - engenhosa, militar e politicamente adiantou assim o mesmo pensamento. Pintou um enxame de abelhas, que no oco de um capacete fabricavam os seus favos, e por título deste emblema: In bello pax. - A letra diz, como dizíamos, que da guerra nasce a paz, e o corpo da pintura a nenhuma paz ou guerra se pode aplicar com maior propriedade que à do Brasil. Os favos são os doces frutos desta terra singular entre todas as do mundo, pela bênção de doçura com que Deus a enriqueceu: In benedictionibus dulcedinis (8); as abelhas, pela maior parte da Etiópia, são os fabricadores dos copiosos favos que carregam todos os anos tão opulentas e numerosas frotas; e o capacete, nem usado já, nem guardado para outras ocasiões, é o sinal da paz segura e perpétua e sem receio, qual foi a do reinado de Salomão, e a que depois de tantas guerras prometeu Deus nele a seu pai Davi: Filius, qui nascetur tibi, erit vir quietissimus: faciam enim eum requiescere ab omnibus inimicis suis per circuitum: et ob hanc causam Pacificus vocabitur(9).
Este é o sentido natural do mistério do Evangelho, a que poderão servir de elegante comento a capacete e abelhas do emblema, se o capacete for o de Davi e as abelhas as de Salomão. Não nasce a doce paz de qualquer guerra, senão da guerra superior e vitoriosa, quais foram as de Davi. A paz que não elegem mas aceitam os vencidos ou desesperados, não é de mel, mas de fel; não é doce, mas cheia de amargura, como as que padecem debaixo do jugo do inimigo as que, por não poder resistir nem fugir, remiram com a liberdade as vidas; servidão, enfim, e cativeiro, e de nenhum modo paz.
Esta é, pois, a razão ou necessidade por que os que discorrem prudentemente sobre o estado presente da nossa guerra, já dizem que escolheriam por partido partir o mesmo emblema pelo meio. E de que modo? Deixando ao injusto possuidor os favos do já perdido, que é Pernambuco, e, acudindo a defender com o capacete a cabeça tão ameaçada e perigosa, que é a Bahia. Outros espíritos há, porém, não sei se menos considerados, se mais animosos, os quais de nenhuma sorte se contentam com o emblema de Alciato partido, senão com o enigma de Sansão inteiro. Queira Deus que adivinhem. O
urso setentrional, que nos veio crestar as colmeias, não é o Leão bélgico? Sim, que assim se pinta, assim se nomeia, essas são as suas armas. Pois, a esse leão tirem-se-lhe da boca os favos, como fez Sansão ao seu, e apregoe-se com trombetas no mundo católico, tão lastimado de nossas perdas, como ofendido de suas vitórias: De comedente exivit cibus, er de forti egressa est dulcedo(10).
Bizarro pensamento por certo, se não fora só pensamento, ou se Davi, que é o sujeito do nosso assunto, entrara já nele com este prelúdio, que foi o primeiro testemunho do seu valor e prognóstico provável do seu triunfo. Quando el-rei Saul dificultou a Davi o combate, e lhe duvidou a vitória do gigante respondeu ele que já tinha morto um urso e um leão: Leonem et ursum interfeci ego servus tuus(11). - E isto, que não é fácil nem pouco, é o que muito deverão considerar os autores desta boa esperança, quando tão facilmente se põem no cabo dela. Sansão tirou os favos da boca do leão, sim, mas depois de vencido e morto. Não é a mesma coisa um leão morto que vivo, e tão vivo, vigilante e armado, como o que a nossa fantasia, não desenganada com tantas experiências, espera ou presume vencer. Olhemos-lhe bem para os dentes e para as unhas. Assim se hão de conquistar tantas fortalezas no mar e na terra, tão regularmente edificadas, tão abundantemente providas, tão artilhadas, tão presidiadas, e não só nas fortes muralhas, mas nos fossos, nas estacadas, e com todo o gênero de fortificações exteriores tão defendidas? Assim se desprezam os cabos tão experimentados em outras guerras, e tantos e tão luzidos regimentos criados e envelhecidos na disciplina militar, vestidos e armados, e não despidos, sustentados das praças e adegas de Amsterdão, e não mortos de fome?
Finalmente, assim se há de recuperar uma província mais estendida que muitos reinos, cujas léguas se contam a centos, cujas terras se ganharam a palmos, cujos rios a cortam, cujos portos a fecham, cujos mares abertos a todos os ventos, e o fundo, que não sofre amarras e come as âncoras, a defende e segura de largo sítio?
Cale-se logo toda a presunção humana, emudeçam arbítrios e discursos fáceis de escrever, mas impossíveis de executar, e nós, desenganados e convencidos pela evidência dos olhos, conheçamos e confessemos que só do céu nos pode vir o certo e infalível remédio, que é o que a Rainha do mesmo céu nos promete glorioso no seu Rosário. O que fizeram na sua maior aflição os sitiados de Colônia foi tirar em público e levar por toda a cidade uma imagem da mesma Senhora do Rosário, rezando-a todos em alta voz, devota e instantissimamente; e esta, que para os cercados era procissão, contra os inimigos foi triunfo. O mesmo sucedeu, mais perto de nossos dias, na famosa batalha naval do Mar de Lepanto. Tinha prevenido e solicitado a favor da Rainha dos Anjos o Santo Pontífice Pio V, com exortações a toda a cristandade, e novas e maiores indulgências concedidas aos devotos do Rosário, e foi coisa notada em todo o mundo cristão, e verdadeiramente milagrosa, que no primeiro domingo do mês - que então foi o de outubro - em que os confrades deste sagrado Instituto costumam fazer a sua festa particular, nesse mesmo dia se deu, com empenho de uma e outra parte nunca visto, a poderosíssima batalha; e na hora em que era levada nas procissões a imagem da Senhora do Rosário em Roma, e em toda a Itália, nessa mesma hora, estando até ali duvidosa, se declarou a vitória pelos cristãos, triunfando as armas católicas de todo o poder e soberba otomana.
Mas assim havia de ser, e assim será sempre, porque desde a conquista da Terra de Promissão se decretaram à Virgem, Senhora nossa, do Rosário, e a sua sagrada imagem estes triunfos contra os infiéis. A forma em que marchavam os filhos de Israel na entrada da Terra de Promissão, era levando diante a Arca do Testamento em dois mil passos de distância, para que de todo o exército pudesse ser vista e seguida. Nesta mesma ordem acometeram a primeira cidade, que foi a fortíssima de Jericó, cujos muros eram de mármore, e as portas de ferro, e sem outro combate, bataria ou assalto, só com levarem em procissão a mesma Arca do Testamento ao redor dos muros, os muros por si mesmos caíram e com os muros os ânimos, o valor e as esperanças de todos os que com as próprias forças presumiam defender dos israelitas aquelas terras pisadas primeiro, e habitadas de seus pais, as quais Deus por este meio agora lhes queria restituir. Mas, por que concedeu o mesmo Deus esta primeira e capital vitória ao seu povo por meio da Arca do Testamento somente, e não em outro lugar, senão em Jericó? Para que entendamos os católicos, significados nos israelitas, que se queremos conquistar e recuperar as terras que Deus nos deu, e estão em poder dos inimigos, e inimigos infiéis como os amorreus, o meio único e eficaz desta conquista, e o poder e socorro de que só devemos esperar a vitória, é a Virgem, Senhora nossa, enquanto Senhora do Rosário. A Arca do Testamento em qualquer parte é figura da Virgem Maria, mas em Jericó particularmente, não só da Virgem Maria, senão da Virgem Maria com o sobrenome do Rosário, que assim lho pôs o Espírito Santo: Quasi plantatio rosae in Jericho(12). - E quando os católicos intentam a conquista e recuperação das suas terras possuídas de infiéis, debaixo da conduta, patrocínio e amparo da Senhora do Rosário, não há muros nem fortalezas, não há portas de ferro nem máquinas de bronze, não há arte, potência nem valor que não trema, que não caia, que não se renda.
O mesmo nos sucederá a nós, e assim o devemos esperar nesta conquista, que também, e com muita propriedade, se pode chamar da Terra de Promissão. Como chamam à terra de Promissão as Escrituras Sagradas? Terram fluentem lacte et melle (Lev. 20, 24): Terra que mana leite e mel. - E
quem não vê que a Holanda unida ao Brasil, como hoje está em Pernambuco, lhe convém por nossos pecados toda a definição? Holanda é a terra que mana leite, o Brasil é a terra que mana mel; e junta uma com a outra, inteira e propriamente vem a ser a Terra de Promissão: Terram fluentem lacte er melle. - Mas, com o favor da Virgem do Rosário, se nós o soubermos solicitar e merecer, não estará muito esta segunda Terra de Promissão em poder dos amorreus. Os pastores dos Países Baixos se tornarão aos seus queijos e à sua manteiga, e o mel será de Sansão que, depois de vencer o Leão bélgico, lhe tirará os favos da boca. Desta maneira à nossa já venturosa e vitoriosa guerra, se seguirá a doce e segura paz, que não debalde ajuntou o Espírito Santo a oliveira às rosas: Quasi plautatio rosae in Jericho,quasi oliva speciosa in campis (13). - Não só a eleição destas plantas, senão a ordem com que estão colocadas, é misteriosa: Não a oliveira primeiro, e depois a rosa, senão a rosa antes, e a oliveira depois. Porque a rosa em Jericó significa a guerra vitoriosa, e a oliveira nos campos, a paz depois da guerra. Se fizermos a guerra debaixo da belona do Rosário, primeiro nos dará a vitória coroada de rosas, e depois gozaremos a paz com grinaldas de oliveira. Assim se coroaram, pela mesma ordem, primeiro Davi guerreiro e vitorioso, e depois Salomão pacífico. E esta é a sucessão misteriosa e ordenada, com que nos diz o Evangelho que Davi gerou a Salomão: David autem rex genuit Salomonem.
III
Todas as dúvidas que se nos podem oferecer na desigualdade desta guerra, segundo o estado presente, eu serei o que as proporei em nome do nosso receio, e o mesmo Davi o que as desfará por parte da Senhora do Rosário, como retrato natural de seus milagrosos poderes. E começando pela pouca felicidade com que todos os da monarquia tantas vezes e por tantos modos se têm empenhado nesta guerra, sempre com efeitos contrários, parece que daqui se pode formar um argumento praticamente evidente, que Deus não quer a restauração do Brasil. Cuidou-se ao princípio que com socorros pequenos, mandados freqüentemente à desfilada, se impediriam os progressos do inimigo, o qual se cansaria de sustentar sem lucro uma guerra mercantil, fundada toda no interesse; mas estas dietas receitadas por intentos particulares, só serviam de entreter o engano, e não de acudir à necessidade, consumindo-se lentamente a substância, gastando-se por partes inutilmente o que junto pudera ser de proveito. Conheceu-se depois com a experiência - e mais tarde do que fora bem - que as grandes enfermidades não se curam senão com grandes remédios; veio uma armada, e outra armada, mas com que sucesso ambas? A primeira, em uma batalha naval de duvidosa opinião, se não ficou vencida, foi derrotada (14). A segunda chegou a lançar a galharda infantaria em terra, veterana noutras guerras e noutros países, mas nova e bisonha neste, onde a poucos passos de marcha, provocados a batalha campal, a mesma ciência do general perdeu o exército, e o exército perdido, desbaratado e morto lhe não pôde salvar a vida (15).
Na dor de tão repetidas perdas começou a vacilar a esperança, e acabaram os brados de espertar a monarquia tão sensivelmente lesa na grandeza, na opulência, na fama. Deliberou-se que as forças navais de ambas as coroas se unissem em um corpo tão poderoso e formidável, que o orgulho do mesmo inimigo vitorioso reconhecesse invencível (16). Mas, sendo as ilhas do Cabo Verde o meiotermo desta união, de tal maneira a corromperam os ares pestilentos do clima - por ser a sezão intempestiva - que, diminuída em mais da terceira parte a gente marítima e militar, foi necessário deixar o teatro destinado à guerra que havia de ser Pernambuco, e recolherem-se ambas as armadas, como a hospital comum, ao porto desta Bahia onde convalescessem. Recuperada, pois, a saúde, e substituída com novas levas a inteireza das companhias e terços, cobriu enfim ou assombrou esses mares aquela multidão confusa de torres navais, composta de oitenta e sete vasos, muitos de extraordinária grandeza, armada de dois mil e quatrocentos canhões, e animada de quatorze mil europeus, número que o oceano austral jamais tinha contado nem ouvido. Quem duvidou então, ou poderia imaginar que não navegava ali a vitória segura, pois bastou a vista só de tão magnífico e estrondoso aparato, para a inimigo desconfiado patear em terra, e granjear com dádivas a graça dos seus mesmos rendidos? Mas, ó juízos e conselhos ocultos da Providência ou ira divina! Vitoriosas sempre sem controvérsia as duas armadas em quatro combates sucessivos na parte superior das ondas, furtadas, porém, as mesmas ondas pela parte inferior, e como minadas as naus pelo fundo e pelas quilhas, de tal sorte as arrancou do sítio já ganhado à fúria das correntes, que, por mais que forcejaram pelo recobrar, nunca lhe foi possível. Assim vencido da sua própria vitória aquele grande poder, e fugindo sem fugir - porque fugia o mar em que navegava - podendo mais a desgraça que o valor, a natureza que a arte, e a força do destino que a dos braços, perderam os derrotados e tristes conquistadores o mar, perderam a terra, perderam a empresa, perderam a esperança, e nós, que neles a tínhamos fundada, também a perdemos.
Este é o estado, não digo em que nos consideramos, mas em que nos vemos, não se oferecendo nem ainda à imaginação donde se possa formar outro poder semelhante ao passado quando fosse mais venturoso, e esta última desconfiança de remédio, por lhe não chamar desesperação, melhor conhecida nos juízos, e sentida nos corações de todos os que me ouvem, do que eu a soube declarar com palavras, é tudo o que possa representar por parte do nosso receio. Mas contra ele nos animará, como dizia Davi com seu exemplo, ensinando-nos a pôr toda a esperança de nossas armas no Rosário da Virgem Santíssima, a qual, como Mãe de Deus, e a modo do mesmo Deus, quando totalmente faltam os meios e remédios humanos, então mostra mais certa e prontamente a eficácia dos seus poderes.
Quarenta dias havia que o gigante apóstata, armado, arrogante, e senhor do campo sem resistência, afrontava o exército do povo de Deus, não ausente, senão de cara a cara, não se achando em tantos mil soldados e capitães quem se atrevesse a sair contra ele, ou presumisse que podia ser vencido, não só temerosos todos, mas pasmados, que é a última exageração do medo: Audiens autem Saul, et omnes Israelitae, sermones Philisthaei hujuscemodi, stupebant, et metuebant nimis(17). - No meio, porém, destes medos e pasmos, meteu em alvoroço todo o exército outro pasmo maior, que foi oferecer-se um pastorzinho moço e desarmado a sair a desafio com o gigante. As condições eram terríveis, porque daquela singular batalha dependia a servidão ou vitória de qualquer das partes, ficando sujeitos e cativos, ou os filisteus dos israelitas, ou os israelitas dos filisteus: Si percusserit me, erimus vobis servi: si ego praevaluero, servietis nobis(18). E tal é, e maior ainda, o perigo a que se vê reduzido hoje o resto do Brasil, sujeita já e rendida a tão dura e indigna servidão a metade dele. À estatura desmedida do filisteu - da qual falaremos depois - se ajuntava a desigualdade das armas, a qual, por ser notavelmente excessiva, não só a descreve miudamente a Escritura, mas a pesa em partes libra por libra: Cassis aerea super caput ejus, et lorica squamata induebatur. Porro pondus loricae ejus, quinque millia siclorum aeris erat: et ocreas aereas habebat in cruribus: et clypeus aereus tegebat humeros ejus. Hastile autem hastae ejus erat quatsi liciatorium texentium: ipsum autem ferrum hastae ejus sexcentos siclos habebat ferri(19). O capacete ou murrião do Gigante era de bronze; a tecedura da saia de malha, e as escomos que a dobravam e fortaleciam, de bronze; o escudo, que não só chegava, mas excedia os ombros, de bronze; o demais, que lhe cobria o resto do corpo até os pés, lâminas de bronze; e só trazia de ferro o da lança que tinha, diz o texto, seiscentos siclos de peso, como a saia de malha cinco mil. De sorte que, reduzidos estes siclos hebreus a libras italianas, quatro onças menores que as nossas, o ferro da lança pesava vinte e cinco libras, e o bronze, só da saia de malha, duzentas e oito.
Parece-me que esta descrição tão miúda da Escritura Sagrada tanto foi feita para o nosso caso como para o de Davi. Todos os nossos discursos ou temores se ocupam em pesar e ponderar a diferença e excesso do poder com que o inimigo se acha armado. Tanta artilharia de bronze, tanta de ferro no mar, e na terra tantas fortalezas, tantas naus, tão bem aparelhadas e fornecidas, as armas manuais dos soldados tão limpas, tão açacaladas e tão luzidas, que os canos das suas clavinas, e as lâminas dos seus alfanjes mais parecem de prata que de ferro, comparadas com os nossos. Mas vamos seguindo a História Sagrada, e ainda acharemos muito mais que admirar nesta comparação. Deliberado el-rei Saul a que Davi saísse à singular batalha, despiu-se das suas próprias armas, e vestiu e armou a Davi com elas. Aqui se me oferece não passar em silêncio o muito que deve o Brasil ao zelo, ao cuidado e à real grandeza e providência de Sua Majestade, que Deus guarde, em nos acudir e socorrer. No mesmo tempo em que as costas de Espanha, Flandres e Itália estão tão infestadas de inimigos, e ameaçadas de maiores invasões, não duvidou Sua Majestade de se desarmar ao perto, e como despir-se a si mesmo na Europa, para nos acudir e socorrer na América, com todo o poder naval de sua monarquia. E se o sucesso não respondeu ao cuidado e diligência, permitindo Deus, ou ordenando o contrário, também Davi nos dirá o mistério desta permissão. Vestido Davi, e armado com tanta honra pelas mãos reais de Saul, escusa-se cortesmente com o desuso, e despe-se das armas, porque conheceu, como nós já temos conhecido, que lhe não haviam de servir. Toma outra vez o seu surrão e a sua funda, escolhe cinco pedras de um ribeiro que por ali corria, e com esta prevenção de tão pouca despesa, estrondo, nem aparato, pranta-se na campanha, faz tiro ao gigante, derruba-o em terra, corta-lhe com a sua própria espada a cabeça, leva a cabeça ao rei, e a espada ao Templo.
Este foi o breve fim da batalha, e esta a vitória, cuja fama não terá fim, da qual, se eu formara um emblema, lhe pusera por letra: Fim sem meios. Porque, contra todas as leis da prudência e da esperança, o fim de conseguir aqui sem meios, antes a mesma falta dos meios foi o meio de se conseguir o fim. Quando Saul armou a Davi, uma peça, e a mais necessária das suas armas, foi a espada que lhe cingiu: Accinctus David gladio super vestem suam(20); e posto que se escusou de a levar, dizendo: Non habeo usum(21) - depois lhe foi necessário usar da espada, e com efeito usou da do gigante para lhe cortar a cabeça: Tulit gladium ejus, er interfecit eum(22). - Pois, se ao menos das armas do rei lhe havia de ser necessária a espada a Davi, e o mesmo Davi sabia que lha havia de ser necessária, porque antes de lançar a mão à pedra, disse ao gigante que o havia de matar e lhe havia de cortar a cabeça: Percutiam te, et auferam caput tuum a te(23)? - Por que das armas do rei ao menos não levou consigo a espada, nem Deus, que governava todas suas ações, quis que a levasse? O mesmo Davi deu a razão nas poucas que teve com o filisteu antes do combate: Tu venis ad me cum gladio, et hasta, et clypeo: ego autem venio adte in nomine Domini exercituum, Dei agminum Israel(24): Tu vens a mim confiado nas tuas armas, e eu venho a ti fiado só no Senhor dos exércitos, a Deus de Israel. - E como Davi queria toda a glória da vitória só para Deus, e Deus também a queria só para si, por isso ordenou que Davi, depois de armado, se desarmasse, e que as armas de Saul nenhum uso nem exercício tivessem naquela batalha, para que a vitória e a glória toda fosse de Deus, e nem o rei nem as suas armas tivessem parte nela. Parece, senhores, que me tenho explicado. Muitas graças a el-rei Saul, muitas graças a Sua Majestade, que se desarmou a si por nos armar a nós, e nos mandou as armas e as armadas; mas, se essas armas e armadas reais nenhum uso tiveram nem efeito, entendamos que não foi acaso, nem porque Deus não queira restaurar o Brasil, mas porque é tão zeloso da honra da sua Mãe como da sua, e foi dispondo sem dúvida, e ordenando com particular providência, que a vitória que havia de ser das armas do rei seja da funda de Davi, que é o seu Rosário.
IV
Santo Agostinho, Santo Ambrósio, S. Gregório, e todos os padres, concordemente entendem que a famosa funda de Davi, se foi maravilhosa pelo que obrou, mais misteriosa foi ainda pelo que significava. E entre todas as alegorias com que até agora se tem declarado seus mistérios, nenhuma lhe quadra melhor, e com maiores fundamentos da mesma Escritura, que ser figura profética do Rosário. Seja a primeira razão o número das pedras. Por que escolheu Davi para a sua funda cinco pedras, nem mais nem menos? Para o tiro bastava uma, como bastou; e se o tiro se errasse, as outras quatro eram supérfluas, porque in bello non licet bis errare: na guerra não se permite errar duas vezes.
- Quanto mais que Davi sabia não errar como destro, e sabia que não havia de errar como profeta.
Pois, por que escolheu cinco pedras, se bastou e havia de bastar uma? Escolheu uma para o tiro, e cinco para o mistério, porque esse, nem mais nem menos, é o número dos mistérios de que se compõe o Rosário: os gozosos cinco, os dolorosos cinco, os gloriosos cinco, e nem mais nem menos que cinco em todas as três diferenças. Daqui é que, sendo a pedra uma - tulit unum lapidem(25)- como levava em si a virtude de todas as três diferenças, também causou os efeitos de todas três: de gozo para a povo, de dor para o gigante, e de glória para Davi. Mas diga-nos o mesmo Davi que esta foi a significação da sua funda, e que nela levou o Rosário, não só representado e meditado, senão já oferecido.
Depois da vitória do gigante compôs Davi um salmo - que é o salmo cento e quarenta e três - em ação de graças da mesma vitória, e em ratificação de um voto que tinha feito e oferecido a Deus antes de entrar na batalha. O voto, em estilo profético, foi desta maneira: Deus, canticum novum cantabo tibi. In psalterio decachordo psalam tibi. Qui das salutem regibus, qui redemisti servum tuum de gladio maligno(26). - Se vós, Senhor, livrardes a el-rei Saul deste perigo e afronta, e a vosso servo Davi da espada maligna do gigante, eu prometo de vos compor um cântico novo. - Este cântico novo em cumprimento do voto foi o mesmo salmo, o qual começa assim: Benedictus Dominus Deus meus, qui docet manus meas ad praelium, et digitos meos ad bellum (SI. 143,1): Bendito seja o Senhor Deus meu, que ensinou as minhas mãos para a batalha, e os meus dedos para guerra. - Os dedos, diz nomeadamente, e não só as mãos, porque a funda e o Rosário ambos são instrumentos, não só das mãos, senão propriamente dos dedos. Mas o que faz mais admirável a propriedade deste texto, é que na língua hebraica, em que Davi o compôs, em lugar de Benedictus Dominus Deus meus: Bendito seja o Senhor, Deus meu - está Benedictus Dominus, petra mea: Bendito seja o Senhor, pedra minha. -
Pois, a Deus chama Davi pedra sua? Neste lugar e neste caso sim, e com altíssimo mistério. Não enquanto pedra da funda como funda, senão enquanto pedra da funda como Rosário. A pedra da funda como funda, era a pedra do rio; a pedra da funda como Rosário, era Cristo; e esta pedra era Deus: Deus meus, petra mea. Os mistérios do Rosário, ou juntos, ou cada um por si, todos são de Cristo, e assim, quando pelejamos contra nossos inimigos com esta funda, ou a pedra seja uma, ou cinco, ou todas quinze, sempre a pedra é a mesma que venceu e derrubou o gigante: Lapis ille, quo percussus est Goliath, Christum Domimun figurabat(27). diz Santo Agostinho. Por isso Davi, quando contrapôs as suas armas às do gigante, não disse: Tu vens contra mim com espada e lança, e eu venho contra ti com pedra e funda: - senão: Eu venho contra ti em nome do Senhor dos exércitos, e do Deus dos esquadrões de Israel: Ego autem venio ad te in nomine Domini exercituum, Dei agminum Israel. -
De sorte que uma coisa era a pedra, e outra o nome que lhe dava virtude, e este é o nome com que Davi armou a sua funda, pondo na pedra o nome de Deus, e dando a Deus o nome de pedra:
Benedictus Dominus, petra mea.
Posta, pois, a pedra na funda, que fez Davi com as mãos e com os dedos, ensinados por Deus para vencer, e derrubar o gigante? Diz o texto que, dando a volta à funda, disparou a pedra, e que pregando-lha na testa o derrubou, e que, caído ele, se pôs em fugida todo o exército dos filisteus: Tulir unum lapidem, et funda jecit, et circumducens percussit Philisthaeum: et infixus est lapis in fronte ejus, et cecidit in faciem suam super terram. Videntes autem Philisthiim quod mortuus esset fortissimus eorum, fugerunt(28). - Este foi o brevíssimo sucesso, nem esperado, nem imaginado dos que tão temerosos estavam, maior que o temor, superior ao desejo, e só igual ao impulso do braço, à força da pedra e aos poderes da funda. O gigante caiu de uma pedrada, e todo o exército dos filisteus, sem golpe nem ferida, fugiu e desamparou o sítio e postos que tinha ganhado, deixando os arraiais e despojos aos ociosos e tímidos vencedores. Olhai, olhai agora para o gigante, e correi-vos do que pouco há tão desesperadamente temíeis. Aquelas arrobas de ferro e bronze, com que se fazia tão formidável, só serviram de o derrubar com maior peso em terra. A lança caída para uma parte, o escudo para a outra, o elmo roto e inútil, a saia de malha sã, e o vastíssimo corpo sem vida, não armado já, ou defendido, mas amortalhado em suas próprias armas. Isto é o que fez tão brevemente a funda de Davi, e isto é o que faz e fará a do Rosário, por mais fortes, por mais armados, por mais vitoriosos e soberbos que estejam nossos inimigos. O que muito nota o texto sagrado é que Davi volteou a funda para dar força ao tiro: Et circumducens percussit philisthaeum. - Assim o devemos nós também fazer, dando tantas voltas ao Rosário quantas bastem para o impulso da pedra. O texto não declara quantas fossem as voltas que Davi deu à sua funda, mas, segundo a arte em que ele era tão exercitado e destro, sem dúvida foram três. Assim o supõe e ensina o príncipe dos poetas latinos, falando de Mesêncio, no qual, com todas suas circunstâncias, parece que descreve a Davi:
Stridentem fundam positis Mezentius armis Ipse ter abducta circum caput egit habena(29):
Pondo de parte as armas tomou a funda, e, dando-lhe três voltas ao redor da cabeça, a disparou. -
Assim o fez Davi, deixando também primeiro, e despindo-se das armas reais de Saul, as quais não quis Deus que tivessem parte na vitória, que é o estado em que nós de presente nos achamos, não por vontade e eleição própria, mas por disposição da Providência divina. Já estão postas de parte as armas e armadas reais, de que não sabemos parte. Pelo que, pondo agora toda a esperança e confiança nas do céu, e na proteção e poderes da Virgem Santíssima, tomemos todos devotamente o seu Rosário nas mãos, demos volta a esta funda todos os dias três vezes, e todas três ao redor da cabeça, não só rezando, mas meditando seus sagrados mistérios: na primeira volta os gozosos do primeiro terço, na segunda os dolorosos do segundo, na terceira os gloriosos do último. E se assim o fizermos todos com a união, continuação e perseverança - que é a que dá força e eficácia às orações humanas - eu prometo à Bahia, em nome da mesma Senhora do Rosário, que não só se conservará livre e segura de todo o poder dos inimigos que por mar a infestam e por terra a ameaçam, mas que este será um certo e presentíssimo socorro, ainda que faltem todos os outros, para que todo o Brasil, fazendo o mesmo, se recupere e restaure.
Dizei-me, se cada Rosário fora uma funda de Davi, e cada conta uma pedra como a que derrubou o gigante, não vos parece que com estas armas estaríamos bem defendidos e seguros, e que, se os inimigos tivessem fé, mais nos deviam temer que nós a eles? Ora ouvi, e vereis como esta mesma, que parece consideração, é verdade experimentada e certa. Na guerra de Tolosa, contra o grande poder e número dos hereges Albigenses, seguia o partido católico um cavaleiro de Bretanha, chamado Alano de Valcoloara, o qual, por conselho de S. Domingos, rezava todos os dias de joelhos o Rosário da Senhora. Aprendam deste soldado os soldados. Deu-se batalha, em que ele governava algumas tropas, as quais, porém, cercadas por todas as partes da infinita multidão dos hereges, se viram reduzidas àquele extremo aperto em que na guerra não há outro partido que entregar ou morrer. Então implorou Alano o socorro da Virgem Santíssima do Rosado, e como vos parece que acudiria a soberana Rainha às vozes daquele seu grande devoto? Porventura mandando legiões de anjos a cavalo, e armados, que se pusessem da sua parte, como os que viu e mostrou Eliseu? Não. Desceu a Senhora do Rosário em pessoa a socorrer o seu capitão, e o modo ainda foi mais maravilhoso que o socorro. Trazia na mão esquerda o Rosário, e dele ia tirando uma por uma as contas, as quais na mão direita se convertiam em grandes pedras que atirava contra os inimigos, e à força daquele braço, e daquelas balas, qual havia de ser o que não caísse, ainda que fosse gigante? Por este modo foi empregando a Senhora toda a munição do seu socorro, e quando se acabou o Rosário, para maior ostentação de seus poderes, se acabou também a batalha. Mas, como se acabou? Não aparecendo em toda a campanha mais que a imensa mortandade dos inimigos, aclamando todo o exército vencedor. Viva Alano! Viva Alano! - e ficando por ele e seus soldados toda a glória daquele grande dia.
O maior dia que houve no mundo foi aquele em que o sol esteve parado à voz de Josué; e este, em que a Senhora deu a vitória ao seu capitão com pedras, me parece que declarou um segredo da mesma voz de Josué, até agora mui duvidado, mas não sei se decidido. Pediu Josué ao sol que parasse, e o mesmo pediu também à lua: Sol, contra Gabaon ne movearis, et lunacontra vallem Ajalon(30). - Esta segunda parte da petição é a duvidosa, ou a duvidada, e com bem fundado reparo. Josué só havia mister a luz do sol para que a vitória fosse inteira, e os inimigos, já rotos, lhe não escapassem debaixo da capa da noite. Suposto isto, razão e necessidade teve de pedir o socorro do sol; mas o da lua, para quê, ou por quê? Porque verdadeiramente nesta vitória maior porte teve a lua que o sol. Vede como toda esta máquina inferior dos elementos é sujeita às influências da lua. As terras, os mares, os ventos, as chuvas, e todas as outras impressões do ar, a lua é a que as move, altera, suspende, excita. Assim o ensina a filosofia e o demonstra a experiência. Ouçamos agora o que diz a Escritura: Et mortui sunt multo plures lapidibus grandinis, quam quos gladio percusserunt filii Israel(31). Venceu Josué os cinco reis amorreus, e desbaratou inteiramente todos seus exércitos; mas foram muitos mais, diz a Escritura, os que morreram dos inimigos oprimidos das pedras que choveu o céu, que os que mataram os filhos de Israel com suas armas. E porque a chuva das pedras foi movida e excitada pela lua, como influência própria da sua jurisdição e império, muito maior e mais importante foi o socorro da lua que o do sol para a vitória. O sol, com a luz que teve parada, alumiou os soldados de Josué para que vissem, seguissem e matassem os inimigos, que foram os menos mortos; porém, a lua, com as pedras que choveu sobre eles, foi a que executou a maior e principal mortandade, e sem nenhuma dependência do sol, porque tanto os havia de oprimir e matar de noite como de dia. Quem fosse, pois, ou significasse a lua, já na vitória de Josué se soube que era a Virgem Santíssima; mas quais haviam de ser as pedras com que a mesma Senhora desbaratasse os exércitos dos infiéis, só na vitória de Alano se acabou de saber que eram as contas do seu Rosário. E se Davi só com uma pedra desta funda derrubou o gigante e pôs em fugida os exércitos dos filisteus, que fará o braço poderosíssimo da filha de Davi, e Mãe de Deus, não com uma pedra, nem com cinco, senão com cento e cinqüenta, e com as outras quinze, que são as maiores?
V
Desta maneira respondeu e satisfez Davi à primeira parte do nosso receio, vendo-nos desassistidos das armas reais, na perda ou derrota de uma e outra armada. Agora se segue a segunda parte do mesmo receio, e não menor, fundada na ausência e verdadeira perda de tantos mil soldados, que as mesmas armadas nos levaram e derrotaram consigo. Os presídios, regimentos e tropas do inimigo, na fortuna e desigualdade de tão lastimoso sucesso, ficaram inteiros; e os nossos, pelo contrário, posto que não enfraquecidos no valor, tão mutilados e diminuídos no número, que em qualquer caso de invasão nos veremos naquele grande perigo e aperto em que se acham decretoriamente os poucos quando pelejam com os muitos. No mar as máquinas de madeira, e na terra as de pedra, no mar as naus, e na terra os castelos, por mais artilhados e armados que estejam, nem eles se defendem a si, nem aos homens, se os homens os não defendem a eles. E, faltando o número competente dos homens, o que com eles é defensa, sem eles é despojo. Já, se a necessidade da guerra nos obrigar a sair em campanha, como bastará um contra muitos, se não basta Hércules contra dois? Só nos poderá animar na evidência deste perigo a breve e certa esperança de nos vermos outra vez tão poderosamente socorridos, e com a vanguarda tão segura como a tivemos no princípio deste mesmo ano; mas a dilação natural das nossas resoluções, e impossibilidade prática de levantar, unir, embarcar e expedir um semelhante socorro, é justa e racional desconfiança, por lhe não chamar desmaio, deste nosso receio.
Confesso, senhores, que as razões resumidas neste breve epílogo ainda são maiores e mais fortes.
Mas, antes que Davi no-las desfaça nos mais apertados termos, havendo de ser o Rosário as armas principais da nossa defensa, eu de nenhum modo admito que o número dos inimigos seja maior que o nosso, senão o nosso maior e muito superior ao seu. As armas do Rosário, não só as meneiam os soldados, ou os que têm idade, forças e valor para o ser, senão todos quantos somos - se quisermos, de qualquer sexo, de qualquer idade, de qualquer estado ou condição desta grande e tão dilatada república. - Podem rezar o Rosário os homens e as mulheres, os velhos e os meninos, os sãos e os enfermos, os senhores e os escravos; e se de todos estes se compuser o nosso exército, bem se vê quanto excederá no mesmo número e multidão as listas dos inimigos. Assim o fez Jerusalém, ameaçada dos poderosíssimos exércitos dos caldeus, assim Betúlia, sitiada por Holofernes e pelo vitorioso exército dos assírios, e assim a mesma Nínive gentia, não só com a guerra apregoada, mas com a ruína e total assolação decretada e notificada por Deus no pregão do profeta Jonas. Mas o exemplo sobre todos admirável, e irmão legitimo do nosso caso, é o de el-rei Josafá.
Vieram conquistar as terras deste rei - que o era do reino de Judá - os moabitas, amonitas e siros, com poder muito superior ao de Josafá; e como o bom e pio rei reconhecesse a desigualdade de suas forças, prostrado diante de Deus no templo, fez esta oração pública: - Vós, Senhor, sois o verdadeiro Deus do céu e da terra, que dominais sobre todas as gentes e nações do mundo, e a cuja infinita potência ninguém há que possa resistir. Estas terras, pois, em que vivemos, não são aquelas mesmas que vós prometestes a vosso servo Abraão, nosso pai, e primeiro fundador deste reino vosso? Não lançastes delas os gentios que as habitavam, e no-las destes a nós? E nós, depois que tomamos posse delas, não as santificamos com templos e altares dedicados ao vosso divino culto? Nunc igitur - sendo isto assim – ecce filii Amon et Moab, et mons Seir, nituntur ejicere nos de possessione, quam tradidisti nobis (2 Par. 20, l0s): Os amonitas, moabitas e siros nos querem lançar das terras de que vós nos metestes de posse, e fazerem-se senhores delas: Deus noster ergo non judicabis eos? In nobis quidem non est fortitudo, ut possimus huic multitudini resistere (ibid. 12): Não será logo razão, Senhor, que vós nos façais justiça, e pois o nosso poder é tão inferior ao seu, que lhes não podemos resistir, tome a vossa onipotência por sua conta a nossa defensa e o seu castigo? - Assim orou a Deus o rei, como pudera orar hoje o de Portugal se se achara entre nós. Mas não se contentou só com isto.
Fez que se ajuntassem e orassem a Deus todos, sem exceção de estado, idade ou pessoa: os pais, as mães, os filhos, até os mais pequeninos: Omnis vero Judo stabat coram Domino cum parvulis, et uxoribus, et liberis suis(32). - E que se seguiu deste conselho e resolução de Josafá? Coisa verdadeiramente maravilhosa, ou mais verdadeiramente muito natural, e sem maravilha. Posto que de parte dos inimigos a multidão dos soldados era muito superior, como da parte dos israelitas se uniram aos soldados os que não eram soldados, nem o podiam ser, velhos, mulheres, meninos, e toda a outra multidão imbele, cresceu este número tanto, que foi maior que o dos inimigos. E como foi maior o número, e melhores as suas armas - que eram as da oração - ainda que por uma parte foi a vitória milagrosa de soldados a soldados, por outra teve muito de natural, e sem maravilha, porque os vencedores foram os mais, e os vencidos os menos. Por isso mesmo Josafá, quando saiu em campanha contra os inimigos, mandou que os músicos do templo, repartidos em esquadras, fossem diante do seu exército cantando louvores a Deus: Deditque consilium populo, et statuit cantores Domini, ut laudarent eum in turmis suis, et antecederent exercitum(33). - E isto para quê? Para que os visse, como logo se viu, que o número de seu exército vitorioso não constava só dos soldados que meneavam as armas, senão de todos aqueles que, posto que as não podiam menear, levantavam as mãos desarmadas ao céu, e deste modo marchavam juntamente com eles, e os ajudavam a vencer com suas orações.
E se por meio destas tropas auxiliares, compostas de mulheres, meninos e homens incapazes de tomar armas, acrescentou Josafá tanto o número e poder de seus soldados, e se por meio das orações unidas de todos, lhe libertou e desassombrou Deus a terra, já meia ocupada dos inimigos, sepultando nela a muitos, e lançando dela aos demais, por que não esperaremos nós da misericórdia de Deus e de sua Santíssima Mãe os mesmos efeitos, se assim soubermos multiplicar o número, e acrescentar o poder de nossos presídios? Confiadamente torno a afirmar e prometer que este será o meio infalível, não só de defender e segurar esta cidade dos presentes receios, mas de libertar e recuperar todo o estado, lançando os inimigos fora, e muito longe dele. E para que não haja quem duvide de me dar crédito, ouçamos todos isto mesmo da boca do profeta Joel. De quem falasse o profeta naquele capítulo - que é o segundo - não se sabe ao certo, e por isso com maior propriedade o podemos aplicar ao nosso caso, se as circunstâncias da profecia o merecerem.
Primeiramente diz Joel que virá sobre a terra de que fala uma gente estran-geira muita e forte:
Populus multus et fortis(34) -e que o seu exército entrará armado de fogo, assim na vanguarda como na retaguarda: Ante faciem ejus ignis vorans, et post eum exurens flamma(35) - e que por meio destas armas e deste fogo a terra, que dantes era um jardim de delícias, ficará a solidão de um deserto: Quasi hortus voluptatis terra coram eo, et post eum solitudo deserti (36). Quem não vê em toda esta profecia a história de Pernambuco, e o que dantes era e hoje é Olinda? Confesso que quando a vi pela primeira vez, entre a nobreza de seus edifícios, templos e torres, ornada toda nos vales, e coroada nos montes de verdes e altíssimas palmeiras, não só me pareceu digna do nome que lhe deram, e de se mandar retratada pelo mundo, mas um formoso e ameníssimo jardim, o mais agradável à vista. Assim a achou o holandês quando entrou nela: Quasi hortus voluptatis terra coram eo. - E depois dele, como está? Et post eum solitudo deserti: um deserto, uma solidão, uma ruína confusa, sem semelhança do que dantes era. No princípio se disse que Olinda se convertera em Holanda; mas, depois que a impiedade holandesa lhe pôs fogo, e ardeu como Tróia, nem do que tinha sido, nem do que depois era, se vê hoje mais que o cadáver informe, e uma triste sepultura sem nome, para que nela se desenganem e temam todas as do Brasil. Depois disto descreve o profeta, com propriedade e miudeza digna de se ler devagar, o modo e disciplina militar desta gente nas marchas, nas investidas, no bater e escalar os muros, tudo cheio de circunstâncias temerosas, e ameaças de horrores. Mas a maior e mais formidável de todas é chamar-lhe exército de Deus, e mandado por ele como executor de sua ira: Et Dominus dedit vocem suam ante faciem et quisexercitus sui, quia malta sunt nimis castra ejus, quia fortia, et facientia verbum ejus: magnus enim dies Domini, et terribilis valde, et quis sustinebit eum(37)?
Pois, profeta santo, se este exército é de Deus, e os seus exércitos, como acabais de dizer, são muitos e fortes, haverá algum remédio para aplacar a Deus e fazer oposição a estes exércitos? Sim, e de nenhum modo dificultoso. E qual é? O mesmo em próprios termos que eu tenho dito: Vocate caetum, congregate populum, sanctificate ecclesiam, coadunate senes, congregate parvulos et sugentes ubera; egrediatur sponsus de cubili suo, et sponsa de thalamo suo. Inter vestibulum et altare plorabunt sacerdotes, ministri Domini, et dicent: Parce, Domine, parce populo tuo, et ne des haereditatem tuam in opprobrium, ut dominentur eis nationes(38). -Suposto que este exército é de Deus, e tão forte, toquemos nós também a arma, diz o profeta: Canite tuba in Sion(39) - porque é de Deus, e Deus o governa e manda, presentemo-nos nós também diante de Deus, e não em outro lugar, senão no seu próprio templo; e porque é tão forte e poderoso, unamos nós também todas as nossas forças, e não haja quem não acuda à defensa: acudam os homens, acudam as mulheres, acudam os velhos, acudam os meninos, entre eles os de peito, acudam os esposos e esposas, acudam os leigos e os eclesiásticos; orem os sacerdotes com lágrimas - que são as balas a que o peito de Deus não pode resistir - e digam todos com eles, prostrados por terra: Perdoai, Senhor, perdoai a vosso povo; e pois esta terra, por ser de católicos, é herdade vossa, não permitais, Senhor, que com afronta de vosso nome, e de vossa Igreja, esteja a que já está, e venha o demais a poder de infiéis. - Não diz, nem declara o profeta que o fizessem assim aqueles a quem exortou, porque supõe que em ocasião de tão grande temor e perigo nenhuma criatura haveria tão dura de coração, e tão inimiga da pátria e de si mesma, que não acudisse a Deus por si e por todos. O que só diz é que no mesmo ponto se aplacou Deus, e zelou o remédio e liberdade da terra como sua: Zelatus est Dominus terram suam, et pepercit populo suo (40) – prometendo juntamente, e mandando dizer a todos pelo mesmo profeta - vede se há palavras mais próprias do nosso caso - prometendo que o inimigo que tinha vindo do norte ele o lançaria fora, e para muito longe: Et eum qui ab aquilone est procul faciam a vobis, et expellam eum(41).- De maneira, e em conclusão, como dizia, que não nos deve desanimar o sucesso passado pelos poucos soldados com que nos deixou; pois, fazendo nós o que fez Josafá e mandou fazer Joel, com as armas da oração que podem menear todos, seremos muitos mais em número que nossos inimigos.
VI
Porém, Davi, que é o que há de responder ao nosso receio, como traz na sua funda o Rosário, sem recorrer a este meio de multiplicar o número dos combatentes com os que não podem tomar armas, põe só em campanha soldados contra soldados e promete e assegura à Bahia e a todo o Estado que, para vencer o inimigo, e o lançar dele, bastarão em virtude do mesmo Rosário os nossos poucos contra os seus muitos. Entre as coisas notáveis que de si disse Davi, é aquela do salmo setenta:
Quoniam non cognovi litteraturam, introibo in potentias Domini (Sl. 70, 15 s). -Litteraturam no texto original é o mesmo que numerationem et computum. - Quer pois dizer Davi: - Porque não usei dos números nem dos cômputos da aritmética, por isso entrei e fui admitido às potências de Deus. - E que desmerecimento têm os cômputos da aritmética, ou que oposição é a sua, com as potências e poderes de Deus, para atribuir Davi o ser admitido às potências de Deus, e ser favorecido de seus poderes, por não usar dos números e cômputos da aritmética? Falou Davi como soldado, e deu a razão das suas batalhas e vitórias, e de ser tão favorecido e ajudado nelas do poderoso braço de Deus. E a razão é esta, porque nos cômputos da aritmética o maior número sempre venceu o menor, os três vencem aos dois, os quatro vencem aos três, os cinco vencem aos quatro. Porém, nas potências de Deus não é assim. Porque quando Deus quer e ajuda, e os homens se fiam do seu poder, o menor número vence ao maior, como tantas vezes se viu nas batalhas e vitórias do mesmo Davi contra os filisteus, contra os moabitas, contra os siros, contra os idumeus, e outros. Diz, pois, o grande rei e famoso capitão discretíssimamente, que entrou nas potências de Deus porque nunca soube usar da aritmética, como se dissera: - Se eu, quando havia de dar a batalha, me pusera a contar e a computar o número dos soldados inimigos e o dos meus, e formara esquadrões contra esquadrões pelos algarismos, ordinariamente não só não vencera, mas não pelejara, porque eles eram muitos mais em número; mas porque eu me fiava da potência de Deus, e me aconselhava e resolvia com ela, por isso pelejava com tal vantagem que, ficando o número dos inimigos, que era o maior, desbaratado e vencido, o meu, que era o menor, levava a vitória.
O mesmo fez Davi no desafio com o gigante, em que os mesmos olhos viam a grande desproporção de um e outro combatente, como nós vemos a nossa. O gigante, diz o texto sagrado que tinha de altura seis côvados e um palmo: Altitudo sex cubitorum et palmi (1 Rs. 17,4). - Davi, pelo contrário, que ainda estava em idade de crescer, porque mal chegava a vinte anos, era tanto menor, que Saul lhe chamou menino: Non vales resistere Philistheo isti, quia puer esn(42). - E que fez o valente menino, que ainda não sabia a tabuada: Quoniam non cognovi numerationem? - Porventura pôs-se a multiplicar os côvados do gigante, e diminuir os seus? De nenhum modo. Tanto assim que, quando falou ao competidor, só fez menção da diferença das armas, e nenhuma da grandeza ou estatura dos corpos. Fez, pois, o tiro com a funda, em nome de Deus, e então se viu quem era o maior. Antes do tiro Davi dava pelos joelhos ao gigante, depois do tiro o gigante deu pelos pés de Davi. Agora façam lá os aritméticos a conta, que Davi não sabe de outras contas mais que as do Rosário, que significava a sua funda. Feito, pois, exatamente o cômputo, averiguou-se que só Davi somava dez mil homens.
Assim lhe disseram os generais do exército, não consentindo que ele saisse em campanha em uma ocasião em que ia empenhado todo o poder, e só na reserva da sua pessoa ficava seguro o reparo de qualquer mau sucesso: Quia tu unus pro decem millibus computaris (2 Rs. 18,3): Porque vós, Senhor, sendo um só, sois computado por dez mil. - E donde se fundou este cômputo tão excessivo, quanto vai de um a dez mil? Fundou-se e fundou-o Davi na vitória da sua funda. Assim o cantaram logo as chacotas, no mesmo dia daquele triunfo: Percussit Saul mille, et David decem millia(43). - Vede quanto vai de ter o poder de Deus por si, como teve o devoto Davi, ou ter a justiça de Deus contra si, como teve o blasfemo gigante. Davi vencedor foi computado por dez mil, e o gigante vencido não por dez, senão por mais de cem mil, porque, constando de mais de cem mil o exército dos filisteus, tanto que viram vencido o gigante, todos fugiram: Videntes autem Philistiim quod mortuus esset fortissimus eorum, fugerunt (1 Rs. 17,51).- De maneira que foi tal o poder e virtude daquela funda em multiplicar ou diminuir um e outro exército, que no exército dos infiéis cem mil foram menos que um só, e por isso vencidos, e no exército dos fiéis um só foi mais que dez mil, e mais que cem mil, e por isso vencedores. E se isto fez a funda porque significava o Rosário, que fará o mesmo Rosário significado na funda?
Vejamos a verdade e experiência desta ilação em um passo da Escritura, que já a confirmou maravilhosamente, não em outra nação, nem em outra parte, senão em Portugal. O maior exemplo de vencerem poucos a muitos foi aquele em que o condado de Portugal amanheceu reino, vencendo no mesmo dia treze mil portugueses a quatrocentos mil mouros. E quando Deus revelou a el-rei D.
Afonso Henriques a vitória do dia seguinte, diz a história que estava o santo rei de noite na sua tenda lendo a batalha de Gedeão, e esta é a que nos serve. Vieram contra os filhos de Israel os madianitas, acompanhados de outras nações, com tão numeroso ou inumerável exército que os compara o texto sagrado às areias do mar: Sicut arena quae jacet in littore maris(44). - Não havia naquele tempo em Israel rei nem república formada que tratasse da defensa, ou resistência, pelo que Gedeão, eleito por Deus, a tomou à sua conta. Ajuntou de todas as tribos que pôde trinta e dois mil homens, e quando ele reconhecia a desigualdade deste seu exército, e quão poucos verdadeiramente eram contra aquela multidão imensa, o que lhe disse Deus foi: Multus tecum est populus, nec tradetur Madian in manus ejus(45): Gedeão, essa gente que tens é muita, e não poderá vencer. - Notai a conseqüência de Deus.
Essa gente não poderá vencer, porque é muita, como se dissera: porque é pouca. Tratou conforme isto Gedeão de apoucar e diminuir o seu exército, mandou lançar bando que todos os que tivessem medo de ir à guerra se fossem para suas casas: Qui formidolosus et timidus est, revertatur(46) - e houve no exército não menos de vinte e dois mil, que não só tinham no coração o dito medo, mas não duvidaram nem tiveram pejo de o confessar publicamente, e se foram. Ficaram somente dez mil com Gedeão, e já agora parece que estará contente Deus, pois assaz pequeno é o número de dez mil contra uma multidão inumerável; mas não foi assim: Adhuc populus multus est (Jz. 7,4): Ainda são muitos -diz Deus. - Manda-os passar o rio, e só levarás contigo aqueles que beberam lançando a água à boca como cães: Qui lingua lambuerint aquas, sicut solent canes lambere (ibid. 5). - Foram os que assim beberam trezentos somente; e, dividido este pequeno número em três partes, as armas que deu o sábio e ardiloso capitão a cada um foi uma trombeta para a mão direita; e para a esquerda um cântaro de barro tapado, com uma luminária dentro: Divisitque trecentosviros in tres partes, et dedit tubas in manibus eorum, lagenasque vacuas ac lampades in media lagenarum (47). - Esta foi a larga cerimônia com que Deus diminuiu os soldados de Gedeão, e esta toda a prevenção com que ele os armou para a batalha; e qual seria o sucesso? Foi tão breve, que o refere a Escritura em duas regras. Debaixo das sombras da noite tomaram os trezentos aventureiros três postos ao redor dos arraiais dos madianitas, tocaram todos ao mesmo tempo as trombetas, quebraram os cântaros, apareceram os fogos, e foi tal a confusão e perturbação naquele numerosíssimo exército, tanto mais confuso quanto maior, que, imaginando-se acometidos e entrados por tantas partes, sem ordem, sem conselho e sem se conhecerem, uns matavam aos seus, outros fugiam deles como de inimigos, e até os que escaparam, seguidos pelo mesmo Gedeão e desbaratados inteiramente por ele, deram complemento à vitória começada e acabada na mesma noite e dia.
Não vos parece que foi grande, admirável, não esperada, e quase incrível esta batalha e vitória de trezentos homens? Pois assim mostrou Deus naquela batalha que não só podem vencer os poucos aos muitos, senão os muitos aos inumeráveis; e assim nos deixou retratadas desde então naquela vitória as que depois haviam de alcançar os católicos contra os infiéis, em virtude do Rosário de sua Santíssima Mãe. Ponderai todas as circunstâncias do caso, e achareis o Rosário retratado em todas. Nas trombetas temos a parte vocal do Rosário, que consiste em vozes; nos cântaros e lumes ocultos a parte mental, que consiste nos mistérios, e mistérios não outros, senão os de Cristo, cuja humanidade era significada no barro de fora, e a divindade nos lumes de dentro. Estas foram as armas com que venceram; mas como, quantos e quais? O modo foi dividido em três partes, que são os três terços do Rosário; o número foram trezentos, que é o Rosário dobrado, a que vulgarmente chamais trezentas. E
a qualidade ou diferença dos soldados aqueles que só beberam como cães, que é a figura própria em que foi profetizado o fundador do Rosário, S. Domingos, como imitadores seus. Estes e tais, sendo tão poucos, venceram a tantos, porque esta é a virtude e estes os poderes do Rosário: vencer a muitos com poucos. Ponde-vos nas campanhas de França, e vereis muitas vezes o mesmo que no vale de Madiã. O conde Simon de Monfort, grande devoto do Rosário e famoso defensor dele contra os hereges, era o general dos católicos; e que fizeram os seus soldados? Uma vez só trinta venceram a três mil; outra vez quinhentos venceram a dez mil; outra vez três mil venceram a trinta mil. E isto lhe sucedia em todos os encontros e batalhas, sempre inferiores no número, e superiores na vitória.
Mas porque a que nós desejamos é uma última e total em que lancemos fora de nossas terras os injustos possuidores delas, ouvi o que refere o Beato Alano, aquele mesmo soldado de que falamos acima, o qual trocando o hábito militar pelo de religioso, e sendo santo, foi depois de S. Domingos o maior pregador do Rosário. - Uma rainha - diz ele - chamada Benedita, tendo-lhe ocupado os hereges a maior parte dos seus estados, e não podendo o rei, por ser muito velho, tomar as armas, pediu-lhe que, suposta a sua impossibilidade, lhe quisesse dar mil soldados, porque ela com este pequeno poder, confiada no socorro da poderosíssima Virgem Maria, tinha esperança de prevalecer contra os inimigos, e reconquistar todo o perdido. Era esta princesa devotíssima da Senhora do Rosário, e a primeira coisa que fez foi que todos os seus mil soldados se alistassem na confraria da mesma Senhora, e rezassem o Rosário todos os dias. Bem exercitados nesta nova disciplina, e mais armados dos seus rosários que das outras armas, saiu a rainha em campanha com este seu exército, que mal merecia nome de esquadrão; e que diria à vista dele o inimigo? O mesmo que disse o gigante, quando viu a Davi. Opuseram-lhe os presídios das primeiras praças; mas os presídios e as praças foram logo rendidas. Marcha por diante a rainha, e tão depressa vencia, como se com os seus poucos soldados levara também a soldo a vitória. Desengana-se o inimigo, teme já o poder de que zombava, e ajuntando todo o seu em um grande e bem formado exército, não recusam a batalha os do Rosário; e estes, sendo tão poucos, fizeram tal estrago e mortandade nos hereges que, fugindo os demais, e não parando nem nas últimas raias do reino, o deixaram, não só livre, mas o que dantes não estava, fortificado. Com este sucesso tão conforme à sua esperança, tornou Benedita não só vencedora, mas já verdadeiramente rainha, e entrou triunfante na sua corte, dando todos as graças e os vivas à Virgem do Rosário, que foi a que neles venceu.
VII
Oh! que pouca razão tem a Bahia de temer, se os seus soldados, que considera poucos, militarem debaixo destas sempre vitoriosas bandeiras? Se só mil soldados armados com o Rosário recuperaram um reino e lançaram dele os inimigos, tantos e tão fortificados, a Bahia presidiada ainda hoje com dobrada guarnição, e tão valorosa, por que receará ser invadida, e não terá confiança de outra semelhante e final vitória? Verdadeiramente foi circunstância particular e mui notável nesta - para maior glória do Rosário - que, como Jael, Débora ou Judite a alcançasse uma mulher; mas, em tempo que as armas de Portugal são imediatamente governadas pela sereníssima Margarida, cuja singular piedade e devoção com a Rainha dos Anjos é o realce que mais resplandece sobre seu real e augustíssimo sangue, nem esta gloriosa circunstância nos falta para que as nossas vitórias possam fazer paralelo com as da triunfante Benedita.
Três coisas conseguiu esta devota e venturosa princesa. A vitória dos inimigos, a recuperação de seus estados, e a paz deles, que é o suspirado fim da nossa guerra. Este foi, como dizíamos, o mistério de Davi gerar a Salomão, e tudo isto, que tão dificultoso parece a muitos, conseguiremos facilmente em virtude da melhor filha de Salomão e Davi, se a funda do seu Rosário forem as nossas armas como são as suas: Quae est ista quae progre-ditur quasi aurora consurgens, pulchra ut luna, electa ut sol, terribilis ut castrorum acies ordinata (Cânt. 6, 9)? Quem é esta que caminha como a aurora quando nasce, tão formosa como a lua, tão escolhida como o sol, e tão terrível e formidável como um exército bem-ordenado posto em campo? - Esta pergunta fizeram as filhas de Sião, companheiras da Esposa dos Cantares, que é a Virgem Maria, e a sua mesma pergunta e dúvida ma faz a mim maior. Quando isto perguntaram e duvidaram as filhas de Sião, estavam atualmente vendo e falando com a mesma Esposa, e louvando-a. Assim o dizem as palavras antecedentes: Viderunt eam filiae, et beatissimam praedicaverunt(48). - Pois, se estavam vendo e falando com a Senhora, e a conheciam muito bem, que por isso a louvavam com o superlativo de beatíssima, como perguntam e duvidam quem é: Quae est ista? - Não duvidavam da pessoa, duvidavam do ofício que exercitava, e do título a que havia de atribuir ser terrível como um exército armado. A Virgem, Senhora nossa, tem muitos títulos, ofícios e invocações com que, sendo uma só, a distinguimos como se foram muitas. Assim dizemos a Senhora da Piedade, a Senhora do Socorro, a Senhora da Saúde, etc. E nesta forma duvidavam e perguntavam as filhas de Sião que Senhora era aquela, terrível e formidável como um poderoso exército? Elas não tiveram quem respondesse à sua pergunta, mas eu respondo que é a Senhora do Rosário, e aprovo do mesmo texto. Antes de dizerem que era como exército, disseram que era como aurora, como lua, como sol: Quae est ista quae progreditur quasi aurora consurgens, pulchra ut luna, electa ut sol: - e estes são sucessivamente, e pela mesma ordem, os três mistérios de que se compõe o Rosário. Nos primeiros, que são os da Encarnação, foi a Senhora como aurora, Mãe do verdadeiro Sol, o Filho de Deus encarnado; nos segundos, que são os da Paixão, foi como lua, eclipsada na dor e tristeza do Filho crucificado e morto; nos terceiros, que são os da Ressurreição, foi como o sol, cercada dos resplendores e glória do mesmo Filho ressuscitado. E de todos três, gozosos, dolorosos e gloriosos se compõe pela mesma ordem o terrível e formidável exército do Rosário, que por isso nomeadamente se chama ordenado: Ut castrorum acies ordinata. -Os romanos ordenavam os seus exércitos repartidos em três linhas: na primeira, os soldados que chamavam rosários; na segunda, os que chamavam acentos, na terceira os que chamavam triários; e na mesma forma ordenou a Senhora o seu Rosário, repartido nas três partes, a que nós chamamos terços. Assim como nos exércitos romanos a cada dez soldados presidia e assistia um cabo, chamado por isso decurião, assim vemos nas contas do Rosário que cada fileira de dez Ave-Marias preside e precede um Padre-nosso. Tão composto e tão ordenado é este poderosíssimo exército da Senhora, e por isso terrível e formidável: Terribilis ut castrorum acies ordinata.
De ser tão terrível e formidável o exército se segue o não haver quem lhe resista, e ser sempre vitorioso; e a estas vitórias, como às de Davi, se segue a paz, como a de Salomão. Assim se afirma e canta no mesmo capítulo, com repetição das mesmas palavras: Decora sicut Jerusalem, terribilis ut castrorum acies ordinata (49). E por que se chama a Senhora formosa como Jerusalém, quando outra vez é chamada terrível como exército? Porque Jerusalém quer dizer vista de paz: visio pacis - e mesmo exército do Rosário, que para os inimigos é vista de terror, para os que ele defende é vista de paz: vista de terror, pelas vitórias que alcança, e vista de paz, pela paz que às mesmas vitórias se segue. Pelas vitórias de Davi foi tal a paz que gozou Salomão, que diz a Escritura, falando do seu reinado, que Jerusalém estava cercada com muros de paz: Qui posuit fines tuos pacem(50). -
Estendendo-se, pois, o Brasil por mais de mil léguas de costa com tantos portos e enseadas abertas, que não bastam para as guarnecer todos os soldados de Europa, só com muros de paz se pode defender e estar seguro. E donde poderemos nós achar estes muros de paz, senão na mesma Senhora do Rosário, a qual, como para as vitórias é o exército, também para a paz será os muros. Assim o diz mila-grosamente, falando da mesma Senhora, não outrem, senão o mesmo Salomão, nem em outro livro, senão no mesmo dos Cânticos: Ego murus, et ubera mea sicut turris, ex quo facta sum coram eo, quasi pacem reperiens(51). - Tanto que eu descobrir e achar esta tão desejada paz, eu mesma, diz a Senhora, serei o muro, e os meus peitos as torres que vos defendam.
Mas para que são outras Escrituras, se na mesma natureza nos deixou a Senhora um prodigioso testemunho, em que nos promete esta paz vinculada ao seu Rosário. As palavras da Virgem Santíssima no capítulo vinte e quatro do Eclesiástico são estas: Sicut aspalathus aromatum odorem dedi(52). - Os favores que eu comunico aos meus devotos são como o cheiro do aspálato. - Assim lêem este lugar as bíblias grega, romana, siriaca, Rabano, Jansênio, Lira, e todos os expositores comumente. E que coisa é o aspálato (53), para que entendamos o mistério das palavras da Senhora, e o que nos quer dizer nelas? Primeiramente o aspálato, diz Plínio, é uma árvore pequena, cujas flores entre espinhos são como rosas: In eodem tractu aspalathus nascitur, spina candida, magnitudine arboris modicae, flore roseo(54). O lenho do aspálato, dizem Amato e Ruélio, referidos por A
Lápide, que é o vulgarmente chamado ródio, de que se fazem as contas do Rosário: Amatuset Ruelius censent aspalathum esse lignum rhodium, ex quo globuli precatorii conficiuntur(55). - Já temos o Rosário bem significado nas flores e no tronco do aspálato. E qual é a propriedade do seu cheiro, em que a Virgem Senhora põe toda a força e energia da sua comparação: Sicut aspalathus aromatum odorem dedi?
Verdadeiramente é milagre da natureza, que só parece criado pelo autor dela para prova dos poderes de sua Santíssima Mãe e da paz que nos prometem as vitórias do seu Rosário. - Toda a planta, diz Plínio, sobre a qual se inclinou a íris ou arco celeste, tem o cheiro do aspálato: Tradunt in quocumque frutice curvetur arcus caelestis, eamdem quae sit in aspalatho, suavitatem odoris existere.
- Em descobrir as causas deste segredo trabalhou com todo o seu engenho Aristóteles; mas como o havia de alcançar quem não teve fé dos mistérios de Cristo, e mil e setecentos anos antes da instituição do Rosário? A devoção do Rosário é o cheiro do aspálato, a que a mesma Senhora se comparou: Quasi aspalathus aromatum odorem dedi; a íris ou arco celeste é o sinal da paz que Deus deu aos homens desde o tempo do dilúvio; e todas aquelas plantas sobre que se inclina o arco celeste cheiram a aspálato, porque é tal a virtude ou a simpatia como natural que tem o Rosário com a paz e a paz com o Rosário, que a todas aqueles a quem a Senhora comunicou a devoção do seu Rosário não pode faltar o céu em lhe dar a paz. O arco celeste é arco sem corda, e por mais armados que estejam os inimigos, o Rosário os desarmará, de maneira que da mesma guerra nasça a paz, assim como de Davi guerreiro nasceu Salomão pacífico: David autem rex genuit Salomonem.
VIII
Tenho acabado o meu discurso, mais largo do que o pedia a festa, se a maté-ria não fora tão importante. Concluo com duas palavras aos nossos soldados, não para afrontar o seu valor animandoos, mas para alentar a sua devoção e cristandade, sem a qual não há seguro valor. A insígnia dos soldados antigamente não consistia na espada, senão no que hoje se chama tali, e então se chamava bálteo: Os moabitas, para resistirem aos exércitos de Israel e Judá, diz o texto sagrado que ajuntaram todos aqueles a quem do ombro pendia a bálteo, isto é, toda a gente de guerra: Convocaverunt omnes qui accinti erant balteodesuper (4 Rs. 3,21).- Jó, para significar como Deus abate e humilha o poder militar dos reis, diz que lhes tira e rompe o bálteo: Qui balteum regum dissolvit(56). - Turno, quando matou o príncipe Palante, o despojo com que se honrou de suas armas foi somente o bálteo, que depois lhe custou a vida: Humero cum apparuit alto balteus - Joab, soberbo com a vingança dos dois generais Abner e Amasa, o que pintou com o sangue de ambos foi o seu bálteo: Effudit sanguinem belli in pace, et posuit cruorem praelii in balteo suo(57). Finalmente, para encarecer a Escritura o extremo com que Jônatas amou a Davi depois da vitória do gigante, diz que lhe deu os seus vestidos, a sua espada, o seu arco, e, por último encarecimento, até o bálteo: Usque ad balteum (1 Rs. 18, 4). -
Tal é a insígnia, valorosíssimos soldados, que eu quisera recebêsseis todos, não da mão de Jônatas, filho de el-rei Saul, mas da mão da Rainha dos Anjos, e Mãe do Rei dos reis. O bálteo da Virgem poderosíssima é o seu Rosário. Com este, lançado a tiracolo - como também Davi levava o seu surrão pastoril, em que meteu as pedras - posto que o número dos inimigos seja tão avantajado, como é, e o vosso muito menor, sem dúvida vencereis a todos.
No ano de mil e quinhentos e setenta e oito, quando mais se desaforou a rebeldia herética nos estados de Flandres, profanados os templos e os altares, afrontadas e quebradas as cruzes e imagens sagradas, e fundidos os sinos em artilharia, como se tem feito em Pernambuco, os hereges da populosíssima cidade de Gante, formaram um exército de vinte mil combatentes, com que talavam os campos, saqueavam as vilas e destruíam todos os lugares abertos e sem defensa dos católicos. No meio, porém, deste lastimoso desamparo excitou Deus o espírito do conde de Egmont, e de outros senhores tão fiéis e obedientes à Igreja Romana como a seu rei, os quais se quiseram opor à fúria dos hereges; mas não puderam ajuntar mais que um pé do exército de sete mil soldados, inferior em dois terços ao dos inimigos. E que fariam com tão desigual poder? Pintaram nas bandeiras a Virgem, Senhora nossa, e todos, assim soldados como capitães, lançaram a tiracolo os seus rosários, e deste modo armados se puseram na campanha. Os hereges, vendo o pequeno número, e as novas e desusadas bandas dos que saíam a contender com eles, chamavam-lhes, por desprezo, o exército do Padre-nosso; mas os Padre-nossos e as Ave-Marias esforçaram de maneira o seu pequeno exército, que mor-tos cinco mil dos inimigos, os demais, fugindo, se acolheram à cidade, donde nunca mais se atreveram a sair, e ficou toda a campanha pelos católicos. Isto fez então a Senhora do Rosário, e o mesmo fará em todas as ocasiões, se os nossos soldados, posto que menos em número, seguirem nas bandeiras a mesma insígnia, e se armarem das mesmas armas.
E para que vejam que não só são ofensivas, senão também defensivas, que é o primeiro efeito das armas, e o primeiro cuidado e fim da milícia bem ordenada, ouçam brevíssimamente outro caso, não só de igual e maior maravilha, mas evidentemente milagroso. Caminhava pelo vale de Alfandec, no reino de Valença, um fidalgo, por nome Jerônimo Hespi, e ali o assaltaram seus inimigos, muitos, e todos com armas de fogo. Vendo-se só, e sem remédio, invocou o socorro da Senhora do Rosário, de quem era muito devoto. E qual seria o sucesso de uma tão perigosa assaltada? Empregaram nele vinte tiros, de que os vestidos por diferentes partes ficaram um crivo; mas as balas todas pararam entre a roupa e a carne, sem penetrarem a pele, nem lhe tirarem uma gota de sangue. Tão pouco obraram em um devoto do Rosário vinte tiros, e o mesmo fariam se fossem mil! - Oh! Virgem poderosíssima do Rosário, que agora acabo de entender por que diz Salomão que trazeis ao pescoço mil escudos, como os que estavam pendurados na torre de Davi: Sicut turris David collum tuun: miile clypei pendent ex ea(58). -E que escudos são estes que a Senhora traz ao pescoço, senão as contas do seu Rosário? As contas do Rosário não só são cento e cinqüenta escudos, senão mil escudos. Vejam logo os nossos soldados quão bem armados irão, não só ofensiva, senão defensivamente, se todos levarem a tiracolo este bálteo militar da Mãe do Senhor dos exércitos! Assim o escreveu Salomão, e assim o demonstra na torre de seu pai Davi, confirmando ambos também por este modo o mistério com que disse o nosso Evangelho, falando de ambos: Davi autem rex genuit Salomonem(59).
(1) E o rei Davi gerou a Salomão (Mt. 1, 6).
(2) Não há contrário, nem mau encontro (3 Rs. 5,4).
(3) Ovidius.
(4) Ali sentiram dores, como uma mulher que está de parto (SI. 47,7).
(5) Crueldades dos hereges, executadas por si e pelos bárbaros na guerra de Pernambuco.
(6) Fr. Alonso Fernan. in Hist. Rosarii.
(7) Porque o Senhor assim no-lo mandou: Eu te pus para luz das gentes. para que sejas de salvação até à extremidade da terra (At. 13.47)
(8) De bênçãos de doçuras (Sl. 20,4).
(9) O filho que te nascer será um homem quietíssimo, porque eu o porei em paz enquanto a todos os seus inimigos em roda; e por esta causa será chamado Pacífico (1 Par. 22,9).
(10) Do comedor saiu comida, e do forte saiu doçura (Jz. 14,14).
(11) Eu, teu servo, matei um leão e um urso (1 Rs. 17,36).
(12) Como as plantas das rosas de Jericó (Eclo. 24, 18).
(13) Como as plantas das rosas de Jericó, como uma formosa oliveira nos campos (Ecto. 24, 18 s).
(14) Armada de D. Antônio Oquendo.
(15) Armada de D. Luís de Roxas.
(16) Armada do Conde da Torre.
(17) Ouvindo pois Saul, e todos os israelitas, que o filisteu falava assim, estavam atônitos, e temiam em extremo(1 Rs. 17, 11).
(18) Se ele me tirar a vida, seremos nós vossos escravos; mas se eu o levar debaixo, ficar-nos-eis sujeitos (lbid. 9).
(19) E trazia na cabeça um capacete de bronze, e vinha vestido de uma couraça escameada: o peso, pois, da couraça era perto de cinco mil siclos de cobre, e trazia cobertas as pernas de umas botas de bronze, e um escudo de bronze cobriu os seus ombros. A haste de sua lança era como o órgão de um tear, e o mesmo ferro da sua lança pesava seiscentos siclos de ferro (1 Rs. 17.5ss).
(20) Cingido Davi com a espada sobre os seus vestidos (1 Rs. 17,39).
(21) Não tenho uso disso (Ibid.).
(22) Pegou da sua espada, e acabou de lhe tirar a vida (Ibid. 51).
(23) Eu te matarei, e te cortarei a cabeça (Ibid. 46).
(24) Tu vens a mim com espada, e lança, e escudo; eu, porém, venho a ti em nome do Senhor dos exércitos, do Deus das tropas de Israel (Ibid. 45).
(25) Tirou uma pedra (1 Rs. 17, 49).
(26) Ó Deus, eu te cantarei uma nova canção; com o saltério de dez cordas eu te louvarei. Tu que dás saúde aos reis, que redimiste a teu servo da espada maligna (Sl. 143,9s).
(27) Aquela pedra, com a qual foi morto Golias, era figura de Cristo Senhor.
(28) Tirou uma pedra, e arrojou com a funda, e dando-lhe volta, feriu ao filisteu na testa; e a pedra se encravou na sua testa, e ele caiu com o rosto em terra. Os filisteus, porém, vendo que o mais valente deles era morto, fugiram (1 Rs. 17,49.51).
(29) Virgil.
(30) -Sol, detém-te contra Gabaon, e tu, lua, pára sobre o vale de Ajalon (Jos. 10,12).
(31) E morreram muitos mais pela chuva de pedra que lhes caiu, do que pelos golpes da espada dos filhos de Israel (Ibid. II).
(32) E todo o Judá estava em pé diante do Senhor, com as suas crianças, e mulheres, e filhos (2 Par.
20,13).
(33) E deu este conselho ao povo, e estabeleceu os cantores do Senhor, para o louvarem por suas turmas, e para marcharem diante do exército (Ibid. 21).
(34) Um povo numeroso e possante (Jl.2,2).
(35) Diante da sua face virá um fogo devorante, e atrás dele a chama abrasadora (Ibid. 3).
(36) A terra, que diante dele era um jardim de delícias, depois dele ficará também sendo a solidão de um deserto (1bid.).
(37) Mas o Senhor fez ouvir a sua voz ante a face do seu exército, porque os seus arraiais sao muitos em extremo, porque são fortes e executam as suas ordens; porque o dia do Senhor é grande e sobremanei-ra terrível e quem o poderá sofrer (Jl.2,11)?
(38) Convocai uma assembléia, fazei vir todo o povo, adverti a todos em geral que se purifiquem, ajuntai os velhos, congregai os pequeninos e os meninos de peito; saia o esposo da sua câmara, e a esposa do seu leito. Os sacerdotes, ministros do Senhor, postos entre o vestíbulo e o altar, chorarão e dirão: Perdoa, Senhor, perdoa ao teu povo, e não deixes cair a tua herança em opróbrio, de sorte que as nações os dominem (Jl. 2,15 ss).
(39) Fazei soar a trombeta em Sião (Ibid. 15).
(40) O Senhor zelou a sua terra e perdoou ao seu povo (Jl.2.18)
(41) E eu porei longe de vós aquele que é das partes do aquilão, e lançá-lo-ei (Ibid. 20).
(42) Tu não poderás resistir a este filisteu, porque tu és um menino (1 Rs. 17,33).
(43) Saul matou mil, e Davi dez mil (1 Rs. 21,11).
(44) Como a areia que há na praia do mar (Jz. 7, 12).
(45) Tu tens contigo muito povo; Madiã não será entregue nas suas mãos (Ibid. 2).
(46) Aquele que é medroso e tímido, volte (Ibid. 3).
(47) E dividiu os seus trezentos homens em três batalhões, e deu a cada um sua trombeta e sua quarta vazia, com sua lanterna no meio de cada quarta (Jz. 2,16).
(48) As filhas a viram, e elas a apregoaram pela mais bem-aventurada (Cânt. 6, 8).
(49) Engraçada como Jerusalém, terrível como um exército bem-ordenado posto em campo (Cânt.
6.3).
(50) O que estabeleceu a paz nos teus limites (Sl. 147, 14).
(51) Eu sou um muro, e os meus peitos são como uma torre, desde que me tenho na sua presença tornado bem como uma que acha paz (Cânt. 8,10).
(52) Na Vulgata: - Sicut cinamomum et balsamum aromathizans adorem dedi: Difundi um perfume como o cinamomo e o bálsamo aromático (Eclo. 24,20).
(53) Na edição princeps aspálato não é proparoxítona, mas paroxítona, com acento bem visível todas as vezes que a palavra aparece: aspaláto.
(54) Plinius, lib. 12, cap. 4.
(55) Amatus et Ruelius citati a Cornel.
(56) Que desata o bálteo aos reis (Jó 12,18).
(57) Derramou o seu sangue em tempo de paz, como se fosse na guerra, e tingiu com ele o bálteo que trazia (3 Rs. 2.5).
(58) O teu pescoço é como a torre de Davi: dela estão pendentes mil escudos (Cânt. 4, 4).
(59) E o rei Davi gerou a Salomão (Mt. 1,6).
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Editoração eletrônica:
Verônica Ribas Cúrcio