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Textos para uso geral de domínio público.

Sermão Nossa Senhora do Rosário com o Santíssimo Sacramento

I
Naquele misterioso livro, chamado vulgarmente dos Cantares, descreve Salomão, em alto e metafórico estilo, o corpo místico da Igreja Católica. E, discorrendo particularmente por todos os membros e partes de que se compõe, com louvor da formosura e declaração do ofício de cada um, chega finalmente àquela oficina universal, onde se recebe o alimento, e, convertido em sangue, se reparte por todo o corpo, e diz que o ventre da Igreja é semelhante a um monte de trigo, cercado ou valado de rosas: Venter tuus sicut acervus tritici vallatus liliis. - Este é o próprio e natural sentido do texto que propus, no qual posto que a palavra liliis parece que soa e quer dizer lírios, entendida, porém, como se deve entender na sua original significação, é certo que significa rosas. Assim o prova larga e eruditamente, em tratado particular desta matéria, Túcio Lucense, e se confirma de outros dois lugares do mesmo livro. O primeiro, no capítulo quinto, onde a Esposa santa, descrevendo as feições do seu Esposo, e encarecendo sua gentileza, diz: Labia ejus lilia(2). - E claro está que lhe não havia de louvar o engraçado da boca por ter os beiços brancos como lírios, senão encarnados como rosas, em correspondência do que o mesmo Esposo tinha louvado nos seus: Sicut vitta coccinea labia tua(3). O
segundo lugar ainda é mais expresso no capítulo segundo: Sicut lilium inter spinas(4). -E a flor que nasce entre espinhas, quem pode duvidar que é a rosa, e não o lírio? Assim o comenta no mesmo verso a lição e exposição caldaica, dizendo: Comparata sum rosae, quae inter spinas germinat(5). -
Quanto mais que o nosso mesmo texto o significa bem claramente, porque, havendo de servir estas flores de cercado ou valado ao trigo: Vallatus liliis - mal o podia defender a sebe dos lírios, que são flores inocentes e desarmadas. As rosas, pelo contrário, sim, as quais, como nasceram para rainhas das flores, desde logo lhes deu a natureza os espinhos, como por archeiros e guardas da majestade, por onde disse Boécio: Armat spina rosam(6). - E assim como esta as guarda e defende a elas, podia também cercar e defender o trigo.
Suposta esta propriedade, em que só podia haver alguma dúvida, ninguém duvida que o trigo no ventre da Igreja é o diviníssimo Sacramento do Altar, do qual ela sobrenaturalmente se alimenta, como de pão de vida, e por meio do qual comunica os espíritos vitais e os reparte a todos os membros de seu corpo, que são os fiéis católicos, dos quais tinha dito muito antes o profeta Oséias: Vivent tritico(7). - Nem também se pode duvidar que as rosas que cercam o trigo sejam as do Rosário, pois os mesmos Rosários que trazemos nas mãos fazem um círculo perfeito, e os mistérios de que o Rosário se compõe, outro círculo. Assim o notou o profeta Davi, quando disse: A summo caelo egressio ejus, et occursus ejus usque ad summum ejus(8). - Começa o Rosário no céu, donde saiu o Filho de Deus pelo mistério da Encarnação, e, dando volta por toda a sua vida e morte, torna a acabar no mesmo céu pelo mistério de sua gloriosa Ascensão, fazendo circularmente um novo e maravilhoso zodíaco, de melhores constelações e mais formosas figuras das que visita e alumia o Sol na volta que dá ao mundo. E porque a Virgem, Senhora nossa, foi a autora e inventora deste misterioso círculo -em cujos mistérios todos teve tanta parte - por isso diz e se gloria de ser ela a que com seus passos andou e aperfeiçoou o mesmo círculo: Gyrum caeli circuivi sola(9).
Sendo, pois, o trigo do nosso texto o Santíssimo Sacramento, e as rosas que o cercam o santíssimo Rosário, muita razão terá a devoção de todos os que com tanta piedade se ajuntam aqui nesta hora ao rezar ou cantar a coros; muita razão, digo, terá de querer ouvir e saber que conveniência ou proporção tem o Rosário com o Sacramento, e que utilidades poderão conseguir os que unirem entre si estas duas grandes devoções, a de freqüentar o Sacramento e a de rezar o Rosário. Para eu o poder declarar com o proveito de nossas almas, que desejo e espero, no diviníssimo Sacramento temos a fonte da graça, e na Senhora do Rosário a melhor intercessora. Ave Maria.
II
Venter tuus sicut acervus tritici vallatus liliis (Cânt. 7,2).
Maravilhosa foi a visão que teve em sonhos Faraó, rei do Egito, quando viu aquelas catorze vacas, sete das quais eram fortes, corpulentas e pingues, e as outras sete fracas, secas e macilentas. E o que muito acrescentava a razão da maravilha, e ainda do temor que concebeu o rei, foi que todas pastavam nos mesmos campos e ribeiras do Rio Nilo, e essas não secas, mas verdes: Et pascebantur in ipsa amnis ripa in locis virentibus(10). - O Nilo da Igreja Católica é a graça divina. Esta graça, como o mesmo Nilo, se divide em sete canais, que são os sete sacramentos, por meio dos quais, como por sete bocas, se comunica a nossas almas. O Sacramento, porém, entre as demais que particularmente as sustenta, é o Santíssimo Sacramento do Altar, verdadeiro corpo e verdadeiro sangue de Cristo, que temos presente. E que grande admiração, fiéis, que grande admiração, que grande confusão, e que grande temor nos deve causar olhar para as almas que se sustentam daquele pasto divino, e ver a notável diferença delas? Não falo das que chegassem à Comunhão em consciência de pecado, porque não quero supor tão horrendo e atroz sacrilégio; falo só das almas cristãs - que as outras não merecem este nome - e das que a seu parecer comungam cristãmente. Quantos leigos comungam muitas vezes, quantos sacerdotes celebramos todos os dias, e onde estão aqueles efeitos de Cristo se transformar em nós e nós em Cristo: In me manet, et ego in illo(11)? - Grande bem do mundo seria, e grande glória da Igreja, se de cada catorze almas que chegam ao Sacramento, fossem sete as que se aproveitassem do pasto, e se luzisse nelas; mas todas, pela maior parte, cheias de imperfeições e misérias, todas fracas, todas secas, todas macilentas, e ainda, e como diz o texto, tais que faz asco olhar para elas: Foedae confectaeque macie (12).
Ora, eu buscando a causa desta diferença tão notável, e qual possa ser o defeito ou impedimento porque se não logram, e luzem em nós os efeitos deste soberano manjar, acho que, sem consciência de pecado, a causa não pode ser outra, senão a falta de digestão. Comemos a Cristo no Sacramento, mas não o digerimos. Cristo, Se-nhor nosso, disse que o seu santíssimo corpo no Sacramento é verdadeira comida: Caro mea vere est cibus (Jo. 6,56).- E por quê? Não só porque foi instituído para alimento de nossas almas, senão também porque no modo de as alimentar tem as mesmas propriedades do mantimento corporal; e o mantimento corporal, que se come, e não se digere, por mais substancial e esquisito que seja, não faz nutrição, nem se converte em substância. Lá diz o aforismo vulgar da medicina: Non quod ingeritur, sed quod digeritur: que o que alimenta, nutre, oumenta e dá forças e vigor ao vivente, não é o comer que ele toma na boca e recebe dentro em si, senão o que digere. - No mesmo corpo Santíssimo de Cristo, Senhor nosso, temos o exemplo.
Depois de ressuscitado o Senhor para prova de que era o mesmo, e que verdadeiramente estava vivo, comeu muitas vezes com seus discípulos. Comeu com eles no mesmo dia da Ressurreição, como diz S. Lucas (Lc. 24,43). Comeu com eles na praia do mar de Tiberíades, como diz São João (Jo.
21,9). Comeu com eles outras muitas vezes em Galiléia, de que faz menção São Pedro (At. 10, 41). E, finalmente, comeu com eles no último dia, em que se despediu e subiu ao céu, como se lê nos Atos dos Apóstolos: Et convescens, praecepit eis ab Ierosolymis ne discederent(13). Daqui se infere, ou parece se pode inferir, que Cristo, Senhor nosso, tem hoje no céu mais carne e mais sangue do que tinha quando ressuscitou, e, por conseqüência, que no Santíssimo Sacramento recebemos também mais carne e mais sangue daquele que o Senhor consagrou na Ceia. Assim o ensinou Durando (14), mas falsa, e erroneamente, porque a humanidade sagrada de Cristo nenhuma coisa cresceu nem diminuiu da substância ou quantidade corporal que tinha antes de morrer e depois de ressuscitar, mas sempre con-servou a mesma inteireza perfeitíssima da idade natural a que tinha chegado. Pois, se Cristo depois de ressuscitado comeu, e comeu tantas vezes, e o comer primeiro se converte em sangue, e depois em carne, como não cresceu nem se aumentou a carne e o sangue da sagrada humanidade, nem a substância corporal do mesmo Cristo recebeu nutrimento ou acrescentamento algum? A razão é, como ensina a verdadeira teologia com Santo Tomás (15), por que, ainda que Cristo comia depois de ressuscitado e glorioso, não digeria o que comia. Para haver nutrição é necessário que haja digestão; e para haver digestão e nutrição é necessário que o corpo seja alterável e passível. E como o corpo ressuscitado e glorioso de Cristo era impassível e inalterável, por isso, ainda que comia, não digeria o comer, nem se nutria com ele.
Esta é a razão filosófica e teológica por que Cristo naquele estado comia como se não comera. E o mesmo sucede a nossas almas. Assim como a corpo de Cristo ressuscitado comia os nossos manjares, e não se nutria nem aumentava com eles, porque os não digeria, assim nós comemos o corpo do mesmo Cristo, e não se logram em nossas almas os efeitos de tão soberana comida, porque a não digerimos. Não sem mistério se compara o divino Sacramento no nosso texto a trigo em monte, e não na eira, senão no ventre: Venter tuus sicut acervus tritici. - E qual é o mistério desta que parece impropriedade? O mistério é porque muitas vezes, depois de entrar aquele divino pão no interior de nossas almas, está tão longe de se digerir, como se ainda estivera em trigo. E por isso mesmo está em monte: sicut acervus - porque uma comunhão sobre outra comunhão feitas deste modo, fazem monte, mas não fazem nutrição. A nutrição é aquela que reparte por todas as veias e membros do corpo a substância e virtude do que se come. - E o mesmo faz aquele soberano manjar - diz São Pedro Damião - quando se recebe, não só no peito do corpo, senão no estômago da alma, e nele se digere:
Hae epulae, et mentis nos trae stomachum suaviter replent, et ad praebendas vires per omnium se venarum poror effundunt(16): Este soberano manjar é néctar do céu - diz o santo - não só se recebe com grande suavidade no estômago da alma, mas dali se difunde por todas as veias, e reparte e comunica a todos os membros do nosso corpo a virtude e virtudes do corpo, e membros de Cristo, que, na substância e realidade do que comemos, se encerra. - Nos olhos do que assim comunga aparece logo a modéstia dos olhos de Cristo; na língua, o silêncio, e moderação das palavras de Cristo; no coração, os afetos do coração de Cristo; nos pés, a compostura e madureza dos passos de Cristo; nas mãos a inocência, a mansidão e a caridade das ações de Cristo; e, finalmente, em todo o homem que comeu a Cristo. E qual é a razão, cristãos, por que muitos de nós, depois de comungarmos uma e muitas vezes, se não vêm os mesmos efeitos, senão outros, tão diversos e totalmente contrários? A razão é, como dizia, porque comemos no Sacramento a Cristo, mas não o digerimos: Ingeritur, sed non digeritur.
Suposta, pois, esta falta de digestão, com que a maior providência de Cristo em prover de tão sobrenatural mantimento a República de sua Igreja, por culpa e negligência nossa, se tem feito inútil, ou quase inútil, como o mesmo Senhor se queixava por boca de Davi, quando disse: Quae utilitas in sanguine meo, dum descendo in corruptionem(17)? - E, suposto que pela mesma falta se vêem as nossas almas tão macilentas e desmedradas, e sem aquela nutrição e aumentos de espírito, que lhe prometeu Isaías, quando nos exortava a comer no divino Sacramento toda a substância do sumo bem:
Comedite bonum, et delectabitur in crassitudine anima vestra(18) - haverá quem dê algum remédio eficaz à nossa debilidade e fraqueza, com que suprir esta falta de digestão tão importante? E assim como da parte de Cristo temos sempre pronta o Maná de seu santíssimo corpo para o comer, tenhamos também da nossa parte a força e vigor necessário para o digerir?
Bendito seja, e para sempre bendita, a gloriosíssima Mãe de Deus, que assim como deu a seu Filho a carne e sangue, de que compôs esta soberana iguaria, assim também, compadecida de nossa fraqueza, nos proveu de um remédio tão fácil como eficaz para a inteira e perfeita digestão dela. Esta é, devotos da Virgem Santíssima, a devoção a que tantas vezes vos tenho exortado neste dia seu, esta a que hoje mais particularmente vos venha inculcar em nome da mesma Senhora, e esta, finalmente, a proporção e conveniência admirável que têm entre si o Santíssimo Sacramento e o santíssimo Rosário. Sabeis que faz a devoção do Rosário junta com a comunhão do Sacramento? Faz que se digira em uma tudo o que se come na outra, porque o mesma Cristo, que no Sacramento se come, no Rosário se digere. Isto é o que vos quero provar e persuadir hoje.
III
Digo, pois, primeiramente, que o Sacramento é o Rosário indigesto, e o Rosário é o Sacramento digerido. O Sacramento é o Rosário indigesto, porque no Sacramento estão todos os mistérios da Redenção reduzidas a um só mistério; e o Rosário é o Sacramento digerido, porque no Rosário está o mesmo mistério da Redenção dividido e estendido em quinze mistérios. No Sacramento está o Rosário indigesto, porque o corpo de Cristo, que ali está realmente, está vivo, está morto e está ressuscitado, sem distinção; e no Rosário está o Sacramento digerido, porque enquanto Cristo vivo, está a sua vida distinta em cinco mistérios, que são os gozosos; enquanto morto, está a sua morte distinta em outras cinco mistérios, que são os dolorosos; e enquanto ressuscitado, está a sua ressurreição distinta em outros cinco, que são os gloriosos. E esta é a razão por que o mesmo Sacramento, quando se consagra e oferece a Deus no sacrossanto Sacrifício do Altar, umas vezes se chama mistério e outras mistérios. Mistério, porque indigesto, e sem distinção é um só mistério;
mistérios, porque digesto, e distintamente considerado, é e encerra em si muitos mistérios.
E por que não faça dúvida ou estranheza dizer que no Sacramento está Cristo indigesto, essa é a propriedade e energia maravilhosa com que o nosso mesmo texto chamou ao Sacramento acervo:
Sicut acervus tritici. - Acervo propriíssimamente quer dizer coisa indigesta. E porque esta propriedade consiste na significação natural da palavra, ouçamos a um dos melhores autores da mesma língua, o qual, com entusiasmo poético, não só parece que declarou o mistério do nosso texto, mas sobre o significado dele fez juntamente um panegírico a Maria Santíssima, enquanto autora e inventora do Rosário. Os versos são estes:
Non digesta pati, nec acervo condita rerum, Sed manifesta notis certa disponere sede Singula, divini est animi(19).
Quer dizer: não consentir que as coisas grandes estejam indigestas, nem escondidas ou amontoadas na confusão de um acervo, mas descobri-las e manifestá-las com diferença e distinção de nomes, e pôr cada uma delas em seu próprio lugar, tal obra como esta é de ânimo verdadeiramente divino. -
Duas particularidades notáveis contém esta judiciosa sentença. A primeira, que as coisas postas em acervo estão indigestas: Non digesta pati, nec acervo condita rerum. - E por isso eu digo que Cristo no Sacra-mento está indigesto, porque os mistérios da sua vida, morte e ressurreição, que ali se contêm, não estão repartidos e digestos, senão juntos indistintamente, e acumulados, como diz o texto, em um acervo: Sicut acervus tritici.
A segunda particularidade é que distinguir e repartir esse mesmo acervo, e digerir essas coisas indigestas, e pôr cada uma em seu próprio lugar, com notas ou nomes certos que as demonstrem, é obra de ânimo divino: Sed manifesta notis certa disponeresede singula, divini est animi. - E isto é o que fez a Virgem, Senhora nossa, na maravilhosa arquitetura do seu Rosário, dispondo e ordenando os mistérios da mesma vida, morte e ressurreição de seu Filho, e distinguindo a diferença deles com as notas e nomes diversos de gozosos, dolorosos e gloriosos, e pondo uns no primeiro, outros no segundo, outros no terceiro lugar, assim como sucederam e se foram continuando, e todos em número e correspondência igual, para maior harmonia de toda a fábrica.
Agora vede como digerir deste modo o indigesto é obra verdadeiramente de ânimo divino: Divini est animi. - A primeira obra da divindade, ou a primeira obra divina em que Deus mostrou sua sabedoria e onipotência foi a criação do universo (20). E como criou Deus este mundo? Primeiro o criou todo, mas indigesto, e depois o digeriu e foi distinguindo por partes, até que ficou consumado e perfeito. Primeiro o criou todo e indigesto, porque primeiro criou de nada aquela matéria universal, de que depois foram eduzidas e geradas entre o céu e a terra todas as criaturas corpóreas, a qual matéria, bem que de algum modo já informada, porque ainda estava confusa e indistinta, mais por fama que por fé, chamaram os antigos rude e indigesta: Rudisindigestaque moles(21). - E depois digeriu Deus este mesmo todo, porque, dividido em várias partes, e ordenada e ornada cada uma delas com o lugar e perfeição, que naturalmente lhe convinha, então ficou o mesmo universo, não só tão formoso e admirável como o vemos, mas tão útil e necessário à conservação do gênero humano, como experimentamos e gozamos. A mes-ma luz criada desde seu princípio em um globo informe e indigesto, também a digeriu Deus depois, repartida em Sol, Lua e estrelas; e a mesma vida, que com nome de espírito se movia escuramente sobre os abismos, também a digeriu em três vidas, vegetativa nas plantas, sensitiva nos animais, racional no homem. E, posto que nesta vida e nesta luz, primeira indigesta e depois digerida, em três partes se nos oferecia uma boa e duplicada semelhança para o que dizíamos de Cristo no Sacramento, que é o pão de vida e a luz dos homens: In ipso vita erat, et vita erat lux hominum(22) - para mostrar a divindade desta obra, ou o divino do ânimo de Maria - divini est animi - ainda havemos de subir mais alto.
São Zeno Veronense(23) falando de Deus, não fora de si, como criador, mas dentro de si mesmo, como incriado, disse uma proposição singular e muito notável, cuja inteligência tem fatigado variamente os doutores modernos, e, posto que estes lhe te-nham dado muitos sentidos, ainda se deseja o próprio e verdadeiro. A proposição é esta: Hic est Deus noster, qui se digessit in Deum(24):
Este é o nosso Deus, o qual se digeriu em Deus. - Se Deus se digeriu a si mesmo, e digeriu em Deus, logo havemos de supor e considerar a Deus já indigesto, já digesto: indigesto antes de se digerir, e digesto depois que se digeriu. Mas que digestão e indigestão é ou pode ser esta, que caiba e se ache em Deus, e em Deus, não fora da sua divindade, senão dentro, nem em tempo, senão ab aeterno? Eu acho que o santo padre na proposição falou como tão teólogo, na frase como tão eloqüente, e na metáfora, como quem nos quis declarar com ela o que expressamente ensina a fé, e o entendimento não alcança, senão escuramente. Não cremos todos que Deus é trino e uno? Sim. Pois enquanto uno está Deus indigesto, e enquanto trino, digesto. Enquanto uno está indigesto, porque com ser Deus uma essência imensa e infinita, é um ato puríssimo e simplicíssimo, sem divisão ou distinção alguma; e enquanto trino está digesto, porque esse mesmo ato puríssimo e simplicíssimo, sem perder nada da sua unidade, se distingue realmente em três pessoas, tão opostas entre si que nem a primeira é a segunda, nem a segunda é a terceira, nem a terceira é a primeira ou a segunda. E quando fez Deus de si e em si mesmo esta digestão, ou como a fez? Quando ab aeterno, e sem princípio nem antecedência, o Padre gerou o Filho, e o Padre e o Filho produziram o Espírito Santo; e, multiplicado Deus por este modo inefável em três pessoas distintas, o mesmo Deus, que estava indigesto e indistinto na unidade divina, ficou digesto e distinto na multiplicação da Trindade.
Nesta forma se verifica metaforicamente, mas com excelente propriedade, que Deus se digeriu em Deus: Deus noster se digessit in Deum - porque se digessit in Deum Patrem, se digessit in Deum Filium, se digessit in Deum Spiritum Sanctum. - E se Deus se digeriu a si mesmo, distinguindo a sua divindade, e multiplicando a sua unidade em três pessoas por que não faria a Mãe de Deus outra obra semelhante em Cristo sacramentado, digerindo os mistérios de sua humanidade, na ardem e divisão de outras três partes distintas? Santo Ambrósio, comentando o nosso texto, diz que o trigo e as rosas ambas foram partos da Virgem Santíssima: In Virginis utero simul acervus tritici et lilii floris gratia germinabat, quoniam et granum tritici generabat et lilium(25). - Ao trigo deu a Senhora, como Mãe, a matéria, e às rosas, também como Mãe, a forma. Ao trigo deu a matéria, porque deu a Cristo a carne e sangue de que instituiu o Sacramento; e às rosas deu a forma, porque dos mistérios da vida, morte e ressurreição do mesmo Cristo formou e distinguiu o Rosário. Isso quer dizer vallatus liliis - porque os valos não só se fizeram para cercar, senão também para dividir e distinguir. Formou a Senhora um valo de rosas entre os mistérios gozosos e dolorosos, formou outro valo entre os dolorosos e gloriosos, e distintos e divididos assim, ficaram de tal modo digestos, que nós também os pudéssemos digerir nesta unidade e trindade humana, assim como se experimentou na divina.
Deus não só se digeriu ab aeterno, senão também em tempo, segundo a menor ou maior distinção e clareza, com que se deu a conhecer aos homens. Na lei velha só revelou Deus expressamente ao povo de Israel a sua unidade, segundo aquele texto do Deuteronômio: Audi, Israel, Dominus Deus noster Dominus unus est(26). - E diga ao povo; porque Abrão, Moisés, Davi, e os outros patriarcas e profetas também tiveram conhecimento e fé explícita do mistério da Trindade, porque conheceram a Encarnação do Filho de Deus por obra do Espírito Santo, a qual se não podia conhecer sem se conhecerem também as três divinas pessoas. Porém, na lei da graça e ao povo cristão de tal maneira lhe revelou Deus o mesmo mistério da Trindade, e com tal clareza e distinção, que esse é o primeiro princípio de nossa fé, tão comum e vulgar a todos, que desde o batismo, em que começamos a ser cristãos, o confessamos: Baptizantes eos in nomine Patris, et Flii, et Spiritus Sancti(27). - Suposta esta diferença, caso é digno de grande admiração e reparo, que o povo de Israel, enquanto durou aquela lei, nunca jamais se aquietasse, nem estivesse firme na fé da unidade de Deus, idolatrando sempre, e crendo em muitos deuses, e que o povo cristão, pelo contrário, sem retroceder nem vacilar, esteja firmíssimo na fé da unidade e Trindade do mesmo Deus, crendo juntamente que em Deus há três pessoas, cada uma delas Deus, e que esse Deus é um só, e não três deuses. Conhecer que Deus é um só é coisa tão clara, que até os filósofos gentios o alcançaram e demonstraram; pelo contrário, crer que o mesmo Deus, sendo um em essência, seja juntamente trino em pessoas, é coisa tão superior a todo o entendimento criado que, ainda que haja razões para persuadir que não repugna, nenhuma há, nem pode haver; que convença, nem demonstre, que assim é, nem como é. Pois, se o povo cristão crê tão pronta e constantemente - o que é tão sobrenatural e dificultoso, como o povo hebreu não cria nem se quietava com o que era tão natural e tão fácil? A razão interior desta diferença, sendo uns e outros homens racionais, e uns e outros com lume de fé, ninguém haverá que a dê cabalmente, porque é reservada só a Deus; mas o que a nós nos ensina e demonstra a evidência experimental, é que enquanto Deus se deu indigesto, não o puderam digerir os homens; porém, depois que se deu digesto, logo o digeriram. Já vimos que Deus enquanto uno era indigesto, e enquanto trino digesto. E enquanto Deus se deu assim indigesto àquele povo, era tão dificultoso de digerir; que mais facilmente digeriam paus, e pedras, quais eram os deuses por que deixavam ao verdadeiro Deus. Porém, depois que se deu digesto, nas três pessoas da Santíssima Trindade, de tal maneira o abraçam e digerem, e convertem na própria substância as almas cristãs, que antes perderão mil vezes a vida que duvidar da verdade deste altíssimo mistério, quanto mais negá-lo.
Na fé do divino Sacramento, por mercê de Deus, nenhum de nós duvida; mas quanto aos efeitos da nutrição espiritual, para que foi instituído, a mesma diferença que se experimentou em Deus se experimenta igualmente em Cristo, ou indigesto ou digerido. Ouvi uma sentença de São Jerônimo, milagrosa a este intento. Naquele famoso milagre dos cinco pães fez Cristo, Senhor nosso, um como ensaio do que depois havia de fazer na consagração de seu corpo: do primeiro diz São Mateus:
Benedixit, et fregit, et dedit discipulis panes(28). E do segundo, o mesmo São Mateus: Accepit panem, et benedixit, acfregit, deditque discipulis(29). – Que o Senhor no primeiro caso partisse o pão, assim era necessário, porque partido se havia de multiplicar e repartir à multidão de tanta gente; mas Cristo no Sacramento não se parte: Non confractus, non divisus,integer accipitur(30) pois por que partiu aqui o Senhor o que já não era pão, assim como lá partiu o pão? Porque, ainda que Cristo no Sacramento se não parte, para nós o havermos de digerir, e ele nos haver de alimentar, convém e é necessário que, do modo que pode ser, o dividamos em parte, e, sendo um só mistério, o repartamos em muitos mistérios. Esquisitamente São Jerônimo: In frusta discerpitur, et ejus in medium mysteria proferuntur, ut quod integrum non alebat, divisum in partes alat(31). - Quando Cristo partiu o pão consagrado não se partiu a si mesmo, porque se não parte nem pode partir no Sacramento; mas o que partiu e dividiu em várias partes foram os mistérios que naquele mistério estão ocultos e encerrados, querendo que saíssem à luz, e nos fossem manifestos: In frusta discerpitur, et mysteria in medium proferuntur. - E isto a que fim, ou para quê? Aqui está o milagroso do pensamento: Ut quod integrum non alebat, divisum in partes alat: Para que o mesmo Cristo, que inteiro e indigesto não alimentava, partido e digesto nos mesmos mistérios, alimente e faça a nutrição para que foi instituído. - Não dissera mais nem melhor o doutor máximo, se já em seu tempo houvera o Rosário e falara dele. E isto foi o que finalmente fez a Virgem Santíssima, manifestando o que estava oculto, dividindo o que estava inteiro, e digerindo o que estava indigesto em Cristo Sacramentado, e distinguindo com as rosas do seu Rosário o trigo que estava em monte no Sacramento: Sicut acervus tritici vallatus liliis.
IV
Temos visto em comum como o Sacramento é o Rosário indigesto, e o Rosário o Sacramento digerido , e que assim como por meio do Sacramento comemos a Cristo, por meio do Rosário o digerimos. Resta agora ver como se faz esta soberana digestão, e como nós havemos de ajuntar o Rosário ao Sacramento, para que por meio dela recebam nossas almas a nutrição e aumento espiritual, para que o mesmo Sacramento e o mesmo Rosário foram instituídos. Coisa notável, e não assaz ponderada, é que entendendo-se o nosso texto de Cristo sacramentado- como além do já alegado S.
Ambrósio, Santo Ildefonso, Ricardo, Honório, Guilhelmo, Alano, e outros, sentem hoje comumente todos os expositores modernos - coisa muito notável é, digo, que o mesmo Sacramento neste lugar se compare a trigo, e não a pão: Sicut acervus tritici. - Cristo, Senhor nosso, consagrou seu corpo debaixo de espécies de pão, e por isso lhe chama pão em muitos lugares do Evangelho; pois, por que razão no nosso texto, em que se nos representa cercado de rosas, se não compara também a pão, senão a trigo? Porque, assim como o trigo, antes de chegar a ser pão, depende de muitas diligências, que se hão de obrar e fazer nele, porque se há de moer, amassar, e cozer, assim, para que as nossas almas recebam do divino Sacramento aquela perfeita nutrição e aumento de virtudes, que o mesmo Senhor deseja, e de que elas estão tão faltas, como vimos, e por isso fracas e macilentas, não basta só que Cristo tenha feito para nós este soberano alimento, mas é necessário também que nós o façamos. Não vos admire a proposição, porque é certa, e dela ficareis entendendo um lugar dificultoso do Evangelho, que pode ser não tenhais entendido nem ouvido.
No capítulo sexto de São João, tratando Cristo, Senhor nosso, largamente do novo e nunca imaginado manjar que havia de compor de seu corpo e sangue, para sustento de nossas almas, exortando-nos ao caso que dele havíamos de fazer, diz assim: Operamini non cibum, qui perit, sed qui permanet in vitam aeternam, quem Filius hominis dabit vobis(32). Todos andais ocupados em buscar e fazer de comer para esta vida que se acaba; o que vos aconselho é que façais o comer que eu vos hei de dar, o qual permanece por toda a vida eterna. Este comer, que permanece por toda a vida eterna, que Cristo ainda não tinha dado, mas havia de dar, é o Santíssimo Sacramento de que falava, e assim o entendem todos os padres (33). Pois, se este comer era o Santíssimo Sacramento, e Cristo é o que o fez, como diz que o façamos nós? Operamini cibum quemFilius hominis dabit vobis? - A razão já está dada, e é a que eu dizia. Porque, ainda que Cristo é o que fez este novo gênero de comer, que é sustento da vida eterna, e da sua parte já está feito, para as nossas almas se nutrirem e aumentarem com ele, quanto hão mister, é necessário da nossa parte que também nós o façamos. Da parte de Cristo já está feito o que a Teologia chama ex opere operato; mas da nossa parte é necessário que nós também façamos, o que é e se chama ex opere operantis: Operamini cibum, qui non perit, sed permanet in vitam aeternam, quem Filius hominis dabit vobis. - Assim como o comer corporal, por mais feito e bem preparado que esteja, não basta que o homem o coma, se as potências interiores do mesmo homem, que são os instrumentos da nutrição, não obrarem, da mesma maneira, para as nossas almas se nutrirem e cobrarem forças, não basta que comunguem a Cristo no Sacramento, se os mesmos mistérios, que o Senhor tem obrado, elas os não tornarem a obrar com todas suas potências.
E isto é o que se faz no Rosário.
Aristóteles e Galeno, descrevendo a fábrica da nutrição, para a qual formou a natureza várias oficinas e instrumentos, reduzem toda a operação deles a três potências principais, uma que recebendo retém, outra que alterando assemelha, outra que unindo converte. E tudo isto abro o Rosário por meio das três potências de nossa alma nos mistérios da vida, morte e paixão de Cristo, de que ele se compõe, e não só em todos, senão em cada um. Com a potência da memória recebe e retém o mistério por meio da apreensão; com a potência do entendimento altera-o e assemelha-o a si - ou a si a ele -por meio da meditação; e com a potência da vontade converteu e uniu em si mesma por meio da imitação.
Parecer-vos-á porventura novo modo este de rezar o Rosário, e não é novo, nem modo, senão a verdadeira substância dele, e o fim para que a Virgem, Senhora nossa, o ordenou e instituiu. Não instituiu a Senhora o Rosário para o rezarmos só com a boca, e com tanta pressa como se passam as contas, mas para ter na memória os mistérios, para os meditar e cuidar neles com grande consideração, e para os tomar por exemplo, e os aplicarmos a nossas vidas.
Quanto à memória, esta foi a primeira que Cristo, Senhor nosso, nos encomendou quando instituiu o Santíssimo Sacramento: Haec quotiescumque feceritis, in mei memoriam facietis. - Não referem estas palavras os evangelistas, mas recebeu-as a Igreja, que as põe no cânon da Missa, por tradição dos apóstolos que se acharam presentes; e São Paulo, que não esteve presente, as escreveu depois, por revelação do mesmo Cristo: Hoc facite in meam commemorationem(34).- E por que fez menção o Senhor somente da memória? Porventura porque excluiu as outras duas potências? Não, mas porque a memória é aquela em que se faz a primeira decocção deste soberano manjar. Já São Pedro Damião nos disse que ele se recebe com grande suavidade no estômago da nossa alma: Hae epulae mentis nostrae stomachum suaviter replent(35). - E qual é o estômago da alma? Santo Agostinho, excelente filósofo da memória, no-lo ensinou, e já antes dele o tinha definido Platão: Memoria est animae ventriculus: - O estômago da alma é a memória- porque assim como no estômago do corpo se recebe e retém o comer corporal, e ali se faz a primeira decocção, assim esta potência é a primeira que há de receber e recolher dentro em si o divino Sacramento, lembrando-se, não de passagem, senão muito devagar - como se faz no corpo - e representando à alma quem é o que está presente naquele mistério, e os mistérios altíssimos que nele se encerram. E porque os acidentes sacramentais nos encobrem e ausentam dos olhos a presença de Cristo, a memória, cuja propriedade é fazer presentes as coisas ausentes, no-lo há de fazer presente.
Por que cuidais que disse Cristo, Senhor nosso, que ele está em quem o come, e quem o come está nele: Qui manducat meamcarnem, et bibit meum sanguinem, in me manet, et ego in illo(36)? São Bernardino com singular pensamento, diz que não só significou o Senhor nestas palavras o efeito da graça que nos comunica no Sacramento, senão o da memória que nos pedia nele, porque o efeito da memória é levar-nos aos ausentes, para que estejamos com eles, e trazê-los a eles a nós, para que estejam conosco. Lembrai-vos do amigo ausente, que está em Portugal, e no mesmo ponto vós estais lá com ele, e ele está cá convosco, porque lá vos levou a memória, e cá o tendes no pensamento. O
mesmo faz a memória no divino Sacramento, e em todos seus mistérios. - Debemus Christum spiritualiter manducare - diz o santo - incarnationem videlicet, conversationem, et ejus salutiferam passionem devote ruminando, sicut ipse nos docuit, dicens: Qui manducat meam carnem, in me manet, et ego in illo(37). - De sorte que, estando nós em Cristo, e Cristo em nós por memória, em todos os mistérios de sua Encarnação, Vida, Morte e Ressurreição, estamos presentes com ele.
Se vos lembrais do mistério da Encarnação estais com Cristo em Nazaré; se do mistério da Visitação, estais com Cristo nas montanhas de Judéia; se do mistério do Nascimento, estais com Cristo no presépio de Belém; se do mistério da Apresentação, estais com Cristo no Templo de Jerusalém; se do mistério do mesmo Senhor Menino perdido e achado, estais com Cristo outra vez no mesmo Templo. Passando dos mistérios gozosos aos dolorosos, se vos lembrais de Cristo orando e suando sangue, estais com ele no Horto de Getsêmani; se de Cristo atado a uma coluna, e afrontado com açoites, estais com ele no Pretório de Pilatos; se de Cristo vestido por escárnio de púrpura e coroado de espinhos, estais com ele em outra parte do mesmo Pretório; se de Cristo com a cruz às costas, estais com ele nas ruas de Jerusalém; se de Cristo crucificado e morto, estais com ele no Calvário. Finalmente, chegando aos mistérios gloriosos, se vos lembrais de sua gloriosa Ressurreição, estais com Cristo à porta do sepulcro, no caminho de Emaús e no cenáculo dos apóstolos; se de sua admirável Ascensão, estais com Cristo no Monte Olivete, e sobre as nuvens; se da vinda do Espírito Santo, com enchente de dons e graças, estais com Cristo à destra do Padre; se da Assunção de sua Santíssima Mãe, estais com Cristo acompanhando seu triunfo na entrada do céu; e se de sua Coroação e Exaltação, que é o último mistério, estais com Cristo coroando-a por Rainha dos Anjos na glória, e por Senhora e advogada nossa neste desterro.
Isto é o que obra a memória só com a simples apreensão dos mistérios. E o entendimento, que faz?
Olha para eles com grande consideração meditando-os, e por meio desta vista considerada e atenta se assemelha ao que vê, que é o efeito da segunda decocção. Assim o diz e ensina S. Dionísio Areopagita: Aperiet enim, si communionem ejus cupimus, in vitam ejus, quam incarne vixit, intueri, et similitudine sanctitatis ad habitum divinae virtutis recurrere(38). Notai a palavra intueri e a palavra similitudine, porque da vista com que o entendimento na comunhão medita os mistérios de Cristo, nasce a semelhança com que, alterando-se a alma, isto é, mudando-se em outra, os retrata em si, e se assemelha a eles. No céu, diz São João que havemos de ser semelhantes a Deus, porque o havemos de ver assim como é: Similes ei erimus, quoniam videbimus eum sicut est (Jo. 3,2). - De sorte que Deus visto no céu é como um espelho às avessas, porque não é ele o que se há de fazer semelhante a nós, senão nós os que havemos de ser semelhantes a ele. E isto que então há de ser, por meio da visão beatífica e vista clara de Deus, isso mesmo é o que agora fazemos por meio da meditação e vista escura do Sacramento. Oh! se víramos e consideráramos atentamente o que debaixo daquele divino Pão se encerra, quão aumentadas e bem-nutridas haviam de andar as nossas almas, que hoje se vêem tão desmedradas e desfalecidas!
Comemos com os olhos do entendimento e da consideração fechados, e por isso se não luz nem logra o que comemos. Ouvi a Salomão: Aperi oculus tuos, et saturare panibus (Prov. 20,13): Abri os olhos, e comei de tal modo o pão, que fiqueis abastado e satisfeito. - E que pão é este que não farta, nem satisfaz, nem se logra se se não come com os olhos abertos? Daqui infere São Jerônimo que este pão é o do Santíssimo Sacramento, e não o pão comum de que nos sustentamos: Nequeenim credendum est quod praecipitur vescentibus, ut ad comedendum hunc panen, quo corpora nutriuntur, oculos aperire debeant. - Mas por esta mesma razão parece que nos havia de mandar Deus que fechássemos os olhos, e não que os abríssemos, porque o Sacramento do Altar é por antonomásia o mistério da fé, e a fé há de ser cega, e crer a olhos fechados. Assim é. Mas por isso mesmo nos manda Deus que abramos os olhos, porque se não há de contentar o nosso entendimento só com crer o que não vê naquele mistério com os olhos fechados, mas com ver e considerar quito atentamente os mistérios que nele se encerram, com os olhos abertos: Oportet namque - diz Eutímio - non simpliciter eo intueri, sed aliud quidpiam imaginari, et interioribos oculis ea aspicere tanquam mysteria.
Assim vê com os olhos interiores a alma, e assim contempla e considera os profundíssimos mistérios da Vida, Morte, e Ressurreição de Cristo, que naquele compêndio de maravilhas, não tanta da onipotência, quanto da bondade divina estão pelo Sacramento ocultos, e pelo Rosário manifestos.
E que alma haverá tão esquecida de seu aproveitamento espiritual, que, vendo naquele divino espelho umas imagens tão diferentes da sua, não estranhe e aborreça a sua fealdade, e se procure assemelhar a elas: Vitam, quam in carne vixit, intueri, et similitudine ad habitum divinae virtutis recurrere(39)?
Que alma haverá tão enferma ou queixosa da fragilidade da carne, que, à vista do mistério da Encarnação, não conheça que se quiser, a pode fazer divina? Que alma tão envelhecida no pecado que, vendo a Cristo ir santificar ao Batista, e livrá-lo antes de nascer de um pecado que não leva ao inferno, se não queira emendar dos seus para o resto da vida, que não sabe quanto há de durar? Que alma tão cobiçosa dos bens deste mundo que, à vista do Criador dele na pobreza de um presépio, se não contente com a sua fortuna, ainda que lhe pareça escassa? Que alma tão indevota e pouco inclinada à Igreja e culto divino, que vendo a Cristo menino de quarenta dias presentado, e oferecido a Deus no Templo, se não venha presentar e oferecer diante de seus altares muito freqüentemente? Que alma tão negligente em ouvir a palavra de Deus que, vendo a Sabedoria eterna, não só ouvindo aos doutores, mas perguntando-lhes como se não soubera, se não queira achar no lugar da doutrina onde o mesmo Senhor foi achado? Que direi dos mistérios dolorosos? Que alma haverá tão pegada à própria vontade que, vendo ao Filho Unigênito do Padre dizer-lhe uma e três vezes entre suores de sangue:
Não se faça a minha vontade, senão a vossa - não sacrifique ao mesmo Padre e ao mesmo Filho a sua?
Que alma tão escrupulosa nas matérias de honra que, venda ao supremo Monarca do Universo atado a uma coluna, e publicamente açoitado, não tenha pejo de tomar na boca a nome de afronta? Que alma tão vã e altiva de pensamentos que, vendo aquela sacrossanta e tremenda cabeça que gover-na com um aceno o céu e a terra, trespassada de espinhos, se atreva ainda a ser presumida?
Que alma tão imortificada, e inimiga de padecer que, vendo a seu Redentor com uma cruz às costas para o salvar, e ajoelhado com o peso dela, recuse fazer alguma penitência por sua salvação? Que alma tão livre em suas ações ou tão dissoluta em suas liberdades que, vendo ao todo-poderoso com os pés e mãos pregados em um madeiro por seu amor, se não deixe prender do mesmo amor, e se ate ao cravo de seus pés para nunca mais se soltar? E se tais efeitos produz a consideração dos mistérios dolorosos, que naturalmente causam horror, que fará a formosura e agrado dos gloriosos? Que alma haverá tão enganada dos feitiços desta vida mortal, cheia de tantas misérias, que à vista de um Cristo ressuscitado e glorioso não aspire à imortal? Que alma tão pesada e abraçada com a terra que, à vista do mesmo Senhor subindo ao céu, não queira também voar e subir com ele? Que alma tão fria no espírito e tão esquecida de que é alma que, à vista do fogo do Espírito Santo em chamas vivas, se não acenda em desejo de seus divinos dons, e de crescer em sua graça? Que alma, enfim, tão pusilânime e pouco generosa que, à vista do triunfo da Mãe de Deus no dia de sua gloriosíssima Assunção, e da suprema coroa que recebeu à mão direita de seu Filho, em prêmio dos trabalhos com que o serviu e acompanhou nesta vida, se não aliste na família da mesma Senhora, ao menos com o foro de escravo, debaixo de uma obrigação tão leve como a de rezar o seu Rosário para ser participante das mesmas glórias.
Desta maneira se assemelha a alma ao manjar que come, com a meditação atenta de seus mistérios, e, estando já semelhante pela operação do entendimento, entra a terceira e última, que é a da vontade, na qual se aperfeiçoa e consuma a nutrição, unindo-se o que comunga e medita ao mesmo Cristo comido e meditado, e incorporando-se nele. Diga-nos isto compendiosamente São Bernardino de Sena, porque do que fica declarado na primeira e segunda decocção, se entende sem nova repetição esta última: Ex tali recogitatione consurgit incorporatio, dum cogitans amorem Christi reficitur cui ex charitate conjungitur, eique magis ac magis assimilatur et incorporatur. -Não podia concluir o santo, nem com mais propriedade, nem com maior clareza o que digo. - Com a meditação do entendimento cresce - diz ele - o amor na vontade - conforme o texto de Davi - Concaluit cor meum intra me, et in meditatione mea exardescet ignis(40) - e com este calor sobrenatural, que é o instrumento imediato de todas as três digestões, se une o que comunga por caridade a Cristo, e quanto mais se assemelha pelo entendimento a ele tanto mais se incorpora pela vontade com ele: Eique magis ac magis assimilatur et incorporatur.
E se me disserdes que comungais e não experimentais estes efeitos, essa é a última confirmação de tudo o que tenho dito, e da razão que tive para pregar, mais que nenhuma outra, esta matéria. E por que não creiais a experiência das vossas tibiezas, ouvi a de São Bernardo não rara, e só de alguma vez ou muitas vezes, senão de todas os dias: Quotiescumque ad hoc Sacramentum accedo, decoquor cum immutor, digeror cum transformor, unior cum conformor (41): Todas as vezes que chego ao Santíssimo Sacramento - diz o devotíssimo Bernardo - ali me mudo, ali me assemelho, ali me transformo. E por que modo se mudava, por que modo se assemelhava, por que modo se transformava aquela alma pura? Por digestão, por concocção e por união; que são as três operações com que se aperfeiçoa a nutrição da alma, como a do corpo: por digestão: digeror; por concocção: decoquor; por união, unior. E para que ninguém duvide que tudo se consegue pela virtude do Rosário e meditação dele, tudo isto disse São Bernardo, começando aquele lugar dos Cantares, em que se diz que o Senhor sacramentado se apascenta entre rosas: Qui pascitur inter lilia(42) que é o mesmo sentido do nosso texto: Sicut acervus tritici vallatus liliis(43).
V
Tenho-vos mostrado, devotos do santíssimo Rosário, a harmonia que ele tem como Santíssimo Sacramento, diante de cujo Sacramento e da imagem da Senhora o cantais aqui, ou rezais a coros todos os dias nesta hora. O que, por conclusão, vos peço em nome do mesmo Cristo sacramentado e da mesma Virgem do Rosário, é que, para conseguir os efeitos daquele divino Manjar, vos não contenteis só com as vozes do que rezais, senão com uma meditação mui atenta de seus soberanos mistérios. As reses que Deus escolheu para os antigos sacrifícios, em que se representava o de seu corpo e sangue, eram somente aquelas que, depois de comer, tornam a ruminar ou remoer aquilo mesmo que comeram. E que nos quis Deus significar nesta escolha e separação de animais, excluindo todos os outros? São Cipriano: De coena Domini celebrantes sacramenta, commonemur, quasi ruminas pecus, revocare ad fauces quae sumpsimus(44). Quis-nos Deus ensinar e admoestar com esta cerimônia - diz São Cipriano, e o mesmo diz São Gregório - que todos aqueles que participam da ceia do Senhor, que é o Santíssimo Sacramento, hão de ser como os animais escolhidos para o sacrifício, e que assim como estes, depois de comer, tornam a remoer muito devagar o que comeram, assim nós, depois de comungar, havemos de meditar e considerar com muita atenção de quem é aquele corpo e sangue, e quais são os mistérios de nossa redenção, que com ele e por ele foram obrados. Assim o tinha profetizado, já no tempo dos mesmos sacrifícios, o profeta Oséias: Super triticum et vinum ruminabunt(45): Hão-se de pôr a ruminar sobre o pão e sobre o vinho: sobre o pão, que é o corpo de Cristo consagrado debaixo de espécies de pão, e sobre a vinho, que é a Sangue do mesmo Cristo consagrado debaixo de espécies de vinho; e não só diz que o hão de comer, senão que, sobre comido, o hão de ruminar: Super triticum et vinum ruminabunt.
Dirá, porém, algum crítico que parece não falou o profeta com propriedade, porque Cristo, Senhor nosso, falando deste pão e deste vinho sacramentado, disse: Qui manducat meam carnem, et bibit meum sanguinem: Quem come a minha carne, e bebe o meu sangue - e o que se rumina é o que se come, e não o que se bebe. Mas nesta mesma, que parece impropriedade, declarou o profeta admiravelmente qual era o pão de que falava, que é o corpo de Cristo, e qual o vinho, que é o seu preciosíssimo sangue, derramado por nosso amor e por nosso remédio, e por isso digníssimo de ser ruminado e considerado com profundíssima atenção. Olhai quão expressamente o disse a alma santa, ajuntando o mesmo ruminar com o mesmo vinho: Guttur tuum sicut vinum optimum, dignum dilecto meo ad potandum, labiisque et dentibus illius ad ruminandum(46). -Para que se veja que o vinho, de que falava o profeta, é o vinho que se bebe e se rumina: Ad potandum et ruminandum. - E, declarando Alberto Magno que vinho é este que se há de ruminar, e qual é o modo com que se há de ruminar, diz assim: Quia diu per cordis et mentis interationem debet ruminari, Sacramentum saepe ad mentem revocando et considerando: De sorte que o vinho que se há de ruminar é o sangue de Cristo, e o modo com que se há de ruminar é meditando e considerando, não de passagem e de corrida, senão muito devagar e com grande atenção, os mistérios do mesmo sangue, preço de nossa redenção, que são todos os do Rosário, porque na Encarnação tomou o Filho de Deus a nossa carne, e sangue, na Paixão padeceu na carne e derramou o sangue, e na Ressurreição tornou a unir o sangue à carne, que é tudo o que contém no Sacramento o corpo e sangue de Cristo, e tudo o que nós do Rosário digesta e distintamente consideramos.
E se me perguntardes quando se há de fazer esta meditação, e qual é o tempo em que se hão de ruminar estes mistérios - que é ponto muito essencial nesta matéria –não faltará porventura quem cuide que o tempo é somente quando acabamos de receber o Cristo no Sacramento, e assim parece que o quis dizer São Cipriano: Quasi ruminans pecus, revocare ad fauces quae sumpsimus. - Mas eu digo que há de ser depois de comungar, e antes de comungar, e sempre, e todos os dias. Não deixamos dito e provado que o mesmo Cristo que se come no Sacramento se digere no Rosário? Pois, assim como o Rosário se reza todos os dias, assim o Sacramento se digere todos as dias, e se há de ruminar todos os dias. O primeiro que comungou o Sacramento foi o mesmo Cristo quando o instituiu na ceia.
Que ruminasse o Senhor seu próprio corpo sacramen-tado não há dúvida, porque aquela comunhão foi a mais perfeita, e o exemplar das nossas; mas parece que o ruminou pouco tempo, porque depois de comungar teve poucas horas de vida. Assim o imaginava também eu, quando São Paulino, contemporâneo do mesmo São Cipriano, me ensinou o que ultimamente vos disse, com estas admiráveis palavras: Salvator noster simul hanc nobis escam et ruminavit docens, et prompsit impertiens(47): Cristo, Salvador nosso - diz o santo - deu-nos o Sacramento na hora em que o instituiu, mas ruminou o mesmo Sacramento em todo o tempo que nos ensinou.
O tempo em que Cristo nos ensinou foram os últimos três anos de sua vida; a hora em que instituiu o Sacramento, foi pouco antes da sua morte; e aquele mesmo Sacramento, que instituiu e comungou uma só vez, e em uma só hora, esse andou ruminando três anos inteiros, em que nos ensinou os mistérios que nele estão encerrados: Nobis et ruminavit docens, et prompsit impertiens. - Quantas vezes ensinou Cristo o mistério de sua Encarnação, quantas o de sua Paixão, quantas o de sua Ressurreição -que são os mesmos do Rosário - e tudo isto antes do Sacramento? Depois de instituir o Sacramento e se comungar a si mesmo nele, tudo o que ensinou aos discípulos foi uma repetição dos mesmos mistérios, os quais também reduziu àquele breve círculo, em que no princípio mostramos recopilados os do Rosário: Exivi a Patre, et veni in mundum: iterum relinquo mundum, et vado ad Patrem(48). - De maneira que antes do Sacramento e depois do Sacramento sempre o Senhor o ruminou, para nos ensinar a que também o façamos assim, não só depois de comungar, senão antes, e sempre. Os que comungam de oito em oito dias hão de ruminar aqueles mistérios todos os dias da semana, e os que comungam de mês em mês, todos os dias do mês, e isto sem mudar ou acrescentar outro exercício, senão meditando e ruminando atentamente o mesmo Rosário que rezam. Dos que só comungam de ano em ano não falo, porque estes nem são devotos do Rosário nem do Sacramento e se pode duvidar se são cristãos.
Finalmente, para que conste a todos quanta diferença vai dos que meditam estes sagrados mistérios aos que os não meditam, e dos que ruminam ou não ruminam o que comungam e comem no diviníssimo Sacramento, vejam uns e outros o diferente foro em que o mesmo Senhor os recebe quando o recebem. Muito é de reparar que, quando Cristo, Redentor nosso, entrou neste mundo, não só entrou como humanado, senão como sacramentado, em fé de que ele era o pão vivo que desceu do céu para nos dar vida: Ego sum panis vivus, qui de caelo descendi. Si quis manducaverit ex hoc pane, vivet in aeternum(49). - Por isso não nasceu o Senhor em outra cidade, senão na de Belém, nem outro lugar de Belém, senão em um presépio. Em Belém, porque Belém quer dizer domus panis: casa de pão; e em um presépio ou manjedoura, como trigo que nasce entre as palhas. Assim que com verdadeira propriedade podemos dizer que a lapa de Belém foi a primeira capela do Santíssimo Sacramento, e a manjedoura ou presépio o primeiro Sacrário. A um e outro lado deste pobre e riquíssimo sacrário parece que haviam de assistir dois querubins, como aos lados da Arca do Testamento; mas já o profeta Habacuc tinha dito que não haviam de ser senão dois animais: In medio duorum animalium cognosceris(50). - E se perguntarmos a Isaías que animais haviam de ser ou foram estes, responde que um boi e um jumento: Cognovit bos possessorem suum, et asinus praesepe domini sui(51). - Pois, se Cristo vinha em forma ou representação de sacramentado, por que quis que os animais que o assistissem, não fossem da mesma, senão de diferente espécie, e um deles nomeadamente boi, e outro jumento? Para que nesta mesma diferença se conhecesse o diferente foro que tem na casa do Pão do céu os que de um modo e de outro se chegam a ele. O boi é animal que rumina, o jumento é animal que não rumina; e da mesma maneira entre os que chegam à mesa do divino Sacramento há uns que ruminam e meditam aqueles sagrados mistérios, e outros que os não ruminam nem meditam. Mas, assim como o boi, que rumina, é animal estimado de Deus, e escolhido para o sacrifício, e o jumento, que não rumina, reprovado, e excluído, assim o estima o mesmo Senhor, e se agrada muito dos que meditam e ruminam seus mistérios e, pelo contrário, dos que os não ruminam nem meditam, posto que os não exclua, não se agrada, porque mais comungam como jumentos que como homens. Veja agora cada um se quer ficar neste foro.
Da Virgem, Senhora nossa, no presépio, diz o evangelista que dentro da sua alma meditava e conferia o mesmo mistério, ponderando todas as circunstâncias dele: Maria autem conservabat omnia verba haec conferens in corde suo(52). - E porque o mesmo fazia em todos os outros, e quer que nós também o façamos, como Mestra divina deste soberano exercício da meditação e oração as ajuntou ambas no seu Rosário, para que assim como conta por conta imos rezando as orações que lhe oferecemos em cada um dos passos da Vida, Morte e Ressurreição do seu benditíssimo Filho, assim, e com muito maior vagar e atenção meditemos parte por parte os mistérios deles, e os vamos trasladando e imprimindo na mais interior de nossas almas. Oh! ditosas, e bem-aventuradas aquelas que por este modo verdadeiramente celestial digerirem o pão do céu, que recebem no Diviníssimo Sacramento, porque assim o converterão ou se converterão na sua própria substância, e lograrão a perfeita e sobrenatural nutrição, que nas tíbias, indevotas e miseráveis se não luz, pelo comerem indigesto.
O principal mistério dos que se encerram no Santíssimo Sacramento é o de sua Morte, e Paixão, porque, se não morrera, não importara o ter nascido, e também, se não morrera, não ressuscitara nem nos levara consigo ao céu. Por esta razão nos encarrega tanto São Paulo que, quando comungarmos, meditemos a morte do Senhor: Quotiescumque enim manducabitispanem hunc, et calicem bibetis, mortem Domíni anunntiabitis(53). - E esta sacratíssima morte de infinito preço, se com a meditação e consideração dela a não digerirmos, aproveitar-nos-á alguma coisa para emenda da vida? Tão pouco como a nossa mesma morte, se a tomamos a vulto, e indigesta, sem considerar o que é e o que havemos de ser. Ouvi a São Zeno falando de Adão: Sacrae arboris pomum male dulce delibavit, lachrymas reperit, dolores et gemitus, spinas et tribulos sibimet comparavit, ultimoque sudore turbatus posteris haereditatem indigestae mortis dereliquit(54): Comeu Adão da árvore vedada, e digeriu o pomo em lágrimas, em gemidos, em dores, em espinhos, e nos suores, a que foi condenado para comer o triste pão de que se sustentasse; e o pior de tudo foi que a nós, seus descendentes, nos deixou por herança a morte indigesta: Indigestae mortis haereditatem posteris dereliquit. - E que quer dizer que Adão, não só nos deixou por herança a morte, senão a morte indigesta? Quer dizer o que ele fez, e o que nós fazemos. Quando Deus notificou a Adão a sentença de morte no caso em que comesse, o que ele devia fazer era considerar muito de propósito, e digerir primeiro consigo, que coisa era aquela a que Deus chamava morte, sendo certo que, se bem o considerara, nunca se atreveria a comer; mas ele, tragando indigestamente a morte, comeu o pomo cru sobre o indigesto, e porque esta morte assim indigesta foi a que ele nos deixou por herança, por isso pecamos tão sem temor, como ele pecou. O
mais eficaz remédio para não pecar é a consideração da morte, por onde havemos de entrar ou ao céu ou ao inferno para sempre: Memorare novissima tua, et in aeternum non peccabis(55). - E, contudo, vendo nós cada dia morrer a tantos não deixamos de pecar. Por quê? Porque essa mesma morte vista não a consideramos nem a digerimos. Pois, assim como a nossa morte nos não emenda, por falta de digestão e consideração, assim também a Morte e Paixão do mesmo Cristo, a quem comemos no Sacramento, nos aproveita pouco, porque de tal modo o comem muitos como se não estivera ali.
Seja, pois, a conclusão de tudo que, unindo a meditação do Rosário com o Santíssimo Sacramento, e a comunhão do Santíssimo Sacramento com o Rosário, digiram as nossas almas em um o que comem no outro, de tal sorte que aquele divino pão cresça em nós à grandeza de um monte: Sicut acervus tritici. - E das rosas, com que a Virgem do Rosário o cerca nesta vida: Vallatus liliis - nos teça na outra, como faz a seus devotos, uma coroa de glória, etc.


Texto Fonte:
Editoração eletrônica:
Verônica Ribas Cúrcio


Domínio Público Gov.BR


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