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Sermão Histórico e Panegírico nos Anos da Rainha D. Maria Francisca de Sabóia

I.
Assunto grande chamei ao deste dia (deixada por agora a segunda parte dele), não só porque neste dia, com tão devidas demonstrações de alegria, festejamos os felizes anos da Rainha sereníssima (que Deus nos guarde por muitos), senão porque neste dia se cerra venturosamente aquele grande ano, tão grande que nem Portugal o teve igual, nem o Mundo o viu maior. Os anos e os dias do Mundo fá-los o curso do Sol; os anos e os dias dos reinos, fazem-nos as ações dos príncipes. O Sol pode fazer dias longos; dias grandes só os fazem e podem fazer as ações. O mais famoso dia que teve o Mundo, foi aquele em que parou o Sol obediente à voz de um homem. Escreve o caso o Texto Sagrado, e diz assim: Stetit sol in medio caeli; non fuit antea, nec postea tam longa dies (Jos. X-13 e 14): Esteve o Sol parado no meio do Céu, e não antes nem depois houve no Mundo tão longo dia. Notai; não diz o texto dia tão grande senão dia tão longo: Tam longa dies; porque o Sol pode fazer dias longos; dias grandes só os podem fazer as ações. Aquele mesmo dia verdadeiramente foi longo e foi grande; mas foi longo, porque o fez o Sol; foi grande, porque o fez Josué; foi longo porque o estendeu a luz; foi grande, porque o engrandeceu a maravilha; foi longo, porque esteve o Sol parado; foi grande, porque um homem o mandou parar: Non fuit antea nec postea tam longa dies. Este dia. em que se contam vinte e dois de Junho, dizem os matemáticos que é o maior dia do ano. O mais longo, deveram dizer, e não o maior. O mais longo para o Mundo, mas o maior para Portugal. O mais longo para o Mundo, porque nasce hoje o Sol mais perto de nós; o maior para Portugal, porque nasceu hoje Sua Majestade, mais longe, mas para nós. O mais longo para o Mundo, porque o acrescenta hoje o Sol com a multiplicação de poucos minutos; o maior para Portugal, porque o engrandece hoje Sua Majestade com a memória de seus felizes anos, que para serem mais felizes, também são poucos. Assim que, não o Sol, senão as ações e os sucessos, são os que fazem os dias grandes.
Nos anos (que se compõem dos dias) passa o mesmo. Perguntou El-Rei Faraó a Jacó, quantos anos tinha, e respondeu sabiamente o velho: Dies peregrinationis meae centum et triginta annorum sunt parvi et mali. Os dias de minha peregrinação, Senhor, são cento e trinta anos, pequenos e maus. Não sei se reparais no dizer de Jacó. Não disse que os seus anos eram poucos e maus; senão pequenos e maus: Parvi et mali. Anos maus não é coisa nova em uma vida tão cheia de misérias como a nossa;
mas anos pequenos, parece que não pode ser, porque todos os anos são iguais. Todos se compõem dos mesmos meses, todos se contam pelos mesmos dias, todos se medem pelas mesmas horas. Como diz logo ou como supõe Jacó, que há anos grandes e anos pequenos; Parvi et mali?- A segunda palavra é a explicação da primeira. Se os anos são maus, são anos pequenos; se os anos são bons, são anos grandes; se os anos são maus e os sucessos adversos e infelizes, são anos pequenos e minguados, como os nossos antigos chamavam às horas menos ditosas; se os anos são bons e os sucessos prósperos e felizes, são anos grandes, anos acrescentados, anos maiores que os outros anos, como este grande ano e felicíssimo que hoje celebramos. Quem quiser ver quão grande foi este ano, olhe para as ações grandes que nele se obraram, olhe para os sucessos grandes que nele se viram. Leiam-se os anais de Portugal e de todos os reinos do Mundo, e em muitos centos de anos se não acharão divididas tantas cousas grandes e notáveis, como neste grande ano se viram juntas.
Esta é a grandeza do ano, e esta a grandeza da matéria. O fundamento que nos dá o Evangelho para dar graças a Deus e falar dela, são as palavras também grandes que propus no tema: Paraclitus autem Spiritus Sanctus, quem mittet Pater in nomine meo, ille vos docebit omnia. O Espírito consolador que mandará o Padre em meu nome – diz Cristo –, esse vos ensinará tudo. De maneira que, para conhecimento e agradecimento das grandes mercês que Deus nos fez neste grande ano, se nos propõe hoje o Espírito Santo com o nome de consolador e com ofício de mestre. Com nome de consolador:
Spiritus paraclitus; com ofício de mestre: Ille vos docebit omnia. O nome pertence ao atributo de sua bondade, o ofício ao atributo de sua sabedoria, e ambos ao proveito e remédio nosso. Mas por que razão neste ano, consolador, e por que razão neste ano, mestre? Será porque teve o Espírito Santo muito que consolar e muito que ensinar neste ano? – Assim foi, assim o vimos, assim o veremos.
Suposta pois, esta verdade dos tempos e esta melhoria e diferença dos anos, reduzindo todo o assunto a um elogio breve do ano presente, será o título do sermão este: Ano de Deus consolador e ano de Deus mestre. Ano de Deus consolador, porque neste ano sarou Deus nossas desconsolações; ano de Deus mestre, porque neste ano nos ensinou Deus os remédios. É sem glosa nem comento o que está dizendo a letra do mesmo Texto: Spiritus paraclitus ille vos docebit omnia.
Agora peço atenção, e a espero hoje com a benevolência que se deve ao aplauso do dia. com a expectação que merece a estranheza do ano e com a inteireza e indiferença de ânimos que requer a suposição da matéria, a força do assunto e a obrigação do orador. Nos outros sermões elegemos, neste seguimos.
II.
As desconsolações gerais que padecia Portugal o ano passado e ainda na entrada do presente, se atentamente as considerarmos, todas se reduzem a três: a guerra, o casamento, o governo. Na guerra estava o povo aflito, no casamento estava a sucessão desesperada, no governo estava a soberania abatida. E em todas juntas?-O Reino perigoso e vacilante. Ora vejamos como Deus neste grande ano, em quanto consolador, nos sarou estas três desconsolações: Spiritus paraclitus; e em quanto mestre nos ensinou para todas três os remédios: Ille vos docebit omnia. Assim como o Evangelho nos deu o assunto em comum, assim nos dará também os discursos em particular.
Começando pela desconsolação da guerra, e guerra de tantos anos, tão universal, tão interior, tão contínua: oh que temerosa desconsolação! É a guerra aquele monstro que se sustenta das fazendas, do sangue, das vidas, e quanto mais come e consome, tanto menos se farta. É a guerra aquela tempestade terrestre, que leva os campos, as casas, as vilas, os castelos, as cidades, e talvez em um momento sorve os reinos e monarquias inteiras. É a guerra aquela calamidade composta de todas as calamidades, em que não há mal algum que, ou se não padeça, ou se não tema, nem bem que seja próprio e seguro. O pai não tem seguro o filho, o rico não tem segura a fazenda, o pobre não tem seguro o seu suor, o nobre não tem segura a honra, o eclesiástico não tem segura a imunidade, o religioso não tem segura a sua cela; e até Deus nos tempos e nos sacrários não está seguro. Esta era a primeira e mais viva desconsolacão que padecia Portugal no princípio deste mesmo ano. Mas que bem no-la consolou Deus com a felicidade da paz, de que nos fez mercê! Assim o diz o texto do Evangelho.
Pacem relinquo vobis, pacem meam do vobis, non quomodo mundus dat, ego do vobis (Joan. XIV27): Deixo-vos a paz, e dou-vos a minha paz –diz Cristo – , mas não vo-la dou como a dá o Mundo. O
que reparo nestas palavras, e que parece nos dá Cristo a mesma cousa duas vezes, e que de uma mercê faz dois benefícios, ou de um beneficio duas dádivas. Na primeira cláusula dá-nos a paz: Pacem relinquo vobis; na segunda cláusula torna-nos a dar a paz: Pacem meam do vobis. Pois se a paz é a mesma, porque no-la dá duas vezes?da – Nem é a mesma, nem no-la dá duas vezes-disse e notou agudamente Santo Agostinho. Na primeira cláusula dá-nos a paz: Pacem relinquo vobis; na segunda cláusula dá-nos a paz sua: Pacem meam do vobis; o ser a paz sua ou não ser, é grande diferença de paz. A paz não sua, é a paz que dá e pode dar o Mundo; a paz sua, é a paz que só dá e pode dar Deus;
e esta é a paz que Cristo promete no Evangelho e a que nos deu neste feliz ano: Non quomodo mundus dat, ego do vobis. E senão, vejamos se foi paz sua por todas as circunstâncias dela.
A mais própria figura da nossa guerra e da nossa paz foi, a meu ver, a luta de Jacó com o anjo. E a primeira propriedade da história, é a desproporção e desigualdade dos combatentes. De uma parte Jacó, de tão limitada estatura; da outra parte o anjo, de tão desmedida esfera (Gen.31). A esfera do menor anjo é, sem proporção maior que a estatura do maior homem-e tal é no mapa do Mundo o nosso Portugal, comparado com o resto de toda Espanha. E que sendo Portugal o Jacó, que sendo Portugal tão pequeno, não ficasse vencido do poder, nem oprimido da grandeza de um contrário tão enormemente maior! Só Deus o podia fazer. Viu Eleázaro aquele portentoso elefante dos assírios, que trazia sobre si um castelo armado; atreve-se mais que ousadamente a acometê-lo, crava-lhe pelo peito com ambas as mãos o montante. Mas que sucedeu? – Caiu morta sobre ele a máquina do vastíssimo bruto (i. Mac. VI-34 e 36) e ficou Eleázaro oprimido de sua mesma vitória, e sepultado (como diz Santo Ambrósio) no seu triunfo. Tal é a fortuna e o fim dos pequenos, quando se atrevem sem proporção aos excessivamente maiores. Os pequenos, ainda quando vencem, ficam debaixo, os grandes, ainda quando são vencidos, caem de cima. Quem é o elefante que traz sobre si o castelo armado, senão Espanha com os castelos de suas armas? Atreveu-se Portugal mais que animosamente à desigual empresa; mas como Deus pelejava por ele e nele, não ficou vitorioso e morto como Eleázaro, senão vencedor e vivo como Jacó; antes vivo como Jacó e imortal como o anjo.
O gênero da peleja do anjo com Jacó foi luta: Ecce vir luctabatur cum eo (Gen. XXXII-24). Também foi luta a guerra de Espanha com Portugal. Não é certo que Espanha abraçava e abarcava por todas as partes a Portugal, desde o Guadiana ao Minho, desde Aiamonte a Tui? Mas sendo Espanha a que nos abraçava a nós, nós éramos os que a apertávamos a ela. Catalunha estava cercada de Espanha por uma parte; mas tinha outra parte aberta e livre para receber, como recebia, os grandes socorros de França.
Holanda estava cercada de Flandres por uma parte, mas por outra, e muitas outras, estava também livre e aberta para os socorros da mesma França, de Alemanha, da Inglaterra, do Mundo. E qual foi o fim destas duas guerras? – Catalunha , porque estava tão perto, não pôde prevalecer; e Holanda, se prevaleceu, foi porque estava tão longe. Eis aqui a vantagem gloriosa de Portugal sobre todos.
Prevaleceu Portugal, prevaleceu Holanda; mas Holanda de longe, nós de perto. Sai a desafio Dadive com o gigante, mete a perua na funda (porque para a pedra e para Pedro estava guardada a vitória); dá uma volta ao redor da cabeça (que também foi necessário dar volta); enfim dispara, fere, derruba;
põe-se de dois saltos sobre o gigante e, cortando-lhe com sua própria espada a cabeça, entra triunfando por Jerusalém e pendura no templo a vitoriosa espada. Aqui a minha dúvida. Já que Davide pendura no templo a espada, porque não pendura a funda? Se a espada cortou a cabeça ao gigante, a funda derrubou ao gigante pela cabeça. Pois porque não fez troféu da funda, como fez troféu da espada? –Porque a funda tirou e venceu de longe, a espada cortou e venceu de perto. Holanda e Portugal foram o Davide; Espanha era o Golias, era o gigante; mas a vitória de Holanda foi a da funda, a vitória de Portugal foi a da espada. Entre Espanha e Holanda havia trezentas léguas de mar e terra; entre Espanha e Portugal uma só linha matemática. Esconda-se logo a funda, e meta-se outra vez no surrão, e pendure-se no templo só a espada.
Apertado de Jacó o anjo, resolve-se a lhe pedir pazes: Dimitte me (Gen. XXXII-26): Jacó, deixa-me.
Infinitas graças vos sejam dadas, Senhor! No princípio da guerra só queríamos que Espanha nos deixasse; no fim da guerra, pede-nos Espanha que a deixemos: Dimitte me. Mas que responde Jacó ao anjo?-Non dimittam te, nisi benedixeris mihi: Que o não há de deixar, se Ihe não conceder quanto quiser. Basta, que o maior pede as pazes e que o menor põe as condições! Quem pudera fazer este trocado senão Deus? O mesmo Deus o diga. Na parábola: Si quis rex iturus committere bellum adversus alium regem (Luc. XIV-20), introduz Cristo dois reis postos em armas, um menos poderoso, outro com mais poder; um que se acha com dez mil soldados, outro com vinte mil. Pergunto: e para estes dois reis virem a condições de paz, qual deles é o que a deve pedir, como e quando? Adhuc eo longe agente, legationem mittens, rogat et quae pacis sunt.-O menos poderoso-diz Cristo-é o que há de mandar a embaixada; o menos poderoso é o que há de rogar e pedir a paz; o menos poderoso é o que há de aceitar os partidos e se há de contentar com os que Ihe concederem, e isto não depois, senão antes de virem às mãos. Não podemos negar que para cada cidade de Portugal tem Espanha um reino.
E que Espanha fosse a que mandou o embaixador: Legationem mittens! Que Espanha fosse a que propôs e pediu a paz: Rogat ea quae pacis sunt! E que Portugal, pelo contrário, seja o que dificultou as condições! Que Portugal seja o que pleiteou as igualdades! Que Portugal seja o que dizia o não, e mais o senão: Non dimittam, nisi benedixeris! E tudo isto com majestade e soberania recíproca, e com reconhecimento de rei a rei: Si quis rex adversus alium regem!
Ainda fez mais Deus, para que nos não faltasse a preferência e melhoria do lugar: Et benedixit ei in eodem loco (Gen. XXXII-31). Concedeu o anjo e veio em todas as condições que quis Jacó: mas aonde? – In eodem loco: No mesmo lugar de Jacó; no mesmo lugar onde Jacó estava antes da luta.
Um dos escrúpulos mais pleiteados entre os príncipes para os tratados de paz, é a circunstância e eleição do lugar. Assim como nos desafios se parte o sol, assim em semelhantes congressos se partem as terras, os mares, os rios. Na última paz de França com Espanha, que se chamou dos Pireneus, o lugar em que se ajuntaram os primeiros ministros de ambas as coroas foi no meio do rio Vidasso, que é a raia ou a baliza (sempre inquieta) com que a natureza dividiu a Espanha de França. Até a nossa suspensão de armas em Lapella se ajustou de exército a exército, em uma ilhota do Minho. Mas para as pazes de Portugal, nem se partiu a corrente do Guadiana, nem se mediu a ponta do Caia. A Lisboa se vieram tratar as pazes, em Lisboa se capitularam, em Lisboa se firmaram e a Lisboa se trouxeram ratificadas. Entrevieram no tratado três Coroas, as quais parece esteve retratando e pondo em seus lugares o Eclesiástico em três árvores hieroglíficas maravilhosamente. Note-se a ordem e os nomes, que são muito para notar. Quasi palma exaltata sum in Cades, quasi plantatio rosae in Jerich, quasi oliva speciosa in campis (Eccles. XXIV-18 e 19). De uma parte estava a palma, da outra parte a oliveira, e no meio de ambas a rosa. Quem é a palma senão Portugal, carregado de vitórias? Quasi palma exaltata sum in Cades? Quem é a oliveira, senão Espanha, requerendo decorosamente a paz com seus exércitos em campo? Quasi oliva speciosa in campis? E quem é a rosa, fazendo mediação no meio de uma e outra, senão Inglaterra, que tem a rosa por armas? Quasi plantatio rosi in Jericho?
Mas em que lugar vimos nós estas reais e misteriosas árvores? Porventura divididas cada uma no seu terreno, a oliveira nos campos, a rosa em Jericó, a palma em Cades? Não por certo. Todas vimos juntas em Lisboa, todas dentro na nossa Corte, todas no mesmo lugar: In eodem loco.
Só restava a circunstancia do tempo. Mas parece que a nossa paz não se fez em tempo, sinal que foi a paz de Deus, e não do Mundo. Que de tempos costuma gastar o Mundo, não digo no ajustamento de qualquer ponto de uma paz, mas só em registar e compor os cerimoniais dela! Tratados preliminares lhe chamam os políticos, mas quantos degraus se hão de subir e descer, quantas guardas se hão de romper e conquistar, antes de chegar às portas da paz, para que se fechem as de Jano? E depois de aceitas, com tanto exame de cláusulas, as plenipotências; depois de assentadas, com tantos ciúmes de autoridade, as juntas; depois de aberto o passo às que chamam conferências, e se haviam de chamar diferenças; que tempos e que eternidades são necessárias para compor os intricados e porfiados combates que ali se levantam de novo? Cada proposta é um pleito, cada dúvida uma dilação, cada conveniência uma discórdia, cada razão uma dificuldade, cada interesse um impossível, cada praça uma conquista, cada capítulo e cada cláusula dele uma batalha, e mil batalhas. Em cada palmo de terra encalha a paz, em cada gota de mar se afoga, em cada átomo de ar se suspende e pára. Os avisos e as postas a correr e cruzar os reinos, e a paz muitos anos sem dar um passo. A famosa dieta ou congresso universal de Munster na Vestfália, que vimos em nossos dias, em espaço de sete anos que durou, veio a sair com meia paz. Fez Espanha paz com Holanda e Suécia; ficou em guerra com França e Portugal. Vede que bem se equivoca o pacem meam, com a meia paz, e quanto vai de tempo a tempo. Aquela em tantos anos, a nossa em tão poucos momentos; aquela tão esperada, sem se concluir, a nossa concluída quando se não esperava; aquela tão dilatada, a nossa tão súbita.
Esta circunstancia de súbita, foi a excelência particular que S. Lucas ponderou na paz de Cristo: Et subito facta est cum angelo multitudo militiae caelestis laudantium Deum et dicentium: gloria in altissimis Deo et in terra pax hominibus (Luc. II-13 e 14). Até aquele ponto estavam a Terra e o Céu em uma tão porfiada e inveterada guerra, bem descuidados os homens que tivesse não pudesse ter fim, quando subitamente, subito, ouviram cantar e publicar as pazes. E nota o evangelista (coisa muito digna de se notar) que os embaixadores da paz foram os mesmos ministros da guerra: Multitudo militiae caelestis. É certo, como nos ensinou Isaías, que na Corte do Céu há anjos particulares, que são próprios ministros da paz. Angeli pacis (Isai. XXXIII-7). Pois se no Céu há anjos da paz, porque não foram estes os embaixadores da paz de Cristo, senão os ministros da guerra: Multitude militiae caelestis? – Porque assim havia de ser sendo a paz súbita. Houve tão pouca distancia entre a guerra e a paz; foi a paz tão apressada, tão abreviada, tão súbita, que não deu lugar de multiplicar, não mudar ministros: os mesmos que eram ministros de guerra, foram embaixadores da paz. Oh paz de Portugal, paz verdadeiramente de Cristo! Quem foi o embaixador de nossa paz, senão um ministro – e tantas vezes grande! – da mesma guerra? A fortuna da guerra o trouxe a Portugal, e a da paz o fez embaixador dela. Não deu tempo a brevidade da paz a multiplicar nem variar ministros, para que a paz de Portugal fosse tão súbita como a de Cristo e tão súbita como a de Jacó. Andavam Jacó e o anjo no maior fervor e aperto da luta, e para a guerra subitamente se converter em paz não foi necessário mais que mudar tenções: era luta, ficaram abraços. Com aqueles grandes braços com que Espanha nos cercava contrária, com esses mesmos em um momento nos abraçou amiga. Aos doze de Fevereiro anoitecemos, como em tempo de El-Rei D. Afonso; ao treze amanhecemos, como em tempo de ElRei D. Sebastião. Na tarde de ontem ainda apertávamos os punhos; na manhã de hoje já tínhamos dado as mãos.
Feita a paz, não pediu caução Jacó, nem fiança dela, porque o decoro da mesma paz era o melhor fiador da sua firmeza. Naquela paz do século dourado (paz verdadeiramente de Deus), dizem os profetas que o leão deporia a ferocidade e a serpente o veneno; que se quebrariam os arcos e setas;
que se queimariam os escudos e lanças; que as espadas se converteriam em arados e foices; e que não haveria mais exército, não ainda temor ou receio de armas. E donde tanta confiança entre homens? Na fé? Na palavra? Na mesma paz? – Não , senão no decoro dela. É ponderação de só Isaías, como profeta tão político e tão versado na razão das Cortes: Sedebit populus meus in pulchritudine pacis (Isai. XXXII-18). Não diz que viveriam os homens tão confiados e descansados na paz, senão na formosura da paz: In pulchritudine pacis; porque só então é a paz segura e firme, quando para todas as partes é formosa. Já o leão de Espanha depôs a ferocidade; já a serpente de Portugal depôs o veneno;
já vemos o ferro em todos os campos fronteiros, com alegria da terra, convertido em arado; já houve praça e praças em que os instrumentos da guerra se acenderam em luminárias das pazes; e não são estes efeitos da paz, senão da paz formosa: In pulchritudine pacis; porque é formosa para Espanha e formosa para Portugal, formosa para Jacó e formosa para o anjo. Jacó e o anjo ambos saíram da luta com maior e melhor nome: Jacó com nome de Israel e o anjo com nome de Deus: Israel erit nomen tuum,quia contra Deum fortis fuisti. Jacó acreditou a fortaleza, o anjo manifestou a divindade. Até naquelas que acima pareciam desigualdades, ficou tão gentil-homem o anjo como Jacó. Jacó fez honra de não pedir a paz, porque era valente desconfiado; o anjo não fez pundonor de ser requerente dela, porque tinha mais seguros os estribos da confiança; Jacó não a pediu, por timbre de seu valor;
concedeu-a não pedida, o anjo, por confiança de sua grandeza. Da parte de Jacó não há que recear, porque a sua guerra foi defensiva; da parte do anjo também não há que temer, porque despiu o fantástico e ficou no incorruptível. Segura está logo e firme para sempre a paz; porque está recíproca e decorosamente ratificada debaixo das firmas de sua formosura: In pulchritudine pacis.
Mas a cujos auspícios deve Portugal esta felicidade? Qual foi a íris celestial que de lá nos trouxe esta paz – Não o digo eu, senão o mesmo texto: Dimitte me jam enim ascendit aurora (Gen. XXXII-26):
Paz, paz – diz o anjo a Jacó – porque já vem aparecendo a aurora. Pois porque amanhece e aparece a aurora e vem arraiando com sua luz a terra, essa é a razão por que há de cessar a peleja? São mistérios do Céu. Apareceu a belíssima aurora nos nossos horizontes, coroada de resplendores e lírios, e no mesmo ponto começou a se mover em seu seguimento a paz. É verdade que da primeira vez errou a paz o tempo e o caminho; errou o tempo, porque, havendo de vir neste ano, vinha no passado; errou o caminho, porque, havendo de vir a Lisboa, foi a Salva-terra. Não era tamanha felicidade, nem para aquele tempo, não para aquele lugar, nem para aquela companhia, nem para a primeira vez. Duas vezes saiu a pomba da arca de Noé: do primeiro vôo, não estava ainda bastantemente desafogada a terra, e não achando onde firmar os pés, voltou sem novas da paz (Gen. VIII-10). Do segundo vôo estava já sossegada a tormenta e desaguado o dilúvio: descobre a oliveira, toma o ramo no bico e alegrou com a vista dele as relíquias do passado mundo e os princípios do futuro. O mesmo aconteceu à felicíssima pomba da nossa arca (fênix havia de ser, se Noé previra o que representava): ela foi a que nos trouxe o ramo da oliveira, ela foi a que nos trouxe a paz, e não do primeiro vôo, senão do segundo. O primeiro vôo foi de França a Portugal: o segundo vôo foi do Paço à Esperança. E onde, senão na Esperança, se havia de colher o ramo verde: Ramum olivae virentibus foliis? Assim nos pacificou a pomba da terra, e assim nos consolou e nos ensinou a conseguir a paz a pomba do Céu:
Spiritus paraclitus, ille vos docebit omnia.
III.
A segunda desconsolação que padecíamos no princípio deste notável ano, era a do casamento real, desejado com tanta razão, duvidado com tanto fundamento, concertado com tanto acerto, mas conseguido, finalmente, com tão pouca ventura. O acerto da eleição e as conveniências dela entenderam já antigamente bem duas grandes cabeças do Mundo: o Papa Pio V e El-Rei Filipe II. O
Papa procurando com todas as instâncias, o Rei impedindo com todas as forças a aliança e união de Portugal com França, no casamento de El-Rei D. Sebastião com Margarita de Valois, filha de Henrique II e irmã de Carlos IX. Mas deixada esta consideração e o profundo das suas conseqüências aos políticos; para o fim da real sucessão, que se pretendia, bastava só a razão (e não sei se a experiência) da mesma agricultura natural. A enxertia mais própria, mais certa e mais segura, é quando o garfo e a raiz são da mesma planta. Assim o ensinou fisicamente, não Plínio ou Dioscórides, senão o apóstolo S. Paulo, escrevendo aos romanos: Si tu ex naturali excisus es oleastro, et contra nuturam insertus es in bonam olivam; quanto magis ii, qui secundum naturam inserentur suae olivae?
Se o ramo de oleastro (como vós) enxertado na oliveira dá fruto quanto mais abundante e copioso fruto dará o ramo da mesma oliveira se for enxertado nela? E dá a razão o apóstolo: Porque o enxerto de oleastro em oliveira é contra natureza; o enxerto de oliveira em oliveira, é natural: o de oleastro em oliveira é contra natureza, porque o garfo é de uma planta e a raiz de outra; o de oliveira em oliveira é natural, porque o garfo e a raiz são da mesma planta. Esta mesma agricultura de S. Paulo, é a do nosso caso. A raiz do tronco real dos reis portugueses foi o conde D. Henrique, pai do primeiro rei D.
Afonso, segundo neto de Roberto, e terceiro de Hugo Capeto, rei de França. Logo não podia haver eleição mais acertada, nem enxertia mais própria e natural, que ir buscar outra vez o garfo mais generoso da árvore real de França, para que o garfo e a raiz fossem do mesmo tronco. Este foi o acerto acertadíssimo da eleição; mas o erro e o engano esteve em que se uniu o garfo ao ramo seco e estéril, quando se havia de unir ao ramo verde e fecundo.
Oh que desgraça e que desconsolação tão grande para um reino posto no último fio! E tanto maior desconsolação, quanto mais ignorada; tanto maior desgraça, quanto mais aplaudida. Quem estivera olhando do mais alto desses montes no dia do famosíssimo triunfo (o mais solenizado que viu Portugal nem Europa) com que os nossos reis naquela memorável entrada foram recebidos; e chorando então sobre Lisboa (como Cristo sobre Jerusalém) lhe dissera: Si cognovisses et tu, quae ad pacem tibi; nunc autem abscondita sunt a te: Abre os olhos, oh cega e mal triunfante cidade! Vê o que solenizas, vê o que festejas, vê o que aplaudes. Solenizas o que cuidas que é verdade, e é ilusão;
festejas o que esperas que há de ser sucessão, e é engano; aplaudes o que chamas matrimônio, e é nulidade. Adoras esse carro do Sol, imaginando que há de tornar a nascer, e não vês que o seu Ocaso não tem Oriente. Como é certo, que se naquele dia entendêramos o que depois se conheceu, as galas se haviam de trocar em lutas, os epitalâmios em lágrimas, os arcos e as pirâmides em mausoléus e sepulcros, pois as mesmas bodas que celebrávamos dos reis presentes, eram exéquias dos futuros.
Vendo o príncipe Absalão que não tinha filhos, diz o texto sagrado que levantou um arco triunfal no vale chamado de El-Rei, para perpetuar sua memória nas pedras, já que não podia na sucessão. Tais foram os arcos e os troféus daquele famosíssimo e falso triunfo; tal foi então a nossa enganada e enganosa alegria; e tão verdadeira era a nossa dor, e tão bem fundada a nossa desconsolação.
Mas Deus, que neste grande ano havia de ser o consolador das tristezas e o mestre das dificuldades, vede que facilmente dispôs e compôs tudo em duas notáveis ações. E quais foram? – A primeira que Sua Majestade, obrigada da consciência, saísse do Paço, para desenganar ao Reino do seu perigo; a segunda que, obrigada do amor do mesmo Reino, tornasse outra vez para o Paço, para lhe dar o remédio. De maneira que neste ir e vir, esteve o reparo de tudo. E senão, diga-o o Evangelho: Non turbetur cor vestrum, neque formidet; vado et venio ad vos (Joan., XIV-26 e 27): Não têm que temer, nem que se alterar vossos corações; porque eu vou e torno. Falava Cristo aqui da sua morte e da sua ressurreição: ao morrer chamou ir, ao ressuscitar chamou tornar; e este ir e tornar, foi o sossego e remédio de toda a perturbação do seu Reino: porque indo e morrendo, matou a morte; voltando e ressuscitando, recuperou a vida. As almas dos outros homens não recuperam a vida; porque, como notou Davide, são almas que vão e não tornam: Spiritus vadens et non rediens (Psal. LXXVII-39).
Mas a alma de Cristo matou a morte e recuperou a vida; porque era a alma que foi e tornou: Vado et venio ad vos. Oh espirito singular, oh alma generosa do nosso Reino! Spiritus vadens et rediens:
Espírito que foi e tornou – que foi para matar a morte, que tornou para ressuscitar a vida; que foi para matar a morte do Reino, morto pela esterilidade; que tornou para ressuscitar a vida do Reino, ressuscitado pela sucessão. A vida dos reinos é a sucessão dos reis: se esta falta, morrem os reinos; se esta recupera, ressuscitam. E esta é a diferença em que no princípio e no fim deste grande ano vimos e vemos a Portugal: no princípio do ano, morto pela esterilidade; no fim do ano, ressuscitado pela sucessão.
Sentenciou Deus a Adão e sentenciou a Eva. A pena da sentença de Adão foi a esterilidade e a morte:
Maledicta terra in opere tuo, in pulverem reverteris. A pena da sentença de Eva foi o parto dos filhos e a sujeição do matrimônio: In dolore paries filios, sub potestate viri erist (Gen. III-17). Pois se a causa era a mesma, porque foram as sentenças tão diversas? – Porque quis Deus revogar o rigor da primeira sentença na misericórdia da segunda, e restaurar ao gênero humano, por parte da mulher, o que lhe tinha tirado por parte do homem. Na sentença de Adão, pronunciou-se expressamente a morte: In puIverem reverteris; na sentença de Eva, declarou-se também expressamente a sucessão: Paries filios;
e não há dúvida que pela promessa da sucessão se restituiu outra vez ao gênero humano o que se lhe tinha tirado pela sentença da morte; porque o mesmo homem, que pela sujeição da morte ficara mortal, pelo benefício da sucessão ficou outra vez imortalizado. De maneira que a sucessão prometida a Eva foi revogação da morte fulminada contra Adão; porque a sucessão é uma segunda vida ou uma antecipada ressurreição, com que os pais se imortalizem nos filhos: Misericors Deus puniendi severitatem diminuens et mortis personam auferens, liberorum successionem largitus est; quasi imaginem resurrectionis per hoc subindicans et dispensans, ut pro cadentibus alii resurgant: comentou com o mesmo pensamento S. João Crisóstomo. E por isso Adão (que foi o primeiro autor deste reparo), sendo ele verdadeiramente pai dos mortos, chamou, sem lisonja, a Eva mãe dos viventes:
Vocavit adam nomen uxoris suae Heva, eo quod mater esset cunctorum viventium (Gen. III-20).
Quem dissera que na primeira tragédia do Mundo havia de estar retratada a história deste ano em Portugal! Na primeira sentença, por parte do homem, Portugal sem sucessão, condenado à morte: In pulverem reverteris: na segunda sentença por parte da mulher, Portugal com sucessão restituído à imortalidade: Paries filios.
E para que se veja qual foi a mão superior que obrou toda esta mudança, reparemos na maior circunstância dela. Envoltas as duas sentenças em uma sentença, que sucedeu? – Publicou-se a sentença ontem, chegou o breve da dispensa hoje, celebrou-se o matrimônio amanhã. Os repentes do Espírito Santo estão acreditados desde o primeiro dia que veio sobre a Igreja: Factus est repente de caelo sonus. Há tal repente como este? Ontem a sentença, hoje o breve, amanhã o casamento?! Assim o fez Deus, para provar que era obra sua. Uma opinião dizia, que era necessária dispensa do Pontífice;
outra dizia, que não era necessária. E Deus mandou o breve tanto a ponto, porque não só quis casar as pessoas, senão também as opiniões. O matrimônio mais dificultoso e infinitamente distante (que foi o do Verbo com a humanidade) concordou-se em um instante; mas as opiniões dos entendimentos angélicos sobre este mesmo mistério, não se hão de concordar por toda a eternidade. Tanto mais fácil é unir distâncias e vontades, que casar opiniões e entendimentos. Poderem casar as pessoas sem o breve, era opinião; poderem casar as opiniões sem o breve, era impossível, por iSSO mandou Deus o breve.
Casou Moisés com Séfora, princesa da Madiã, e concorria no matrimônio aquele impedimento, que depois se chamou cultus disparitas, porque Séfora era de diferente nação e religião. Murmuraram do casamento Arão e Maria; mas acudiu logo Deus a desfazer esta opinião, em Arão com satisfação secreta, em Maria, não só com satisfação, senão ainda com mortificação pública. É certo, contudo, que o matrimônio era lícito e válido, como supõem expositores e padres, porque o impedimento alegado não era de direito natural, e ainda então não havia direito positivo que o proibisse, como consta da história e cronologia sagrada. Pois porque não dissimula Deus com a murmuração de Arão e Maria, e porque os não deixa ficar embora, ou no seu erro, ou na sua opinião, suposta a validade do matrimônio? – Porque Moisés e Séfora eram os príncipes supremos do Povo de Deus, e no casamento de pessoas tão altas e soberanas, que hão de ser a regra e exemplar do Mundo, não só quer Deus que haja validade no matrimônio, mas não permite que haja contrariedade nas opiniões. Quer que seja lícito sem escrúpulo; quer que seja válido sem disputa; quer que seja recebido de todos sem contradição. Cesse logo a diversidade de pareceres – diz o supremo Dispensador – , e assim como se dariam as mãos os contraentes, dêem-se também as mãos as opiniões. Assim o fez Deus em um e outro matrimônio; mas com grande vantagem de providência no nosso. Porque nas bodas dos príncipes de Israel, primeiro se casaram as pessoas, e depois sossegou Deus as opiniões; nas bodas dos nossos príncipes, primeiro concordou Deus as opiniões, e depois se receberam as pessoas.
Mas se algum escrupuloso crítico sobre os poderes amplíssimos delegados, achar menos (em matéria tão grande) a confirmação imediata e bênção do Pontífice, digo, que nem esta faltou, porque supriu Deus por si mesmo as vezes do seu vigário. Quando Cristo respondeu a Dimas –Hodie mecum eris in paradiso, reparou com sutileza Arnoldo Carnotense, que aquela indulgência de abrir as portas do Paraíso pertencia a S. Pedro e às suas chaves. Pois se este era o ofício de Pedro, por que o exercitou Cristo naquela ocasião? – Porque estava Pedro ausente e não sofria tanta dilação a brevidade do despacho: Hodie. E assim como Pedro, na ausência de Cristo, supre as vezes de Cristo, assim Cristo, na ausência de Pedro, supre as vezes de Pedro, Aberas, Petre – diz Arnoldo – vices tuas gerit summis sacerdos Jesus. Estava ausente também, e mais distante no nosso caso, o Vigário de Cristo, e porque a brevidade e necessidade do despacho não consentia tanta dilação, supria o soberano Senhor as vezes do seu Vigário, confirmando por si mesmo o que ele em tanta distância não podia.
E em que consistiu esta confirmação? – No efeito e cumprimento prontíssimo do que Portugal desejava e pretendia. Deus, como diz Davide, confirma os conselhos com os efeitos: Tribuat tibi secundum cor tuum, et omne consilium tuum confirmet (Psal. XIX-5): Se os conselhos não têm efeito, é sinal que os não aprova Deus; mas se o efeito desejado se segue aos conselhos, é prova que Deus os aprova e os confirma. O conselho de Portugal foi, que à experiência provada do ramo estéril sucedesse a esperança do fecundo; e que à infelicidade das primeiras bodas se seguisse o remédio das segundas. E o efeito maravilhoso foi, que tanto que as segundas bodas foram celebradas, logo (como em outra vara de Arão florescente) amanheceu à nossa desconsolação o fruto desejado e pretendido delas. Assim declarou Deus o seu beneplácito, assim confirmou com o efeito a nova eleição e assim supriu a bênção imediata do Pontífice ausente, com a bênção presente sua. Não é frase, nem aplicação minha, senão estilo praticado de Deus, desde o primeiro matrimônio do Mundo. Lançou Deus a bênção sobre o matrimônio de Adão e Eva; e o efeito e prova da bênção foi a fecundidade e sucessão dos filhos: Benedixit illis Deus, et ait: crescite, et multiplicamini (Gen. I-28). Lançou Deus a bênção sobre o matrimônio de Isaque e Rebeca: e o efeito e prova da bênção foi também a sucessão e fecundidade: Benedicam tibi, et multiplicabo semen tuum (Ibid. XXVI-3 e 4). Lançou Deus a bênção sobre o matrimônio de Abraão e Sara; e o efeito e prova da bênção foi da mesma maneira a fecundidade e sucessão: Benedicam ei, et ex illa dabo tibi filium (Ibid. XVII-16). Cuidam os que mal o consideram, que o fruto da sucessão é efeito só dos poderes da natureza; e não é senão graça e bênção do Autor dela. E esta foi a bênção que Deus tão prontamente lançou sobre os nossos Príncipes, declarando-nos, por este modo de aprovação, que confirmava e ratificava, desde o Céu, o que se tinha obrado na terra e em tantas terras. Em Roma se preveniu, em França se expediu, em Portugal se concluiu, e no Céu se confirmou, assistindo o Espírito Divino em tantas partes e provendo com tão vigilante oportunidade em tudo, que bem se estava entendendo e experimentando que em Portugal dispunha a nossa consolação, como consolador, e em Roma e França dava as suas lições como mestre: Spiritus Paraclitus, ille vos docebit omnia.
IV.
A terceira e última desconsolação que padecia Portugal, era o governo. A enfermidade não é culpa; e os efeitos da enfermidade são dor, não devem ser escândalo. E porque sei com quanto decoro e reverência se deve falar nessa mesma dor (já que é forçoso trazê-la à memória), será a voz do nosso sentimento uma pintura totalmente muda. Viu o profeta Ezequiel quatro corpos enigmáticos e hieroglíficos, que tiravam pelo carro da glória de Deus (Ezeq. I-5); e em cada um, ou qualquer deles (porque todos eram semelhantes), se me representa o governo de Portugal naquele tempo. Lá tiravam pelo carro da glória de Deus, cá tiravam também pelo carro das glórias de Portugal; porque não se pode negar, que no mesmo tempo vimos o Reino carregado de fortunas e palmas, sendo tão lastimoso o governo para os de dentro, nas leis, quanto era glorioso contra os de fora, nas armas: Intus domestica vitia, virtutes forinsecus emicantes, disse de semelhantes tempos Orósio. Formava-se aquele corpo enigmático (como o nosso político) não de uma só figura, senão de muitas. Tinha uma parte de humano, porque tinha rosto de homem, tinha duas partes de entendido, porque tinha rosto de homem e rosto de águia; tinha três partes de rei, porque tinha rosto de homem, rosto de águia e rosto de leão: de leão rei dos animais, de águia rei das aves, de homem rei de tudo; finalmente, tinha quatro partes de quimera, porque aos três rostos de leão, de águia, de homem, se ajuntava, com a mesma desproporção, o quarto, de touro. Destes quatro elementos se compunha aquele misto, e por estes quatro signos (uns próprios do seu zodíaco, outros estranhos) se passeava naquele tempo o Sol.
Quando entrava no signo de touro, dominava grosseiramente a terra; quando passava ao signo da águia, dominava variamente o ar; quando se detinha no signo de homem, dominava friamente a água;
quando chegava ao signo de leão, dominava arrebatadamente o fogo. Assim influía (ou assim entregava as influências) o confuso planeta, já aparecendo resplandecente, já desaparecendo eclipsado; tendo o império dividido entre si a luz com as trevas, a razão com o apetite, a justiça com a violência, ou, para falar mais ao certo, a saúde com a enfermidade. A parte sã era de homem e de águia, a parte enferma era de leão e de touro; e quanto se intentava nas deliberações da parte sã, tanto se desfazia nas perturbações da enferma. O que dispunha a benignidade do homem, descompunha a fereza do leão; o que levantava a generosidade da águia, abatia a braveza do touro. Visto pela parte sã, provocava a adoração e amor; visto pela parte enferma, provocava a dor e comiseração; e como o juízo verdadeiramente estava partido, não podia o governo estar inteiro.
A esta desconsolação tão lastimosa e tão universal acudiu Deus, como às demais, suprindo suavemente a enfermidade e defeito de um irmão com a perfeição e capacidade do outro. Eleito Moisés por Deus para senhor e libertador do povo, escusava-se que não podia falar a Faraó, porque era tartamudo. E que fez Deus neste caso? – Sendo tão fácil à sua onipotência sarar a Moisés e tirarlhe aquele impedimento, não quis senão supri-lo por meio de seu irmão: Aaron frater tuus erit propheta tuus (Exod. VII-1): Arão, vosso irmão será vosso intérprete, e falará em vosso nome. De maneira que Arão tinha a voz, e Moisés tinha a vara: e tudo o que mandava ou dizia Arão, não era em seu nome, senão no de seu irmão. Assim, não mais nem menos, o fez Deus convosco; e assim o temos no Evangelho. Sermonem quem audistis, non est meus, sed ejus, qui misit me, Patris (Joan. XIV-24):
As palavras que me ouvistes – diz Cristo – não são minhas, senão do Padre, que me mandou; porque eu só tenho a voz, ele tem o mando. Como se dissera Cristo: Neste governo e magistério do Mundo que exercito, há duas pessoas: uma primeira e invisível, que é o Padre; outra segunda e visível, que sou eu; mas tudo o que mando ou digo, não o mando nem o digo eu, senão ele, porque falo em seu nome e não no meu. Não foi assim a primeira forma com que se reparou o nosso governo? – Assim foi. E posto que ultimamente se mudou a voz, não houve mudança na vara. Na voz mudou-se o nome;
na vara não se alterou o domínio. De maneira que uma pessoa é a que domina e outra a que governa: a que domina, a primeira; a que governa, a segunda; a primeira invisível, que se não vê, não ouve; a segunda visível, que a vemos e ouvimos. Mas nisto mesmo que ouvimos à segunda, que vemos, reverenciamos, como em sua imagem, a primeira, que não vemos; porque da segunda (por ela mais não querer) é só o ministério, e da primeira a domínio; da segunda é só o exercício, e da primeira o império: Sed ejus qui misit me (Joan. XIV-24).
Fares e Zarão eram irmãos herdeiros do cetro real de Judá; e posto que a Zarão competia naturalmente a prerrogativa do nascimento, vede como repartiram entre si o mesmo cetro sem ofensa da irmandade.
Zarão, que era o primeiro, retirou-se e escondeu-se com a púrpura, cedendo do lugar; Fares, que era o segundo, sucedeu-lhe somente no lugar, mas sem a púrpura. E para que se admire prodigiosamente o espírito sobre-humano desta lição, não é necessária mais prova que a mesma ponderação do que é.
Que quisesse ser segunda pessoa, quem pudera ser a primeira! Que quisesse ser Arão com o ministério da voz, quem pudera ser Moisés com o império da vara! Que quisesse ser Fares só com a substituição do lugar, quem pudera ser Zarão com a autoridade da púrpura! E que chamado tantas vezes e por tantos títulos à coroa, a resistisse com tão invencível constância! Só nos Cânticos de Salomão, onde se contém a mais alta filosofia do Céu, acho uma alma de semelhantes espíritos: Veni, sponsa mea, veni de Libano, veni, coronaberis. Três vezes foi chamada para a Coroa: Veni, veni, veni, coronaberis, e sempre resistiu firme. Que alma fosse esta de generosidade tão dura, não se sabe em particular, porque nunca se viu semelhante resistência no Mundo, e assim venho a entender que é a mesma alma generosíssima do nosso Príncipe, antevista e retratada em profecia. E senão, vejamos o número das repetições e dos títulos, por que foi chamado à Coroa. Chamado à Coroa uma vez, a título de inabilidade: Veni; chamado à Coroa outra vez, a título da renúncia: Veni; chamado à Coroa terceira vez, a título da eleição de todos os estados do Reino: Veni. E que rogado e instado tantas vezes, e por tão qualificados títulos, nunca quisesse inclinar a cabeça à Coroa, nem dar ouvidos a uma voz tão doce e a uma palavra tão encantadora, como é: coronaberis! Mas que havia de fazer o espelho, senão retratar-se pelo seu exemplar? O primeiro exemplar desta tão valente e generosa ação foi a Rainha, nossa senhora. Estava de posse da Coroa de Portugal; estava reconhecida e adorada por Rainha; e vendo a ruína oculta e irreparável do Reino, que fez? – Resolveu-se a deixar e perder a Coroa, para que a mesma Coroa se não perdesse. À vista pois de uma resolução de tão estranho valor e generosidade, que havia de fazer o mais valoroso e mais bizarro Príncipe, senão mostrar maior coração que a mesma Coroa, e rejeitá-la também? Retrataram-se reciprocamente ambas as almas, porque Deus de ambas queria fazer uma.
Só se pode pôr em questão, com bem curiosa porfia, qual dos dois galhardos espíritos fez maior ação neste caso: se a Rainha em deixar a Coroa lograda, se o Príncipe em a enjeitar oferecida; se um em largar a posse, outro em recusar a oferta. Fique a questão por agora indecisa: eu só digo igualmente de ambos, que o deixarem e não quererem a Coroa, não foi descer um degrau, foi subir dois. Parece que o não querer a Coroa, foi descer de reis a príncipes, não foi senão subir de príncipes a mais que reis. A
mais que reis? – Sim. Disse Cristo do Bautista, que não só era profeta como os outros, senão mais que profeta: Etiam dico vobis, et plus quam prophetam (Math. XI-9). A profecia é uma luz sobrenatural das coisas que naturalmente nos são ocultas; e esta luz foi comum a todos os profetas. Logo, porque há de ser o Bautista mais que profeta? Vede o que Ihe ofereceram, e o que respondeu: Propheta es tu?
Ait illis: Non. O Bautista era profeta e não quis ser profeta; ofereceram-Ihe o título de profeta, e não quis aceitar; e quem não quer ser profeta nem aceitar o título de profeta, é mais que profeta: Plus quam prophetam. Não há mister acomodação a conseqüência. Quem não quis ser rainha, e mais que rainha; quem não aceitou ser rei, é mais que rei. Os portugueses prezamo-nos de ser mais que vassalos: prezemo-nos também de termos reis mais que reis. E esta é uma boa diferença do governo passado. Então governava-nos quem não era rei; e agora? – Quem é mais que rei.
Ainda não está ponderado o mais fino do caso. Que Sua Alteza não quisesse aceitar a Coroa, seja embora triunfo da ambição, seja glória da modéstia, seja fineza da irmandade. O que admira e pasma é que aceitasse o trabalho da administração, não admitindo a autoridade da coroa. Lá no apólogo ou parábola de Joatão, a oliveira, a vide e a figueira não aceitaram a coroa ou reinado das árvores, que toda a república delas lhes oferecia. E a razão com que se escusaram foi porque não queriam deixar o seu descanso, nem as suas comodidades: Numquid deseram dulcedinem meam, fructusque suavissimos, ut inter caetera ligna promovear; (Jud.-9). Falaram como quem carecia de espíritos racionais e se movia pelos impulsos insensíveis do vegetativo. Não haviam de responder assim, se foram homens, nem ainda se foram animais. Diga-o entre as feras o leão, e entre as aves a águia.
Pasme logo no nosso caso, e admire-se de si mesma toda a natureza. Pasme de ver o vivente tão insensível, pasme de ver o sensitivo tão racional e pasme de ver o mesmo racional tão sobre-humano.
Não aceitar a coroa, não se acha na racional, nem no sensitivo; mas não aceitar a coroa e aceitar o peso e encargos dela, nem no insensível se acha. A coroa tem duas propriedades opostas: o peso e o resplendor; a obrigação e a majestade. E que um príncipe daqueles anos sujeite o ombro ao peso e à obrigação, e não queira acomodar a cabeça ao resplendor e à majestade! Que diremos em um caso tão novo? – Digo, com a mesma novidade, que só o nosso Príncipe, entre todos os do Mundo, soube pôr a coroa em seu lugar. Por quê? – Porque coroou o ombro, e não quis coroar a cabeça. Prova? – Sim.
O primeiro rei que Deus fez foi Saúl (I Reg. IX- 24): mandou ao profeta Samuel, que o ungisse, e a cerimônia do ato foi notável. Assentou-se à mesa Saúl, e deu ordem o profeta que lhe pusessem diante o ombro de uma rês que naquele dia tinha sacrificado. Essa foi a única iguaria: Levavit autem cocus armum, et posuit ante Saul. E porque se não duvidasse que o prato e a parte tinham mistério, acrescentou Samuel, que de indústria lha mandara guardar: Comede, quia de industria servatum est tibi. Pois se o prato era misterioso, e aquela parte da rês foi reservada para Saúl, não acaso, senão de indústria; porque lhe reservou Samuel o ombro, e não outra parte, ou de mais regalo por hóspede, ou de mais propriedade por rei? Suposto que ungia a Saúl por rei, e para cabeça suprema daquele povo, parece que a parte da rês que se lhe devia presentear, era a cabeça sacrificada. Pois porque lhe não põe diante Samuel a cabeça, senão o ombro? – Porque Saúl, como dizíamos, era o primeiro rei que Deus elegeu e coroou neste Mundo; e o lugar e assento próprio da coroa (segundo a instituição divina) não é a cabeça, é o ombro. A coroa fê-la Deus para o peso e para o trabalho; os homens, abusando dela, fizeram-na para o resplendor e para a majestade. A coroa fê-la Deus para carregar sobre o ombro; os homens, trocando-lhe o lugar, fizeram-na para autorizar e adornar a cabeça. Assim que, assentar a coroa sobre a cabeça é pôr a coroa fora de seu lugar, e seguir o estilo dos homens; carregar a coroa sobre o ombro, é pôr a coroa em seu próprio lugar, e obrar pelos ditames de Deus. Homens eram os que desejavam que Sua Alteza se coroasse, e por isso lhe queriam pôr a coroa sobre a cabeça; Deus foi o que finalmente o coroou, e por isso lhe pôs a coroa sobre o ombro: Principatus ejus super humerum ejus (Isai. IX-6): O Príncipe Deus (cujo é este elogio) pôs as insígnias reais ao ombro;
assim o havia de fazer também um príncipe de Deus: Principatus ejus super humerum ejus. Reparai no título e no lugar. O lugar não a cabeça, senão o ombro: Super humerum: o título não de rei, senão de príncipe: Principatus ejus. Não rei com a coroa na cabeça, senão príncipe com a coroa ao ombro. E
quem podia infundir uma lição tão alta e de tão superior madureza em um pensamento generoso de tão verdes anos, senão aquele espírito e virtude do Altíssimo, que assim o ensinou a ele, para assim nos consolar a nós? Spiritus Paraclitus ille vos docebit omnia.
V.
Temos dado as graças (ou mostrado a matéria delas) pelo ano presente. Restava agora, como prometemos no principio, pedir graça para os anos futuros; mas o cumprimento da primeira promessa foi também satisfação da segunda. O melhor modo de pedir é agradecer. Assim como o ingrato só pela ingratidão perde o benefício passado, assim o agradecido só pelo agradecimento solicita e alcança o futuro. Cristo, para nos ensinar a pedir, dava graças; e Deus, como diz S. João, dá uma graça por outra. Pelas graças que lhe damos, dá-nos as graças que lhe pedimos. Mas não espera Deus nestes casos nova petição, porque – como bem disse Teodoto bispo no concílio Efesino – o mesmo agradecer para com Deus, é pedir; e o agradecimento das mercês, ou graças passadas, é o memorial das futuras.
A graça que eu determinava pedir para os anos que de hoje em diante começam, é que fossem também anos de Deus consolador e anos de Deus mestre. De Deus consolador, conservando-nos as felicidades presentes; de Deus mestre, ensinando-nos para as dificuldades futuras: Spiritus Paraclitus, ille vos docebit omnia. E para que a harmonia desta segunda parte correspondesse com a mesma proporção à primeira; assim como dei graças por três coisas, assim tratava de pedir graça para outras três: uma por parte dos vassalos, duas por conta dos príncipes. Mas porque o tempo falta, antes já me repreende, apontarei só as graças que queria pedir, e as palavras com que o Evangelho nos formava as petições.
VI.
A graça primeiro que peço, ou queria pedir ao Espírito Santo por parte dos vassalos, é que o amor com que amamos aos nossos Príncipes tenha efeito de amor. O primeiro e primário efeito do amor é a união. Se alguém me ama – diz Cristo no princípio do Evangelho – guardará o meu preceito: Si quis diligit me, sermonem meum servabit (Joan. XIV-23); e quem me não ama – continua o mesmo Senhor – não guarda os meus preceitos: Qui non diligit me, sermones meos non servat (Ibid. 24). Não sei se reparastes na diferença. Na primeira cláusula disse o meu preceito, e na segunda, os meus preceitos. A sua Lei, de que Cristo falava, é a mesma para os que a guardam e para os que a não guardam: pois porque lhe chama, na primeira cláusula, um preceito – Sermonem meum servabit; e na segunda cláusula muitos preceitos – Sermones meos non servat? No mesmo texto está clara e declarada a razão. Na primeira cláusula falava Cristo dos que amam: Si quis diligit; na segunda cláusula falava dos que não amam: Qui non diligit; e esta é a diferença que há entre o amor e o desamor. O desamor, como tem por efeito dividir, de um preceito faz muitos preceitos: Qui non diligit, sermones meos non servat; o amor, como tem por efeito unir, de muitos preceitos faz um só preceito: Qui diligit, sermonem meum servabit. Este efeito unitivo do amor é, Consolador divino, a graça que eu vos peço para uns vassalos que tanto amam a seus Príncipes. Que assim como o amor de muitos preceitos faz um só preceito, assim faça de muitos pareceres um só parecer, de muitos juízos um só juízo, de muitas vontades uma só vontade, e sobre tudo e em tudo, de muitos interesses um só interesse.
E que interesse há de ser este? – A conveniência do Príncipe. O amor que tem outro interesse mais que a conveniência do Príncipe, não é amor do Príncipe (Joan. XVIII). Fazer competência de quem mais o há de assistir, e cuidar que mais o ama quem mais o assiste, é cegueira, não digo de enganoso, mas de enganado amor. Não quem mais logra a presença do Príncipe, senão quem mais estima sua conveniência, é o que mais, ou o que só o ama. Estavam tristes os apóstolos pela partida de Cristo, e disse-lhes o Senhor (é o nosso Evangelho): Si diligeretis me, gauderetis utique, quia ad Patrem vado:
Se me amáreis verdadeiramente, discípulos e companheiros meus, é certo que havíeis de estar, não tristes, senão muito alegres nesta minha partida. Pois, Senhor meu, a tristeza pela ausência não é amor? – Em outras ocasiões sim, neste caso não. O partir-me e ausentar-me da terra, é grande conveniência minha; porque vou tomar inteira posse do meu Reino, e assentar-me no trono de minha glória à destra do Padre: e quem ama mais a minha pre-sença que a minha conveniência, não me ama fina e fielmente. Todos amam à porfia a presença e assistência do Príncipe; não sei se porfiamos tanto por suas conveniências: se é amor, não cheguem a ser ciúmes.
Desengane-se, cortesãos, o vosso cuidado, que não consiste o amor e graça do Príncipe em vós morardes com ele, senão em ele morar em vós. É texto expresso do mesmo nosso Evangelho: Si quis diligit me, diligetur a Patre meo, et ad eum veniemis, et mansionem apud faciemus: Quem me ama, está na minha graça, e quem está na minha graça, moro eu nele. De maneira que o efeito e a prova da graça, não consiste em vós morardes com ele, senão em ele morar em vós. Inferi agora. Se pela vossa assistência morais vós com o Príncipe, e pela sua graça mora o Príncipe em vós, não é maior favor, e mais de dentro, ele em vós, que vós com ele? Se morais com ele, entrais mais; mas se ele mora em vós, estais mais entrado. Senhores: já que o nosso amor é racional, queiramos o possível. Assistir todos ao Príncipe, morar com o Príncipe, não pode ser; amar o Príncipe a todos, e morar o Príncipe em todos, isto é o que pode ser, e isto é o que é. Contentemo-nos com este modo de amor, contentemo-nos com este modo de graça (ainda que seja menos visível), e estaremos contentes todos (Joan. XIV-23). Estimar a graça pelo visível e querer que todos vejam que sois bem visto, é ostentação, não é amor. O amor tem a satisfação no coração próprio, e não nos olhos alheios. O preço da graça está no agrado dos olhos soberanos, e não na admiração dos vulgares. Desmerece ser bem visto, quem quer a graça para ser olhado. Por isso Deus fez invisível a sua. A lição é muito alta e muito fina; mas estas são as que ensina o Espírito Santo: Ille vos docebit omnia.
VII.
A graça que queria pedir ao mesmo divino Espírito por parte do Príncipe, que Deus nos guarde, não é graça nova, senão antiga e sua. Dois espelhos tem Sua Alteza em que se ver, um defunto, outro vivo, ambos sepultados. Desde mui tenros anos tomou o sempre grande Príncipe por timbre e empresa de suas ações, retratá-las todas pelas de seu glorioso pai, o nosso invictíssimo libertador, El-Rei D. João o IV, de imortal memória. A continuação e exercício deste tão nobre pensamento, é a graça que só peço, e nela muitas. O último filho, o filho mais amado, o Benjamin de El-Rei D. João foi o seu Infante D. Pedro. E porque Sua Alteza com nenhuma outra demonstração pode pagar melhor este amor, quer imitar seus exemplos. As últimas palavras do nosso Evangelho são o memorial expresso desta resolução: Ut sciatis quia diligo Patrem: Para que saibais quanto amo a meu Pai e Senhor, olhai para o corpo e alma da minha empresa. O corpo é um 1ivro aberto das ações de El-Rei D. João: a alma é esta letra: Sicut manidatum dedit mihi Pater, sic facio.
Neste livro, neste exemplar, neste espelho, Senhor, estudará, imitará e verá Vossa Alteza, como tão deliberado, todas as ações generosas, todos os atributos reais e todas as virtudes heróicas de um príncipe cristão perfeito. Para com Deus a religião, a piedade, o zelo; para consigo a temperança, a modéstia, a sobriedade; para com os súditos, a prudência, a justiça, a clemência; para com os estranhos, a vigilância, a fortaleza, a verdade. Verá Vossa Alteza um valorosíssimo rei cercado sempre dos maiores perigos, mas neles acautelado igualmente e confiado: na confiança com recato, na cautela sem temor, no perigo com magnanimidade. Moderado, mas a moderação com decência;
afável, mas a afabilidade com respeito; liberal, mas a liberalidade com medida. A majestade sem afetação, o senhorio sem fasto, o mando sem dependência. Verá Vossa Alteza um coração alto, talhado para grandiosas empresas, mas circunspecto e prudente; prudente, porque aconselhado; e bem aconselhado, porque com os melhores. Pacífico por inclinação, belicoso por necessidade, vitorioso contra seus inimigos sempre; porque sempre referiu a Deus as vitórias. Bem-afortunado em tudo, mas nunca altivo; porque sendo tão grande a sua fortuna, era maior o seu peito. Observantíssimo em recatar os segredos próprios; fidelíssimo em guardar os alheios; e em saber e penetrar os estranhos, vigilantíssimo. Cuidava de noite o que havia de executar de dia; e porque media os pensamentos com o poder, sempre as suas idéias chegavam a ser obras. Incansável no trabalho, posto que com suas horas e intervalos de alívio; mas o trabalho como tarefa da obrigação; o alívio como respiração do trabalho. Sabia reinar, porque sabia dissimular; e reinou, porque não dissimulou. Prezava-se só da justiça, afetava o nome de justiceiro, e era justo. Para os criminosos severo, para os pleiteantes igual, para os ministros senhor, para os vassalos pai, e para todos rei.
Este é o exemplar que Vossa Alteza, senhor, tem proposto a suas reais ações, para que elas sejam tão singulares, como ele glorioso. E se Vossa Alteza acaso apartar os olhos deste primeiro espelho, seja só para os pôr no segundo. Perdeu-se lastimosamente El-Rei Roboão, e do reino inteiro dos doze tribos que tinha herdado, apenas deixou dois a seus descendentes. Mas por quê? – Só porque não quis seguir os conselhos e conselheiros de seu pai, sendo seu pai Salomão. É verdade que se comparou no seu pensamento com ele; mas não para o imitar, ou se Ihe fazer igual, senão para cuidar vãmente, que era maior: Minimus digitus meus grossior est dorso patris mei. Oh que diferente lição nos leu hoje no Evangelho Cristo! Quia Pater major me est.: Meu Pai – diz Cristo – é maior que eu. Cristo, comparado com o Pai, em quanto homem é menor, em quanto Deus é igual: e contudo Santo Atanásio, S. Gregório Nazianzeno, Santo Hilário, S. Cirilo, S. João Crisóstomo, Leôncio, Teofilato, Eutímio e outros grandes Padres, queriam que falasse Cristo neste texto, quanto à divindade. Pois se Cristo quanto à divindade é igual ao Pai, como diz, ou como pode dizer que o Pai é maior? – Porque é Pai: Quia Pater. O respeito não encontra a verdade, não a cortesia a fé. O Filho é imagem do Pai; o Pai é exemplar do Filho: e a esta prioridade original chamou o Filho maioria; porque é maioria entre os homens, ainda que em Deus seja igualdade. Esta igualdade verdadeira e esta maioria respeitosa entre Pai e Filho, é a graça em que todos desejamos confirmado o nosso grande Príncipe. Que o pai na estimação do filho, lhe seja sempre maior, e que o filho, na experiência dos vassalos, lhe seja sempre igual. Que retrate naquele espelho as reais ações; que imite naquele exemplar as virtudes heróicas;
que estude naquele livro aberto as lições que só a sabedoria do divino Espírito lhe pode ensinar: Ille vos docebit omnia.
VIII.
A terceira e última graça que eu finalmente quisera pedir por parte da Rainha nossa Senhora, é que, pois o mesmo divino Espírito dotou a Sua Majestade de tantas e tão excelentes graças, nos de graça para que nos saibamos aproveitar delas. Assim se aproveitava Abraão dos conselhos de Sara; assim Nabal da prudência de Abigaíl; assim Davide da indústria de Micol; e assim el-rei Assuero do valor e sabedoria da rainha Ester. Para esta última petição reservei duas palavras, que só nos restam por ponderar em todo o Evangelho: Et suggeret vobis omnia, quaecumque dixero vobis (Joan. XIV-26).
Nas cláusulas desta sentença distingue Cristo dois ofícios, um seu, outro do Espírito Santo. O
primeiro é mandar, o segundo é sugerir. Ninguém pode mandar só, se houver de mandar como convém. Ao lado do ofício de mandar, deve andar sempre o ofício de sugerir, ou como companheiro, ou como instrumento inseparável. A obrigação e exercício deste segundo e tão importante ofício, é o que significa a mesma palavra sugerir, que vem a ser – lembrar, advertir, inspirar, aconselhar, conferir, persuadir, espertar, instar. Os talentos que para o mesmo ofício se requerem, são maiores e mais relevantes: grande entendimento, grande compreensão, grande juízo, grande conselho, grande zelo, grande fidelidade, grande vigilância, grande cuidado, grande valor. As disposições e os meios com que se exercita ainda são de mais altas e mais interiores prerrogativas: suma comunicação, suma confiança, íntima amizade, íntima familiaridade, íntimo amor; e não só perfeita união, senão ainda unidade. De sorte que os dois sujeitos em que concorreram estes dois ofícios, de tal maneira hão de ser dois, que verdadeiramente sejam um; de tal maneira hão de ser diversos, que verdadeiramente seja o mesmo. Há se de multiplicar neles o número, mas não se há de dividir a unidade. 1; o que temos no mesmo exemplo divino do Evangelho. O Filho, a quem pertence o ofício de mandar, e o Espírito Santo, a quem pertence o ofício de sugerir, quantos são? – Considerados quanto às pessoas, são dois;
considerados quanto à essência, são um; considerados quanto às pessoas, são diversos; considerados quanto à essência são o mesmo. E tal há de ser, necessariamente, quem tiver o oficio de sugerir, em respeito de quem tem o de mandar.
Mas dir-me-á alguém, que isto só o pode haver nas pessoas divinas, mas não em sujeitos humanos.
Sim, pode. Também há sujeitos humanos, que, sendo diversos, são o mesmo; e sendo dois, são um só.
E que sujeitos são estes? – Os dois de que falo, sem os nomear. O esposo e a esposa. O mesmo Deus que os formou o disse: Erunt duo in carne una (Gen. II). Notável foi a ordem e artifício com que o supremo Autor da natureza se houve na criação dos dois primeiros homens. No princípio criou um só;
logo de um formou dois; ultimamente de dois tornou a fazer um. Ao princípio criou um só, que foi Adão: Formavit Deus hominem: logo de um formou dois, porque de Adão fez o homem e a mulher:
Masculum et faeminam fecit eos: ultimamente de dois tornou a fazer um, porque o homem e a mulher, unidos pelo matrimônio, ficam sendo uma coisa: Erunt duo in carne una. É advertência tudo de S. Cipriano: Duo, inquit, erunt in carne una, ut in unum redeat, quod unum fuerat. E como o esposo e a esposa, pela virtude natural daquele vínculo divino, sendo dois, são verdadeiramente um, e sendo diversos, são propriamente o mesmo, só o esposo e a esposa (juntamente) podem exercer os dois ofícios de mandar e de sugerir; e só a esposa (divisamente) o de sugerir, sem o de mandar.
Perguntar-se-me-á, porém, e com muito fundamento, por que razão é necessária esta mútua união e identidade, e que os dois que exercitam os ofícios do mandar e sugerir, sejam a mesma coisa? – Digo que é necessário serem ambos a mesma coisa, porque só os que são a mesma coisa têm o mesmo fim e os mesmos interesses. Onde há diferença de pessoas, há diferença e distinção de bens: onde há diferença e distinção de bens, há também diferentes fins e diferentes interesses; e estes são os que perturbam a luz e corrompem a pureza dos verdadeiros conselhos. Necessário é logo que o que tem ofício de sugerir, seja a mesma coisa com quem tem o ofício de mandar, para que, tendo os mesmos interesses e o mesmo fim, não haja outro fim que lhe divirta o entendimento, nem outro interesse que lhe suborne a vontade. Mas esta vontade sem suborno e este entendimento sem diversão, só o pode achar o príncipe seguramente na esposa, e não no vassalo. O fim e o interesse do príncipe é o comum, o fim e o interesse do vassalo é o particular; e sendo os fins e os interesses do príncipe e do vassalo tão diversos, só o do príncipe e da esposa é o mesmo. Possível é, Senhor, haver vassalo tão fiel, tão amigo e tão generoso, que o fim do príncipe seja o seu fim, e os interesses do príncipe os seus interesses; mas isto que no vassalo é contingente, na esposa é necessário; isto que no vassalo é sempre duvidoso, na esposa é sempre certo; isto que no vassalo é sobrenatural, na esposa é natureza. Porque entre o príncipe e o vassalo há diferença de pessoa a pessoa, e distinção de bens a bens: entre a esposa e o esposo não há distinção de bens a bens, nem de pessoa a pessoa. A razão e o discurso tudo temos em um só lugar.
Perguntou a Esposa dos Cantares ao seu Esposo, onde passava, onde descansava a sesta, para que o pudesse buscar naquela hora sem errar o caminho: Indica mihi ubi pascas, ubi cubes in meridie, ne vagari incipiam (Cant. I-6). E respondeu o Esposo: Si ignoras te, abi post vestigia gregum tuorum: Se não sabes de ti, segue as pisadas do teu rebanho. Notável resposta, e totalmente encontrada! O que o Esposo havia de responder era: – Se não sabes de mim, segue as pisadas do meu rabanho; porque pelas pisadas do rabanho se vai logo dar com o pastor. Pois se havia de dizer: – Se não sabes de mim – por que diz: – Se não sabes de ti? E se havia de dizer – O meu rebanho –, por que diz. – O teu rebanho? – Porque isso é serem esposos. Entre esposo e esposa como não há diferença de pessoas, eu quer dizer tu, e tu quer dizer eu: e como não há distinção de bens, meu quer dizer teu e teu quer dizer meu. Por isso o Esposo (sem equivocação, nem impropriedade) havendo de dizer: – Se não sabes de mim –, disse: – Se não sabes de ti: Si ignoras te; e havendo de dizer: – Segue o meu rebanho –, disse:
– Segue o teu rebanho: Abi post vestigia gregum tuorum. E desta mesma unidade ou união de pessoas e bens, se seguia manifestamente que a Esposa não podia errar o caminho para o Esposo; porque aonde não há diferença de mim a ti, nem de meu a teu, logo se acerta o caminho. Quando as pessoas são diversas e os rebanhos diversos, os interesses, os fins e o caminhos também são diversos; e na diversidade de caminhos pode-se errar. Porém, quando a pessoa é uma e o rebanho um, o interesse, o fim e o caminho, também é um; e onde o caminho é um só, não pode haver erro.
Mas depois de acertados verdadeiramente os caminhos e conhecidos com toda a conveniência os meios que se hão de sugerir, ainda é necessária a confiança, a comunicação, a autoridade, e talvez uma resolução, valor e constância grande, para se haverem de sugerir. E tudo isto não pode concorrer no vassalo, por maior e mais qualificado que seja, nem se pode achar nele, como convém, senão só na esposa. Pediu José ao copeiro-mor de Faraó, quisesse sugerir ao rei a sua inocência e a sua miséria: Ut facias mecum misericordiam, et suggeras Pharaoni (Gen. XL-14); mas o copeiro, sendo tão obrigado a José, não sugeriu. Todos o acusam de ingrato e esquecido; eu não creio que foi só falta de memória nem de agradecimento, senão de confiança e de poder. Isto de sugerir a Faraó, requer maior confiança e maior autoridade, que a de ministrar de joelhos uma copa dourada. Amã, que era aquele grande valido e primeiro ministraço de el-rei Assuero, é verdade que tinha a confiança e as entradas para sugerir: Intraverat, ut suggereret regi (Esther, VI-4); mas a roda de sua fortuna no dia destas mesmas entradas e a tragédia de sua mal acabada privança, antes deixou o exemplo de temores, que de ambições ao ofício. Entrou a sugerir, saiu a morrer.
Notemos, porém, no mesmo caso a diferença com que sugeriu Ester, rainha e esposa (Ibid. III-13).
Tinha alcançado Amã, por ódio de Mardoqueu israelita, um decreto universal de el-rei Assuero, para que todos os daquela nação, em qualquer parte de sua monarquia que fossem achados, sem exceção de sexo nem de idade, morressem à espada. O decreto estava firmado com o anel e selo real, as provisões estavam passadas em diversas línguas a todas as cento e dezessete províncias que Assuero dominava; só se esperava com irremediável tristeza o dia da tremenda execução; porque em toda a parte se havia de executar em um dia. Oh valha-me Deus! Em tanto aperto, em tanta desesperação, não haveria quem valesse à inocência, quem apelasse da injustiça, quem alumiasse a cegueira do rei, quem se opusesse à ira e vingança do privado, quem provasse sua tirania, quem descobrisse seus enganos? Antes estavam tão fechadas as portas a toda a luz e remédio, que sobre a crueldade do primeiro decreto se tinha publicado outro mais cruel, que ninguém pudesse falar ao rei, nem entrar à sua presença, com pena de vida. No meio, porém, de todo este aparato de horrores e por meio de todos eles, sem reparar na severidade dos reis assírios, nem no estilo inexorável de suas combinações, entra contudo animosamente Ester, e aparece diante de Assuero (Ibid. IV-11). Propõe-lhe o ódio e vingança de Amã e as soberbas causas dela; estranha o decreto, afeia a injustiça, pondera a impiedade; e reduzido sem resistência o rei pela manifesta informação e conhecimento da causa, revoga-se o decreto, anulam-se as provisões, suspende-se a execução, muda-se a sentença, depõe-se do ofício e autoridade Amã, tira-se-lhe no mesmo dia a vida, a fazenda, a honra, de que era tão indigno; justifica-se o rei, dá-se satisfação à monarquia, emenda-se para com Deus a consciência, restaura-se para com o Mundo a fama. Está bem feito tudo isto? – Ninguém o pode negar. Mas quem se atreveria a sugerir a um rei potentíssimo, severíssimo e deliberado, uma informação (posto que justa) tão contrária à majestade de seus decretos; e (o que é mais) à vontade, à paixão e aos interesses do seu grande valido, mais respeitado em toda a monarquia e mais temido que o mesmo rei, se não fosse unicamente Ester, pela autoridade de rainha e pela confiança de esposa?
Quantas vezes será importante e necessário em um reino sanear a ruim informação, dar novos olhos à sentença injusta, acudir ao decreto pernicioso, atalhar a ruína pública ou particular, depor o ministro grande e pôr em grandes lugares ao que não é ministro; moderar a ira do rei, ter mão na sua constância, desenganar-lhe o afeto (que tantas vezes se cega), impugnar-lhe o parecer e ainda contrariar-lhe descobertamente a vontade? E quem há que tenha a confiança e autoridade, não possa ter o valor e resolução necessária para sugerir as razões de tudo isto, oportuna e eficazmente, senão Ester? Quem, senão unicamente aquele espírito, que é a metade da alma do mesmo príncipe, cuja conservação, cujo aumento, cujo interesse, fama, coroa e glória, não só é comum de ambos, senão a mesma?
Oh ditoso príncipe, e três e quatro vezes bem-aventurado – que assim lhe chama à boca cheia o Espírito Santo, (Eccl. XXVI-11) – aquele que, não por testemunho incerto da opinião ou informação suspeitosa da lisonja, senão por experiências presentes e tão provadas, logra a felicidade de tal companhia! Contente Adão da que Deus lhe tinha dado e julgando que, formada de uma parte tão dura do homem, como os ossos, não podia deixar de ser muito semelhante a ele na fortaleza e no valor, pôs-lhe por nome Virago, dizendo que assim se havia de chamar de ali por diante: Vocabitur Virago, quoniam de viro sumpta est (Gen. II-2). E contudo, não mesmo Adão, nem algum de seus descendentes chamou nunca tal nome a Eva. E por que razão perdeu Eva o elogio de tão honrado nome? – Porque lho pôs Adão sem exame, nem testemunho da experiência; e na primeira ocasião que se ofereceu, viu que não tinha nada de varonil e que era indigna do nome de Virago. Quem não teve valor para resistir a uma cobra, nem peito para rebater uma maçã (vede que bala!), porque se havia de chamar Virago? Vagou a dignidade ou a valentia do nome desde aquele tempo; e posto que se opuseram a ele com grandes atos, primeiro Jael e Débora e depois Judite, ficou enfim reservado para Maria: não Maria a irmã do primeiro Moisés, senão Maria a esposa do segundo Pedro. Ele foi sem dúvida aquele venturoso (não nomeado) de quem perguntava Salomão: Mulierem fortem quis inveniet? (Prov. XXXI-10). Quem será o venturoso a quem caíra em sorte a mulher valorosa? E
dando logo os sinais para que se conhecesse quem era, quão preciosa, e de onde havia de vir, acrescenta: Procul et de ultimis finibus pretium ejus: Que não havia de ser do reino próprio, nem dos vizinhos, mas que havia de vir de além dos fins da terra. O texto não nomeia França; mas França, a respeito de nós, é a que está além dos fins da terra: e de França, passando o cabo dos fins da terra, é que veio aportar felizmente ao Tejo a herdeira valorosa do nome de Virago.
Mas que há de fazer o venturoso Esposo depois de lhe caber em sorte tão generosa companhia? – O
mesmo Salomão o diz, fechando a sua sentença: Confidit in ea cor viri sui, et spoliis non indigebit:
Porá nela o Esposo toda a confiança do seu coração: e o que conseguirá por meio desta confiança é que lhe sobejarão despojos. Parece que não prometiam tanta conseqüência as premissas; mas tanto importa fiar de quem só se não pode desconfiar. Os despojos que o texto promete por efeito desta confiança, ou podem ser da guerra ou também da paz: Et spoliis non indigebit: se são da paz, não terá necessidade de despojos, porque não terá guerra; se são da guerra, não terá necessidade de despojos, porque terá vitória. Vitória contra os inimigos de fora e paz com os inimigos, e com os amigos de dentro, que às vezes são os mais belicosos. Estes são os despojos que promete o divino Oráculo ao esposo da mulher valorosa, se puser nela a confiança do seu coração, valendo muito mais o seguro que lhe dá da confiança, que a promessa que lhe faz dos despojos.
Não há ponto mais dificultoso a um príncipe, que saber de quem se há de fiar. Se se fia de todos, perde-se de contado; se se não fia de ninguém, também vai perdido; se se fia de quem não deve fiarse, já se perdeu; se se não fia de quem se deve fiar, última perdição. Pois que remédio nesta perplexidade? Que seguro em tantas ondas ou sirtes de desconfianças? – Fiar-se de quem o Espírito Santo diz que se fie: Confidit in ea cor viri sui. O Esposo fie-se da esposa. E não bastará, ou não será melhor fiar-se de si? Não será esta a mais certa e a mais segura confiança? – Não. Fiar-se só de si e aconselhar-se só consigo, tem o perigo do amor próprio; fiar-se só de outro e aconselhar-se só com outro, tem o risco do interesse alheio. Haja logo um tribunal supremo e um conselho íntimo e secreto, que, compondo-se de dois, seja juntamente um, e formando-se de diversos, seja juntamente o mesmo, para que nesta recíproca diferença se segurem os perigos da primeira desconfiança e nesta recíproca identidade os riscos da segunda. O perigo da desconfiança de si, segura-se na diferença, porque sou eu e mais outro; o risco da desconfiança de outro, segura-se na identidade, porque esse outro sou eu. Eu, como eu, posso cegar-me; pois seja eu juntamente outro, para que me guie. Outro, como outro, pode desencaminhar-me pois esse outro seja juntamente eu, para que me não engane. E sobre estes seguros de tão íntima e indubitável confiança, diz o rei mais sábio de todos os homens, que o coração do Esposo se fie da esposa Confidit in ea cor viri sui. Se o príncipe se fia do vassalo, fia-se um coração de outro coração; se o Esposo se fia da esposa, fia-se um coração, não de outro, senão de si mesmo. E
de quem mais seguramente se deve fiar uma a metade do coração que da outra a metade também sua?
Sua sem ser só porque e outra; outra sem ser alheia, porque é sua, e sua sem ser diversa, porque é a mesma: Fecit Deus, ut sit homo, unus duo, duo unus, alter ipse – disse com resumida elegância S.
Pedro Crisólogo. Para o conselho são dois – duo; para o segredo são um – unus; para o desinteresse são outro – alter; para o amor são o mesmo – ipse; e para a confiança são tudo: Confidit in ea cor viri sui. Assim o ensinou o Espírito Santo por boca de Salomão há tantos anos, e assim peço eu por última felicidade dos anos que vêm, se sirva de no-lo ensinar o mesmo Espírito: Spiritus Paraclitus, ille vos docebit omnia.
X.
Espírito Consolador e Mestre Divino, infinitas graças vos damos, e vos sejam eternamente dadas, pelo que nos consolou vossa bondade e pelo que nos ensinou a vossa sabedoria neste ano: ano tão trabalhoso e arriscado nos princípios e tão venturoso em seus progressos até o fim! Com a paz, verdadeiramente vossa, nos consolastes o temor e aflição da guerra; com a esperança tão pronta da real descendência, nos consolastes a antiga desconfiança da sucessão; com o governo presente de príncipe soberano, justo, e por si mesmo, nos consolastes as desatenções e sujeições do passado. Por estas graças, que vos damos e por estes mesmos benefícios tão singulares de vós recebidos, nos concedei, Senhor, as que para os anos futuros, com igual confiança em vossa divina bondade e sabedoria humildemente vos pedimos. É hoje o dia que, entre todos os do ano, se levanta vulgarmente com o nome de maior, por chegar nele o sol a seu auge, e encher o mais dilatado giro de sua carreira.
Amanhã começam outra vez a decrescer os dias, com pregão de público desengano a todas as coisas do Mundo (ainda às que estão acima das sublunares) que nenhuma há tão firme, que não se mude;
nenhuma tão levantada, que não se abata; nenhuma tão grande, que não diminua, e torne atrás pelos mesmos passos de seu aumento. Não seja assim em nossas fortunas, soberano e onipotente Autor da natureza, que assim como a criastes, a podeis emendar e fazer constante (Rom. XI-20 e 21).
Conservai, Senhor, perpetuamente vossos dons, e prorrogai sem mudança nem fim, por todos os anos futuros, as felicidades de que tão liberalmente nos fizestes mercê no presente. Não as percamos depois de logradas, para que não ressuscitem com dobrada mágoa em nós aquelas mesmas desconsolações de que tão eficaz e cumpridamente, e com tão esquisitos remédios, nos livrastes. Uni nos vassalos o amor do Príncipe; confirmai no Príncipe a imitação do pai; prosperai na esposa a continuação dos felicíssimos anos, competindo neles a felicidade com o número e o número com os herdeiros de seus soberanos dotes, para que o sejam digníssimos da mesma coroa. Sobretudo, ensinando-nos a todos a passar de tal maneira os anos breves e incertos desta vida, que saibamos por meio dela conseguir as consolações dos anos eternos: pois para ser eternamente nosso Consolador, vos dignastes ser temporariamente nosso Mestre: Spiritus Paraclitus, ille vos docebit omnia.


Domínio Público Gov.BR


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