Sermão do Mandato (1643)
I
Quem entrar hoje nesta casa — todo-poderoso e todo amoroso Senhor — quem entrar hoje nesta casa — que é o refúgio último da pobreza e o remédio universal das enfermidades — quem entrar, digo, a visitar-vos nela — como faz todo este concurso da piedade cristã — com muito fundamento pode duvidar se viestes aqui por pródigo, se por enfermo. Destes o céu, destes a terra, destes-vos a vós mesmo, e quem tão prodigamente despendeu quanto era e quanto tinha, não é muito que viesse a parar em um hospital. Quase persuadido estava eu a este pensamento, mas no juízo dos males sempre conjecturou melhor quem presumiu os maiores. Diz o vosso evangelista, Senhor, que a enfermidade vos trouxe a este lugar, e não a prodigalidade. Enfermo diz que estais, e tão enfermo que a vossa mesma ciência vos promete poucas horas de vida, e que por momentos se vem chegando a última:
Sciens Jesus quia venit hora ejus (Jo. 13,1). Qual seja esta enfermidade, também o declara o Evangelista. Diz que é de amor, e de amor nosso, e de amor incurável. De amor: cum dilexisset; de amor nosso: suos qui erant in mundo; e de amor incurável e sem remédio: in finem dilexit eos. Este é, enfermo Senhor, e saúde de nossas almas, este é o mal ou o bem de que adoecestes, e o que vos há de tirar a vida. E porque quisera mostrar aos que me ouvem que, devendo-vos tudo pela morte, vos devem ainda mais pela enfermidade, só falarei dela. Acomodando-me pois ao dia, ao lugar e ao Evangelho, sobre as palavras que tomei dele, tratarei quatro coisas, e uma só. Os remédios do amor e o amor sem remédio. Este será, amante divino, com licença de vosso coração, o argumento do meu discurso. Ainda não sabemos de certo se o vosso amor se distingue da vossa graça. Se se não distinguem, peço-vos o vosso amor, sem o qual se não pode falar dele, e se são coisas distintas, por amor do mesmo amor vos peço a vossa graça. Ave Maria.
II
Os remédios do amor e o amor sem remédio são as quatro coisas, e uma só, de que prometi falar, porque, sendo a enfermidade do amor a que tirou a vida ao Autor da vida, não se pode mostrar que foi amor sem remédio, sem se dizer juntamente quais sejam os remédios do amor. Desta matéria escreveu eruditamente o Galeno do amor humano, nos livros que intitulou De Remedio Amoris, cujos aforismos, porque hão de ser convencidos, entrarão sem texto e sem nome, como quem não vem a autorizar, senão a servir. Os remédios, pois, do amor mais poderosos e eficazes que até agora tem descoberto a natureza, aprovado a experiência e receitado a arte, são estes quatro: o tempo, a ausência, a ingratidão, e, sobretudo, o melhorar de objeto. Todos temos nas palavras que tomei por tema, e tão expressos que não hão mister comento: Cum dilexisset, eis aí o tempo; suos qui erant in mundo, eis aí a ingratidão; ut transeat, eis aí a ausência; ex hoc mundo ad Patrem, eis aí a melhoria do objeto. E com se aplicarem todos estes remédios à enfermidade, todos estes defensivos ao coração, e todos estes contrários ao amor do divino Amante, nem o tempo o diminuiu, nem a ingratidão o esfriou, nem a ausência o enfraqueceu, nem a melhoria do objeto o mudou um ponto: In finem dilexit eos. Estas são as quatro partes do nosso discurso; vamos acreditando amor e desacreditando remédios.
III
O primeiro remédio que dizíamos é o tempo. Tudo cura o tempo, tudo faz esquecer, tudo gasta, tudo digere, tudo acaba. Atreve-se o tempo a colunas de mármore, quanto mais a corações de cera!
São as afeições como as vidas, que não há mais certo sinal de haverem de durar pouco, que terem durado muito. São como as linhas que partem do centro para a circunferência, que, quanto mais continuadas, tanto menos unidas. Por isso os antigos sabiamente pintaram o amor menino, porque não há amor tão robusto, que chegue a ser velho. De todos os instrumentos com que o armou a natureza o desarma o tempo. Afrouxa-lhe o arco, com que já não tira, embota-lhe as setas, com que já não fere, abre-lhe os olhos, com que vê o que não via, e faz-lhe crescer as asas, com que voa e foge. A razão natural de toda esta diferença, é porque o tempo tira a novidade às coisas, descobre-lhes os defeitos, enfastia-lhes o gosto, e basta que sejam usadas para não serem as mesmas. Gasta-se o ferro com o uso, quanto mais o amor? O mesmo amar é causa de não amar, e o ter amado muito, de amar menos.
Baste por todos os exemplos o do amor de Davi.
Amou Davi a Bersabé com aqueles extremos que todos sabem, e, sendo o coração deste homem feito pelos moldes do coração de Deus, e Deus tão picado de ciúmes, como ele confessa de si: Ego Deus zelotes (2), coisa é digníssima de grande reparo que o mesmo Deus o deixasse continuar naquele amor, sem lhe procurar o remédio, senão ao cabo de um ano, quando o mandou reduzir pelo profeta Natã. Quanto Deus sentisse este desamor de Davi, bem se vê da circunstância deste mesmo cuidado, pois ele, sendo o ofendido, foi o que solicitou a reconciliação, sem esperar que Davi a procurasse.
Pois, se Deus queria e desejava tanto que Davi se apartasse do amor de Bersabé, por que dilatou esta diligência tanto tempo, e não lhe procurou o remédio senão no fim de um ano? Pois esse mesmo ano, e esse mesmo tempo foi o primeiro remédio com que o começou a curar. As outras enfermidades têm na dilação o maior perigo; a do amor tem na mesma dilação o melhor remédio. Via, o que só vê os corações dos homens, que, enquanto duravam aqueles primeiros fervores da afeição de Davi, dificultosamente se lhe havia de arrancar do coração um amor em que estava tão empenhado; pois deixe-se a cura ao tempo, que ele pouco a pouco o irá dispondo, e assim foi. Ao princípio não reparava Davi no que devia ao vassalo, nem no que se devia a si, nem no que devia a Deus: matava homens, perdia exércitos, não fazia caso da fama nem da consciência, que tanta violência trazia aquele bravo incêndio em seus princípios; mas foi andando um dia e outro dia, foi passando uma semana e outra semana, foi continuando um mês e outro mês, e quando já chegou o fim do ano, em que estado estava o amor de Davi? Estava a chaga tão disposta, o coração tão moderado, e o calor tão remetido, que bastou uma só palavra do profeta para o sarar de todo. O que era desejo se trocou subitamente em dor; o que era cegueira, em luz; o que era gosto, em lágrimas; e o que era amor, em arrependimento. E se tanto pode um ano, que farão os muitos?
Estes são os poderes do tempo sobre o amor. Mas sobre qual amor? Sobre o amor humano, que é fraco; sobre o amor humano, que é inconstante; sobre o amor humano, que não se governa por razão, senão por apetite; sobre o amor humano, que, ainda quando parece mais fino, é grosseiro e imperfeito.
O amor, a quem remediou e pôde curar o tempo, bem poderá ser que fosse doença, mas não é amor. O
amor perfeito, e que só merece o nome de amor, vive imortal sobre a esfera da mudança, e não chegam lá as jurisdições do tempo. Nem os anos o diminuem, nem os séculos o enfraquecem, nem as eternidades o cansam: Omni tempore diligit, qui amicus est (3), disse nos seus Provérbios o Salomão da Lei Velha; e o Salomão da Nova, Santo Agostinho, comentando o mesmo texto, penetrou o fundo dele com esta admirável sentença: Manifeste declarans amicitiam aeternam esse, si vera est; si autem desierit, nunquam vera fuit: Quis-nos declarar Salomão — diz Agostinho — que o amor que é verdadeiro tem obrigação de ser eterno, porque, se em algum tempo deixou de ser, nunca foi amor: Si autem desierit, nunquam vera fuit. Notável dizer! Em todas as outras coisas o deixar de ser é sinal de que já foram; no amor o deixar de ser é sinal de nunca ter sido. Deixou de ser? Pois nunca foi.
Deixastes de amar? Pois nunca amastes. O amor que não é de todo o tempo, e de todos os tempos, não é amor, nem foi, porque se chegou a ter fim, nunca teve princípio. É como a eternidade, que se, por impossível, tivera fim, não teria sido eternidade: Declarans amicitiam aeternam esse, si vera est.
Tão isento da jurisdição do tempo é o verdadeiro amor. Porém um tal amor, onde se achará? Só em vós, Fênix divino, só em vós. Isso quer dizer: Cum dilexisset: como tivesse amado. E quando, ou desde quando? Primeiramente, desde o princípio sem princípio da eternidade, porque desde então começou o Verbo eterno a amar os homens, ou desde então os amou sem começar, como ele mesmo disse: Et deliciae meae esse cum filiis hominum (4). E um amor, que teve as raízes na eternidade, vede como podia achar remédio no tempo? O tempo começou com a criação do mundo, porque antes do mundo não havia tempo. E este tempo em Cristo divide-se em duas partes: o tempo em que amou desde o princípio do mundo, com a vontade divina, e o tempo em que amou desde o princípio da vida, com a vontade divina e humana. Desde o princípio da vida passaram trinta e quatro anos; desde o princípio do mundo passaram mais de quatro mil, e em tantos anos e tantos séculos de amor, nenhum poder teve sobre ele o tempo. Oh! amor só verdadeiro! Oh! amor só constante! Oh! amor só amor!
Que não desfez, que não acabou a continuação pertinaz de tantos anos, quantos correram desde o princípio do mundo até o fim da vida de Cristo? Que cidade tão forte que não arruinasse? Que mármore que não gastasse! Que bronze que não consumisse? Todas as coisas humanas, em tão comprida continuação, acabou o tempo, e o que é mais, até a memória delas; só o amor de Jesus, apesar dos anos e dos séculos, sempre inteiro, sem diminuição, sempre firme, sempre perseverante, sempre o mesmo, porque, assim como tinha amado no princípio: Cum dilexisset, assim amou, e com a mesma intenção, no fim: In finem dilexit.
Tão fora esteve o tempo — vede o que digo — tão fora esteve o tempo de poder diminuir o amor de Cristo, que antes o amor de Cristo diminuiu o tempo. No mesmo texto do nosso Evangelho o temos: Sciens Jesus quia venit hora ejus, ut transeat ex hoc mundo ad Patrem: Sabendo Jesus que era chegada a hora de passar deste mundo ao Padre. — Isto disse o evangelista, falando dos mistérios da última Ceia, em que Cristo, com o maior prodígio da sua humildade, e com o maior milagre da sua onipotência, manifestou aos homens qual era o extremo com que os amava. Mas a hora em que o Senhor passou deste mundo ao Padre não foi neste dia, senão no dia de sua Ascensão, quarenta e dois dias depois deste. Pois, se ainda lhe restavam a Cristo quarenta e dois dias para estar no mundo antes de subir ao Padre, como diz o evangelista que já era chegada a hora: Quia venit hora ejus? Eram tantos dias, e era uma só hora? Sim, porque todos estes dias em que o Senhor se havia de deter no mundo, eram dias de estar com os seus amados: Cum dilexisset suos, e, ainda que pela medida do tempo eram muitos dias, pela conta do seu amor era uma só hora: Hora ejus. Notai muito agora o cômputo destes mesmos dias, e reparai no que nunca reparastes. Desde a hora da Ceia até a hora em que Cristo subiu ao céu, passaram-se pontualmente mil horas, sem faltar nem sobejar uma só. E todos estes dias que medidos pelas rodas do tempo, faziam cabalmente mil horas, contadas pelo relógio do amor, que Cristo tinha no peito, era uma só hora. Por isso se chama: Hora ejus: hora sua, porque para o mundo e para o tempo eram mil horas, e para Cristo e para o seu amor era uma. E se o amor de Cristo de mil horas fazia uma só hora, vede quão certo é o que eu dizia, que, em vez de o tempo diminuir o amor, o amor diminuiu o tempo.
De Jacó dizia a Escritura que, sendo sete os anos que serviu por Raquel, lhe pareciam poucos dias, porque era grande o amor com que a amava: Videbantur illi pauci dies prae amoris magnitudine (Gên.
29,20). Não seria Jacó tão celebrada figura de Cristo se também o seu amor não tivesse a propriedade de diminuir o tempo. Mas nesta mesma diminuição é necessário advertir que os anos que a Jacó lhe pareciam poucos dias não foram só sete, senão muitos mais, ou muito maiores. Assim como o gosto faz os dias breves, assim o trabalho os faz longos. A Abraão disse Deus que seus descendentes serviriam aos egípcios quatrocentos anos, sendo que serviram cem anos somente, porque o trabalho dobra e redobra o tempo, e cem anos de servir são quatrocentos anos de padecer. Do mesmo modo se hão de contar os anos de Jacó. Jacó serviu com tanto trabalho, de dia e de noite, como ele bem encareceu a Labão, não sendo os enganos e trapaças do mesmo Labão a menor parte do seu grande trabalho. Logo, assim como o amor de Jacó diminuía os anos por uma parte, assim o trabalho os acrescentava por outra, e, concorrendo juntamente o amor a diminuir e o trabalho a acrescentar os mesmos anos, já que eles se não multiplicassem tanto que fossem três vezes dobrados, ao menos haviam de ficar inteiros. Como podia logo ser que a Jacó lhe não parecessem anos, senão dias, e esses poucos? Não há dúvida que esta mesma que parece implicação é o maior encarecimento do amor de Jacó. O tempo fazia os anos, o trabalho multiplicava o tempo, mas o amor de Jacó, maior que o trabalho e maior que o tempo, não só diminuía os anos que fazia o tempo, senão também os que multiplicava o trabalho. Com o gosto de servir diminuía o amor uns anos, com o gosto de padecer diminuía os outros, e por isso, ainda que fossem anos sobre anos, e muitos sobre muitos, todos eles lhe pareciam dias, e poucos dias: Videbantur illi pauci dies.
Muito estimara eu que estes dias do amor de Jacó, que a Escritura chama poucos, nos dissesse também a mesma Escritura quantos eram, ou quantos seriam. Mas dado — impossivelmente — que cada ano lhe parecesse um só dia, ainda o amor do figurado excede infinitamente ao da figura, e o de Jesus ao de Jacó. No tempo que diminuiu o amor de Cristo entra também o tempo da sua Paixão; e se o trabalho acrescenta e multiplica o tempo à medida do que se padece, quem poderá medir neste caso o tempo com o trabalho, e a duração do que o Senhor padecia com o excesso do que padeceu?
Padeceu Cristo em sua Paixão, como provam todos os teólogos com Santo Tomás, mais do que padeceram nem hão de padecer todos os homens, desde o princípio até o fim do mundo. Os tormentos em si mesmos eram acerbíssimos, e fazia-os incomparavelmente maiores a delicadeza do sujeito, a viveza da apreensão, a tristeza suma, bastante ela só a tirar a vida, e, sobretudo, o conhecimento compreensivo da injúria infinita cometida contra Deus naquele e em todos os pecados do gênero humano. E quantos séculos de padecer vos parece que caberiam naquelas compridíssimas horas?
Foram tão compridas, que bastou a duração delas para satisfazer pela eternidade das penas do inferno, que com a mesma duração se pagavam. E que sendo tão compridas, ou tão eternas aquelas horas, as reduzisse o amor de Cristo a uma só hora: Hora ejus? Oh! amor verdadeiramente imenso! Que as outras horas e dias parecessem ao amorosíssimo Senhor muito breves não é tão grande maravilha, porque eram horas de estar com os que tanto amava; mas que também as da Paixão, sendo de tão excessivas penas, as abreviasse igualmente o seu amor? Sim, e pela mesma causa. As outras eram breves, porque eram horas de estar conosco, e estas eram também breves, porque eram horas de padecer por nós. Não sofreu o amor que pudesse menos contra o tempo o gosto da paciência que o da presença: por isso, diminuiu igualmente as horas tanto o gosto do padecer pelos homens como o gosto de estar com eles.
Uma e outra coisa compreendeu e declarou S. Paulo em uma só palavra, quando disse, falando da morte de Cristo: Ut pro omnibus gustaret mortem(5). Não diz que padeceu o Senhor a morte por todos, senão que a gostou: Ut gustaret. Esta palavra gustaret quer dizer gostar e provar, e por isso diz com grande energia que Cristo gostou a morte, porque o gosto com que a padeceu a abreviou de tal sorte, como se somente a provara. Excelentemente S. Anselmo, comentando as mesmas palavras: Ut gustaret, idest, horariam, et non longam, quasi ali quid gustando transiret: Quer dizer o Apóstolo —
diz Anselmo — que padeceu o Senhor a morte com tanto gosto, como se a não padecera toda, e somente a tocara, e passara por ela: Quasi aliquid gustando transiret. E por isso, sendo de tantas horas, e tão longas, lhe pareceu de uma só hora: Horariam, et non longam. Notai o novo adjetivo horariam, formado sem dúvida do hora ejus de São João. E vede que remédio podia ser o do tempo para curar o nosso divino enfermo, se a força do seu mal, ou do seu e nosso bem era tão forte e tão aguda que, em vez de o tempo diminuir o amor, o amor foi o que diminuiu o tempo: Cum dilexisset, dilexit.
IV
O segundo remédio do amor é a ausência. Muitas enfermidades se curam só com a mudança do ar;
o amor com a da terra. E o amor como a lua que, em havendo terra em meio, dai-o por eclipsado. À sepultura chamou Davi discretamente terra do esquecimento: Terra oblivionis (Sl. 87, 13). E que terra há que não seja a terra do esquecimento, se vos passastes a outra terra? Se os mortos são tão esquecidos, havendo tão pouca terra entre eles e os vivos, que podem esperar, e que se pode esperar dos ausentes? Se quatro palmos de terra causam tais efeitos, tantas léguas que farão? Em os longes, passando de tiro de seta, não chegam lá as forças do amor. Seguiu Pedro a Cristo de longe, e deste longe que se seguiu? Que aquele que na presença o defendia com a espada, na ausência o negou e jurou contra ele. Os filósofos definiram a morte pela ausência: Mors est absentia animae a corpore.
(6)E a ausência também se há de definir pela morte, posto que seja uma morte de que mais vezes se ressuscita. Vede-o nos efeitos naturais de uma e outra. Os dois primeiros efeitos da morte são dividir e esfriar. Morreu um homem, apartou-se a alma do corpo: se o apalpardes logo, achareis algumas relíquias de calor; se tomastes daí a um pouco, tocastes um cadáver frio, uma estátua de regelo. Estes mesmos efeitos ou poderes têm a vice-morte, a ausência. Despediram-se com grandes demonstrações de afeto os que muito se amavam, apartaram-se enfim, e, se tomardes logo o pulso ao mais enternecido, achareis que palpitam no coração as saudades, que rebentam nos olhos as lágrimas, e que saem da boca alguns suspiros, que são as últimas respirações do amor. Mas, se tomardes depois destes ofícios de corpo presente, que achareis? Os olhos enxutos, a boca muda, o coração sossegado: tudo esquecimento, tudo frieza. Fez a ausência seu ofício, como a morte: apartou, e depois de apartar, esfriou.
Ouvi o maior exemplo que pode haver desta verdade. Foi a Madalena ao sepulcro de Cristo na madrugada da Ressurreição, olhou, não achou o sagrado corpo, tornou a olhar, persistiu, chorou. E
qual cuidais que era a causa de todas estas diligências tão solícitas? Diz, com notável pensamento, Orígenes, que não era tanto pelo que a Madalena amava a Cristo, quanto pelo que temia de si:
Metuebat, ne amor Magistri sui in pectore suo frigesceret, si corpus ejus non inveniret, quo viso recalesceret (7)Sabia a Madalena, como experimentada, que a ausência tem os efeitos da morte:
apartar e depois esfriar; e como se via apartada do seu amado, que é o primeiro efeito, temia que se lhe esfriasse o amor no coração, que é o segundo: Metuebat, ne amor Magistri sui in pectore suo frigesceret. Pois o amor da Madalena, tão forte, tão animoso, tão constante, tão ardente, o amor da Madalena canonizado de grande, engrandecido de muito: Quoniam dilexit multum(8), tão pouco fiava de si mesmo, que temesse esfriar-se? Sim, que tais são os poderes da ausência contra o mais qualificado amor. E como o coração se aquenta pelos olhos, por isso procurava com tanta diligência achar o corpo de seu Senhor, para que, com a sua vista, se tornasse a aquentar o amor, ou se não esfriasse sem ela: Si corpus ejus non inveniret, quo viso recalesceret.
Estes costumam ser os efeitos da ausência, ainda nos corações mais finos, qual era o da Madalena, coração humano enfim. Porém, o coração de Cristo, humano e divino juntamente, ainda que, como humano, se aparta, como divino não se esfria. O fogo pode-se apartar, mas não se pode esfriar. Ao perto e ao longe, ou presente ou ausente, sempre arde igualmente, porque sempre é fogo. Poderá ser tão distante a ausência, que o tire da vista; mas nenhuma tão poderosa, que lhe mude a natureza. Tal o amor de Cristo — diz São Bernardo -quia nunquam et nusquam potuit non amare, qui amor est:
Assim como o amor de Cristo não podia deixar de amar em nenhum tempo, porque é eterno, assim não pode deixar de amar em nenhum lugar ou distância, porque é amor. – O amor não é união de lugares, senão de vontades; se fora união de lugares, pudera-o desfazer a distância, mas como é união de vontades, não o pode esfriar a ausência. A ausência mais distante que se pode imaginar é a que hoje fez Cristo: Ut transeat ex hoc ad Patrem: ausência deste para o outro mundo. Todas as outras ausências, por mais distantes que sejam, sempre se fazem dentro do mesmo elemento, de uma parte da terra para a outra. A ausência de Cristo era tão distante, que excedia a esfera de todos os elementos, e passava da terra até o céu. Mas com a distância e a ausência serem tão excessivas, pôde a distância apartar os corpos, mas não pôde dividir os corações; pôde a ausência impedir a vista; mas não pôde esfriar o amor.
Tão longe esteve a ausência com os seus longes de ser remédio para o amor de Cristo, e tão longe de causar os seus efeitos, que antes produziu os contrários. Os efeitos da ausência, como vimos, são dividir e esfriar; e a ausência de Cristo, em vez de dividir, uniu, e em vez de esfriar, acendeu. Em vez de dividir, uniu as pessoas, e em vez de esfriar, acendeu o amor. Quando São Paulo, antes de ser santo nem Paulo, caminhava furioso para Damasco, as vozes com que Cristo o derrubou e converteu, foram: Saule, Saule, quid me persequeris (At. 9, 4): Saulo, Saulo, por que me persegues? — Sucedeu este grande caso no ano vinte do imperador Tibério, dois anos depois da subida de Cristo ao céu. Pois, se Cristo estava no céu — pergunta Santo Agostinho — se estava no céu, onde não podiam chegar as fúrias de Saulo, nem os poderes das provisões que levava da sinagoga, como se queixa o mesmo Cristo de que Saulo o perseguia? Se dissera que perseguia a seus discípulos, isso é o que refere o texto: Saulus autem adhuc spirans minarum, et caedis in discipulos Domini (9). Mas dizer que Saulo, o qual estava na terra, o perseguia a ele, estando no céu? Sim, responde o mesmo Santo Agostinho, porque, ainda que o Senhor estava tão distante dos discípulos, quanto vai do céu à terra, estava contudo tão unido com eles, que os não distinguia de si. Se os distinguira de si, dissera: Por que persegues a meus discípulos? Mas, porque os não distinguia de sua própria pessoa, por isso disse: Por que me persegues a mim: Quid me persequeris? Bem se encaminhava este texto a concluir o que eu pretendo provar, se não tivera contra si uma grande réplica. Quando no Horto vieram prender a Cristo os ministros dos Príncipes dos Sacerdotes, e disseram que buscavam a Jesus Nazareno, apontando o Senhor para os discípulos que o acompanhavam, disse: Si ergo me quaeritis, sinite hos abire (Jo.
18,8): Se me buscais a mim, deixai ir a estes. — Agora entra o meu reparo. Pois, se Cristo no Horto faz tão grande distinção de si aos seus discípulos, quando está no céu, por que se não distingue deles?
Porque no Horto estava ainda presente, no céu estava já ausente, e o primeiro efeito que causou a ausência em Cristo foi uni-lo mais com os mesmos de quem se ausentara. Quando estava presente, Cristo e os discípulos eram eu e estes: Si me quaeritis, sinite hos abire; porém, depois que esteve ausente, já não havia eu e estes, senão eu; já não havia: Por que os persegues a eles, senão a mim:
Quid me persequeris? E se a ausência com efeito tão contrário a si mesma, em vez de dividir, uniu as pessoas, também em vez de esfriar, acendeu o amor.
Depois da Ceia deste dia despediu-se o divino Mestre amorosamente dos mesmos discípulos, e, vendo-os tristes por sua partida, consolou-os com estas palavras: Expedit vobis ut ego vadam: si enim non abiero, Paraclitus non veniet ad vos; si autem abiero, mittam eum ad vos (Jo. 16,7): Discípulos meus, não vos desconsole a minha partida: ausento-me de vós, mas adverti que a vós vos convém e importa muito esta mesma ausência, porque, se eu não for para o céu, não virá o Espírito Santo;
porém se for, como vou, eu vo-lo mandarei de lá. — Todos os teólogos concordam, e é sem dúvida, que tanto podia vir o Espírito Santo ausentando-se Cristo da terra, como não se ausentando; que conseqüência tem logo haver de vir se Cristo se ausentasse e se fosse para o céu, e não haver de vir se se não ausentasse? Ninguém ignora que o Espírito Santo essencialmente é amor; mas em que amor se viu jamais tal conseqüência? Ir-se o amor quando se vai o amante, esta é a conseqüência ordinária do que cá chamamos amor; mas haver-se de ir o amante para que venha o amor, e não haver de vir o amor, se não se for e se não se ausentar o amante? Só na ausência e no amor de Cristo se acha tal conseqüência. Assim o prometeu o Senhor, e assim o cumpriu. Partiu-se, foi para o céu, e dentro em poucos dias, ficando lá a pessoa do amante, veio cá em pessoa o seu amor. Mas como veio? Não menos intenso, não menos ardente, não menos abrasado que em forma de fogo. Bem dizia eu logo que, em vez da ausência lhe esfriar o amor, o havia de acender mais.
O mesmo Cristo o tinha já dito muito tempo antes. Falava deste fogo de seu amor, e disse que ele viera pôr fogo à terra, e que nenhuma coisa mais desejava senão que se acendesse: Ignem veni mittere in terram, et quid volo, nisi ut accendatur? (10) Pois, se o Senhor desejava tanto que o fogo de seu amor se acendesse na terra, por que o não acendeu enquanto esteve nela? Porque é propriedade maravilhosa deste fogo divino aguardar pela ausência para se acender. As mesmas palavras, se bem se consideram, o dizem: Ignem veni mittere in terram. Não diz que veio para trazer o fogo à terra, senão para o mandar; logo sinal era que se havia de ausentar primeiro, e tornar para o céu, donde o mandasse. E isto é o que disse aos discípulos em próprios termos: Si autem abiero, mittam eum ad vos: Se eu me for, se eu me ausentar de vós, então vos mandarei o fogo do meu amor, ou o meu amor em fogo, para que vejais quanto vos convém esta minha ausência, e para que não receeis que ela, como costuma, me haja de esfriar o amor, porque antes o há de intender e acender mais.
O amor da Madalena, que ainda era imperfeito, buscava o remédio da vista para se não esfriar: Quo viso recalesceret; porém, o amor perfeitíssimo, qual era o do coração de Cristo, não depende do ver para amar, antes, quando a ausência e distância lhe impedem a vista, então se reconcentra e arde mais.
Os olhos são as frestas do coração, por onde respira, e daqui vem que o coração na presença, em que tem abertos os olhos, por eles evapora e exala os afetos; porém, na ausência, em que os têm tapados pela distância, que lhe sucede? Assim como o vaso sobre o fogo, que, tapado e não tendo por onde respirar, concebe maior calor e o reconcentra todo em si, e talvez rebenta, assim o coração ausente, faltando-lhe a respiração da vista, e não tendo por onde dar saída ao incêndio, recolhe dentro em si toda a força e ímpeto do amor, o qual cresce naturalmente, e se acende e adelgaça, de sorte que, não cabendo no mesmo coração, rebenta em maiores e mais extraordinários efeitos.
Tudo o que acabo de dizer é filosofia não minha, senão do mesmo Cristo, e nesta mesma hora, declarando aos mesmos discípulos quais haviam de ser os efeitos da sua ausência. Na presença de seu soberano Mestre obravam os discípulos aquelas prodigiosas maravilhas com que assombravam o mundo, e cuidavam agora, entristecidos, que com a ausência do sol ficariam destituídos de todas estas influências. — Mas não há de ser assim, diz o Senhor; cada um de vós não só há de fazer as mesmas obras que dantes fazia, nem só tão grandes como as minhas, senão ainda maiores, e isto não por outra razão, senão porque me ausento: Opera quae ego facio, et ipse faciet, et majora horum faciet: quia ego ad Patrem vado. (11) Esta última cláusula: Quia ego ad Patrem vado, é digna de sumo reparo. — De maneira, Senhor, que porque ides para o Padre, e porque vos ausentais de vossos discípulos, por isso hão eles de fazer maiores obras que as suas, e maiores também que as vossas? Porventura haveis de ser mais poderoso no céu, do que éreis na terra? Não, responde o divino Amante. Não hão de experimentar esta diferença meus discípulos, porque lá hajam de ser maiores as jurisdições do meu poder, senão porque hão de ser maiores os efeitos do meu amor. Porque me vou: Quia vado, por isso hão de ver o que pode comigo a ausência; e porque vou para tão longe, ad Patrem, por isso hão de ver o que obram em mim as distâncias. Os longes só hão de servir de mais os favorecer, de mais os honrar, de mais os estimar, porque o meu amor todo é estimação, e o preço da estimação são os longes: Procul, et de ultimis finibus pretium ejus. (12)
Com razão chamei sol a Cristo nesta ocasião. O profeta chamou-lhe Sol de Justiça, e eu chamo-lhe Sol da Ausência. Quando a lua se mostra oposta ao sol no seu ocaso, então está maior e mais cheia, e faz em sua ausência outro novo dia. Mas donde lhe vêm à lua estas enchentes de luz e de resplendores? Sábia e discretamente Apuléio: Quanto longius abit a sole, tanto largius illuminatur;
pari incremento itineris et luminis: Quando a lua está mais longe do sol, então se vê mais alumiada, porque tão longe estão os longes do sol de lhe diminuir a luz, que, antes, à medida da distância lhas comunica maiores. — E se estes são os efeitos, ou os primores do sol quando se ausenta, quais serão os daquele Senhor que criou o sol? Já ele o tinha dito de si pelo profeta Jeremias: Putasne Deus e vicino ego sum, et non Deus de longe (Jer. 23,23)? Cuidais que eu só sou Deus de perto, e não Deus de longe? — Enganai-vos. De perto sou Deus, e de longe Deus; antes, do modo que pode ser, mais Deus ainda de longe do que de perto, porque de perto mostro a minha presença, e de longe a minha imensidade. Tal o amor do nosso Deus, ou o nosso Deus do amor. Aparta-se e ausenta-se de nós nesta hora: Ut transeat; a distância é tão grande quanto vai da terra ao céu: Ex hoc mundo ad Patrem; mas as gages da sua presença não se diminuem, antes crescem: Pari incremento itineris et luminis, porque, quanto são mais remotas as distâncias da sua ausência, tanto são maiores e mais intensos os afetos e efeitos de seu amor: Ut transeat ex hoc mundo, in finem dilexit eos.
V
O terceiro remédio do amor é a ingratidão. Assim como os remédios mais eficazes são ordinariamente os mais violentos, assim a ingratidão é o remédio mais sensitivo do amor, e juntamente o mais efetivo. A virtude que lhe dá tamanha eficácia, se eu bem o considero, é ter este remédio da sua parte a razão. Diminuir o amor o tempo, esfriar o amor a ausência, é sem-razão de que todos se queixam; mas que a ingratidão mude o amor e o converta em aborrecimento, a mesma razão o aprova, o persuade, e parece que o manda. Que sentença mais justa que privar do amor a um ingrato? O tempo é natureza, a ausência pode ser força, a ingratidão sempre é delito. Se ponderarmos os efeitos de cada um destes contrários, acharemos que a ingratidão é o mais forte. O tempo tira ao amor a novidade, a ausência tira-lhe a comunicação, a ingratidão tira-lhe o motivo. De sorte que o amigo, por ser antigo, ou por estar ausente, não perde o merecimento de ser amado; se o deixamos de amar não é culpa sua, é injustiça nossa; porém, se foi ingrato, não só ficou indigno do mais tíbio amor, mas merecedor de todo o ódio. Finalmente o tempo e a ausência combatem o amor pela memória, a ingratidão pelo entendimento e pela vontade. E ferido o amor no cérebro, e ferido no coração, como pode viver? O exemplo que temos para justificar esta razão ainda é maior que os passados.
O primeiro ingrato depois de Adão foi Caim: ingrato a Deus, ingrato aos pais, ingrato ao irmão, e a toda a natureza ingrato. Matou a Abel, e, morto ele, parece que ficava segura a ingratidão de ter a correspondência que merecia no coração ofendido; mas vede o que diz Deus ao mesmo Caim: Vox sanguinis fratris tui clamat ad me de terra (Gên. 4,10): A voz do sangue de teu irmão desde a terra, onde o derramaste, está clamando a mim e pedindo vingança. — Notável caso! Três razões acho em Abel, que desafinam muito nos meus ouvidos estas suas vozes. Ser irmão, ser santo e ser morto. Se era morto, como brada? Onde está a insensibilidade da morte? Se era santo, como não perdoa? Onde está o sofrimento da virtude? Se era irmão, como pede vingança? Onde está o afeto da natureza? Aqui vereis quão poderosa é a ingratidão, para trocar em aborrecimento ainda o mais bem fundado amor.
Aonde achará amor um ingrato, se nem em um irmão achou piedade, nem em um santo perdão, nem em um morto silêncio? É tão justa e tão certa paga da ingratidão o aborrecimento, que porque houve um ingrato homicida, houve logo um aborrecimento ressuscitado. E se a ingratidão ressuscita o aborrecimento até nos mortos, como achará amor nos vivos?
A natureza e a arte curam contrários com contrários. Sendo, pois, a ingratidão o maior contrário do amor, quem duvida que este terceiro remédio seria também o último, e o mais presente e eficaz, ou para extinguir de todo, ou, quando menos, para mitigar o amor de Cristo? Assim o ensinam os aforismos da arte, assim o confirmam as experiências da natureza, mas não foi assim. É a ingratidão com o amor, como o vento com o fogo: se o fogo é pequeno, apaga-o o vento; se é grande, acende-o mais. Mais ofendido foi Cristo que Abel, maiores ingratidões usaram com ele os homens que a de Caim, mas nenhuma, nem todas juntas foram bastantes para lhe remitirem um ponto o amor, nem vivo, nem morto: Cum dilexisset suos qui erant in mundo, in finem dilexit eos. Aquelas palavras: qui erant in mundo: os seus que estavam no mundo -parecem supérfluas, e que antes limitam do que encarecem o amor. Cristo, Senhor e Redentor nosso, como Senhor e Redentor de todos os homens, não só amou aos que estavam no mundo, senão também aos que não estavam. Não só amou os presentes, senão os passados e os futuros, porque por todos os que eram, foram e haviam de ser, deu o preço de seu sangue. Fez, porém, expressa menção o evangelista só dos presentes e dos que estavam no mundo: Suos qui erant in mundo, porque estes foram os mais ingratos. Os futuros ainda não eram, os passados, pela maior parte, não conheceram a Cristo; os presentes conheceram-no, ouviram sua doutrina, viram seus milagres, receberam seus benefícios, e como lhe pagaram? Deixando-o, negando-o, vendendo-o, crucificando-o. Pode haver correspondências mais desiguais, mais contrárias, mais ingratas? Não pode. Mas não podendo as ingratidões ser maiores, tiveram tão pouco poder contra o amor de Cristo, que — assim como dissemos dos outros remédios — em vez de as ingratidões o diminuírem, o acrescentaram, e em vez de serem remédio para aborrecer, foram motivo para mais amar.
Quando os filhos de Israel caminhavam pelo deserto para a Terra de Promissão, acompanhava-os milagrosamente uma penha, da qual saíam ribeiras de água também sucessiva, com que o povo matava a sede. Fala deste milagre S. Paulo, e diz assim: Bibebant de consequente eos petra, petra autem erat Christus (1 Cor. 10, 4): Bebiam da pedra que os seguiam, e esta pedra era Cristo. — Se fora no passo em que estamos, não era muito que Cristo se convertesse em pedra, porque não há coisa que tanto seque e endureça como a ingratidão. Mas que achou São Paulo nesta pedra milagrosa, para dizer que era Cristo? O mesmo texto que conta a história no-lo dirá: Percutiens virga bis silicem, egressae sunt aquae largissimae. (13) Aquela pedra era pederneira: silicem; feriu-a Moisés duas vezes com a vara: Percutiens virga bis silicem; e o que a pedra ferida brotou de si foi grande cópia de água:
Egressae sunt aquae largissimae. Daqui tirou a sua conseqüência o apóstolo. O natural da pederneira, quando lhe dão golpes, é lançar de si faíscas de fogo; e pedra — diz São Paulo — que ferida uma e outra vez, em vez de responder com fogo, se desfaz em água, esta pedra não era pedra, era Cristo:
Petra autem erat Christus. Ponhamo-nos agora com o pensamento no Cenáculo de Jerusalém, e veremos este mesmo milagre, não só repetido, mas verificado. Dois golpes deram hoje naquela pedra divina; com dois golpes feriram hoje o coração de Cristo dois homens, de quem ele devera esperar, e a quem merecia bem diferente tratamento. Um golpe lhe deu Judas, que o vendeu, outro golpe lhe deu Pedro, que o negou. E que aconteceu? Oh! milagre de amor verdadeiramente divino! Em lugar de sair da pedra fogo, saiu água: Egressae sunt aquae largissimae; em lugar de sair fogo — castigo próprio de infiéis — com que os abrasasse, o que saiu foi água, com que, por suas próprias mãos, lhes lavou os pés: Misit aquam in pelvim, et caepit lavare pedes discipulorum (14).
Notai agora, e notai muito, que, lavando o Senhor os pés a todos os discípulos, só de Judas e de Pedro faz menção neste ato o evangelista. De Judas: Cum diabolus jam misisset in cor; ut traderet eum Judas, surgit a caena, et ponit vestimenta sua (15); de Pedro: Misit aquam in pelvim, et caepit lavare pedes discipulorum: venit ergo ad Simon Petrum (16). — Pois, Senhor, vós que tudo sabeis e estais vendo, vós os pés de Judas? Vós os pés de Pedro? Não são os pés de Pedro aqueles pés covardes que vos hão de seguir de longe? Não são os pés de Pedro aqueles pés desleais que o hão de levar ao paço, onde vos há de negar três vezes? Os pés de Judas não são aqueles pés infiéis que deste mesmo lugar hão de partir a vender-vos? Os pés de Judas não são aqueles pés traidores que hão de guiar vossos inimigos a vos prender no Horto? Pois, diante de pés tão indignos estais vós prostrado de joelhos? Estes pés lavais com vossas próprias mãos e com a água que sobre essa água estão derramando vossos olhos? Sim, que não fôreis vós, Deus e Senhor meu, quem sois, nem o vosso amor fora amor, nem fora vosso, se o puderam mudar ingratidões ou diminuir agravos. Porque nesses dois homens andou a ingratidão mais refinada, por isso com eles se mostra o vosso amor mais fino. E não só mais fino no ato do lavatório dos pés, que foi comum a todos os discípulos, senão mais fino também nos favores particulares com que a estes dois mais ingratos singularizou entre todos vosso amor.
Se bem repararmos antes e depois da morte de Cristo, acharemos que o mais favorecido na Ceia foi Judas, e o mais favorecido na Ressurreição foi Pedro. Na Ceia todos os discípulos comeram igualmente, e só a Judas fez o Senhor um mimo particular: Et cum intinxisset panem, dedit Judae (17). Na Ressurreição a todos igualmente mandou a nova, e só a Pedro nomeou em particular: Dicite discipulis ejus, et Petro (18). E por que só a Judas e só a Pedro estes favores particulares? Porque só Judas e só Pedro tiveram particularidade na ingratidão. Na Ceia o que mais ofendeu a Cristo foi Judas; na Paixão o que mais o ofendeu foi Pedro. E como o amor de Cristo das maiores ingratidões faz motivos de mais amar, foram estes dois os mais favorecidos, porque foram estes dois os mais ingratos. Se o amor de Cristo fora como o nosso, haviam de ser as ingratidões motivos de aborrecer;
mas como o seu amor era o seu, foram incentivos de mais amar, e razões sobre toda a razão de mais bem fazer.
Ora, eu buscando a causa destes contrários efeitos — que todos, creio, desejam saber — e filosofando sobre a diferença deles, acho que toda procedia da qualidade singular do coração de Cristo. Era tal a qualidade daquele soberaníssimo coração que, metidas nele as ingratidões dos homens, e estiladas com o fogo do seu amor, o estilado das mesmas ingratidões vinham a ser favores e benefícios. O mesmo Cristo se queixava por boca de Davi de que, semeando benefícios nos corações dos homens, de grandes benefícios colhia maiores ingratidões: porém o seu amor — que é o que agora digo — estilando essas mesmas ingratidões dentro no coração, de grandíssimas ingratidões, tirava maiores benefícios. Já o vimos nos exemplos de Cristo vivo e de Cristo ressuscitado: vejamo-lo agora, com maior assombro, no de Cristo morto.
Morto o Redentor na Cruz, abriram-lhe com uma lança o peito, e saiu dele sangue e água: Exivit sanguis et aqua (Jo. 19,34). Mas que sangue foi este em um corpo que o tinha derramado todo, e que água em um morto, morto a sede? Nem a água, nem o sangue eram o que tinham sido. São Cirilo Jerosolimitano diz que o sangue fora o sangue que tomaram sobre si os que procuraram a morte do Senhor: Sanguis ejus super nos (19), e que a água fora a água com que Pilatos lavou as mãos quando o condenou ou entregou à morte: Aqua lavit manus coram populo (20). As palavras do santo são breves, mas expressas: Erant haec duo de latere, judicanti aqua, clamantibus vero sanguis. E como esta injustiça foi tão ímpia e bárbara, e a ingratidão tão desumana e tão atroz, não é muito que o Senhor a sentisse como merecia, e que — ao modo que se diz da água do dilúvio: Tactus dolore cordis intrinsecus (21)— a mesma água e o mesmo sangue lhe chegassem ao coração, e se conservassem nele até a morte. Isto é o que tinham sido aquele sangue e aquela água, quando entraram no coração de Cristo. E quando saíram, que foram? Tertuliano, S. Crisóstomo, Santo Agostinho, e o comum sentir dos Padres concordam em que o sangue era o Sacramento da Eucaristia, e a água o Sacramento do Batismo, dos quais se formou a Igreja, saindo do lado de Cristo como Eva do lado de Adão. Deixo as autoridades, porque são sabidas. Pois se este sangue e esta água, quando entraram no coração de Cristo, foram os dois instrumentos de sua morte, como agora, quando saem do mesmo coração, são os dois elementos de nossa vida? Porque esta é a qualidade soberana do coração de Cristo, e assim se mudam e trocam nele as ingratidões dos homens. Os agravos se trocam em benefícios, as injustiças em misericórdias, os sacrilégios em sacramentos, e o consumado da ingratidão no estilado do amor: Contumelia invertitur; disse Teofilato.
Mas qual foi o motivo que teve o mesmo amor para sair com este prodígio? Foi, porventura, a fé do centurião, que, reconhecendo a divindade do crucificado confessou publicamente que era Filho de Deus: Vere Filius Dei erat iste (22)? Foi, porventura, a contrição e penitência dos que tornavam do Calvário para Jerusalém batendo nos peitos: Percutientes pectora sua, revertebantur (23)? Não. O
motivo que tomou o amor para converter nos dois maiores benefícios as duas maiores ingratidões foi outra ingratidão maior que todas. A maior de todas as ingratidões que os homens usaram com Cristo, é, sem controvérsia, que foi a lançada. Porque as outras foram cometidas contra Cristo vivo, e a lançada, não só contra Cristo morto, mas morto pela salvação dos mesmos homens, que assim lhe pagaram o morrer por eles. Por isso o mesmo Senhor, naquele salmo em que se referem todos os tormentos da Paixão, só da lançada pediu a Deus o livrasse: Erue a framea, Deus, animam meam (24), não pela dor que houvesse de sentir o corpo, que já estava morto, mas pelo horror que já lhe feria e penetrava a alma, na apreensão de uma atrocidade tão feia e tão ingrata. E essa foi a razão por que não disse que lhe livrasse da lança o seu corpo, senão nomeadamente a sua alma: Erue a framea animam meam, Deus. Sendo, pois, esta a mais cruel e desumana ingratidão que jamais se cometeu nem podia cometer no mundo, que não só a convertesse o coração de Cristo no maior e mais consumado benefício, mas que esperasse com o peito fechado até que a lança, como diz São Crisóstomo, fosse a chave que lho abrisse, por que pela mesma ferida nos comunicasse sem nenhuma reserva os últimos tesouros de sua graça? Não há dúvida que, assim como da parte da ingratidão foi o maior excesso a que podia chegar a fereza humana, assim da parte do amor foi o maior extremo com que a podia corresponder a benignidade divina. E se este é o modo com que Cristo vinga os agravos, e esta a moeda com que paga as ingratidões, como podia sarar o seu amor com este remédio, ou deixar de amar os seus, por mais que lhe fossem ingratos: Suos qui erant in mundo, in finem dilexit eos?
VI
Não havendo aproveitado até agora nem o remédio natural do tempo, nem o artificial da ausência, nem o violento da ingratidão, antes, tendo mostrado a experiência que com os remédios cresce a enfermidade, e com os contrários se aumenta, como já disse Ricardo Vitorino: Quia amoris incendium ex alterutra contradicitone magis exaestuat (25), também eu parara aqui, e deixara de aplicar ou explicar o quarto remédio, se ele não fora tão poderoso e superior na eficácia a todos, que sobre a maior desconfiança pode dar esperanças da melhoria.
É pois o quarto e último remédio do amor, e com o qual ninguém deixou de sarar: o melhorar de objeto. Dizem que um amor com outro se paga, e mais certo é que um amor com outro se apaga.
Assim como dois contrários em grau intenso não podem estar juntos em um sujeito, assim no mesmo coração não podem caber dois amores, porque o amor que não é intenso não é amor. Ora, grande coisa deve de ser o amor, pois, sendo assim, que não bastam a encher um coração mil mundos, não cabem em um coração dois amores. Daqui vem que, se acaso se encontram e pleiteiam sobre o lugar, sempre fica a vitória pelo melhor objeto. É o amor entre os afetos como a luz entre as qualidades.
Comumente se diz que o maior contrário da luz são as trevas, e não é assim. O maior contrário de uma luz é outra luz maior. As estrelas no meio das trevas luzem e resplandecem mais, mas em aparecendo o sol, que é luz maior, desaparecem as estrelas. Grande luz era o Batista antes de vir Cristo ao mundo; apareceu Cristo, que era a verdadeira luz: Erat lux vera, quae illuminat omnem hominem (26), e que lhe sucedeu ao Batista? Logo deixou de ser luz: Non erat ille lux (27). O mesmo lhe sucede ao amor, por grande e extremado que seja. Em aparecendo o maior e melhor objeto, logo se desamou o menor.
Entre as injustiças que el-rei Saul cometeu contra Davi, a mais sensível e a mais sentida dele foi negar-lhe a princesa Micol, que era o preço da vitória do gigante, e não só negar-lha, que fora menor injúria, senão dá-la a seu despeito a Faltiel. Dissimulou esta dor Davi, até que se viu com a coroa de Israel na cabeça, e a primeira coisa que fez, ou a primeira condição com que aceitou a mesma coroa, foi que Micol lhe fosse logo restituída. — Sofriam-se estes câmbios na moeda corrente de cada dia.
— Conta o caso a Escritura, e refere uma circunstância muito digna de reparo: Misit ergo Isboseth, et tulit eam a viro suo Phaltiel: sequebaturque eam vir suus, plorans usque Bahurim (2 Rs. 3,15 s). Quer dizer que mandou Isboset, filho de Saul, tirar a Faltiel sua mulher Micol, e que ele a acompanhou chorando até o lugar onde se havia de entregar, e não diz mais. O que agora noto é que neste apartamento chorasse Faltiel, e não chorasse Micol. Para Micol chorar, bastava ver chorar a Faltiel; e quando não bastasse, concorriam nela outras duas razões naturais, não só para chorar, senão para chorar mais. A primeira, porque nas despedidas costumam enternecer-se mais os que vão que os que ficam. Assim o temos por exemplo em Davi, quando se apartou de Jônatas: Fleverunt pariter, David autem amplius (28). A segunda, por ser Micol mulher, e mulher que se apartava de seu marido, segundo aquela regra da natureza: Uxor amans flen tem, flens acrius ipsa tenebat (29). Pois, se Micol nesta ocasião tinha tantas razões de chorar, e se apartava de Faltiel, e se apartava para sempre — que era outra nova razão — por que não chorou nem uma só lágrima? Não chorou, porque já não amava, e não amava, porque melhorou de objeto. Faltiel chorava, porque perdia a Micol, e Micol não chorava, porque trocava a Faltiel por Davi. Enquanto Micol vivia com Faltiel, não podemos duvidar que o amasse, porque Micol era princesa, e o amor era obrigação; porém, tanto que lhe falaram nas bodas de el-rei Davi, mudou logo de afeição, porque melhorou de objeto.
E se a melhoria do objeto é tão poderoso e eficaz remédio para mudar de amor, não digo eu quão poderoso seria, senão quão onipotente no nosso caso, em que a diferença ou a competência não era de homem a homem, senão de homens a Deus, nem de Faltiel a Davi, senão de Pedro e João ao Eterno Padre: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem. Comparai-me o Criador do céu e da terra com os pescadores de Tiberíades; o adorado dos anjos com os desprezados do mundo; o infinito, o imenso, o incompreensível, o que só é, e dá o ser a tudo, com os que verdadeiramente eram nada, como somos todos, e vereis quão temerária esperança seria, e quão louco pensamento o de quem cuidasse que à vista de tal objeto podia ter lugar, não digo o amor, mas nem a memória dos homens. Contudo o evangelista, depois de referir esta diferença e de ponderar a mesma desigualdade, dizendo: Ex hoc mundo ad Patrem, ainda persiste em afirmar que os homens foram não só amantes, senão os amados:
In finem dilexit eos. Cuidava eu, e tinha infinita razão para cuidar e para crer que, quando o evangelista disse que Cristo se partia para o Padre: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, o que havia de continuar a dizer em boa conseqüência, era: In finem dilexit eum. Enquanto esteve no mundo, amou aos homens: Cum dilexisset suos qui erant in mundo; porém no fim, em que se partiu do mundo para o Padre: Ex hoc mundo ad Patrem, então, com a mudança e melhoria do objeto, e tal objeto, também mudou e melhorou de amor, e não os amou a eles, senão a ele: In finem dilexit eum. Assim o cuidava eu, e sem injúria nem agravo do amor dos homens; mas o evangelista, falando da despedida dos homens e da partida para o Padre, o que diz, com assombro da razão e pasmo do nosso mesmo juízo, é que o Padre foi o fim da jornada, porém os homens o fim do amor. O Padre, o fim da jornada:
Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem; e os homens, o fim do amor: In finem dilexit eos.
Assim o disse S. João, e assim o dizem todas as palavras e ações do amorosíssimo Senhor nesta mesma hora da sua partida. Viu tristes o divino Mestre aos discípulos, como era justo que estivessem em tal ocasião e tão precisa, estranhando-lhes a tristeza, disse: Si diligeritis me, gauderetis utique, quia vado ad Patrem, quia Pater major me est (Jo. 14, 28): Se vós, discípulos meus, me amáreis, havíeis-vos de alegrar com a minha ida, porque vou para meu Padre, que é maior que eu. Parece que da tristeza neste caso não se inferia bem o não amar. Antes, Senhor, porque os discípulos vos amam, por isso sentem vossa partida, e os entristece vossa ausência. Não -diz o divino Mestre -já eu lhes disse, e dei por razão, que o Padre para onde vou é maior que eu: Quia Pater major me est. E sendo a minha partida para melhorar tanto de estado e de objeto, se eles me amaram verdadeira e desinteressadamente, haviam de poder mais as minhas melhoras para os alegrar, que a minha ausência para os entristecer. Assim é em lei do perfeito amor. Mas, pouco depois de o mesmo Senhor ensinar e seguir este alto ditame, chega ao Horto, despede-se ultimamente dos mesmos discípulos, e foi tal o extremo da sua tristeza, que sem encarecimento lhes disse que era bastante a lhe tirar a vida: Tristis est anima mea usque ad mortem (30). Pois, se os discípulos se haviam de alegrar nesta despedida, porque seu Mestre e Senhor vai para o Padre, por que se não alegra também o mesmo Senhor, antes se entristece com tal extremo? Não vai para o Padre, que é maior? Sim. Não vai para melhorar tanto de estado e de objeto? Sim. Pois, por que não são bastantes estas melhoras para o alegrar, e basta a ausência dos homens para o entristecer? Por isso mesmo e pela mesma regra do verdadeiro amor.
Poder mais a minha ausência para entristecer os discípulos, do que as minhas melhoras para os alegrar, é amarem-se eles a si; mas poderem menos as minhas melhoras para me alegrar, do que a sua ausência para me entristecer, é amá-los eu a eles. O que neles é tristeza, para ser amor havia de ser alegria, e o que em mim parece que havia de ser alegria, porque é amor, é tristeza. E, sendo estes dois afetos, de alegria e tristeza, tão contrários entre si, e os objetos de um e outro tão infinitamente desproporcionados quanto vai do Padre aos homens, que à vista de uma razão tão imensa de alegria tenha ainda lugar e peso a tristeza, e que no gosto e alvoroços de ir ao Padre, se não afogue, como em um mar ou dilúvio, o sentimento de deixar os homens? Só no coração imudável de um Homem-Deus se podia achar tal constância, e só no seu amor tal firmeza.
Mas apertemos bem o ponto e o texto em todo o rigor de Teologia. A alma de Cristo, Senhor nosso, nesta vida, e desde o instante de sua Encarnação, sempre viu a Deus, e sempre foi sumamente bemaventurada, sem haver momento algum em que deixasse de o ser. Como podia logo a mesma alma, e no mesmo tempo, estar triste, e com tanto extremo triste: Tristis est anima mea usque ad mortem? Os teólogos, com Santo Tomás, declarando como isto podia ser, distinguem na alma, posto que não tenha partes, uma como parte superior, que é a intelectual, e outra inferior, que é a sensitiva. E deste modo, dividida de si para consigo mesma, a alma de Cristo, no mesmo tempo podia estar — e estava —
alegre e triste juntamente: alegre na parte superior, e sumamente alegre, como bem-aventurada, e triste, na parte inferior, e sumamente triste, como tão desconsolada e afligida. Vistes o ar coberto e cerrado de nuvens grossas e espessas que rebatem os raios do sol totalmente, e não deixam lugar à luz a que se nos comunique? Neste caso a parte superior do mesmo ar, e que olha para o céu, está toda clara e alegre, e a parte inferior, que cerca a terra, toda escura e triste, e não em diversos tempos, senão no mesmo. Pois, da mesma maneira, e no mesmo tempo, a alma de Cristo, pela parte superior, como gloriosa, estava sumamente alegre, e pela parte inferior, como afligida e tão afligida, sumamente triste.
Estes são os afetos e efeitos contrários que couberam na alma de Cristo, Senhor nosso, enquanto compreensor e viador juntamente; e os mesmos ajuntou o amor na mesma alma de Cristo só enquanto viador, não sei se com maior milagre. O partir para o Padre, e o apartar-se dos homens, ambos foram atos de viador; e sendo os objetos tão infinitamente diversos e desiguais, para que a melhoria do primeiro não eclipsasse os efeitos do segundo, que fez o amor? Ou partiu a alma do amante que se partia, dando uma parte ao Padre outra aos homens, ou a deu toda aos homens e toda ao Padre, sem a partir, toda alegre, porque ia para ele, e toda triste, porque nos deixava a nós. Lá disse a sutileza saudosa de Santo Agostinho, no apartamento de um seu amigo, que só lhe ficara ametade da alma, e a outra ametade se partira com ele, e que, vendo-se assim meio vivo e meio morto, tinha horror de si mesmo. Mas deste dito ou encarecimento se retratou depois o mesmo Santo Agostinho, e com razão, porque só do amor de Cristo, e de quando se apartou dos seus amados se podia dizer ou considerar com verdade. Assim o mostrou a experiência na mesma hora em que declarou aos discípulos a tristeza da sua alma.
Apartou-se o Senhor deles para orar ao Padre, sempre com o mesmo nome do Padre na boca: Abba, Pater (Mc. 14, 36), e notam os evangelistas que três vezes orou, e três vezes veio buscar os discípulos:
Iterum abiit, et oravit tertio (31), diz S. Mateus; Et venit tertio, et ait illis (32), diz S. Marcos. De sorte que andava o Senhor, no mesmo tempo da oração, vindo do Padre para os discípulos, e indo dos discípulos para o Padre, e tantas vezes dos discípulos para o Padre, como do Padre para os discípulos.
Agora conheço, Amante divino, com quanta razão duvidei se o vosso amor vos dividira a alma entre o Padre e os homens, ou a dera toda a ele, e toda a eles. Quando vos vejo ir para o Padre três vezes, e tornar para os homens três vezes, não só me parece que está dividida a vossa alma, mas dividida, que é mais, em partes iguais. Porém, quando ouço o sentimento do que dizeis em uma parte, e a dor do que estranhais na outra, não posso duvidar que falais com toda a alma, e que toda a leva o vosso amor quando ides, e toda a traz quando tornais. Mas, como pode ser que seja toda e a mesma, sendo os caminhos tão diversos e os termos tão opostos? Quando vos apartastes dos discípulos para orar ao Padre, diz S. Lucas que a distância foi um tiro de pedra: Quantum jactus est lapidis (Lc. 22,41).E se víssemos que uma pedra por si mesma já subia para cima, e já tornava para baixo, que diríamos?
Fundamento tínhamos para dizer que esta pedra tinha dois centros. Quereis logo, Amante divino, ou dai-nos licença para que cuidemos e digamos o mesmo de vós? Quando ides para o Padre, diremos que um centro vosso é o Padre: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem; e quando vindes para os homens, diremos que outro centro também vosso são os homens: In finem dilexit eos.
Não sei se me atreva a dizer tanto; só digo que tão pouco como isto obrou, e tão pouco pode a melhoria do objeto para mudar ou diminuir o amor de Cristo. E para que concluamos este discurso, como os outros, com efeito contrário, acrescento que, sem embargo de ser o Padre tão infinitamente maior e melhor objeto, tão fora esteve o objeto de render e levar a si o amor, que antes o amor rendeu e levou a si o objeto. E de que modo? Fazendo que o mesmo Padre, que havia de ser o objeto, só amado, fosse ele também amante dos homens. E quando os homens parece que haviam de perder o amor do Filho que se partia, não só conservaram inteiro o amor do mesmo Filho, mas adquiriram de novo o amor do Padre. Ouvi e pasmai. O amor com que o Padre e o Filho se amam é de tal qualidade, que assim como são a mesma coisa por natureza, são também a mesma coisa por amor. E quando o Filho se partiu dos homens para o Padre, que sucedeu? Cresceu esta mesma união de amor, e se multiplicou de tal sorte, que não só Cristo e o Padre entre si, senão Cristo, o Padre e os homens todos ficaram a mesma coisa. Nem crer, nem imaginar se pudera tal extremo de união se o mesmo Cristo o não declarara, como declarou na mesma hora. Despedindo-se o Senhor dos discípulos, estando ainda à mesa depois da Sagrada Ceia, fez esta oração a seu Padre: Non pro eis rogo tantum, sed et pro eis, qui credituri sunt per verbum eorum in me, ut omnes unum sint, sicut tu Pater in me, et ego in te, ut et ipsi in nobis unum sint (Jo. 17,20 s). Quer dizer: Não só vos rogo, Pai meu, por estes poucos discípulos que tenho presentes, senão por todos aqueles que, por meio da sua doutrina, hão de crer em mim —
que são todos os cristãos — e o que vos peço é que, assim como nós, por união de amor, somos uma mesma coisa, vós em mim e eu em vós, assim eles em vós e em mim sejam também uma coisa, pela mesma união. — Quem não pasma tendo ouvido tais palavras, ou não tem juízo, ou não tem fé. E por que não parecesse que esta união de amor era só pedida por Cristo em dúvida de o Padre a conceder ou não, o mesmo Senhor testificou logo que ele, em nome seu e no do Padre, a tinha já concedido aos homens: Et ego claritatem quam dedisti mihi, dedi eis, ut sint unum, sicut et nos unum sumus. Ego in eis, et tu in me, ut sint consumati in unum (33). Um e outro texto é tão claro, que não hão mister comentos; mas, para maior satisfação de todos, quero que ouçais o do doutíssimo Maldonado, cuja autoridade sabem quão singular é todos os que lêem as Escrituras: Sensus est -diz ele — ea ratione fieri, ut cum Pater in Christo unum sit, et Christus unum cum discipulis, et discipuli unum cum Patre, idest, cum Deo sint, qua unitate nulla potest esse major.
Oh! se alcançássemos a compreender quão alto, quão divino, quão inestimável foi este último e supremo invento do amor de Cristo, o qual, antes de se obrar, excedia toda a imaginação, e, depois de obrado, excede toda a capacidade humana. O Padre no Filho, o Filho no Padre, o Padre e o Filho no homem, e o homem no Padre e no Filho, com uma trindade de pessoas e uma unidade de amor tão perfeito que o mesmo Cristo lhe chamou consumada: Ego in eis, et tu in me, ut sint consummati in unum. Mas até os mesmos apóstolos então não puderam compreender tal extremo de união e amor, e por isso lhes disse o mesmo Cristo que, depois de alumiados pelo Espírito Santo, o conheceriam: In illo die vos cognoscetis quia ego sum in Patre meo, et vos in me, et ego in vobis (34). Fique logo, por última conclusão, que mal podia a melhoria do objeto mudar o amor de Cristo para com os homens, pois, em vez de o mudar nesta mesma partida para o Padre, o melhorou de maneira que até o mesmo amor com que Cristo ama ao Padre, e o amor com que o Padre ama a Cristo, se uniram em um amor, para mais e mais os amar: Ut transeat ex hoc mundo ad Patrem, in finem dilexit eos.
VII
Eis aqui, fiéis, como nenhum dos remédios que costumam acabar ou diminuir o amor, nenhum dos contrários, que o costumam contrastar e vencer, foi bastante para que o intensíssimo amor com que Jesus nos amou e ama, não digo se esfriasse ou enfraquecesse, mas se remitisse um ponto, servindo só o poder dos remédios para mais o acender, e a força dos contrários para mais fortemente os triunfar.
Venceu o seu amor o tempo, venceu a ausência, venceu a ingratidão, e até da melhoria de um tão incomparável objeto não pôde ser vencido. Julgue agora a nossa obrigação, se quando se rendem ao mesmo amor todos os contrários, será justo que lhe resistam os seus, e se na hora em que morre de amor sem remédio o mesmo amante, será bem que lhe faltem os corações daqueles por quem morre?
Amemos a quem tanto nos amou, e não haja contrário tão poderoso que nos vença, para que não perseveremos em seu amor. Se ele nos amou por toda uma eternidade, por que o não amaremos nós por tão poucos dias, e tão breves, como são os da nossa vida? Aprenda a fraqueza da nossa virtude ao menos da constância de nossos vícios; e pois não basta o tempo a nos mudar dos pecados, não baste tão facilmente a nos mudar do arrependimento deles. Não tem o nosso amor o contrário da ausência que vencer, porque sempre temos ao mesmo Cristo, enquanto Deus e enquanto homem, presente; e se a sua presença se não deixa ver de nossos olhos, não seja motivo de diminuir o amor o que foi traça de acrescentar as saudades. Lembremo-nos todas as horas de quem hoje a esta hora se nos deu todo a si mesmo, e amanhã, antes desta hora, estará morrendo por nós em uma cruz. Ele, de tantas ingratidões fez motivos de mais nos amar, e nós por que o não faremos de tantos e tão imensos benefícios? Que nos fez um tão bom Senhor para o ofendermos? Oh! que ingratidão tão desumana!
Oh! que ingratidão tão indigna de feras, quanto mais de criaturas com uso de razão! A quem te criou, a quem te remiu, a quem tanto te amou, não amas? A quem te comprou com o sangue o céu, e te tirou do inferno quantas vezes o ofendeste, tens ainda coração para o tornar a ofender? Que amamos, cristãos, se não amamos a Jesus? Que objeto mais digno de ser amado? Que objeto que compita com ele, não digo na igualdade, senão na semelhança? Toda a outra formosura, em comparação da sua, não é fealdade? Toda a outra grandeza não é vileza? E todo o outro nome de bem não é mentira?
Indignamo-nos dos que trocaram a Cristo por um malfeitor, e do que o vendeu por tão vil preço, e será bem que nós o troquemos e vendamos ainda mais vil e afrontosamente?
Ah! Senhor, que só o vosso amor, que não teve remédio, pode ser o remédio das loucuras do nosso.
Remediai tantas cegueiras, remediai tantos desatinos, remediai tantas perdições. E pelo amor com que nos amastes no fim, tenha hoje fim todo o amor que não é vosso. Esta é, amoroso Jesus, esta é só a mercê que por despedida vos pedimos nesta última hora vossa. Lembrai-vos, enfermo divino, que estais nos últimos transes da vida. Não vos esqueçais de nós em vosso testamento. O legado que esperamos de vossa liberalidade, como criados, e a esmola que pedimos a vossa misericórdia, como pobres, é que nos deixeis, pois nos deixais, alguma parte do vosso amor. Amanhã vos hão de partir o coração: reparti dele conosco, para que de todo o coração vos amemos. Oh! quanto nos pesa nesta hora, e para sempre, de vos não ter amado como devíamos! Nunca mais, Senhor, nunca mais! Só a vós havemos de amar de hoje em diante, e posto que em vós concorram tantos motivos de amor, e tão soberanos, só a vós, e por serdes quem sois. Assim o prometemos firmemente a vosso amor, e assim o confiamos de vossa graça, e só para que vos amemos eternamente na glória.