Sermão de S. Roque
§ I
Ou a vida de S. Roque foi errada, ou todo o mundo é louco. Que resolução tomaria quem se visse, como S. Roque, em vinte anos de idade sem sujeição de filho, senhor da cidade e estado de Mompilher, herdeiro de grande casa e riquíssimos tesouros? As três resoluções de S. Roque e os três pontos do sermão: aos homens nem servir nem mandar; a Deus e só a Deus servir.
Ou a vida de S. Roque foi errada, ou todo o mundo é louco. Assim o dizia eu, não há muitos dias, e quanto mais considero nos passos que leva o mundo, e nos que seguiu S. Roque, tão encontrados, tanto mais me confirmo nesta verdade. Vejamos o que fez S. Roque na eleição da sua vida, e o que fizera no mundo em semelhante ocasião qualquer outro da sua idade, da sua fortuna e do seu nascimento. Foi tão venturoso S. Roque, que lhe faltaram seus pais antes de cumprir os vinte anos.
Desgraça se chamava isto antigamente, mas eu lhe chamei ventura, por me acomodar à frase do tempo. Nenhuma coisa parece que sentem hoje mais os filhos que a larga vida dos pais. Quem não quer esperar a herdá-los depois da morte, como lhes pode desejar longa vida? Quase todos os títulos que acabaram estes anos na nossa côrte nasceram únicos, e morreram gêmeos: primeiro os lograram juntamente os filhos do que os deixassem os pais. Uma capa, diz o Espírito Santo, não pode cobrir a dois. Mas querem os homens poder mais do que Deus sabe. Um se cobre com o direito da capa, e outro com o avesso no mesmo tempo. Tão larga lhes parece aos filhos a vida dos pais, que não se atrevem a lhes esperar pela morte. Enfim, ou seja indecência nos filhos de hoje, ou fosse ventura em S. Roque, ele se viu em vinte anos de idade sem sujeição de filho, Senhor da cidade, e estado de Mompilher, que era de seus pais, herdeiro de grande casa, e riquíssimos tesouros, que desde seus antepassados se guardavam e acrescentavam nela.
Isto suposto, que resolução vos parece que tomaria no tal caso aquele filho, ou que faria qualquer dos presentes, se nele se achara com sangue ilustre, com estado, com vassalos, com tantas riquezas, e com tão poucos anos? Parece-me a mim, julgando o que cuido pelo que vejo, que tomaríeis uma de duas resoluções. Ou passados os lutos vos partiríeis para a côrte — e mais sendo a côrte a de Paris, aquele mundo abreviado para luzir, para ostentar, para competir em galas, em aparatos, em grandezas, e juntamente para assistir, para servir e para merecer diante do rei, e por esta via alcançar novos acrescentamentos à casa e à pessoa. Esta era a resolução mais viva, e mais própria daquela idade.
Mas, se o vosso juízo fosse mais assentado, se vencesse na madureza os anos, e se aconselhasse ou se deixasse aconselhar sisudamente, julgaria eu pelo contrário que, renunciando pensamentos de côrte, como mar turbado, inquieto, e em nenhum tempo seguro, vos deixaríeis ficar no vosso estado, conservando nele melhor, e a menos custo, a autoridade, gozando com descanso o que vossos avós com trabalho vos tinham ganhado, e governando em paz e quietação vossos vassalos, sendo amado, servido e reverenciado deles.
Não há dúvida que uma destas duas resoluções tomaria qualquer dos presentes, cada um segundo o mais ou menos repouso do seu juízo. Mas a Roque - e sendo francês nenhuma delas lhe pareceu bem:
seguiu muito diferente caminho. Manda vir diante de si seus tesouros, abre-os e a primeira coisa que viu neles foram os corações de todos os seus antepassados. Contente de não achar também ali o seu, chama os pobres de toda a cidade, troca com eles a fortuna, fá-los ricos, e fica pobre. Já eu vou vendo que quem isto obra com as mãos, muito maiores e mais altos pensamentos revolve no peito. Faz que venha logo um notário, renuncia publicamente o Estado, e tudo o que nele tinha e lhe podia pertencer;
veste-se no hábito da Terceira Ordem de S. Francisco, toma bordão e esclavina, e parte peregrino pelo mundo a buscar e a servir só aquele grande Senhor, que em todo o lugar tem a sua côrte, porque está em todo o lugar. Isto que nenhum outro fizera fez S. Roque, e por isso ele só, como dizia, é o sisudo, e o resto do mundo o louco. Notai. Pudera S. Roque ir servir a el-rei na côrte del-rei, e não quis servir;
pudera S. Roque mandar os seus vassalos na sua, e não quis mandar: resolve-se a servir só a Deus, livre de todo o outro cuidado, e com estas três resoluções conseguiu toda a felicidade, não só da outra vida, senão também desta, que é o que diz a proposta do nosso texto: Beati sunt servi illi. Todos os homens, e mais os cortesãos, andam buscando a felicidade desta vida. E que fazem para a alcançar?
Todos ocupados em servir, e todos morrendo por mandar, e por isso nenhum .acaba de achar a felicidade que busca. Quereis conseguir a verdadeira felicidade, não só da outra, senão também desta vida? Tomai as três resoluções de S. Roque. Servir? Só a Deus. A homens? Nem servir, nem mandar.
Nisto consiste toda a prudência e felicidade humana, nisto consiste toda a prudência e felicidade cristã. Se somos cristãos, havemos de tratar a Deus; se somos homens, havemos de tratar com os homens. Pois, que remédio para ter felicidade com os homens e para ter felicidade com Deus? Imitar a S. Roque. Para ter felicidade com Deus, servir a Deus, para ter felicidade com os homens, nem servir a homens, nem mandar homens. Três pontos de prudência, três pontos de felicidade e três pontos de sermão. A homens, nem servir, nem mandar: a Deus, e só a Deus servir. Beati sunt servi illi.
§ II
Não quis S. Roque servir a homens porque não quis deixar de ser homem. O martírio de servir. A
guerra que padeceu ou podem padecer nas côrtes, ainda os homens que melhor servem, se têm outros sobre si. Quais são os que, segundo Davi, pisam nossas cabeças, não só com os seus pés, senão com os dos seus cavalos? Os sapatos dos reis não pisam, coroam. Para um homem se conservar na côrte e na praça dos reis, como Davi se queria conservar na de el-rei Aquis, o meio mais proporcionado e efetivo é andar às avessas.
A primeira resolução de S. Roque, como se fora mais que homem, ou menos que homem, foi não querer servir a homens, nem mandar homens. Não querer servir a homens, ainda que fossem reis, parece muita soberba: não querer mandar homens, ainda que fossem vassalos, súditos, e criados próprios, parece pouco valor. Mas nem o primeiro foi arrogância, nem o segundo pusilanimidade:
grande juízo, grande ânimo, grande generosidade, sim. Obrou S. Roque como homem, como cristão, como santo. E pois a mim me toca hoje declarar as razões que ele teve, e persuadir a que tenha imitadores, ao mesmo santo peço se digne de assistir com tal espírito ao meu discurso, que se não afaste muito dos meus pensamentos.
Primeiramente não quis S. Roque servir a homens, porque não quis deixar de ser homem. Ao homem fê-lo Deus para mandar: aos brutos para servir. E se os brutos se rebelaram contra Adão, e não quiseram servir ao homem, sendo tão inferiores, triste e miserável condição é haver um homem de servir a outro, sendo todos iguais. A primeira vez que se profetizou neste mundo haver um homem de servir a outros, foi com o nome de maldição. Assim fadou Noé a seu neto Canaã, em castigo do pai e mais do filho. Ainda então se não sabia no mundo que coisa era servir; então se começou a entender a maldição pelo delito, e a miséria pelo castigo. Meios homens chamou depois o poeta lírico aos que servem, e disse bem. Toda a nobreza e excelência do homem consiste no livre alvedrio, e o servir, se não é perder o alvedrio, é cativá-lo. Razão teve logo S. Roque de não querer servir a homens, por não deixar de ser homem.
De homens, sem lhes chamar mais que homens, fala Davi no Salmo sessenta e cinco, e declara com um notável encarecimento, o que quase se padece sem reparo pelo costume: Quoniam probasti nos, Deus; igne nos examinasti, sicut examinatur argentum. Induxisti nos in laqueum; posuisti tribulationes in dorso nostro; imposuisti homines super capita nostra (2): Quiseste, Senhor, prover e experimentar em nós quanto pode suportar a paciência e aturar a constância humana, e a uns examinastes com fogo — como a Lourenço: Igne nos examinasti — a outros metestes em prisões e cadeias — como a Pedro e Paulo — : Induxisti nos in laqueum — a outros carregastes de tribulações e trabalhos — como os outros mártires e confessores — : Posuisti tribulationes in dorso nostro: e, sobretudo, sujeitastes uns homens a outros homens, e pusestes a uns sobre a cabeça dos outros:
Imposuisti homines super capita nostra. Pois, a maior prova, a maior experiência, o maior exame, e o maior encarecimento da paciência e sofrimento humano, é pôr Deus uns homens sobre a cabeça dos outros? Sim. Porque os que estão de cima são os que mandam, os que estão debaixo são os que servem, e sendo os que servem iguais aos outros por natureza, que estes os tragam sobre a cabeça, e que eles os metam debaixo dos pés: Homines super capita nostra: nem toda a penitência dos confessores iguala esta dor, nem todos os tormentos dos mártires este martírio.
Mais diz o texto. Mas, antes que passemos avante, parece que por isto mesmo havia S. Roque de querer servir a homens, ao menos como santo. Assim é, e assim o fez a paciência e constância de S.
Roque, padecendo fora da pátria, e dentro nela, e por mãos de seus próprios vassalos, feridas, afrontas, falsos testemunhos, prisões e cárcere perpétuo até a morte. Mas tudo isto qui-lo ele padecer por amor de Deus, e não por servir aos homens. E fez muito bem, e com muito maior razão do que temos visto. Torne agora o texto. Onde a nossa Vulgata lê: Imposuisti homines super capita nostra, no original hebreu está: Equitare fecisti homines super capita nostra: Fizestes, Senhor, para prover a nossa paciência, que os homens andassem a cavalo sobre as nossas cabeças.—Vede se vai muito de uma coisa à outra. De sorte que, aos miseráveis que servem debaixo, não se contentam os que servem de cima de os pisar com os seus pés, senão também com os dos cavalos: Equitare fecisti homines super capita nostra. Se me perguntarem, porém, onde podem suceder tais casos, que homens tratem assim a homens, e a homens que os servem, respondo que onde S. Roque não quis ir, nas côrtes. Para inteligência desta verdade — de que bastava por prova a experiência — havemos de supor que nas côrtes, por cristãs e cristianíssimas que sejam, não basta só ter a graça do príncipe supremo, se não se alcança também a dos que lhe assistem. Fala não menos que da côrte de Deus o evangelista S. João no seu Apocalipse, e saúda desta maneira aos bispos da Ásia, a quem escreve: Gratia vobis, et pax ab eo, qui est, et qui erat, et qui venturus est: et a septem spiritibus, qui in conspectu throni ejus sunt: et a Jesu Christo, qui est testis fidelis, primogenitus mortuorum, et princeps regum terrae (3): A graça e a paz de Deus Padre e dos sete espíritos, que assistem ao seu trono, e a de Cristo Jesus, seu Filho primogênito e Príncipe dos reis da terra, esteja convosco. — Parece-me que todos já tendes reparado nos termos desta saudação e imprecação do mais bem entendido de todos os apóstolos. Se deseja àqueles prelados da sue diocese a graça de Deus Padre, supremo Senhor e Governador de tudo, por que lhes pede também a dos ministros que assistem ao seu trono; e se à graça do Padre ajunta também a de seu Filho primogênito, o Príncipe dos reis da terra, por que põe esta no terceiro lugar, e a dos ministros no segundo? Porque falava o Evangelista da côrte do céu à semelhança das côrtes do mundo. Não basta ter a graça do rei e a graça do príncipe se não tiverdes também a dos ministros que assistem ao trono. Bem sei eu quem tem a graça do pai e mais a do Filho, e se o seu desinteresse se não contentara só com a graça, pode ser que os ministros que se atravessam entre um e outro lha não deixaram em paz: Gratia vobis et pax (4). Esta é a primeira suposição da guerra que padecem, ou podem padecer nas côrtes, ainda os homens que melhor servem, se têm outros sobre si: Imposuisti homines super capita nostra (5) .
Mas quais são os que os pisam, e não só com os seus pés, senão com os dos seus cavalos: Equitare fecisti? É certo que não são os reis, porque os pés reais não pisam nem magoam: honram e autorizam.
Por isso se lançam a seus pés os vassalos, e quanto maiores e mais dignos, mais lhes metem debaixo dos pés as cabeças. Lá disse Tertuliano que Minerva calcava na cabeça o capacete: Minerva calceans galeam. Assim é o calçado dos reis. Os seus sapatos não pisam, coroam. Quais são, logo, os que pisam tão honradas cabeças, como aquelas entre as quais se contava a de Davi, e não só com os seus pés, senão com os dos seus cavalos: Equitare fecisti homines super capita nostra? Aqui entra agora segunda e mais lastimosa suposição, e menos digna de se crer, se não dissera Salomão, que a viu com seus olhos: Vidi servos in equis, et príncipes ambulantes super terram (Ecl 10, 7): Vi os servos a cavalo, e os príncipes a pé — Sem dúvida que isto viu Salomão profeticamente, quando viu apeado a Roboão seu filho, e a Jeroboão seu servo entronizado. E em outros reinos, quando acontece isto mesmo? Bem é que o perguntemos, pois não vemos no nosso esta desgraça, que bastara a corromper todas suas felicidades. Acontece isto quando o príncipe, a quem toca ter as rédeas na mão, por desídia e negligência, as larga e entrega ao servo. Então é que o servo, montado a cavalo, vendo-se imposto sobre as cabeças dos homens, não só as pisa a dois pés, senão a quatro. Diga-o Mardoqueu debaixo de Amã, no reinado de Assuero, e Daniel com os sátrapas no de Nabuco e Dario. Em tais tempos, em vez de os homens servirem gloriosamente aos reis, são ignominiosamente servos dos servos, e padecem sem lhes valer a cor do rosto — onde só lhes faltam os ferretes — a maldição de Canaã, que hoje se cumpre nos cafres e nos etíopes: Maledictus Chanan, servus servorum erit fratribus suis (6) — para que se veja se um espírito tão generoso, como o de S. Roque, havia de sujeitar a sua cabeça, ou expôla, por nenhum preço, a semelhantes abatimentos.
Bem vejo que a sua qualidade e grandeza tinha altos fundamentos para esperar na côrte diferentes respeitos. Mas os meios, por onde estes se conservam, ainda eram mais alheios da inteireza de seu espírito. Quis conservar Davi na côrte de el-rei Aquis o grande lugar que tinha na sua graça, e que meio tomou para que os que estavam ao lado do mesmo rei o não descompusessem, e ainda destruíssem? Já sabemos que se fingiu doido, e para fazer mais pública a sua doidice, diz a História Sagrada, que andava com os pés para cima e a cabeça para baixo. Era habilidade e destreza em que Davi se tinha exercitado por jogo, quando pastorinho, como moço de tantas forças e agilidade, e agora se aproveitou dela para este disfarce, que todo o saber serve. Em suma, que, sustentando-se e movendo-se sobre as mãos, andava com a cabeça para baixo e os pés para cima, e isto quer dizer:
Ferebaturin manibus suds (7) — texto que tanta dificuldade causou a Santo Agostinho e ninguém depois dele, que eu saiba, o explicou até agora. Mas este é o sentido próprio e literal daquelas palavras. E o moral e político de uma ação tão extraordinária qual será? É que para um homem se conservar na corte e na graça dos reis, como Davi se queria conservar na de el-rei Aquis, o meio mais proporcionado e efetivo, e ainda forçoso, é andar às avessas. Os pés para cima, e a cabeça para baixo, e, para não tomar o céu com as mãos, trazer as mãos pela terra: Ferebatur in manibus suds. E seria bem que um coração tão generoso, tão inteiro e tão reto, como o de S. Roque, e um homem mais de quebrar que torcer, se torcesse e abatesse a semelhantes indignidades? Não há dúvida que seria pôr a mão no chão, como pouco honrado, e ainda os pés no céu, como mau cristão. Por isso não quis nada da côrte, nem servir a homens, ainda que fossem reis. Fora, fora, e muito longe.
§ III
Por que S. Roque não quis mandar homens? Como se livra a mulher da condenação de estar sujeita ao homem? Sobre que batalhavam Jacó e Esaú, ainda antes de nascidos? Maior servidão é mandar homens que servi-los. Palavras de el-rei Antígono ao filho Eliano. O homem, monstro ou quimera de todos os elementos. O governo de Adão e o governo de Noé.
Parece-me que o dito basta, senão para persuadir a imitação, ao menos para provar a prudência e acertado juízo com que S. Roque se resolveu a não servir a homens. A eleição porém, de os não querer mandar, não digo só que haverá muito poucos que a imitem, mas duvido que haja algum que a não estranhe, e ainda condene. Tão natural é ao homem o desejo e apetite de mandar homens! Diz o apóstolo S. Paulo que a mulher se salvara pela geração dos filhos: Salvabitur autem — mulier — per generationem filiorum (Tim 2, 15). E a explicação comum desta sentença é que a primeira mulher, que foi Eva, se salvou pela geração de um filho seu, que é Cristo. Mas este gênero de salvação não compete só a mulher, senão igualmente ao homem, e tanto a Adão como a Eva. Logo, que salvação é esta de que goza só a mulher, e não o homem pela geração dos filhos? Direi. Em Eva houve duas condenações: uma à morte e ao inferno, pelo pecado de que a salvou e livrou Cristo — e esta foi comum ao homem e à mulher — outra particular e própria só da mulher, em que Deus a condenou a estar sujeita ao homem: Sub viri potestate eris (8) — E desta segunda condenação se salva e restitui a mulher pela geração dos filhos: Per generationem filiorum. E por que, ou de que modo? Porque pela geração dos filhos fica mãe, e ainda que como mulher está sujeita ao homem, que é marido, enquanto mãe pode mandar homens, que são os filhos. Daqui vem que por linha direita de Eva, e por força da mesma geração, nascem todos os homens inclinados a mandar homens. Vêde-o em Jacó e Esaú, ainda antes de nascidos. Lutavam um contra o outro no ventre da mãe: e sobre que batalhavam? Sobre qual dos dois havia de mandar, e o outro servir. Assim o declarou o mesmo Deus, quando sentenciou a contenda respondendo à mãe — de quem foi consultado — que o menor havia de ser o que mandasse, e o maior o que servisse: Maior serviet minori (Gên 25, 23).
Sendo, pois, o desejo de mandar no homem não só soberania da natureza no seu primeiro estado, como em Adão, mas reparo e alívio do segundo, como em Eva, e, nascendo o mesmo desejo, antes, sendo gerado conosco, como em Jacó e Esaú, por que não quer mandar S. Roque? O mesmo entendimento e alto juízo, com que não quis servir, o obrigava a que quisesse mandar, porque é primeiro princípio da política natural, como ensina Aristóteles, que aos mais bem entendidos pertence o mandar, como aos que menos entendem o servir. Logo, contra todos estes ditames da natureza e da razão parece que obrou S. Roque, em demitir de si o mando e governo dos súditos, de que o nascimento o fizera herdeiro, e o entendimento senhor. O não querer servir a homens, seja embora prudente resolução, pelos motivos que apontamos; mas o não querer mandar homens, e tais homens, que fundamentos podia ter bastantes, não digo já, que aprovem uma tão extraordinária ação, mas que racionalmente a não estranhem, e ainda condenem? Bem creio que não ocorrerão facilmente as razões a ambição e apetite cego com que se governa o mundo, por isso tão mal governado. Respondo, porém, e digo que, se S. Roque teve grandes razões para não servir a homens, as mesmas, e muito maiores, teve para não querer mandar homens. E por que? Porque maior servidão é o mandá-los que o servilos.
Falando el-rei Antígono com o príncipe seu filho sobre a administração e governo do reino, de que o havia de deixar por herdeiro, admirado o generoso moço de tamanhas obrigações e encargos, refere Eliano que lhe disse o pai: An non-novisti, fili mi, regnum nostrum esse nobilem servitutem? E ainda não sabias, filho meu, que o nosso reinar não é outra coisa que uma servidão honrada? — Honrada disse, e com grande juízo. Porque a servidão dos servos é servidão sem honra, e por isso menor e menos pesada. Mas, sobre o peso da servidão, haver de sustentar também o da honra, é muito maior sujeição e muito mais pesada carga. É servir a fama e às bocas dos homens, cujos gostos são tão vários e tão estragados, que até o maná os enfastia. Se um homem não pode servir a dois, como disse Cristo, como poderá servir a tantos mil? A cada homem deu Deus um anjo da guarda, e não mais que um homem a cada anjo: e se um anjo que move e governa com tanto concerto e ordem todo o céu das estrelas, não basta para guardar a um homem de si mesmo, e governar ordenada e concertadamente a um homem, entre os outros, como bastará um só homem para conter dentro das leis e manter em justiça a tantos homens? Não sabe o que são homens quem isto não considera e penetra; penetrou-o, porém, alta e profundamente S. Roque na verdura dos anos, com o siso e madureza que não vemos em tantas idades decrépitas.
Os filósofos antigos chamaram ao homem mundo pequeno; porém, S. Gregório Nazianzeno, melhor filósofo que todos eles, e por excelência o Teólogo, disse que o mundo comparado com o homem é o pequeno, e o homem, em comparação do mundo, o mundo grande: Mundum in parvo, magnum. —
Não é o homem um mundo pequeno que está dentro do mundo grande, mas é um mundo, e são muitos mundos grandes, que estão dentro do pequeno. Baste por prova o coração humano, que, sendo uma pequena parte do homem, excede na capacidade a toda a grandeza e redondeza do mundo. Pois, se nenhum homem pode ser capaz de governar toda esta maquina do mundo, que dificuldade será haver de governar tantos homens, cada um maior que o mesmo mundo, e mais dificultoso de temperar que todo ele? A demonstração é manifesta. Porque nesta máquina do mundo, entrando também nela o céu, as estrelas tem seu curso ordenado, que não pervertem jamais; o sol tem seus limites e trópicos, fora dos quais não passa; o mar, com ser um monstro indômito, em chegando às areias pára; as árvores, onde as põem, não se mudam; os peixes contentam-se com o mar, as aves com o ar, os outros animais com a terra. Pelo contrário, o homem, monstro ou quimera de todos os elementos, em nenhum lugar pára, com nenhuma fortuna se contenta, nenhuma ambição nem apetite o farta: tudo perturba, tudo perverte, tudo excede, tudo confunde e, como é maior que o mundo, não cabe nele. Grande exemplo no mesmo mundo, tão cheio como hoje está, mas vazio e despovoado com os filhos de Adão e Noé. A
Adão deu-lhe Deus o império sobre todo o mundo, sobre os peixes, sobre as aves, sobre os animais da terra, e não pôde governar em paz dois homens, e esses irmãos, sem que matasse ao outro. Noé governou todos os animais e conservou-se pacificamente dentro em uma arca, e fora dela não pôde governar três homens, sem que um o não descompusesse e afrontasse, sendo todos três seus filhos.
Vede se é mais pesada servidão e mais dificultosa a de governar, e mandar homens que a de servir?
Quem serve, como não pode servir mais que a um, sujeita-se a uma só vontade; mas quem manda, como há de governar a todos, há de sujeitar a si as vontades de todos, e essas não de filhos, em que é natural a obediência e o amor, nem de irmãos entre si, em que as qualidades são iguais e as naturezas semelhantes, mas de tantas e tão diversas condições e inclinações, como são neles os rostos e os intentos.
§ IV
Quão grande trabalho é ser sol e ser rei? Entre o Senhor que manda e os súditos que servem há a mesma diferença que entre o coração e os sentidos. Os travesseiros de ouro de Salomão. A púrpura podem-na despir os príncipes quando se deitam, mas os cuidados, que os desvelam, não podem. A
coroa de espinhos e os cuidados dos mandos. O duríssimo juízo de Deus sobre os que tiveram mando neste mundo.
Daqui se segue — o que ainda humanamente pesou não pouco no juízo de S. Roque — que o que serve, por dura que seja a sua servidão, sempre tem horas de alívio e descanso; o que manda, nenhuma. Ut sol stare nescit, ita tu Imperator: disse Pacato em um panegírico ao imperador Teodósio Magno: — Assim como o sol nunca pára, assim vós, ó grande imperador — e por isso grande. Fez Deus ao sol príncipe do mundo: Luminare majus,ut praeesset diei (9) — e desde o dia em que lhe deu este ofício até hoje não descansou um momento. Tão grande trabalho é ser sol, e tão grande a sua sujeição, posto que em lugar tão alto. Uma inquietação perpétua, um movimento contínuo, um correr e rodear sempre, e dar mil voltas ao mundo, sem descansar nem parar jamais. Quando dizemos que o sol se põe, é engano, porque então se parte a governar os antípodas. Não vamos buscar a prova da semelhança mais longe, pois a temos de casa, e nos nossos reis, mais própria que em nenhum outro do mundo. Quando os vassalos dormem e descansam, parece que um rei de Portugal faz o mesmo, depois do governo e trabalho de todo o dia, e não é senão que passou aos antípodas. Lá nada com o pensamento e com o cuidado pela China, pelo Japão, pelos reinos do Idalcão, do Samori, do Mogor, pelo Cabo da Boa Esperança, pelo do Comori, pelos Javas, pelos mares e costas da África, da Ásia e da América, visitando armadas e fortalezas, compondo pazes, abrindo comércios, e meditando sempre aumentos do reino de Deus e do seu, sem outra quietação ou descanso mais que aparente aos olhos, porque o sol não tem verdadeiro acaso. O relógio, que é o substituto do sol na terra, não soa, nem se ouve por fora, senão a certos tempos; mas nem por isso está ocioso ou quieto, sempre os pesos estão a carregar, sempre as rodas estão a moer: e tais são os cuidados do príncipe de dia e de noite. Para os súditos, que obedecem e servem, há diferença de dias e noites; para o príncipe, que governa e manda, sempre é dia. Assim dizia Jó dos seus cuidados: Noctem verterunt in diem (10).
Entre o Senhor que manda, e os súditos que servem, há a mesma diferença que entre o coração e os sentidos. Dorme o homem, e todos os sentidos descansam. Os olhos não vêem, os ouvidos não ouvem, a língua não fala, e assim dos demais. Mas se nesse mesmo tempo, a esse mesmo homem lhe puserdes a mão sobre o peito, vereis como está batendo nele e palpitando o coração. E se tornardes depois uma e muitas vezes, a qualquer hora, sempre o haveis de achar no mesmo movimento. Pois, os sentidos, iguais na baixeza aos dos brutos, dormindo a sono solto, e o coração princípio da vida, e nobilíssima parte do homem, sempre velando, sem descansar jamais? Sim que isso é ser coração. O
coração da república é quem a manda e governa. E quando a mesma república lhe deu a soberania desse cuidado, depositou nele todos seus cuidados. Ele há de cuidar sem descanso, para que todos descansem, e ele vigiar; para que todos durmam. Ego dormio, et cor meum vigilat (11) — dizia Salomão — e o leão, rei dos animais, dorme com os olhos abertos. Vigiar como o coração, quando todo o corpo dorme, é ser leão entre os animais e Salomão entre os homens.
Muito me admirou sempre na fábrica do leito do mesmo Salomão que os travesseiros, em que havia de inclinar a cabeça, os fizesse de ouro: Reclinatorium aureum, ascensum purpureum (Cant 3, 10): A
subida de púrpura, mas a cabeceira de ouro. — Parece-se-me isto com o que cuidam os rústicos, que os reis dormem em lençóis de brocado. Travesseiros de ouro são ricos e preciosos, sim, mas muito duros, muito frios, e muito desagasalhados. Quanto melhor é uma manta no Bussaco, ou uma cortiça na Arrabida? Porém, Salomão, com toda a sua sabedoria, não soube traçar à cama dos reis outra cabeceira mais branda, porque não era feita para conciliar o sono, senão para o inquietar. Assim dormia inquieto Faraó, sonhando nos sete anos de fartura do seu reino, e nos sete da fome. Assim dormia inquieto Nabucodonosor, sonhando na duração de sua monarquia, e das três que lhe haviam de suceder. E até José, a quem Deus ia criando para mandar e ser príncipe, enquanto os lavradores seus irmãos repousavam, ele, sendo de menos anos, não podia dormir quieto. Lá andava sonhando com as paveias e com as estrelas, e revolvendo no pensamento o céu e mais a terra. A púrpura podem-na despir os príncipes quando se deitam, mas os cuidados que os desvelam não podem. Quando a Cristo, no pretório de Pilatos, o fizeram representar figura de rei, coroaram-no de espinhos e vestiram-no de púrpura. E notou advertidamente S. Pascásio, que a púrpura tornaram-lha a despir, mas a coroa de espinhos nunca a largou da cabeça: Porro spinas, quas capite gestavit, non mutavit, nec alicubi transposuit. As espinhas são os cuidados, como lhes chamou o mesmo Cristo, e a quem é rei, ou o representa no mundo, sempre estas espinhas lhe estão picando a cabeça, sempre lhe estão roendo os pensamentos, sempre lhe estão inquietando os sentidos, sem o deixar descansar nem dormir. Aos que servem não há senhor tão tirano que lhes não permita horas de descanso: aos que mandam é tal a tirania do mesmo mandar, que se não tomam por alívio os mesmos cuidados — como diz Tácito de Tibério — nem hora, nem momento lhes consentem de quietação e repouso.
Só se pode replicar contra o encarecido destes ditames — posto que verdadeiros — com o desuso o desprezo deles, e com a singularidade dos mesmos exemplos, tão raros no governo do mundo, como a obediência das leis nos que têm o arbítrio delas. O ordinário é tomar-se do mundo a parte só do poder, da majestade e da grandeza, e deixar-se a do peso e dos cuidados, com pouca ou nenhuma atenção mais que ao descanso, à delicia, ao regalo, e a todos os antojos do apetite livre e poderoso; enfim, a igualar as indulgências da suprema fortuna com os gostos prazeres da vida. Mas esta mesma réplica não desfaz, antes confirma mais tudo o que dissemos, porque se os que têm mando, fazem e padecem quanto o mesmo mando os obriga, dura e triste servidão é a sua. E se o não fazem, nem o querem padecer, ainda é mais triste e mais dura: Judicum durissimum his qui praesunt fiet (Sab 6, 6): Não só duro, mas duríssimo — diz o Espírito Santo — será o juízo de Deus sobre os que tiveram mando neste mundo — porque de tudo o que fizeram e deixaram de fazer, se lhes tomará estreitíssima conta, e muito particularmente dos seus cuidados: Quoniam interrogabit opera vestra, et cogitationes scrutabi fur (12). Dá conta da tua vida, em que empregaste todos teus cuidados, e dá conta das alheias, e de quanto padeceram por teus descuidos. Padeceram na quietação, na fazenda, na honra, nas mesmas vidas, e, o que é mais, na perdição das almas: e de tudo, e de todas, tu que tiveste o mando sobre os homens, me hás de dar conta. Esta foi a consideração com que Pepino em França, Raquísio em Itália, Sigiberto em Inglaterra, Trebélio em Bulgária, Henrique em Chipre, João em Armênia, Ludovico em Sicília, Ramiro em Aragão, Veremundo em Castela, esta foi, digo, a consideração, da qual fortissimamente convencidos estes e outros príncipes, ou sendo reis renunciaram as coroas, ou sendo filhos de reis as heranças, elegendo antes ser súditos, e servir em uma religião, que mandar e ser senhores no mundo. E posto que o estado de S. Roque não era tão grande, foi, contudo, igual a sua razão de estado. Renunciou o seu estado por não dar conta dele e, para tratar só da salvação de um homem, não quis mandar homens.
§ V
Davi e Moisés, os dois maiores exemplos e os dois maiores desenganos do que é servir a homens ou mandar homens. Como pagou el-rei Saul os serviços de Davi. O pago que o povo hebreu deu a Moisés. Que sucedeu ao mesmo Deus quando mandou e quando serviu aos homens? O império de S.
Roque sobre as duas pestes do mandar e do servir. Quando começou no mundo o mandar e o servir?
Temos visto quão grande servidão é o servir a homens, e quanto maior servidão o mandar homens;
demos agora uma volta ao discurso, e vejamos da parte dos mesmos homens, ou servidos ou mandados, qual é o pago que eles costumam dar, tanto a quem bem os serve, como a quem bem os manda. Dois homens houve no mundo, um que melhor que todos soube servir, e outro que melhor que todos soube mandar. O que melhor soube servir foi Davi, o que melhor soube mandar foi Moisés. E
que sucedeu a um e a outro? Ambos foram os dois maiores exemplos, e ambos os dois maiores desenganos do que é servir a homens, ou mandar homens.
Foi chamado Davi a palácio, pela boa informação que teve el-rei Saul de suas excelentes partes, e porque o rei padecia graves melancolias, causadas de um mau espírito que lhe entrava no corpo, era tal a arte e suavidade com que Davi tocava uma harpa, que não só aliviava Saul das suas tristezas, mas até o mesmo demônio, inimigo de toda a consonância, o largava. E como pagou Saul estes exorcismos tão doces? Com deitar mão a uma lança, depois de se ver livre do demônio, e fazer tiro com ela a Davi, para o pregar a uma parede. Assim pagava um rei a quem lhe tirava o demônio do corpo, e pode ser, pode ser que no mesmo tempo se visse mais medrado em seu serviço quem lhe metesse o demônio em casa! Não quebrou a harpa Davi com o primeiro desengano, porque ainda depois tornou a servir a Saul com ela. Retirou-se, porém, para a sua cabana, lançando uma benção ao paço — como pudera muitas maldições — e restituído à soledade do campo e a inocência das suas ovelhas, diz a História Sagrada que jogava com os leões como com cordeiros. Cum leonibus lusit quasi cum agnis (Eclo 47, 3). Também os leões eram feras coroadas, mas não tinha medo deles porque não eram homens. Era tão homem Davi já neste tempo, não contando ainda vinte anos, que ele só se atreveu a sair contra o gigante, de quem os exércitos de Israel tremiam. Vendo Saul uma tão valente determinação, perguntou que moço era aquele. A quem não fará lástima esta pergunta? Este moço, senhor, é aquele que por fama vós mandaste pedir a seu pai; este aquele que vos assistia todos os dias nas horas da tristeza; este o que tocava a harpa, este o que vos recreava e aliviava o ânimo, este o que fazia fugir o demônio. Não há mais que dezoito meses que falta de vossos olhos e já não o conheceis?
É possível que tão depressa se esquecem os príncipes e desconhecem a quem os serve? Pouco era ser possível: é costume. Derruba, finalmente, Davi o gigante, corta-lhe a cabeça, põe-na aos pés de Saul, e este, que foi o maior triunfo da sua nação e a maior gloria da sua pátria, foi a sua maior desgraça para com o rei. Sete vezes lhe procurou Saul tirar a vida, já por arte, já por traições, já por violências públicas e declaradas, umas vezes seus ministros, outras por sua própria pessoa, com gente armada, servindo as mesmas batalhas em que o defendia, e as mesmas vitórias com que o honrava de novos incentivos ao ódio. E Davi? Perseguido, fugitivo, desterrado, banido, sempre leal, sempre fiel, sempre venerador do seu rei, e só inimigo de seus inimigos, aos quais, perseguido, perseguia e fazia cruel guerra. Sobretudo, estava Davi ungido por rei de Israel para suceder ao mesmo Saul, e com licença de Deus para o matar, e tendo-o três vezes debaixo da espada, três vezes lhe perdoou a vida, e lhe deixou a cabeça e a coroa. E que a um vassalo, a quem Saul por tantos modos devia quanto tinha e quanto era, e que, sobre tantas ofensas e sem-razões, o servia, amava, venerava e guardava com tantos extremos de fineza, ele o aborrecesse e perseguisse com tais excessos de ingratidão, de vingança, de raiva, de ódio? Mas era homem Saul, ainda que rei, e assim pagam os homens a quem os serve.
Ao exemplo ou desengano do que melhor que todos soube servir, segue-se, e não sei se com maior assombro, o de quem melhor que todos soube mandar. Fez Deus a Moisés supremo governador do seu povo, e não podem os homens nem desejar, nem fingir algum modo de mandar nem mais útil, nem mais grato, nem mais humano, nem ainda mais divino e mais digno de aplauso e admiração em tudo que o de Moisés. Que podem desejar os homens em quem os manda e governa? Um grande amor e zelo do bem público? E Moisés amou e zelou com tal extremo o povo de Israel, ainda antes de lhe estar encomendado, que mais quis ser afligido e padecer com ele no cativeiro, que ser filho da filha de el-rei Faraó, como nota e encarece S. Paulo. Que mais podem desejar? Que remedeie suas misérias, e os alivie de seus trabalhos? E Moisés fê-lo tanto assim que os libertou do Egito, e da duríssima servidão e tirânico jugo com que eles e seus pais e avós, tantos anos havia estavam oprimidos, e os passou ao domínio da Terra de Promissão, a mais abundante e deliciosa do mundo. Que mais podem desejar? Riquezas? E Moisés, juntamente com a liberdade, não só os fez sair com todos os seus gados sem ficar deles no Egito nem uma unha, como diz o texto, mas carregados de ouro, e de todas as jóias dos egípcios, em satisfação do injusto serviço a que os tinham obrigado. Que mais podem desejar?
Vitoria e vingança de seus inimigos, com segurança de nunca mais lhes serem sujeitos? E tudo isso lhes deu logo Moisés, sepultando Faraó e todos seus exércitos no fundo do Mar Vermelho, vencendo os hebreus sem batalha, e triunfando sem armas, e despindo nas praias os corpos que eles não tinham morto, para também levarem os despojos. Isto é o quanto podiam desejar e fingir no pensamento.
Vamos agora ao que nem desejar podiam. Podiam desejar ser providos de todo o sustento, e ainda de todo o regalo, sem despesa nem trabalho? Não podiam. E Moisés para comer lhes deu o maná, em que estavam guizados ao gosto de cada um todos os sabores, e para beber copiosas fontes de água puríssima, que com a mesma penha, de que manavam, os iam seguindo. Podiam desejar que de dia os não queimasse ou encalmasse o sol, e de noite não ficassem em trevas e às escuras? Não podiam. E
Moisés, por meio de duas colunas prodigiosas, que pelo ar os acompanhavam, de noite os alumiava com uma que era de fogo, e de dia os defendia do sol com outra que era de nuvem. Podiam desejar que, sendo três milhões de homens de todas as idades, nenhum deles adoecesse, nem estivesse enfermo? Não podiam. E Moisés, com virtude superior a toda a natureza e fraqueza humana, os conservava a todos sãos, e com inteira e robusta saúde: Etnon erat in tribubus eorum infirmus (13).
Podiam desejar que o vestido e calçado, em quarenta anos de caminho, não envelhecesse nem se gastasse? Não podiam. E Moisés, com menos necessário milagre — porque tinham as lãs e peles dos seus rebanhos — com os mesmos vestidos e com o mesmo calçado com que tinham saído do Egito, os levou até à Terra de Promissão, a cuja vista lhes disse: Quadragintaannis perdesertum non sunt atrita vestimenta vestra, nec calceamenta pedum vestrorum consumpta (14). Finalmente, podiam desejar que Moisés antepusesse a conservação do mesmo povo à sua própria salvação, e a vida temporal dos que governava à sua própria bem-aventurança e vida eterna? Não podiam. E contudo, quando Deus pelo pecado da idolatria quis acabar de uma vez com o mesmo povo hebreu, e extinguilo e tirá-lo do mundo para sempre, prometendo a Moisés que o faria príncipe e senhor de outra muito maior e melhor nação, foi tal o excesso de heróico amor com que ele se opôs a esta resolução, que chegou a dizer a Deus declaradamente que ou perdoasse ao povo, como lhe pedia, ou senão que o riscasse a ele do seu livro: Aut dimitte eis hanc noxam, dele me de librotuo quem scripsisti (Êx 32, 31c). Este livro, a que se referia, é o livro em que estão escritos os predestinados para a glória, o qual na Escritura se chama Liber Vitae, e quis Moisés ser riscado dele — salva somente a graça — no caso em que Deus não perdoasse ao seu povo. Como se dissera: Desde o dia em que vós, senhor, me obrigastes a aceitar o mando e governo que eu tanto repugnava, como eu fiquei sendo a cabeça deste povo, e ele o corpo, ele é eu, e eu sou ele, assim que o bem ou o mal há de ser comum de ambos: se ele perecer, a sua perdição há de ser também minha, e se eu me salvar, a minha salvação há de ser também sua. Pelo que, não há outro meio neste negócio senão ou a ele perdoar-lhe, ou a mim condenar-me, porque nem a mesma glória quero só para mim, sem o bem daqueles a quem igualmente amo. Disse Moisés, e não teve Deus que responder senão perdoar, gloriando-se de ter escolhido tal homem para cabeça e governador do seu povo.
E com que graças, com que louvores, com que aplausos celebrariam aqueles venturosos homens as finezas, os benefícios, os milagres, com que um tal homem os tinha desde o princípio do seu governo libertado, defendido, conservado, regalado, e com tantos extremos amado? Oh! assombro da fereza e ingratidão humana! Oh! desengano mal conhecido sempre, e só aqui experimentado, do que é mandar homens! O pago que aquele mesmo povo deu a Moisés foram perpétuas murmurações, perpetuas queixas, perpétuos clamores, perpétuos arrependimentos e saudades do mesmo cativeiro de que os tinha libertado, e tais dimensões, tais rebeliões, tais injurias e afrontas, e tais perigos de o apedrejarem e lhe porem as mãos, se se não acolhera no Tabernáculo, e o mesmo Deus o escondera, que sendo o sofrimento e mansidão de Moisés, por testemunho da mesma Escritura, a maior de todos os homens:
Erat enim Moyses vir mittissimus super omnes homines qui morabantur in terra (15) não podendo já com o peso de sustentar aos ombros os mesmos que trazia no coração, pediu finalmente a Deus que ou o descarregasse do governo, ou, quando assim não quisesse, lhe tirasse a vida: Sinaliter tibi videtur, obsecro ut interficias me (16). Eis aqui o que é mandar homens, a quem nem os benefícios obrigam, nem os regalos abrandam, nem as finezas enternecem, nem os milagres sujeitam, nem pode haver quem os contente e satisfaça.
Parece-me, senhores, que estes dois exemplos, de Davi servindo e de Moisés mandando, não só têm provado a verdade do que eu dizia, e aprovado a resolução de S. Roque, mas desenganado a todo o entendimento, por obsequioso ou ambicioso que seja, do que é servir a homens, ou mandar homens.
Mas agora digo que nem o primeiro caso, nem o segundo, por mais que pareçam encarecidos, chegam a declarar de muito longe, nem a pensão do servir, nem o perigo do mandar. Aparelhai nos entendimentos a fé, porque sem ela não se pode crer, nem se poderá imaginar o que de novo haveis de ouvir. Duas resoluções tomou Deus acerca dos homens: a primeira de os mandar, a segunda de os servir. Antes de Deus se fazer homem, mandava os homens como rei: Tu es ipse Rex meus et Deus meus, qui mandas salutes Jacob (17). Depois de se fazer homem, veio servir a homens, como ele mesmo disse: Non venit ministrari, sed ministrare (18). E S.Paulo: Formam servi accipiens (19). E
que lhe sucedeu a Deus em um e outro estado, quando mandou e quando serviu aos homens? Aqui pasma a mesma fé. Quando os mandou, tiraram-lhe o reino: quando os serviu, tiram-lhe a vida. Que lhe tirassem a vida, todos o sabem: que lhe tirassem o reino, o mesmo Deus o disse a Samuel: Non te abjecerunt, sed me, ne regnem super eos (20) . E se Deus, quando manda homens se descontentam dele, que lhe tiram o reino, e se o mesmo Deus, quando serve a homens, lhe pagam de tal sorte que o põem em uma cruz, e lhe tiram a vida, vede se são loucos todos os que querem mandar homens, ou servir a homens, e quão sisudo e bem aconselhado foi S. Roque em os não querer mandar nem servir.
Cuidam todos que S. Roque começou a ser advogado da peste quando no fim da vida curava os apestados com o sinal da cruz, e é engano. Quando S. Roque se benzeu de servir a homens e mandar homens, então é que começou a ter império, não sobre uma, senão sobre duas pestes: uma que é o mandar, outra que é o servir. O servir e o mandar ambos começaram juntamente no domínio de Membrot. Nele começou o império, e com ele a servidão. Assim o nota S. Jerônimo: Quia primus hic fait, qui altos sibi servire coegit. E este domínio de Membrot quando começou? Segundo a mais certa cronologia, começou no ano de mil e novecentos e trinta e dois da criação do mundo, que foi o mesmo ano em que nasceu Abraão. Agora noto eu, e é coisa muito digna de se advertir, que quando começou o mandar e o servir, então se encurtaram as vidas dos homens, porque dali por diante, como consta da Sagrada Escritura, raros foram os que chegaram a cem anos, e raríssimos os que os excederam. De sorte que, antes de haver no mundo servir nem mandar, viviam os homens oitocentos, novecentos e mais anos; porém, depois que estas duas pestes entraram, depois que os homens começaram uns a mandar e outros a servir, nenhum houve a quem a morte não tivesse as sete ou as oito partes da vida. E, verdadeiramente, que se os trabalhos e os desgostos matam, não é muito que o servir e o mandar sejam enfermidades mortais. Estas duas pestes curou S. Roque em si, não querendo mandar nem servir a homens, e também as pode curar em nos com seu exemplo, não para que vivamos nesta vida muito tempo, mas para que a vivamos com descanso e sem desgostos, que é a felicidade e bem-aventurança que nela se pode só alcançar.
§ VI
Segunda parte da resolução de S. Roque: servir só a Deus. Quanta diferença há entre servir aos homens e servir a Deus? Não só se obrigou Deus a nos pagar o que fazemos, senão também o que não fazemos. O preço da barca e das redes de S. Pedro e o preço dos tesouros que deixou S. Roque. Os homens medem o merecimento pelos anos: Deus mede-os pelos corações. O profeta Samuel na casa de Jessé. Os merecimentos de Davi e da Madalena. Os homens, se quisessem dar muito, não podem, e esse pouco que podem não querem; Deus, pelo contrário, pode tudo e sempre quer. A diferença da vida sacrificada a Deus ou aos homens. Como serviram a Deus Abraão, Isac e Jacó, e como foram por Deus servidos? Deus, só por ser imortal, e sempre o mesmo, sem outro que lhe haja de suceder, o deveramos servir só a ele, como fez S. Roque.
A bem-aventurança da outra vida segurou-a S. Roque com a segunda e melhor parte da sua resolução, que foi servir só a Deus. Isto não há mister discurso nem prova, porque é fé. Mas porque o servir a Deus e o servir aos homens tudo tem nome de servir, vejamos somente quão grande foi a prudência de S. Roque em saber distinguir esta equivocação, e quanta é a diferença que há entre um e outro servir, para que todos os que servem e os que mandam queiram antes servir a Deus, e só a Deus.
Os homens, quando mandam — e mais se tem o mando supremo — ou seja ingratidão natural ou soberania, nem estimam nem pagam os serviços que se lhes fazem, como deveram, porque cuidam que tudo se lhes deve. Pelo contrário, Deus, a quem devemos tudo o que temos e tudo o que somos, nenhuma coisa manda, a cuja remuneração se não obrigue como devedor. A Arca, em que se guardavam as Tábuas da Lei, chama-se Arca foederis (Núm 10, 33): Arca do contrato. E por que do contrato, se era das leis? Porque, sendo Deus supremo Senhor, a quem devemos obedecer em tudo, de tal maneira nos quis obrigar a fazer o que nos manda, que juntamente se obrigou e fez devedor a si mesmo de nos pagar o que fizermos. O que fizermos, disse, e disse pouco. Não só está obrigado Deus, pelo mesmo contrato, a nos pagar o que fizermos, senão também o que não fizermos. Os homens nas suas leis, se matastes ou furtastes, castigam-vos; mas, se não matais nem furtais, não vos dão por isso nada. Não assim Deus. Não só vos remunera quando fazeis o que vos manda fazer, senão também quando não fazeis o que vos manda que não façais. Oh! quão endividado se acharia Deus com S.
Roque no dia de sua morte, crescendo sempre mais e mais estas gloriosas dívidas em todos os empenhos de sua vida! Não só deveu Deus a S. Roque o fazer tudo o que manda, nem só lhe deveu o não fazer tudo o que proíbe, mas deveu-lhe todas aquelas ações e finezas heróicas que, sem proibição nem preceito, deixou o mesmo Deus livres aos que, desprezando tudo o mais, a ele e só a ele quisessem servir Os homens, quando pagam ou cuidam que pagam os serviços que lhes fizestes, eles são os que os avaliam. O estilo de Deus em remunerar a quem o serve, vede quão diferente é. Nós somos os que avaliamos, e ele o que paga. Disse S. Pedro, em nome seu e dos outros pescadores que seguiam a Cristo: Ecce nos reliquimus omnia, et secuti sumus te: quid ergo erit nobis (Mt 19, 27)? Senhor, nós deixamos tudo por vos seguir: com que nos haveis de pagar? — Parece que devia Cristo replicar ao excesso desta avaliação e dizer: — Se vós não deixastes mais que um barco e uma rede, como dizeis que deixastes tudo? — Mas tão fora esteve o Senhor de fazer esta réplica que, dando por boa a avaliação, lhes deu por paga daquele tudo o serem no Juízo universal árbitros de tudo: Cum sederit Filius hominis in sede majestatis suae, sedebitis et vos (21). E bastou isto? Não. Et omnis qui reliquerit domum, etc, centuplum accipiet (Mt 19, 29): E a qualquer, que por mim deixar alguma coisa, pagarei cento por um. — Avaliai por quão subido preço quiserdes o que deixastes ou fizestes por mim, que a minha paga e a minha avaliação desses mesmos serviços há de ser maior que a vossa, e cem vezes maior. Comparai-me agora a barca e as redes de S. Pedro com o que deixou S. Roque, e julgai qual será a paga que tem recebido de Deus? Deixou a pátria, deixou o descanso, deixou os tesouros, deixou o estado, e não falo na diferença do seu nascimento comparado com o de S. Pedro, por que esta é outra, e não pequena, que se usa e está introduzida entre os homens, e não tem lugar em Deus.
Os homens, para fazer as mercês, olham para o nascimento de quem os serviu: Deus só respeita e faz caso do merecimento e das ações de cada um, e nenhum do nascimento. Isac quis dar a benção e o morgado a Esaú; Deus não quis que o levasse senão Jacó, e por que? Vamos ao caso, e achamos a razão. Esaú nasceu primeiro que Jacó, porém, na luta que ambos tiveram no ventre da mãe, Jacó lutou melhor que Esaú. O mesmo Esaú, sendo competidor, o não pôde negar, e o confessou, dizendo:
Supplantavit enim me en altera vice (22). Lutou melhor Jacó que Esaú? Pois essa foi a razão da diferença, nem há outra para com Deus. Isac, como homem, para dar a benção e o morgado, teve respeito ao nascimento: Deus, como Deus nem respeitou nem fez conta do nascimento, senão só do maior valor e do merecimento. Se os soldados da fortuna a querem ter boa, sirvam a Deus. Os nascimentos levarão as comendas dos homens: as de Deus só para o merecimento as tem guardadas.
Por isso S. Roque, sendo de tão alto nascimento, o renunciou e não fez caso dele, porque quis mais generosa e mais fidalgamente ser despachado na côrte da verdade e da justiça, pela nobreza e qualidade das obras, que eram suas, e não pelas dos pais e avós, que são alheias.
Os homens, a quem os serve, medem-lhes os merecimentos pelos anos: Deus mede-os pelos corações.
Quando o profeta Samuel foi à casa de Jesse para ungir em rei um de seus filhos, vendo a Eliab, que era o mais velho e de galharda presença, julgou que o eleito por Deus sem dúvida era aquele; mas Deus o desenganou logo, dizendo que ele não olhava para os corpos nem para os anos, senão para os corações: Homo videt ea quae parent, Dominus autem intuetur cor (23). Davi, o menor filho de todos, foi o eleito, e logo mostrou qual era o seu coração. Todo o exército de Saul estava cheio de soldados velhos e capitães muito antigos, mas todos desmaiados e tremendo só de ver o gigante; e Davi, que tinha o coração que a eles lhes faltava, vencendo e matando o mesmo gigante, fez e mereceu mais em uma hora que todos os outros em tantos anos. Os homens, medindo os merecimentos só pelos anos, fazem uma grande injustiça, porém Deus, que e justíssimo, mede-os só pelos corações, porque ele só os vê. No mesmo dia e na mesma hora em que a Madalena se lançou aos pés de Cristo, disse o Senhor que tinha amado muito. Quoniam dilexit multum (24). Parece muito dizer. Diga-se que amava, mas não se diga muito, que ainda então começava a amar; e já que se dá nome de muito ao seu amor, digase que amava, e não que tinha amado: dilexit? Mas tudo esta tão bem dito, como quem o disse, porque Deus não mede o coração pelo tempo, senão o tempo pelo coração. Oh! se os homens vissem os corações, quão endividados se achariam os de muitos que cuidam que os servem pouco! Por isso só se pode servir a quem vê o coração. E se em poucos instantes de tempo cabem muitos séculos de amor, que eternidades seriam as que Deus tinha contado no coração e amor de S. Roque, em tantos anos de suas peregrinações, de seus cárceres, de suas perseguições e afrontas, que são o crisol do amor? Se os que vieram na undécima hora do dia, que é a velhice, porque supriram a tardança com a diligência, foram igualmente pagos e premiados, qual será o prêmio daquele coração, que entre as lisonjas dos mais floridos e enganosos anos, se entregou todo a amar e servir só a Deus?
Os homens a quem servis podem pouco e querem menos. Se quisessem dar muito, não podem, e esse pouco que podem, não querem. Deus pelo contrário, pode tudo e sempre quer. Vieram dois pobres a Cristo pedir remédio para suas enfermidades, e cada um — que é muito eloquente a necessidade —
pediu por sua frase. Um disse: Si quid potes, adjuva nos (Mc 9, 21): Senhor, se podeis, remediai-me.
O outro disse: Si vis, potes me mundare (Mt 8, 2): Senhor, se vós quiserdes remediar-me, podeis. —
De maneira que um, que ainda não cria, pediu-lhe a vontade, e duvidou-lhe o poder: o outro que já cria confessou-lhe o poder, e pediu-lhe só a vontade. E que respondeu o Senhor ao que disse si potes e ao que disse si vis? Ao que lhe pediu a vontade, e lhe duvidou o poder, respondeu que podia, e que queria; e ao que lhe confessou o poder, e lhe pediu a vontade, respondeu que queria o que podia: e a ambos satisfez como desojavam. Quando os homens pedem aos homens, ainda que sejam reis, pedem uns pobres a outros: só quando pedem a Deus, pedem a quem verdadeiramente é rico. Dives in omnes qui invocant illum (Rom 10, 12): diz S. Paulo que Deus é rico para todos os que o invocam.— Os reis quando muito são ricos para alguns: Deus é rico para todos: Dives in omnes. Por isso S. Roque se fez pobre para servir a quem só o podia fazer verdadeiramente rico. O seu rei, ainda que fosse tão liberal como Assuero, podia-lhe prometer a metade do reino de França: Deus, a quem o serve, dá-lhe todo o seu reino, e quanto mais a quem deixou tudo só pelo servir a ele.
Os homens — já que falamos nos seus poderes — se derdes por eles a vida, como tantos a estão dando nestas campanhas, ainda que sejam reis e monarcas, assim como eles vo-la não deram, assim vo-la não podem restituir. E Deus, sendo ele o que vos deu a vida, ainda que vós a não deis por ele, se a empregardes em seu serviço, dá-vos pela temporal a eterna. Rei era, e rei que andava nos exércitos, o que deu este desengano a todos os homens: Nolite confidere in principibus, in quibus non est salus (25). Homens, não ponhais a vossa esperança em homens, ainda que sejam reis, porque não podem dar vida.— Os reis chamam-se senhores da vida, porque com justiça, ou sem ela, a podem tirar; mas dá-la, nem a seus filhos, nem a si mesmo podem. Se Deus é verdadeiro Senhor da Vida, porque a dá no nascimento, porque a conserva na duração, porque a ressuscita depois da morte, e a eterniza na pátria. Vede a diferença da vossa mesma vida sacrificada a Deus, ou aos homens: se a dais por amor de Deus, ficais bem-aventurado: se a dais por amor dos homens, ficais morto. Os que a deram por amor de Deus são os que adoramos naqueles altares; os que a deram por amor dos homens os que pisamos nessas sepulturas. Antes que Roma pusesse no altar a S. Roque, o pôs o mundo, e o houve por bem a mesma Igreja. Por quê? Porque deu a vida só a Deus, e a empregou só em seu serviço. E foi este serviço tão aceito a Deus e tão bem pago por ele, que deu autoridade ao mesmo S. Roque para que nós também lhe pedíssemos a vida e poder para que no-la desse.
Os homens — para que falemos também pela sua boca, e não só pela divina — quando vos hão mister, sois seu, quando os haveis mister, sois vosso. Assim o cantou ao som do Lima aquele grande e desenganado espírito, que, por não ver as ribeiras do Tejo, fugiu delas para tão longe. Quando te hão mister, és teu, quando os hás mister, és teu, que não tens donos então. E Deus pelo contrário e tão bom Senhor e tão bom dono, que, não havendo mister a ninguém, quando nos fez mercê de se querer servir de nós, somos, com grande honra, seus; e quando nós o havemos mister — que sempre havemos — nunca deixa de ser nosso. Serviram Abraão, Isac e Jacó a Deus, e não foram eles os que tomaram o sobrenome do Senhor, senão o Senhor o dos servos. Não se chamaram eles Abraão de Deus, Isac de Deus, Jacó de Deus, mas Deus foi o que se chamou Deus de Abrão, Deus de Isac, Deus de Jacó. Assim o disse o mesmo Deus a Moisés. Ego sum Deus Abraham, Deus Isaac, et Deus Jacob (26). E para que? Para que conhecesse o mundo que, se os servos eram seus do Senhor, também o Senhor era seu dos servos. Se Deus há mister a Abraão para Pai da Fé, Abraão é de Deus; e se Abraão há mister a Deus para o livrar dos dois reis do Egito e de Geraris, Deus é de Abraão: Deus Abraham.
Se Deus há mister a Isac para o sacrifício e para experimentar o amor de seu pai, Isac é de Deus; e se Isac há mister a Deus para o livrar da espada e o trocar com o cordeiro, Deus é de Isac: Deus Isaac. Se Deus há mister a Jacó para fundador das doze tribos, Jacó é de Deus; e se Jacó há mister a Deus para o livrar da ira de Esaú e dos enganos de Labão, Deus é de Jacó: Deus Jacob. Se considerarmos os trabalhos e perigos de S. Roque, acharemos que não foram menores que os dos três patriarcas; mas, assim como Roque se fez todo seu de Deus, servindo-o só a ele, assim Deus se fez todo seu de Roque, livrando-o de todos. E tão seu, e sempre seu, que ainda hoje nos esta livrando a nos só, por sue intercessão e por seu respeito.
Finalmente, os homens a quem servimos, posto que sejam reis, são mortais e lhes sucedem outros, porém, Deus, quando não tivéramos tantas obrigações de o servir, só por ser imortal, e sempre o mesmo, sem outro que lhe haja de suceder, o deveramos servir só a ele. Entenderam isto tanto assim muitas nações, que na morte dos reis se sepultavam com eles os seus criados, não só por fineza do muito que os amavam, mas por não viverem em tempo de outros príncipes, que não conhecessem seus serviços e merecimentos. Não houve maior mudança de fortuna que a dos filhos de Israel no Egito.
Ao princípio enriquecidos, queridos, estimados, venerados; depois desprezados, aborrecidos, oprimidos, avexados, cativos. E donde nasceu uma tão notável mudança? O texto sagrado o diz:
Surrexit rex novus, qui ignorabat Joseph (Êx 1, 8): Sucedeu no império um rei novo que não conhecia a José. O rei velho aconselhava-se com José, seguia os ditames de José, e sucedia-lhe tão bem com eles que lhe pôs por nome Salvador do Egito, e por isso favorecia seus irmãos; porém o rei novo, que veio depois, como não conhecia a José, nenhuma valia tinha com ele a sua memória nem os seus grandes serviços, e a todos os seus descendentes não só não dava nada de novo, mas ainda o que tinham, até a mesma liberdade, lhes tirava. Oh! discretíssimo mancebo, ó prudentíssimo varão S.
Roque! Na vida de S. Roque, sem ser muito larga, também houve dois reis em França: Carlos Magno e Ludovico Pio. E porque ele sabia, pelos estilos das cortes que, se fosse favorecido de um, havia de ser desvalido do outro, por isso quis servir ao Rei, que nem morre nem desconhece, que é Deus, e só Deus. Ditoso ele e bem-aventurado, que assim o fez, e nos também seremos ditosos e bemaventurados se assim o fizermos: Beati sunt servi illi.
(1) Bem-aventurados aqueles servos (Lc 12, 37).
(2) Porquanto nos provaste, ó Deus: com fogo nos afinaste, como se afina a prata. Puseste-nos em cadeias, carregaste tribulações sobre nossas costas. Puseste homens sobre as nossas cabeças (Sl 65, 10 ss).
(3) Graça a vós outros, e paz da parte daquele que é, e que era, e que há de vir, e da dos sete espíritos que estão diante do seu trono; e da parte de Jesus Cristo, que é a testemunha fiel, o primogênito dos mortos, e o príncipe dos reis da terra (Apc 1, 4 s).
(4) Graça a vós outros, e paz (Apc 1,4).
(5) Puseste homens sobre a nossa cabeça (Sl 65,12).
(6) Maldito seja Canaã: ele será escravo dos escravos de seus irmãos (Gên 9, 25).
(7) Juxta LXX — 1 Rs 21, 13. Text.
(8) Estarás sob o poder de teu marido (Gên 3, 16).
(9) Um luzeiro maior, que presidisse ao dia (Gên 1, 16).
(10) Trocaram a noite em dia (Jó 17, 12).
(11) Eu durmo, e o meu coração vela (Cânt 5, 2).
(12) Pois examinará as vossas obras, e esquadrinhará os vossos pensamentos (Sab 6, 4).
(13) E não havia enfermo nas tribos deles (Sl 104, 37).
(14) Em quarenta anos pelo deserto não se romperam os vossos vestidos, nem se gastaram os sapatos dos vossos pés (Dt 29, 5).
(15) Porque Moisés era o mais manso de todos os homens que havia na terra (Núm 12, 3).
(16) Se a ti te parece outra coisa, peço-te que me tires a vida (Num 11, 15).
(17) Tu mesmo és o meu rei e o meu Deus, que dispões as salvações de Jacó (S1 43, 5).
(18) Não veio para ser servido, mas para servir (Mt 20, 28).
(19) Tomando a natureza de servo (Flp 2, 7).
(20) Não é a ti que eles rejeitaram, mas a mim, para eu não reinar sobre eles (1 Rs 8, 7).
(21) Quando estiver o Filho do homem sentado no trono da sua glória, também estareis sentados (Mt 19, 28).
(22) Porque esta é a segunda vez que ele me arma engano (Gên 27, 36).
(23) O homem vê o que está patente, mas o Senhor olha para o coração (1 Rs 16, 7).
(24) Porque amou muito (Lc 7, 47).
(25) Não queirais confiar nos príncipes, em quem não há salvação (Sl 145, 3).
(26) Eu sou o Deus de Abraão, o Deus de Isaac e o Deus de Jacó (Êx 3, 6).
Edição de Base:
Sermões Escolhidos, vol. I,
Edameris, São Paulo, 1965.