Sermão das Cadeias de S. Pedro em Roma pregado na Igreja de S. Pedro.
I
Lá viu São João, no seu Apocalipse, um anjo, o qual em uma mão tinha uma chave e na outra uma cadeia: Habentem clavem abyssi, et catenam magnam in manu sua (3). E que anjo é este, ó Roma, senão o teu grande custódio, Pedro? Pedro com as chaves nas mãos: Tibi dabo claves regni caelorum;
e Pedro com as mãos nas cadeias: Vinctus catenis duabus. Lá foi visto com a chave em uma mão e a cadeia na outra, porque assim devia ser; mas hoje o vemos com as chaves em ambas as mãos, e com ambas as mãos nas cadeias, porque havia de vir tempo em que assim fosse.
Este é, senhores, o maior espetáculo da sem-razão que jamais viu o mundo, e este o que eu ao longe com dor, e vós ao perto com admiração, estamos vendo: Pedro, com as chaves nas mãos, e Pedro com as mãos atadas. Cuidas tu, ó Herodes, que deu Cristo ao seu Vigário as chaves para padecer juntamente com elas a servidão das cadeias? Senhor e cativo? Livre e atado? Poderoso e sem poder?
Não, não. Eu bem sei que as chaves de Pedro também são cadeias, mas cadeias para atar e desatar, e não para ser atado. Notai o texto: Tibi dabo claves regni caelorum. Et quodcumque ligaveris, erit ligatum, quodcumque solveris, erit solutum (Mt. 16, 19): Eu te darei — diz Cristo — as chaves do meu reino, e o que tuatares, será atado, e o que desatares, desatado. — Tal quis o supremo legislador que fosse o governo do seu reino: governo que atasse e desatasse, e não governos que nem atam nem desatam. Mas se os poderes de Pedro eram chaves: Tibi dabo claves, parece que havia de dizer o Senhor: Tudo o que abrires será aberto, e tudo o que fechares será fechado. Por que não diz logo: o que fechares ou abrires, senão o que atares ou desatares? Para mostrar que as chaves que dava a Pedro também eram cadeias, mas cadeias para atar ou desatar a outros, quando quisesse, e não cadeias para estar ele atado, como hoje o vemos: Vinctus catenis duabus.
Ora, eu à vista destas chaves e destas cadeias, que farei? Se não estivera também atado, e me fora livre a eleição do discurso, de boa vontade o dividiria em duas invectivas, armadas de justiça, de razão e de ira contra os dois monstros sacrílegos, que com a primeira e segunda cadeia, em diferentes tempos e lugares, se atreveram a prender e atar a Pedro. Uma invectiva contra ti, ó Herodes, que foste o Nero de Jerusalém, e outra contra ti, ó Nero, que foste o Herodes de Roma. Mas porque é obrigação desta cadeira neste dia, que o argumento do sermão seja da providência, a mesma providência, que entregou a Pedro as chaves e o deixou atar nas cadeias, será a gloriosa soltura desta que nos parecia implicação. Com as cadeias atarei as chaves, com as chaves abrirei as cadeias, e como a matéria das cadeias e mais das chaves toda é de ferro, se a imagem que eu formarei da providência não for preciosa e de lustre, ao menos será forte e sólida. Deus, cuja é a idéia, me assista com sua graça. Ave Maria.
II
Tibi dabo claves regni caelorum.
A ordem hierárquica da providência divina, no governo de suas criaturas, é governar superiores e súditos, mas os súditos por meio dos superiores, e os superiores imediatamente por si mesmo. Uma e outra coisa temos nas chaves e nas cadeias de Pedro. Em todo o mundo cristão não há mais que um superior e um súdito, um Pedro e uma Igreja; e este superior e este súdito, este Pedro e esta Igreja, quem os governa? A Igreja governa-a a providência de Pedro, que tem o poder das chaves: Tibi dabo claves regni caelorum; a Pedro governa-o a providência de Cristo, que o livrou das cadeias de Herodes: Ceciderunt catenae de manibus ejus (4). Este é o desenho altíssimo, e esta a fábrica seguríssima da suprema providência. A Igreja segura na providência de Pedro, e Pedro seguro na providência de Cristo.
Caso foi verdadeiramente admirável, e por isso notado e advertido pelo mesmo historiador sagrado, que cercado S. Pedro de guardas, e atado a duas cadeias, na mesma noite daquele dia em que havia de sair a morrer, como homem sem nenhum temor nem cuidado, estivesse dormindo: In ipsa nocte erat Petrus dormiens (5). E se passarmos da terra ao mar, não é caso menos digno de admiração que, correndo fortuna a barca de Pedro com uma terrível tempestade, Cristo, que ia na mesma barca, também estivesse dormindo: Ipse vero dormiebat(6). Cristo e o Vigário de Cristo, ambos dormindo?
Cristo dormindo no meio da tempestade, e Pedro dormindo no meio das guardas e das cadeias, e ambos com a morte à vista, sem nenhum cuidado? Sim. Na tempestade dorme Cristo, porque a barca está segura na providência de Pedro; e nas cadeias dorme Pedro, porque Pedro está seguro na providência de Cristo. Debaixo da providência de Cristo dorme Pedro ao som das cadeias, e debaixo da providência de Pedro dorme Cristo ao som da tempestade e das ondas.
E se isto que digo vos parece só metáfora, voltemos a cena e o teatro, e troquem-se as figuras: seja Cristo o que esteja nas cadeias, e Pedro na tempestade. Naquela escuríssima noite em que prenderam a Cristo seus inimigos, e naquele mesmo lugar em que foi preso, correu tão furiosa tormenta a mesma barca de Pedro, que a barca, o piloto e os companheiros, todos estiveram a pique de naufragar, e faltou pouco que não perecessem de todo. E que fez a providência de Cristo em tão extremo perigo, e tão universal? Ego autem rogavi pro te (Lc. 22, 32): Eu — diz o Senhor — roguei por ti, ó Pedro. —
Por ti, Senhor meu? E pelos outros, por que não? Vós não dissestes a todos: Omnes vos scandalum patiemini in me in ista noctet (7)? Pois, se o perigo e a borrasca ameaça a todos, e a todos tem derrotado, por que fazeis oração e rogais só por Pedro? Porque Pedro estava à providência de Cristo;
os outros ficavam à providência de Pedro. O mesmo texto o diz: Ego autem rogavi pro te ut non deficiat fides tua: et tu aliquando conversus, confirma fratres tuos (8). Notai muito aquele ego e aquele tu. Eu tive cuidado de ti: tu o terás dos outros. Ego autem rogavi pro te: eis aí a providência de Cristo para com Pedro. Tu confirma fratres tuos: eis aí a providência de Pedro para com os demais.
E se ainda quisermos ver uma e outra providência, a de Cristo e a de Pedro, maravilhosamente praticada, entremos no golfo do mar, e observemos o que faz Cristo e o que faz Pedro, ambos na mesma barca, ou na mesma nau, que assim lhe chamam os evangelistas, quando se engolfa: Erat navis in medio mari (9). Estava pois Cristo na nau de São Pedro, um pouco afastada da terra, e depois de pregar às turbas, que em confusa multidão o ouviam desde a ribeira, mandou o Senhor zarpar ou levar a âncora, e disse a Pedro que guiasse ao alto: Duc in altum (10).Não é justo que eu passe em silêncio o que aqui advertiu São Crisóstomo, pois esta cadeira, no lugar em que está, é sua (11). Quem se engolfa e se mete no alto do mar, perde a terra de vista, e por isso — diz Crisóstomo — manda Cristo a Pedro que guie ao alto: Duc in altum. Porque quando a nau de Pedro perder a vista da terra, então navegará felizmente. Assim o pregou o santo Arcebispo em Constantinopla, quando o mundo secular tinha duas cabeças, e também o pudera pregar eclesiasticamente em Roma. Mas, tornando ao meu intento, o que eu pondero do duc in altum é aquela palavrinha duc. Se Cristo está na mesma nau, por que manda a Pedro que guie, e não guia ele por sua própria pessoa? Assim como Cristo na oficina de José tirava com as suas próprias mãos pela serra, assim, na nau de Pedro, podia ele também pegar no leme sem perigo de indecência. Por que faz pois Cristo aqui o ofício de mandador, e não Cristo, senão Pedro, o de timoneiro? Porque esta é a ordem e esta a subordinação de uma e da outra providência. A
nau subordinada à providência de Pedro, e Pedro subordinado à providência de Cristo. Pedro, o piloto da nau, e Cristo, o piloto do piloto: Duc in altum. Oh! admirável providência do governo universal da Igreja! A nau uma, e os mandadores dois. Os apóstolos manejavam os remos, mas debaixo do mando de Pedro, e Pedro sustentava o leme, mas debaixo do mando de Cristo. Pedro era o que governava, sim, mas governava governado. A nau governada pela direção de Pedro, mas Pedro governado pela direção de Cristo: Duc in altum.
Dirá, porém, alguém, e com razão ou aparência dela, que naquele tempo Cristo e Pedro estavam ambos na mesma nau, e não é maravilha que então fosse ela bem guiada por Pedro. Mas, depois que Cristo subiu ao céu, e Pedro ficou só no mar, como haverá na nau e no piloto esta dobrada providência? As mesmas palavras o dizem: Duc in altum. A navegação do mar alto verdadeiramente é admirável. Maria undique, et undique caelum: não se vê ali mais que mar e céu. — E, contudo, naquela campanha imensa, sem rasto, sem estrada nem baliza, o piloto leva a nau como por um fio, não só aos horizontes mais remotos deste hemisfério, mas ao porto mais incógnito dos antípodas. E
como faz ou pode fazer isto o piloto? Governando ele no mar, e sendo governado do céu. Toma o piloto o astrolábio na mão, mede a altura do pólo, ou pesa o sol, como eles dizem, e deste modo o piloto governa a nau, e o sol governa o piloto. De sorte que o que governa a nau está no mar, e o que governa o piloto está no céu. Pois isto mesmo é o que passa no governo da Igreja. Ainda que Cristo subiu ao céu, Pedro ficou no mundo: Pedro, da popa da nau, governa o mundo, e Cristo, do zodíaco do céu, governa a Pedro.
Vede-o nas mesmas chaves e nas mesmas cadeias de Pedro. Quando deu Cristo a Pedro as chaves, e quando o livrou das cadeias? As chaves deu-lhas Cristo antes de partir deste mundo, porque a providência de Pedro para com a Igreja ficou na terra; e das cadeias livrou-o quando havia já muito tempo que estava assentado à destra do Padre, porque a providência de Cristo para com Pedro está no céu. Em suma, que esta é a dobrada providência com que o Monarca e a Monarquia da Igreja se governa no mundo e sobre o mundo. No mundo imediatamente por Pedro, como se mostra no poder das suas chaves: Tibi dabo claves regni caelorum. E sobre o mundo imediatamente por Cristo, como se prova na soltura das suas cadeias: Ceciderunt catenae de manibus ejus (12).
III
Mas em um auditório tão douto e de tanta perspicácia, vejo quase vacilante a firmeza deste meu discurso, e que das mesmas chaves e das mesmas cadeias se formam dois argumentos fortíssimos, um contra a providência de Cristo em respeito de Pedro, e outro contra a providência de Pedro em respeito da Igreja.
Começando pelas cadeias para acabar pelas chaves, é certo que Cristo livrou a São Pedro das cadeias de Herodes em Jerusalém, mas também é certo que o não livrou das cadeias de Nero em Roma. Logo a providência, que supomos de Cristo para com São Pedro, ao menos é duvidosa e mal segura, e tal que não parece sua, porque providência que não é de todo tempo, de todo lugar e de todo perigo, providência que uma vez se lembra, outra se esquece, uma vez acode, outra desampara, uma vez provê e outra não provê, não é providência. Assim é, mas não foi assim. Tudo concedo e tudo nego. Concedo que a providência que não é continuada nem permanente não é providência. Mas nego que a providência de Cristo, que começou e resplandeceu nas cadeias de Herodes, não se continuasse igualmente e não permanecesse a mesma nas cadeias de Nero. E por quê? Porque tanta providência foi não livrar Cristo a Pedro das cadeias de Nero, como livrá-lo das cadeias de Herodes. Vede se o provo.
José foi duas vezes preso: uma vez em Canaã, por inveja e ódio de seus irmãos, e outra vez no Egito, por castigo e ignorância de seu senhor. Destas segundas prisões o livrou Deus, mas das primeiras não o livrou, porque, preso e manietado, foi vendido e entregue aos ismaelitas. E que se segue daqui? Segue-se porventura que em umas prisões o assistiu a providência divina, e nas outras o deixou? De nenhum modo, diz o texto sagrado. E dá a razão: In vinculis non dereliquit illum, donec afferret illi sceptrum regni (Sab. 10,14): Nunca a providência de Deus deixou nem desamparou a José nas suas cadeias, até que, por meio de umas e outras, o sublimou ao império. — De sorte que os efeitos da providência não se hão de medir pela diversidade dos meios, senão pela unidade do fim. O
fim da providência divina era levantar a José ao império do Egito, para o qual o tinha destinado, e tanto dependia a fortuna de José de ser livre de umas prisões, como de não ser livre das outras. Se Deus o livrasse das prisões de Canaã, nunca havia de ir ao Egito, e se o não livrasse das prisões do Egito, não havia de subir ao império. Necessário foi logo que José fosse livre de umas cadeias, e não fosse livre das outras. Para quê? Para que Deus e José conseguissem juntamente, José por Deus, os meios da sua fortuna, e Deus em José, os fins da sua providência. E se a mesma providência livrou e não livrou a José de umas e outras cadeias, por que não creremos outro tanto das cadeias de Pedro?
Só do fim se pode duvidar, o qual para mim é evidente. O intento de Herodes era cortar a cabeça a S. Pedro, como tinha feito a São Tiago: Occidit autem Jacobum, fratrem Joannis, gladio(13). E não quis a providência de Cristo que morresse Pedro à espada, porque o quis exaltar consigo à morte de cruz. Na cruz estava o mesmo Senhor encravado, quando os judeus o blasfemavam, dizendo: Confidit in Deo: liberet nunc, si vult eum (Mt. 27, 43): Já que tem tanta confiança em Deus, por que o não livra agora Deus de nossas mãos? — Isto disse a infidelidade, e o mesmo pudera dizer ainda mais apertadamente a fé. Quando a ambição cruel de Herodes quis assegurar em si a coroa, com a morte do rei novamente nascido, andou tão vigilante a providência do Eterno Padre sobre a vida de seu Filho, que daquele dilúvio de sangue, em que pereceram tantos mil inocentes, só a ele livrou e pôs em salvo.
Pois, se o livrou então, por que o não livrou também agora? Dizer-se que o livrou porque o quis isentar da morte, não pode ser, porque desde o instante da sua Encarnação, antes, desde o princípio sem princípio da eternidade, tinha decretado o mesmo Pai que morresse. Pois, se havia de morrer uma vez, por que o não deixa morrer em Belém às mãos de Herodes? E se o havia de livrar outra vez, por que o não livra em Jerusalém das mãos dos judeus, como eles diziam: Liberet eum? Porque a mesma providência que livrou a Cristo a primeira vez, não o livrou para lhe impedir a morte, senão para o guardar de uma morte menos ilustre para outra morte mais gloriosa. Em Belém, como notou Santo Agostinho, havia de morrer Cristo à espada; em Jerusalém morria na cruz: e porque a providência do Padre, para mais exaltar o Filho, tinha decretado que morresse em Cruz: — Mortem autem crucis, propter quod exaltavit illum (14) — por isso o livrou em Belém das mãos de Herodes, e o não livrou em Jerusalém das mãos dos judeus.
Tal foi a providência de Cristo para com São Pedro, quando o livrou e quando o não livrou. Livrouo das cadeias de Herodes, para que não morresse à espada, como Jacó, e não o livrou das cadeias de Nero, para que morresse em cruz, como o mesmo Cristo. A espada e a cruz, ambas saíram ao teatro no mesmo dia e na mesma Roma, ambas foram os instrumentos sacrílegos da impiedade de Nero, ambas tiraram cruelmente a vida aos dois maiores Atlantes da Igreja; mas a espada a Paulo, a cruz a Pedro: Paulo degolado, para que conhecesse a heresia, ainda hoje obstinada, que em Roma e na Igreja não pode haver duas cabeças, e para que o mesmo Paulo — capite imminutus — pregasse e desenganasse o mundo que na terra é menor que Pedro. Quando eu agora passei a ponte do Tibre, adverti que Paulo, com a espada à mão direita, e Pedro, com as chaves, à mão esquerda; mas isso mesmo é prova do que digo. Dar Pedro a Paulo o melhor lugar, é mostrar Pedro que ele é o dono da casa. Este foi o mistério, como dizia, porque Paulo perdeu ou depôs a cabeça nos fios da espada de Nero. Morre, porém, Pedro na cruz, inteiro e em nada diminuído, como aquele de quem estava escrito: Os non comminuetis ex eo (15), para que a cabeça visível da Igreja se parecesse em tudo com a invisível. Cristo, porém, na cruz, com a cabeça inclinada para baixo, e Pedro na cruz, às avessas, com a cabeça levantada para cima, porque a cabeça de Cristo e a de Pedro, recíproca e reflexamente se retratam e se vêem uma na outra, bem assim como a mesma cabeça, vista e multiplicada no espelho, parecem duas cabeças, e é uma só. E como Cristo queria fazer a seu primeiro sucessor tão semelhante a si em tudo, essa foi a providência continuada e permanente, e não contrária ou diversa, senão a mesma com que, rotas as cadeias de Herodes, o livrou da espada, e não rotas as de Nero, o levou à cruz.
IV
Mas para que é defender ou interpretar eu a unidade desta providência em umas e outras cadeias, se as mesmas cadeias a provam, e com milagrosa demonstração a fizeram evidente aos olhos. Estavam conservadas e veneradas em Roma as cadeias de Nero, quando à imperatriz Eudóxia, peregrina de Constantinopla a Jerusalém, foram presentadas, como igual tesouro, as de Herodes; vieram estas dali a Roma, mandadas pela mesma Eudóxia a outra, também Eudóxia e também imperatriz, e não faltando quem duvidasse se verdadeiramente eram as mesmas, que sucedeu? Toma o Pontífice nas mãos umas e outras cadeias, cotejando as que certamente eram de Nero com as que se dizia serem de Herodes, no mesmo ponto aqueles sagrados ferros, como se tiveram sentidos e uso de razão, por si mesmos se abraçaram entre si, e se uniram e ligaram de tal sorte, como se nunca tiveram sido duas, senão uma só cadeia, fabricada pelo mesmo artífice. Oh! admirável e portentoso testemunho da providência de Cristo para com seu Vigário! Oh! admirável e portentosa confirmação de ser uma, continuada e a mesma providência, aquela que em Jerusalém rompeu as cadeias de Herodes e livrou a Pedro, e aquela que em Roma conservou inteiras as cadeias de Nero e o não quis livrar delas. Se dividirmos esta providência em duas providências, e combinarmos uma com a outra pelos efeitos, não só parecem diversas, senão totalmente contrárias: uma de cuidado, outra de descuido; uma de estimação, outra de desprezo; uma de liberdade, outra de cativeiro; uma de vida, outra de morte; uma que afrontou e iludiu os intentos de Herodes, e outra que ajudou e fez triunfar os de Nero. Mas, assim como as cadeias, sendo duas e tão diversas, se uniram em uma só cadeia, assim a providência, que em Jerusalém as rompeu e livrou a Pedro, e em Roma as conservou inteiras e fortes, e o não quis livrar, foi também uma e a mesma cadeia, porque foi uma e a mesma providência.
Boécio, a quem segue Santo Tomás, e comumente os teólogos, definindo a providência, diz que a série de todas as coisas e suas causas ordenadas na mente divina, e encadeadas e ligadas entre si com uns nós maravilhosos e secretos que ninguém pode desatar: Providentia est series causarum, rerumque in mente Dei, quae omnia suis nectit ordinibus miris, arctisque, sed arcanis nobis. E Cornélio, comentando o mesmo Boécio, ainda o declara com maior expressão: Deus per congruos providentiae suae modos, quos in thesauris sapientiae suae reconditos habet, facit ut omnes rerum temporumque successus invicem apposite nectantur; ac velut ansulae sibi invicem inserantur; et catenam elegantem efficiant: De sorte que os sucessos dos tempos e das coisas, ainda que pareçam diversos e encontrados, estão na mente e providência divina ordenados e atados entre si de tal modo que, como anéis ou fuzis enlaçados uns nos outros, compõem uma uniforme e elegante cadeia. — Tal foi em um e outro caso a do supremo artífice, Cristo, o qual, livrando em diversos tempos, e não livrando a Pedro, soltando-o em Jerusalém, e deixando-o prender em Roma, tirando-o milagrosamente das mãos de Herodes, e consentindo que natural e cruelmente morresse a mãos de Nero, das cadeias rotas de um, e das cadeias não rotas de outro formou uma uniforme e elegantíssima cadeia de sua providência, para maior ornamento e glória do mesmo Pedro.
A Arão, que era o Pedro da lei escrita, como Pedro o Arão da lei da graça, mandou Deus fazer para ornato das vestiduras pontificais duas cadeias de ouro, as quais, porém, com dois anéis da mesma matéria, se uniam uma na outra, e sendo duas cadeias, formavam uma só: Facies in rationali catenas sibi invicem cohaerentes ex auro purissimo: catenasque aureas junges annulis, qui sunt in marginibus ejus (16). Não reparo em serem aquelas cadeias de ouro e estas de ferro, porque já disse Crisóstomo que por isso se honrava mais delas e se ornava mais com elas o nosso Pontífice: His catenis Apostolus ornabatur; et tanquam regalem aliquem ornatum circumferens exultabat. O que só noto é a unidade ou a união e coerência de umas e outras cadeias: Catenas sibi invicem cohaerentes. Moisés andou coerente nas cadeias de Arão, porque as formou pelos mesmos moldes; Cristo não andou coerente nas cadeias de Pedro, porque as traçou e dispôs com sucessos e efeitos contrários. Isso é romper umas cadeias e não romper outras; isso é livrar a Pedro e não o livrar. Mas, assim como a coerência daquelas cadeias a fazia a semelhança, assim a coerência destas a fez a contrariedade. E que sendo tão contrários os atos da providência, saísse a providência tão uniforme, e sendo uma cadeia tão diversa da outra, saíssem ambas as cadeias entre si tão coerentes: Catenas sibi invicem cohaerentes? Essa foi a maravilha.
Mas, nesta mesma uniformidade e coerência da providência de Cristo, se alguma curiosidade douta perguntar qual foi maior providência, se aquela que livrou a Pedro das cadeias em Jerusalém, ou aquela que o não livrou em Roma, não faltará quem diga que a de Jerusalém foi maior, porque lá foi miraculosa, e cá não. Lá quebrou as cadeias, cegou as guardas, abriu as portas, ou deu passo franco por elas sem as abrir — que é mais —; cá não obrou milagre algum, antes totalmente não obrou, porque foi uma mera suspensão de todo o ato e concurso. Contudo, digo que foi maior e mais alta providência não livrar Cristo a Pedro das cadeias de Nero que livrá-lo das cadeias de Herodes. E por quê? Porque nas cadeias de Herodes conseguiu a providência o seu fim contra a vontade de Herodes, e nas cadeias de Nero conseguiu também o seu fim, mas não contra, senão pela vontade do mesmo Nero. O nobre, o alto, o fino, o maravilhoso da providência divina, não é fazer a sua vontade violentando a minha: é deixar livre e absoluta a minha vontade, e com a minha, e pela minha, conseguir a sua.
A maior obra da providência de Deus foi a Redenção do mundo por meio da morte de Cristo. E
como conseguiu a mesma providência este altíssimo fim, tão estupendo como necessário? Não de outro modo que entregando o mesmo Cristo, por decreto do injusto juiz, à vontade de todos aqueles que lhe queriam tirar a vida: Jesum vero tradidit voluntati eorum (17). Fez a sua vontade Judas, fez a sua vontade Caifás, fez a sua vontade Pilatos, fizeram a sua vontade os escribas e fariseus, fez finalmente a sua vontade o mesmo demônio que os instigava. E que por meio de tantas vontades, e todas contrárias à divina, o fim da divina se conseguisse? Esta foi a providência mais nobre, esta a mais sábia, esta a mais sublime, esta a mais divina, esta a mais providência. E qual é a razão? A razão é porque a providência, que violenta a vontade e poder humano, é providência que se ajuda da onipotência; porém a providência que deixa obrar à potência humana tudo quanto pode, e deixa executar à vontade humana tudo quanto quer, é providência sem ajuda de outro atributo, e por isso pura providência. A potência e a vontade de que se serve a providência em tal caso, não é a divina e sua, senão a humana e contrária; e quanto mais permite à contrária, tanto é mais providência; quanto mais concede à humana, tanto é mais divina. Tal foi, pois, a providência de Cristo em não livrar a Pedro das cadeias de Nero. Na prisão de Herodes, para que a providência conseguisse o seu fim, rompeu a onipotência as cadeias; porém, na prisão de Nero deixou a providência as cadeias inteiras, sem usar da onipotência, e contudo, conseguiu o seu fim. Logo, não só foi providência, senão maior e mais gloriosa providência, não livrar a Pedro das cadeias de Nero que livrá-lo das cadeias de Herodes.
E, como as mesmas cadeias, temos já solto ou atado o primeiro argumento.
V
O segundo, que é contra a providência de Pedro, lundado nas suas chaves, e em respeito de todos aqueles que por elas lhe são sujeitos, parece mais dificultoso. Assim como Deus deu a São Pedro as chaves do céu, assim as tinha dado, por seu modo, antigamente a Elias, e com poder e autoridade universal e privativa, de que só ele pudesse abrir ou fechar os tesouros celestes, isto é, as chuvas e orvalhos do céu, com que se fecunda a terra e vive o mundo. Mas que fez Elias com estas chaves na mão, e como usou delas? Vivit Dominus — disse ele falando com el-rei Acab — si erit annis his ros et pluvia, nisi juxta oris mei verba (3 Rs. 17,1): Eu tenho na minha mão as chaves do céu, e tu, ó rei, desengana-te, que nestes anos do meu governo, nem uma só gota há de cair de água ou estilar de orvalho sobre a terra, senão pelo império da minha voz. — A terra abrasada e ardendo abrirá mil bocas, com que gemerá e gritará ao céu; mas o céu, debaixo das minhas chaves, não se moverá a brados nem a gemidos, e se mostrará tão seco e duro, como se fosse de bronze. Parece-vos boa providência esta das chaves do céu entregues ao arbítrio de um homem? Pois ainda não ouvistes outra circunstância mais terrível, por não dizer desumana. No mesmo tempo, diz o texto, morava Elias mui descansado sobre as ribeiras do rio Carit, e um corvo, manhã e tarde, lhe trazia pão e carnes: Panem et carnes mane, panem et carnes vesperi (3 Rs. 17,6). De maneira que nos mesmos anos em que o povo encomendado à providência de Elias andava caindo e expirando à fome, Elias, com provisão sempre nova e abundante, comia e se regalava duas vezes ao dia. Nos campos não se via uma folha, nas searas não se colhia uma espiga, e a Elias sobejava-lhe o pão. As aves não tinham mais que as penas, nem os gados mais que os ossos, e a mesa de Elias abastecida de carne sobre carne. As fontes secas e mudas, sem correr ou suar delas uma só gota, e Elias com a água a rios. É boa ou será boa esta providência das chaves do céu? E mais, se as mãos que tiverem o domínio das chaves não forem as de Elias? Logo — argumenta o herege, e porventura também o político — logo o mesmo poderá acontecer às chaves do céu entregues à providência de Pedro.
Primeiramente digo que não poderá. E por quê? Porque se a providência de Pedro faltasse ao ofício de Vigário de Cristo, a providência de Cristo faria o ofício de Vigário de Pedro. Estava Cristo na cruz, pouco antes de render o espírito, quando o ladrão convertido lhe presentou o seu memorial, dizendo:
Domine, memento mei, cum veneris in regnum tuum (18). Respondeu-lhe o Senhor incontinenti:
Hodie mecum eris in paradiso (19). E esta foi a primeira vez que se abriram as portas do céu, até aquela hora cerradas. Mas vede como replica e acode, pela jurisdição de Pedro, Arnoldo Carrotense.
— O ofício e jurisdição de abrir as portas do céu, vós Senhor, não a tendes dado a Pedro? Sim. Como, logo, não remeteis este memorial ao vosso Vigário? Porventura porque vos negou no átrio do pontífice, tende-lo privado do cargo? Não, que Pedro já estava arrependido, e emendado e restituído à graça. Como, logo, usa Cristo das chaves de Pedro, e abre por si mesmo a porta do céu? Agudamente o mesmo Arnoldo: Absens eras, o Petre, et ministerii tui claves modo non profers; supplet vicem tuam — notai as palavras — supplet vicem tuam Summus Sacerdos, apertisque serias antiquis, aperiente Christo, introducitur latro in regnum caelorum: Quando o ladrão presentou o seu memorial, estava Pedro ausente; e como o tempo era brevíssimo, e o negócio tão urgente que não sofria dilações, fez-se Cristo substituto do seu Vigário, e supriu a ausência de Pedro com a sua presença. Trocou o crucificado Senhor os cravos com as chaves, e abriu as portas do paraíso ao repentino penitente. E por que Pedro não acode à obrigação de seu ofício, como Vigário de Cristo, acudiu Cristo a ela, como Vigário de Pedro: Supplet vicem tuam, o Petre.
Eis aqui como nunca pode faltar a providência das chaves de Pedro, ainda no caso em que ele por si mesmo faltasse. Mas, antes que desçamos em particular ao cuidado, vigilância e admirável circunspecção desta universal providência, quero eu acudir pela honra de Pedro, e não refutando a sua improvidência neste caso com a sua providência em todos, mas sarando gloriosamente uma improvidência com outra. Dai atenção ao sucesso, tão digno de ser ouvido, como imitado.
Entrou Cristo em casa de S. Pedro: Introivit Jesus in domum Simonis (Lc. 4,38), e havia muito tempo que estava na mesma casa a sogra do mesmo Pedro, tão enferma e prostrada de umas gravíssimas febres, que nem para receber o Senhor se pôde levantar. Essa força tem a palavra tenebatur do evangelista: Socrus autem Simonis tenebatur magnis febribus (20). Grande febre e grande caso! Quem haverá que não repare e note aqui muito a pouca providência de S. Pedro, antes o demasiado descuido e negligência de atender ao remédio de sua casa e à necessidade dos seus domésticos e parentes? A sogra de Pedro em casa de Pedro ardendo em febres, e sem cura; padecendo dores, e sem alívio; atada tanto tempo a um leito, sem saúde, nem sequer melhoria? Não é este aquele mesmo Pedro, que passando pelas ruas e pelas praças, só com a sobra sarava todos os enfermos?
Como, logo, abusa de tal modo do seu poder que, curando a todos, só aos seus domésticos não cura?
Tantos milagres para as casas dos outros, e só para a sua casa nenhum milagre? Sim. E este creio eu que foi o maior milagre de S. Pedro. Entre todos os milagres deste grande prodígio do mundo, o maior milagre foi não ser milagroso em sua casa. Fora de casa e ao sol fazia sombra, e obrava milagres;
chegado à sua casa, não obrava milagres, porque já não tinha sombra.
Mas que farão em tal caso os domésticos de Pedro, e que será deles? Vós, senhores, que servis a S.
Pedro nesta sua casa, sois mais propriamente os seus domésticos. E que será de tantos, que somente vivem da sua sombra? Não tenhais medo, porque como Cristo nos casos de necessidade é Vigário do seu Vigário, se vos faltar a sombra de Pedro não vos faltará a mão de Cristo. Assim foi. Chega-se o Senhor ao leito da enferma: Stans super illam(21), dá-lhe e toma-lhe a mão: Aprehensa manu ejus (22), e no mesmo ponto não só ficou livre da febre, mas sã, e com todas as suas forças: Surgens ministrabat illis(23). Assim provê a providência de Cristo milagrosamente, onde a providência de Pedro, com maior milagre, não provê. Antes digo, que assim como o não prover em Pedro foi milagre, porque é obrigação natural da providência de Cristo prover ele onde Pedro não provê, se Pedro, por excesso de generosidade, se descuidar dos seus domésticos, Cristo, por excesso de providência, tomará cuidado deles; e se Pedro, abusando gloriosamente do poder das suas chaves, fechar a porta da sua casa a todo o favor, Cristo, tomando-lhe as chaves, abrirá a mesma porta, e, cheio de favores e graças, entrará em casa de Pedro: Introivit Jesus in domum Simonis. Assim que seguros estão sempre os efeitos da providência de Pedro, porque quando ele, por qualquer acidente, ou como homem, ou como mais que homem, não usar dos poderes das chaves por si mesmo, fá-lo-á melhor por Cristo, ou Cristo por ele.
VI
E que se segue ou se prova disto? Segue-se e prova-se o que eu prometi dizer, posto que pareça que disse o contrário. Desta improvidência de Pedro para com a sua casa, se prova altissimamente a providência do mesmo Pedro para com a Igreja que lhe foi encomendada. Era o espírito soberano de Pedro como o daquela excelentíssima alma, que disse por boca de Salomão: Posuerunt me custodem in vineis: vineam meam non custodivi (Cânt. 1,5): Puseram-me por guarda das vinhas, e eu não guardei a minha vinha. — Pois isto diz e isto faz uma alma unicamente perfeita, que é a idéia e exemplar de todas as almas santas? Se disse: puseram-me por guarda das vinhas, parece que havia de acrescentar: e eu guardei-as com grande cuidado e vigilância; mas, em lugar de dizer que guardou as vinhas que lhe encomendaram, diz que não guardou a sua vinha: Vineam meam non custodivi? Sim.
Porque o maior testemunho e a maior prova de guardar com todo o cuidado as vinhas que lhe encomendaram, era não ter nenhum cuidado de guardar a sua. A vinha — como Cristo lhe chamou —
composta de tantas vinhas, é a Igreja universal; e porque a providência de Pedro se descuidou totalmente da sua vinha, por isso teve tanto cuidado da de seu Senhor.
Notável coisa é ver o zelo e providência universal com que São Pedro tomava sobre si o que pertencia a todos, como se ele fora todos ou estivera em todos, e todos nele. Mas por isso lhe entregou Cristo as chaves e o cuidado do universo. As duas maiores dificuldades ou mais dificultosas questões que se excitaram na Escola do Apostolado, foram a da divindade de Cristo e a da verdade do Sacramento. Sobre a questão da divindade, depois de ouvidas várias opiniões, todas negativas, perguntou o Senhor: Vos autem, quem me esse dicitis (24)? E falando a pergunta com todos, Pedro respondeu por todos, como se falara só com ele: Tu es Christus, Filius Dei vivi (25). Na questão do Sacramento pareceu tão dura a doutrina, que muitos por amor ou por horror dela deixaram a escola.
Então perguntou o Senhor aos demais: Nunquid et vos vultis abire (26)? E falando também a pergunta com todos, Pedro do mesmo modo respondeu por todos: Domine, ad quem ibimus? Verba vitae eternae habes (27). E homem que toma por si o que se pergunta a todos, e responde por todos quando se não fala só com ele, este homem tem zelo e providência universal, a este homem, e não a outro, hei de dar as chaves da minha Igreja: Tibi dabo claves regni caelorum.
Mas não assentou a eleição de Pedro sobre estas duas experiências somente. No Monte Tabor, quando viu a glória, disse: Bonum est nos hic esse(28). E quando ouviu que para entrar na mesma glória era necessário dar esmola (Mt 17, 4), como ele tinha deixado tudo, instou dizendo: Ecce nos reliquimus omnia. Quid ergo erit nobis (29)? Não sei se reparais neste nobis e naquele nos, uma e outra vez repetido. Em tudo mostrou Pedro ser Pedro. Se alega serviços, alega por todos: Ecce nos reliquimus; se procura prêmios, procura por todos: Quid erit nobis; se deseja bens, deseja para todos:
Bonum est nos hic esse. Uma vez fala do passado: reliquimus,. outra vez do futuro: quid erit; outra vez do presente: bonum est, mas sempre de todos, por todos e para todos. Não se ouve da boca de Pedro nem ego, nem mihi, nem me, senão nos, no primeiro caso, nobis no terceiro, e nos no quarto:
Nos reliquimus, nobis erit, nos esse, porque a providência de Pedro não sabe o nome a si, nem trata ou cuida de si, senão de todos. Se alguma vez se lembra Pedro só de si, é para ele só tirar a espada no Horto, e defender a seu Mestre; é para ele só o seguir até o átrio de Caifás, cercado de guardas; é para ele só se lançar vestido ao mar, ou pisando as ondas com os pés, eu rompendo-as com os braços para o ir buscar. Só para os perigos só, mas nunca só, senão com todos e como todos, para o bem e interesse de todos.
Todos, digo, uma e outra e tantas vezes, porque a providência de Pedro, sem exceção nem limite no universal e no particular, sempre se estendeu e abraçou a todos, aos grandes e aos pequenos, aos naturais e aos estranhos, aos fiéis e aos infiéis, aos presentes e aos ausentes, aos vivos e aos mortos. O
primeiro ato da providência de Pedro, tanto que pela morte de Cristo lhe sucedeu no pontificado, foi confirmar os outros apóstolos na fé da Ressurreição. Enquanto o disseram outros, eram delírios: Visa sunt sicut deliramentum(30); tanto que o disse Pedro foi verdade infalível: Surrexit Dominus vere, et apparuit Simoni (31). Mandou-lhes Cristo que esperassem pelo Espírito Santo, mas Pedro, com providência antecipada e admirável, não esperou pela vinda do Espírito Santo para refazer a quebra de Judas e inteirar o número do apostolado. Quando Cristo subiu ao céu, deixou onze apóstolos, e quando desceu o Espírito Santo, já achou doze. Com esta diligência conseguiu Pedro que viesse o Espírito Santo antes de vir, porque antes de vir em línguas visíveis, já tinha vindo na língua invisível com que declarou a Matias: Cecidit sors super Mathiam(32). Cheios todos os apóstolos do Espírito Santo, Pedro foi o primeiro que no mesmo dia, e na mesma hora, e na mesma Jerusalém, onde tinha sido crucificado Cristo, pregou publicamente a fé da sua divindade. E com que efeitos? O mesmo Cristo, pregando em Judéia três anos, deixou nela só quinhentos cristãos, como consta da primeira Epístola aos Coríntios, e São Pedro, com a graça superabundante do mesmo Cristo, naquele só dia e naquela só pregação, converteu três mil judeus, e noutro dia e noutra pregação, cinco mil, cumprindose em Pedro o que o mesmo Senhor tinha prometido: Majora faciet, quia ad Patrem vado (33).
Mas como se contentaria com o fruto que colhia em Jerusalém e Judéia, quem tinha a cargo da sua providência o resto do mundo? De Jerusalém parte Pedro a Antioquia, e ali assentou a primeira vez a sua cadeira, não se desprezando, sendo príncipe e pastor do universo, de ser e se chamar bispo de uma cidade. De Antioquia passou a Roma que, como cabeça do império, o era também da superstição e idolatria, para que assim como tinha pregado em Jerusalém aos hebreus e em Antioquia aos gregos, pregasse também em Roma aos latinos, e com as três línguas universais em que foi escrito o título do crucificado: Hebraice, graece et Latine (Jo. 19,20), levantasse o estandarte da mesma cruz nas três metrópoles mais conhecidas, e nos três castelos mais eminentes do mundo, do que o dominante era Roma. Quando Davi derrubou o gigante, diz o texto sagrado que pôs a pedra na funda, e dando uma e outra volta, lha pregou na cabeça: Circumducens percussit Philisthaeum, et infixus est lapis in fronte ejus (34). E que pedra é esta, senão Pedro? Ao redor de Jerusalém deu uma volta à Palestina, e ao redor de Antioquia deu outra volta à Grécia, e com esta dobrada força, como pedra de Davi, se veio meter e fixar na testa do gigante, que é Roma, cabeça do mundo. Aqui o derrubou e prostrou por terra, mas para daqui o subir da terra ao céu. De Roma, melhor que os Césares aos Fábios, Metelos e Cipiões, repartiu S. Pedro os Pancrácios, os Berilos, os Marciais, os Apolinares, os Prodocimos, os Hermagoras, os Maternos, os Torcatos, os Tesifontes, e outros famosos discípulos de sua fé e espírito, os quais, ordenados de bispos e sacerdotes, penetrassem a Itália, as Gálias, as Espanhas, a Numídia, a Mauritânia e as demais províncias da Europa e da África — como já tinha feito na Ásia o mesmo S.
Pedro para que, como raios do mesmo sol, alumiassem, e como rios da mesma fonte, regassem e fecundassem aquelas terras.
Porém, a verdadeira providência, que toda é olhos, não se contenta com mandar, senão com ir, nem com ser informada somente, senão com ver. Por isso Pedro, ainda que pôs a cadeira em Roma, não a fez para si sede fixa, senão sede rodante. Lá viu Daniel a Deus assentado no seu trono, e diz que o mesmo trono era fundado sobre rodas: Thronus ejus flammae ignis, rotae ejus ignis accensus (35). E
por que tinha rodas o trono de Deus, sendo aquele que immotus dat cuncta moveri (36)? Para mostrar nesta figura visível, que assim como com sua imensidade enche todo o mundo, assim com sua providência o vê e rodeja todo. O mesmo fazia Pedro como vice-Deus na terra. Nem ele se podia apartar da sede episcopal, nem a sede dele; mas, levando-a sempre consigo, como diz S. Lucas, visitava e via por si mesmo a todos: Dum pertransiret universos(37). Tomou outra vez a Jerusalém e outra vez a Antioquia; foi em pessoa à Galácia, à Capadócia, à Ásia, à Bitínia, a Corinto, ao Egito, e a outras partes da África, e até à barbaríssima região do Ponto, que naquele tempo era o degredo mais áspero dos romanos, e o horror, como diz Tertuliano, do mundo, não faltou a providência e presença de Pedro. Em Nápoles e Sicília há ainda hoje memórias suas, e é autor Metafrastes, que também passou à Espanha, e pregou em Inglaterra. Assim respondeu o primeiro apóstolo, sendo o príncipe de todos, à sua primeira vocação. Como Cristo o tinha chamado para pescador de homens, não só no Tiberíades, nem só no Mediterrâneo, nem só no Euxino, mas também no oceano era bem que fosse lançar as redes, para que pescasse homens em todos os mares.
Bem quisera a providência de Pedro, assim como visitava a todos, assistir sempre com todos. Mas o que não podia com a presença e com a voz, fazia com a pena. Ninguém lerá as epístolas canônicas de São Pedro, que com admiração e assombro o não veja, não só retratado, mas vivo nelas. Na majestade do estilo, no sólido da doutrina, no profundo das sentenças e no ardente do zelo. Por este meio se multiplicava Pedro em todas as partes, e se fazia presente no mesmo tempo a todos. Mas o que mais admiro naquelas sagradas escrituras, é o título: Petrus apostolus, electis advenis dispersionis (38). Não iam dirigidas estas letras pontifícias aos reis e monarcas do mundo, senão a uns pobres peregrinos e desterrados por todo ele. Lembrava-se S. Pedro que lhe encomendara Cristo duas vezes os cordeiros, e uma só vez as ovelhas: Pasce agnos meos, pasce agnos meos, pasce oves meas (39).
Nas ovelhas lhe encomendou os grandes, e nos cordeiros os pequenos; e por isso os pequenos duas vezes, e em primeiro lugar, para que tivesse deles maior cuidado. Esta foi a confiança com que Cornélio, sendo ainda gentio, não duvidou em mandar chamar a S. Pedro, e que fosse à sua casa, distante sessenta milhas, como logo foi. Estava então S. Pedro em Jope, e este nome traz à memória o profeta Jonas, o qual no mesmo porto se embarcou, fugindo de Deus, por não ir a Nínive, sentindo e desprezando muito de ser mandado pregar a uma gente tão vil e aborrecida, como eram todos os gentios na estimação dos hebreus. E quando Jonas não quis ir pregar à maior cidade do mundo, onde só os inocentes eram cento e vinte mil, vai o Sumo Pontífice da Igreja, e a pé, desde Jope até Cesaréia, só por catequizar um gentio.
VII
Estas foram, senhores, não todas, mas uma pequena e abreviada parte das obras maravilhosas de S.
Pedro, e dos exemplos que deixou à Igreja de sua universal providência. Disse deixou, e disse mal, porque os não deixou. Ainda os continua depois da morte, como insistiu neles em toda a vida. Morreu Pedro, mas a sua providência não acabou, porque foi, é e será imortal. S. Pedro de Ravena, em uma carta que escreveu a Eutiques, que anda junto ao Concílio Calcedonense, diz que S. Pedro vive sempre em todos seus sucessores: Hortamur te, frater; ut his, quae de beato Papa Romanae civitatis scripta sunt, obedienter attendas, quoniam Beatus Petrus, qui in propria sede et vivit et praesidet, praestat quaerentibus fidei veritatem. Mas não é isto só o que quero dizer. Digo que no céu, onde está S. Pedro, vive e permanece imortal a sua mesma providência sobre a Igreja, não apartando jamais os olhos dela, nem faltando ou tardando em lhe acudir, todas as vezes que o há mister. Assim o prometeu o mesmo Pedro a todos os fiéis, quando se despediu deles na sua segunda Epístola, por estas palavras:
Certus quod velox est depositio tabernaculi mei, secundum quod et Dominus noster Jesus Christus significavit mihi. Dabo autem operam, et frequenter habere vos post obitum meum (40). Não promete aos fiéis para depois da sua morte as suas orações, como fazem os outros santos, senão a sua manutenência: Frequenter habere vos: Eu vos terei, eu vos manterei, eu vos conservarei. — E a palavra que responde a frequenter; no original grego, em que o santo apóstolo escreveu, quer dizer:
semper quotidie, sigillatim: sempre, todos os dias, e a todos, não só em comum, senão em particular.
Quão exatamente cumprisse São Pedro esta sua promessa não se pode compreender nem contar, por serem ocultas e invisíveis as ordinárias e contínuas assistências da sua providência; mas bastam para superabundante prova as manifestas e visíveis. S. Pedro foi o que, pouco depois da sua morte, apareceu ao mesmo Nero que o mandou matar, com um aspecto tão severo e terrível que, assombrado o tirano — como refere Suetônio, sem saber a causa — os poucos dias que depois viveu, mais parecia já morto que vivo, com que cessou a perseguição da Igreja. S. Pedro foi o que apareceu ao imperador Constantino, e em lugar do banho de sangue dos inocentes, o exortou a que se banhasse no do sangue de Cristo, com que, batizado e feito cristão, os pontífices e sacerdotes, que viviam nas grutas dos montes, puderam aparecer publicamente nas praças de Roma, e colocar as imagens de Cristo nos templos, e pregar sua fé por todo o mundo. S. Pedro foi o que, durando a perseguição em Inglaterra, e tendo fugido alguns bispos, para que não fugisse também o metropolitano de Cantuária, como pretendia, o repreendeu e castigou por suas próprias mãos, de tal sorte que bastou a vista das chagas que lhe ficaram em todo o corpo, para que os mesmos tiranos o deixassem viver e guardar as ovelhas do pastor que tão asperamente punira os pensamentos só de as querer deixar. S. Pedro foi, finalmente, o que no século passado apareceu a Inácio em Pamplona, mortalmente ferido de uma bala, e o sarou com sua presença, e lhe infundiu o seu espírito, para que levantasse uma nova e forte companhia em defensa da Igreja militante, contra Lutero e Calvino e os outros heresiarcas de nossos tempos, como diz a mesma Igreja: Novo per Beatum Ignatio subsidio, militantem Ecclesiam roborasti.
Mas, glorioso defensor da fé e autoridade romana, e também da mesma Roma e desta vossa Basílica, oitava maravilha do mundo, agora que as trombetas otomanas quase se ouvem dentro de seus muros, e já as meias-luas turquescas se divisam das torres de Itália e lhe estão batendo às portas, tempo é de outros socorros e de outras armas. Lembrai-vos, ó Pedro, que não vos disse Cristo que depusésseis a espada, senão que a metêsseis na bainha, para a tirar outra vez e a empunhar quando a honra de vosso Mestre, já triunfante no céu, e a vossa providência o pedisse na terra. Esta foi a espada com que assististes fulminante ao lado de vosso sucessor, Leão, e destes tanta eficácia à sua eloqüência, e metestes em tanto temor a Átila, que não se atrevendo a dar um passo adiante, voltou as costas e as bandeiras, e confessou aos seus, tremendo ainda, o que vira. Com esta espada, e vestido de armas resplandecentes, socorrestes Alexandria, cidade da Igreja romana sitiada pelo imperador Frederico, e, capitaneando os cercados no assalto, com que debaixo de falsa trégua os invadiu repentinamente, vós, com imensa mortandade de todo o seu exército, o obrigastes fugindo a levantar o sítio. E quem assim acudiu por uma cidade da Igreja romana, que fará pela mesma Roma e pela mesma Igreja? Mas, avizinhemo-nos mais à oficina capital, onde se está fabricando e dispondo o perigo, e entremos na mesma Constantinopla. Imperadores eram daquela sempre infensa e venenosa metrópole Bardas e Micael, os quais tinham devastado com esquisitas crueldades toda a cristandade do Oriente, quando vós, aparecendo visível aos afligidos católicos, por um dos ministros de vossa justiça que vos acompanhavam armados, não só os mandastes matar, mas fazer em postas a ambos, e assim se executou. Também era imperador de Constantinopla Alexandre Impiíssimo, o qual, olhando para as estátuas dos antigos íodolos de Roma, que tinha no seu palácio, disse: Quandiu istas colebant Romani, potentissimi et invicti perseveraverunt: Enquanto os romanos adoraram a estas, foram poderosíssimos e perseveraram invictos. — Mas apenas o bárbaro tinha lançado da boca esta blasfêmia, quando vós, sempre vingador das injúrias de Cristo, vos presentastes diante, dizendo: Ego sum Romanorum Princeps Petrus. E ao trovão desta voz, vomitando todo o sangue pela mesma boca sacrílega, caiu morto Alexandre.
Assim venceis, assim triunfais, gloriosíssimo Pedro. E se um Ego sum da vossa boca em Constantinopla é tão poderoso como outro Ego sum (Jo. 18,5), da boca de vosso Mestre e Senhor em Getsêmani, quando esta só voz derrubou os esquadrões de seus inimigos, e quando a vossa espada, como então começou, os degolara a todos, se o mesmo Senhor vo-la não mandara meter na bainha, agora, agora é tempo de a desembainhar outra vez, ou de tornar a dizer Ego sum, para que trema o turco, para que se acabe Mafoma, para que as suas luas se eclipsem, para que os seus exércitos desmaiem e se confundam, e para que em Constantinopla, como em Roma, e no império do Oriente, como no do Ocidente, se conheçam e se venerem só as chaves de Pedro, e com ele, e por ele, e nele o nome de Cristo. Amém.
(1) Eu te darei as chaves do reino dos céus (Mt. 16,19).
(2) Ligado com duas cadeias (At. 12,6).
(3) Que tinha a chave do abismo e uma grande cadeia na sua mão (Apc. 20, 11).
(4) Caíram as cadeias das suas mãos (At. 12,7)
(5) Nessa mesma noite se achava dormindo Pedro (At 12,6).
(6) E entretanto ele dormia (Mt 8,24).
(7) A todos vós serei esta noite uma ocasião de escândalo (Mt. 26, 31).
(8) Mas eu roguei por ti para que a tua fé não falte: e tu, enfim, depois de convertido, conforta a teus irmãos (Lc. 22,32).
(9) Achava-se a barca no meio do mar (Mc. 6,47).
(10) Faze-te mais ao largo (Lc. 5,4).
(11) A Capela da igreja de S. Pedro, em que se prega neste dia, é de São João Crisóstomo.
(12) Caíram as cadeias das suas mãos (At. 12,7).
(13) E matou a espada Tiago, irmão de João (At. 12,2).
(14) E morte de cruz, pelo que Deus também o exaltou (Flp. 2,8 s).
(15) Não quebrareis dele osso algum (Jo. 19, 36).
(16) Farás para o racional duas pequenas cadeias de ouro o mais puro, que se unam entre si: e ajuntarás as cadeias de ouro com as argolinhas que estão nos remates deles (Êx. 28,22,24).
(17) E permitiu-lhes que fizessem de Jesus o que quisessem (Lc. 23,25).
(18) Senhor, lembra-te de mim quando entrares no teu reino (Lc. 23,42).
(19) Hoje serás comigo no paraíso (Lc. 23,43).
(20) Ora a sogra de Simão padecia grandes febres (Lc. 4,38).
(21) Inclinando-se sobre ela (Lc. 4,39).
(22) Depois de a tomar pela mão (Mc. 1, 31).
(23) Levantando-se, se pôs a servi-los (Lc. 4,39).
(24) E vós, quem dizeis que sou eu (Mt. 16,15)?
(25) Tu és o Cristo, Filho de Deus vivo (Mt. 16,16).
(26) Quereis vós outros também retirar-vos (Jo. 6,68)?
(27) Senhor, para quem havemos nós de ir? Tu tens palavras da vida eterna (Jo. 6,69).
(28) Senhor, bom é que nós estejamos aqui (Mt. 17,4).
(29) Eis aqui estamos nós que deixamos tudo. Que galardão pois será o nosso (Mt. 19,27)?
(30) Pareceu-lhes um como desvario (Lc. 24,11).
(31) Na verdade que o Senhor ressuscitou, e apareceu a Simão (Lc. 24,34).
(32) Caiu a sorte sobre Matias (At. 1,26).
(33) Fará outras ainda maiores, porque eu vou para o Pai (Jo. 14,12).
(34) Dando-lhe a volta, feriu ao filisteu, e a pedra se encravou na sua testa (1 Rs. 17,49).
(35) O seu trono era de chamas de fogo, as rodas deste trono um fogo aceso (Dan. 7,9).
(36)Boetius.
(37) Saindo a visitar todos (At. 9,32).
(38) Pedro, apóstolo, aos estrangeiros que estão dispersos (1 Pdr 1,1).
(39) Apascenta os meus cordeiros, apascenta os meus cordeiros, apascenta as minhas ovelhas (Jo.
21,15 ss).
(40) Estando certo de que logo tenho de deixar o meu tabernáculo, segundo o que também me deu a entender nosso Senhor Jesus Cristo. E terei cuidado que ainda depois do meu falecimento possais vós ter repetidas vezes memória destas coisas (2 Pdr. 1,14 s).
Texto Fonte:
Editoração eletrônica:
Verônica Ribas Cúrcio