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Um Sarau no Paço de São Cristóvão

UM SARAU NO PAÇO DE SÃO CRISTÓVÃO
Paulo Setúbal PRIMEIRO ATO
CENA I
MARQUESA DE AGUIAR (sentada ao cravo) e VISCONDESSA DE ITAGUAÍ (à janela -
F.E.)
MARQUESA DE AGUIAR - Muita sege, Viscondessa? [Pára de tocar, a fim de ouvir]
VISCONDESSA DE ITAGUAÍ - Muita, Marquesa. Ainda agora, lá no pátio, vi estacar a da Baronesa dos Goitacazes.
MARQUESA DE AGUIAR - A da Baronesa dos Goitacazes? Muito bem. E Vossa Excelência deu ordens para que a Baronesa entrasse para este salão?
VISCONDESSA DE ITAGUAÍ (Aproximando-se do cravo, no qual se recosta] -
Perfeitamente, Marquesa; determinei, como Vossa Excelência ordenou, que entrassem para aqui as damas de honor, as camareiras e as fidalgas com grandeza. Somente a Marquesa de Paranaguá e a Condessa de Itapagipe, como damas do Paço, determinei que fossem conduzidas diretamente aos aposentos da Imperatriz. São elas que vêm acompanhar Sua Majestade a este salão.
MARQUESA DE AGUIAR - Tal e qual! Mas as filhas das damas, conforme combinamos, Vossa Excelência está fazendo entrar para o Salão Encarnado, não é verdade?
VISCONDESSA DE ITAGUAÍ - Sim, Marquesa, as filhas das damas e os moços fidalgos para o Salão Encarnado. [Sobe e olha para D.] E lá estão eles de fato. É um fino bando de rapazes e raparigas, Marquesa! Todos muito festivos! Todos muito tagarelas!
[Aproximando-se da Marquesa] Vossa Excelência não imagina como veio encantadora a pequena Calmon...
MARQUESA DE AGUIAR - A pequena Calmon? Aquela é realmente uma criaturinha doce e fina. Um bibelô de luxo, muito gracioso. Ela vai dançar a gavota, não vai?
VISCONDESSA DE ITAGUAÍ - Sim, Marquesa, ela e o Nogueira da Gama. É um gosto vê-los bailar. Não há ninguém, na Corte, que baile como eles. Um primor! Mas o Nogueira da Gama, ao que parece, ainda não surgiu aí... [Vai novamente à janela]
MARQUESA DE AGUIAR - Ainda não veio? [Levanta-se e vai também à janela]
VISCONDESSA DE ITAGUAÍ - Não vejo a sua sege. Marquesa, é melhor eu ir até o Salão Encarnado averiguar...
MARQUESA DE AGUIAR - [Desce, acompanha-a até junto a mesa superior] Vá, Viscondessa! Vá! E olhe; vigie-me bem esses rapazes. Vossa Excelência só os traga para aqui quando a Imperatriz entrar.
[A Viscondessa faz duas reverências e dá um passo; vai sair pela porta D., mas, ao virarse, dá de chofre com o Visconde da Cunha, que entra D.A.]
CENA II
MARQUESA DE AGUIAR [junto à mesa], VISCONDE DE ITAGUAÍ [superior] e VISCONDE DA CUNHA [porta D.A.]
VISCONDE DA CUNHA [Com uma mesura para a Viscondessa de Itaguaí] - Viscondessa!
VISCONDESSA DE ITAGUAÍ [Com uma mesura] - Visconde! Como vê, eu estava de saída... V. Exa. permite?
VISCONDE DA CUNHA [Com gesto polido] - Por quem é, Viscondessa!
[O Visconde da Cunha curva-se e a Viscondessa de Itaguaí sai pela D.]
CENA III
MARQUESA DE AGUIAR E VISCONDE DA CUNHA
VISCONDE DA CUNHA [Desce a "2" e curva-se muito cortesmente diante da Marquesa de Aguiar] - Marquesa! [Beija-lhe as mãos]
MARQUESA DE AGUIAR [Estendendo-lhe a mão] - Seja bem-vindo, Visconde!
VISCONDE DA CUNHA - Estou aqui, Marquesa, à espera das ordens de V. Exa. Eu, na qualidade de veador da Imperatriz, quero saber a que horas exatamente V. Exa. deseja que eu conduza Sua Majestade até o salão.
MARQUESA DE AGUIAR - Ainda é muito cedo, Visconde. Mas julgo que os convidados, às oito em ponto, estejam todos no pátio. Será então o momento para que V. Exa. vá buscar Sua Majestade. Enquanto isso, para o não enfadar, conversemos um pouco, meu caro veador...
VISCONDE DA CUNHA [Vai sentar-se no canapé da esquerda, acompanhando-a] - Com infinita honra, Marquesa.
MARQUESA DE AGUIAR [Indicando a poltrona "7"] - Diga-me aqui, Visconde: V. Exa.
não acha que foi uma excelente idéia essa de festejarmos o aniversário de Sua Majestade com o sarau?
VISCONDE DA CUNHA [Senta-se na poltrona "7"] - Uma idéia soberba! Sua Majestade, a Imperatriz, escusa-se sempre a dar beija-mão no seu dia de anos. Sua Majestade tem um caráter muito dela: não gosta de exibições. Nem de paradas, nem de festas reboantes.
Nada mais natural que V. Exa., como camareira-mor, preparasse à Sua Majestade, no aniversário de hoje, um sarau de arte; um sarau bem carinhoso, com gente amiga e de trato polido. Isto - penso eu - há de contentar imenso Sua Majestade! Que números pretende V. Exa apresentar?
MARQUESA DE AGUIAR - Um sarau discreto, sem ruído. Uma reunião de amigos! Mero pretexto para ouvirmos alguns versos, alguma músicas ao cravo. Umas músicas de nosso grande José Maurício que, V. Exa. sabe, são um encanto.
VISCONDE DA CUNHA - Um encanto! Músicas verdadeiramente belas... Mas, diga-me um pouco, Senhora Marquesa: não há danças?
MARQUESA DE AGUIAR - Naturalmente que há! Mas isto é uma surpresa da festa. Sua Majestade não imagina que lhe preparamos um sarau com danças... De forma que, com essas amenidades bem íntimas, havemos de passar a noite ao lado da nossa Imperatriz.
VISCONDE DA CUNHA - Ótimo, Marquesa! Ótimo! É um programa encantador, muito afetuoso. [Levanta-se e vai espreitar F.] Mas agora, Marquesa, aqui entre amigos, esclareça-me um pouco: o Imperador vem? [Senta-se novamente]
MARQUESA DE AGUIAR - Provavelmente não. Sua Majestade tem hoje à noite reunião urgente do Conselho. Lord Charles Stuart, embaixador extraordinário da Inglaterra, está aí a resolver complicadíssimos negócios de Estado. E essa reunião do Conselho, certamente, impede o Imperador de vir. Demais, como o Visconde bem vê, uma reunião de amigos... O Imperador seguramente não virá!
[Um criado uniformizado de primeira gala dá alguns passos até a entrada do salão; e, grave, solene, erguendo alto o reposteiro, anuncia com retumbância:]
- A Senhora Baronesa de Goitacazes!
- A Senhora Viscondessa da Cachoeira!
- A Senhora Marquesa de Jacarepaguá!
[Entram pela porta do centro]
[Visconde lev. E fica. Viscondessa lev. e sobe um pouco]
CENA IV
MARQUESA DE AGUIAR [superior pol.3], VISCONDE DA CUNHA, BARONESA DE
GOITACAZES, VISCONDESSA DA CACHOEIRA [3] E MARQUESA DE JACAREPAGUÁ [4].
BARONESA DE GOITACAZES - Permite, Senhora Marquesa?
MARQUESA DE AGUIAR - Oh! Façam o favor...
[Entram todos]
VISCONDE DA CUNHA [Curvando-se gentilmente] - Excelentíssimas Senhoras! [Avança, beija-lhes as mãos uma por uma e fica a 1]
[As senhoras beijam-se no rosto, descem e formam um semicírculo em torno da Marquesa de Aguiar. Criado leva a cadeira de 3 para junto de 7]
MARQUESA DE AGUIAR À BARONESA DE GOITACAZES - Sente-se, Baronesa!
BARONESA DOS GOITACAZES [Sent. no canapé E.] - Muito obrigada, Marquesa! E V.
Excelência por que se levantou? Tenha a bondade... [Aponta a pol. da Marquesa]
VISCONDESSA DA CACHOEIRA E VISCONDESSA DE JACAREPAGUÁ [Ao mesmo tempo] [para a Marquesa de Aguiar] - É verdade, Marquesa! Tenha a bondade...
MARQUESA DE AGUIAR [Sentando-se no canapé] - Muito obrigada! Muito obrigada!
[Viscondessa da Cachoeira sent. pol. 7 e Jacarepaguá na 3, que o criado trouxe.
Visconde da Cunha de pé a 4 junto à mesa. Nesse instante, enquanto a Marquesa agradece, o criado de galão dá uns passos até a entrada do salão e, grave, solene, anuncia com retumbância:] - O Senhor Barão de Marshall, ministro diplomático da Áustria!
CENA V
OS MESMOS E O BARÃO DE MARSHALL
MARSHALL [entrando]: Excelentíssimas Senhoras! [Vai direto à Marquesa de Aguiar e beija-lhe a mão] - Marquesa!
MARQUESA DE AGUIAR - Barão!
MARSHALL [às outras damas, depois de recuar um pouco:] - Já tive a honra de saudar Vossas Excelências no saguão... [Ao Visconde da Cunha:] Meu caro Visconde. [Apertam as mãos. V. Cunha fica canto superior da mesa].
BARONESA DE GOITACAZES - É verdade, Barão! Por sinal que todos nós reparamos na jovialidade de V. Exa.! O Barão estava alegre...
MARQUESA DE JACAREPAGUÁ - Alegríssimo! Pudera! Hoje, aniversário da Imperatriz, é dia de grande festa para toda a corte; mas muito particularmente ao Senhor Ministro da Áustria.
VISCONDE DA CUNHA À MARQUESA DE AGUIAR [ao mesmo tempo:] - É verdade! É verdade! Somente ao Senhor Ministro da Áustria, não; mas ao amigo fiel, ao amigo devotado e íntimo de Sua Majestade, a Imperatriz!
BARONESA DE GOITACAZES - Isso mesmo! O Barão é grande amigo de nossa ama, a Senhora Dona Leopoldina...
MARSHALL - V. Exas. têm razão, minhas senhoras! Hoje é dia de festa para mim. Dias de aniversário da minha ama e da minha Imperatriz! Vossas Excelências nem avaliam o quanto isso me comove. Vi-a em pequenina, assim, deste tamaninho, uma boneca!
Estava eu em Viena quando ela nasceu. Lembra-me tanto! Isto foi... Deixa ver... Isto foi...
Isto foi em 1797! Isto mesmo! 27 de janeiro de 1797! Como poderia supor, então, que aquela pequerrucha, aquele bebezínho tão loiro, haveria de ser, um dia, a Imperatriz do Brasil! Havia de ser um dia a minha ama, a minha imperatriz! Goitacazes, V. Exa. estava em Viena. Eu era, nesse tempo, moço da câmara, morava no palácio de Francisco I, quando D. João VI negociou o casamento do filho, então príncipe herdeiro, com a senhora Dona Leopoldina, então arquiduquesa da Áustria.
MARQUESA DE AGUIAR - V. Exa., Barão, assistiu ao casamento?
MARSHALL - Assisti! Assisti!
MARQUESA DE JACAREPAGUÁ - Dizem que foi uma das coisas mais belas que já viu a Europa!
VISCONDE DA CACHOEIRA - O casamento mais retumbante da época, não é verdade, Barão?
MARSHALL - O mais retumbante, Viscondessa! E eu vi, vi com estes olhos, esse acontecimento formidável.
VISCONDE DA CUNHA [indo sentar-se poltr. 3] - Nesse caso, Barão, conte-nos um pouco dessa maravilha...
MARSHALL - Com muito gosto, meu caro Visconde. É um caso que me é muito agradável de relembrar. [Uma pausa] Imaginem Vossas Excelências que...
[O criado dá um passo até o salão e anuncia:]
- O Senhor Conde e a Senhora Condessa de Valença!
- O Senhor Marquês de Maricá!
[Visconde da Cunha lev. e fica junto ao cravo. Marshall dá as costas para o público superior à mesa]
CENA VI
OS MESMOS E MARQUÊS DE VALENÇA, MARQUESA DE VALENÇA, MARQUÊS DE
MARICÁ.
Excelências!
[Os cavalheiros - Marshall e Cunha - curvam-se diante da Marquesa, beijando-lhe as mãos.]
MARQUÊS DE VALENÇA [ao mesmo tempo beija as mãos da camareira-mor:] -
Marquesa! [Beija-lhe as mãos e, depois, faz reverência às outras damas; afasta-se, ficando no canto D. inferior da mesa].
MARQUESA DE AGUIAR - Conde! [Faz, em seguida, uma reverência diante de cada uma das senhoras] MARQUESA! [À Viscondessa que X 3 depois da ver. da Viscondessa]
Viscondessa!
MARQUESA DE JACAREPAGUÁ JUNTO COM VISCONDESSA DA CACHOEIRA
[respondendo] Conde!
[Lev. X superior à mesa e vem sentar-se, ao seu tempo, no canapé da D., palestrando V.
Cunha. A Condessa de Valença beija as damas no rosto, enquanto o conde de Valença aperta as mãos dos cavalheiros e senta-se na poltrona 8. A esse tempo, Maricá estará superior ao canapé]
- Barão!
- Visconde!
BARÃO DE MARSHALL E VISCONDE DA CUNHA
- Conde!
- Marquês!
[Conde de Valença senta-se entre as damas. A Condessa de Valença também se senta, canapé. M.A. levanta-se de seu lugar a V. Ex para a pol 8.]
[Maricá, depois de beijar as mãos das senhoras, sent. Canto esq. da mesa.]
MARICÁ Ã BARONESA DOS GOITACAZES - Avistei hoje V. Exa., Baronesa, quando passava de sege pela rua dos Barbonos...
BARONESA DOS GOITACAZES - Eu também avistei V. Exa., Marquês; infelizmente não tive tempo de cumprimentá-lo; a parelha ia num tropel largado!
MARQUÊS DE MARICÁ - Realmente! A sege de V. Exa. voava... E que animais soberbos! Meus parabéns! V. Exa. tem a mais bela parelha da corte...
MARQUÊS DE VALENÇA [interrompendo]: Perdão! Mas vejo que viemos interromper o senhor Barão de Marshall...
MARQUESA DE AGUIAR - Interromper, não?. Vieram ouvir conosco o senhor barão falar do casamento de Sua Majestade, a senhora Dona Leopoldina.
VISCONDE DA CUNHA - O Barão ia, justamente, contar-nos as festas de Viena, que foram de estrondo.
MARQUESA DE JACAREPAGUÁ - Que foram as mais belas da época, não é verdade, Barão?
MARSHALL - As mais belas da época! Ora, ouvi, Excelentíssimas Senhoras. As negociações diplomáticas haviam terminado com êxito. Assentou-se definitivamente que o Príncipe D. Pedro se casaria com a Arquiduquesa D. Leopoldina. Faltava apenas solenizar o ajuste secreto dos gabinetes. De tão alta missão, como sabem, foi incumbido o embaixador de Paris.
VISCONDE DA CUNHA - O fidalguíssimo Marquês de Marialva, um dos mais nobres sangues da Península.
MARQUÊS DE MARICÁ - Pedro José Joaquim Vitor de Menezes Coutinho.
MARSHALL - Perfeitamente. Marialva recebeu as ordens como honra suprema. Aquela missão de galantaria, envaidecedoramente elegante, vinha doirar com refulgência os velhos brazões, já tão famosos na história da graça e da cortesania.
VISCONDE DA CACHOEIRA - O fidalguíssimo Marquês de Marialva bem como sua excelentíssima família foram sempre famosos na história da graça e da galantaria.
MARQUÊS DE MARICÁ - Basta recordar aquela façanha do velho Marialva, na última corrida de touros, em Salvaterra...
MARQUESA DE AGUIAR - É verdade! Uma façanha única...
MARSHALL - Por isso mesmo, com essas tradições de família, o diplomata apresentou-se com pompas régias. Circundou-se de grande aparato. Gastou desordenadamente, como um rajá. E um dia, enfim, cercado de equipagens, enfiou as suas berlindas doiradas, pela estrada real, e partiu estrondosamente para Viena.
MARQUESA DE JACAREPAGUÁ - V. Exa. assistiu, Barão, a essa entrada do embaixador, em Viena?
MARSHALL - Assisti, minha senhora. A mais luzida embaixada que já se viu em Viena.
Nem a de Napoleão, quando mandara buscar Maria Luíza, tivera tanta riqueza.
MARQUÊS DE MARICÁ - Nem a de Napoleão?
MARSHALL - Nem a de Napoleão. Pode-se dizer que Marialva entrou em Viena com o espavento de grande rei. Dou a V. Exa. um pormenor: a carruagem do embaixador vinha cercada por setenta pajens rutilantemente agaloados. Montando ginetes árabes, muito negros, com arreios de prata e telizes de veludo, rebrilhando por tudo, em relevos fortes, as armas dos Marialvas.
MARQUESA DE AGUIAR - Que extraordinária riqueza!
MARSHALL - E V. Exa. não imagina o grande sucesso que ele fez na corte, com aquele belo tipo de moreno peninsular e aqueles olhos românticos e negros, quando, no outro dia, com protocolo severíssimo, pediu a mão da senhora Dona Leopoldina para o Príncipe D. Pedro.
MARQUESA DE VALENÇA - E o casamento, Barão? V. Exa. assistiu ao casamento?
MARSHALL - Assisti, Conde, assisti.
MARQUESA DE JACAREPAGUÁ - Foi em Viena?
MARSHALL - Em Viena, minha Senhora.
MARQUESA DE JACAREPAGUÁ - No Palácio Imperial?
MARSHALL - No Palácio Imperial. Na Capela do Paço. Como V. Exa. pode calcular, uma solenidade deslumbradora.
MARQUÊS DE MARICÁ - Aliás, creio que a nota mais extraordinária desta embaixada foi o famoso baile que o Marquês de Marialva deu em honra de sua Princesa. Dizem mesmo que Marialva se arruinou com ele.
VISCONDESSA DA CACHOEIRA - Arruinou-se com ele?
MARQUESA DE AGUIAR - Mas esta embaixada não foi toda promovida por D. João VI?
VISCONDE DA CUNHA - Pelo menos foram largas as ordens que partiram daqui.
MARSHALL - Não tenho dúvidas! Mas o senhor Marquês de Maricá tem razão. Marialva arruinou-se. Não se contentou em gastar todas as grossas ordens que recebera; dissipou nesta festa toda a herança do pai.
TODOS - Oh! Que diz V. Exa.?
MARQUESA DE JACAREPAGUÁ - Gastou toda a herança do pai?
MARSHALL - Toda a herança! Imaginem, minhas senhoras, as loucuras que cometeu Marialva! Mandou construir pavilhões riquíssimos nos jardins de Rugartem. Recheou-os de móveis italianos da Renascença. Decorou-os com tapeçarias velhíssimas, gobelins raros, assinados Lebrun. Cobriu-os de seda e de damascos. E, enfim, com essas grandezas, o gentil-homem incomparável abriu os seus salões para a festa única. E
recebeu, na noite memorável, a corte inteira de Viena.
BARONESA DE GOITACAZES - A corte inteira? Pois também os Imperadores estavam presentes?
MARSHALL - Pois então. As nove horas, ao som do hino, entraram os Imperadores.
Vieram com Suas Majestades todos os Arquiduques. Metternich, com o fardão recamado de crachás, compareceu em grande gala. Rompeu o baile a Senhora Dona Leopoldina.
Sua Alteza dançou uma "polonaise" com o Senhor Marquês de Marialva. E Metternich, durante toda a noite, dizia alto, derramando olhos tontos por aquele faiscar: - Mas é uma festa das mil e uma noites! É uma festa das mil e uma noites!
VISCONDESSA DA CACHOEIRA - Mas realmente, Barão, foi uma festa das mil e uma noites! Um deslumbramento!
MARSHALL - Mas, ouça o resto, Viscondessa. As onze horas serviu-se a ceia. Marialva sentou-se com os Imperadores à mesa da família real. Havia quarenta talheres. E toda a baixela desse serviço, gravada com as armas dos Marialva, era de ouro maciço. De ouro maciço, meus senhores! Imaginem! Todos os outros convivas - e eram mais de mil -
foram servidos em baixelas de prata.
MARQUESA DE AGUIAR - Mas, neste caso, o baile custou uma fortuna!
MARSHALL - O baile custou, nestes belos tempos, mais de um milhão de florins! E
Marialva, num gesto muito seu, ofereceu, no dia seguinte, aos pobres de Viena, os pavilhões com todas as maravilhas que lá havia. Não retirou deles uma única alfaia.
VISCONDE DA CUNHA - Mas foi deslumbrador, Barão!
MARQUESA DE AGUIAR - Deslumbrador! Que fidalgo, esse Marialva!
TODOS - Que distinção! Que fidalguia! É soberbo!
MARSHALL - Dias depois, em Liorne, D. Leopoldina partia para o Brasil. Ao embarcar-se na corveta que a aguardava, a D. João VI, houve uma cena tocante. Maria Luísa, a mulher de Napoleão Bonaparte, veio despedir-se de D. Leopoldina. E aquela que conhecera todas as grandezas do mundo, aquela que vira a Europa inteira ajoelhada a seus pés, ao abraçar a irmã, dizia em lágrimas: "Ama o Brasil"!
MARQUESA DE VALENÇA - E S. M. faz o povo feliz, Barão; S. M. ama o Brasil! Eo Brasil, a meu ver, adora a sua Soberana.
BARONESA DE GOITACAZES - V. Exa. sabe, por certo, a influência decisiva que teve a nossa boa Imperatriz na Independência do Brasil...
[O criado anuncia, no mesmo tom:]
O Senhor e a Senhora Marquesa de Gabriac, ministros da França!
CENA VII
OS MESMOS, MARQUÊS E MARQUESA DE GABRIAC.
[Os circunstantes abrem alas. Os cavalheiros curvam-se)
Senhor Marquês! Senhora Marquesa!
MARQUÊS DE GABRIAC [passando entre os circunstantes e dirigindo-se à Marquesa de Aguiar] - Meus senhores! Excelentíssimas Senhoras!
[A Marquesa de Gabriac beija a Marquesa de Aguiar no rosto. O Marquês beija-lhes as mãos e vai colocar-se a E., junto a Cunha e Marshall.]
MARQUÊS DE MARICÁ [oferecendo a poltrona, depois vai ao grupo E] - Eis uma poltrona, Marquesa! Vossa Excelência veio justamente no momento em que a Senhora Condessa de Valença estava a fazer política.
MARQUESA DE GABRIAC [sentada pol. 9] - É um assunto muito interessante.
MARQUESA DE AGUIAR - Sim! Estava a dizer o quanto nossa Imperatriz colaborou na Independência do Brasil.
MARQUESA DE GABRIAC - Verdade? Pois S. Majestade, a Imperatriz, também tomou parte ativa nesse acontecimento?
MARQUÊS DE VALENÇA - Uma parte ativíssima, Senhora Marquesa! O Brasil deve à Imperatriz esse serviço eterno. S. M. contribuiu energicamente para a Independência.
MARQUÊS DE GABRIAC - Para a Independência? Sua Majestade? Eis uma notícia que eu nunca soube! Mas interessa-me muitíssimo conhecê-la. Vossas Excelências poderiam explicar-me o papel da Imperatriz na formação do Império?
VISCONDE DA CUNHA - É muito fácil! Veja, Marquês... Foi D. Leopoldina, em primeiro lugar, que mais se bateu pela entrada de José Bonifácio no Ministério. E José Bonifácio, como todos sabem, foi a alma da Independência.
MARQUÊS DE VALENÇA - José Bonifácio foi a alavanca! Foi a força decisiva daquele movimento!
MARQUÊS DE MARICÁ - Isso é perfeitamente exato. José Bonifácio foi a alma da Independência do Brasil. V. Exa. diz muito bem: José Bonifácio foi a força decisiva daquele movimento!
MARSHALL - Mas José Bonifácio recusava-se, por acaso, a entrar no Ministério?
MARQUÊS DE MARICÁ - Recusava-se formalmente! José Bonifácio, que nunca foi ambicioso político...
BARONESA DE GOITACAZES - Justamente. Justiça seja feita: nunca foi um ambicioso político! José Bonifácio declarara, da maneira mais categórica, que não aceitava aquele posto altíssimo. A Imperatriz, diante da recusa, mandou chamá-lo. Procurou convencer o velho Andrada. Mas qual! José Bonifácio obstinava-se em não se envolver em política.
Afinal, como supremo argumento, a Imperatriz mandou buscar a princesinha Maria da Glória. E, muito gentilmente, colocando nos braços do velho a pequerrucha, D. Leopoldina exclamou: "Não sou eu que pede a V. Exa., senhor José Bonifácio! Mas é a princesa, esta brasileirinha que pede a Vossa Excelência este favor ao Brasil: aceite o cargo de Ministro".
MARQUESA DE GABRIAC - Que interessante! É um episódio íntimo e curioso que eu ignorava completamente!
MARSHALL À MARQUESA DE GABRIAC - Interessantíssimo!
MARQUESA DE AGUIAR - Mas é a verdade! Foi isso, tal e qual, o que se deu.
VISCONDE DA CUNHA - De forma que, meus senhores, no dia em que José Bonifácio entrou para Primeiro-Ministro, a causa da Independência ganhou sua vitória.
MARQUESA DE VALENÇA - E D. Leopoldina não arrefeceu um só dia. Teceu, insuflou, sacudiu. Trabalhou com alma. E esse trabalho discreto, na sombra, foi dos mais quentes e dos mais firmes.
[Nessa altura, os senhores Gabriac, Cachoeira e Jacarepaguá levantam-se e, por trás das poltronas, vão fazer um pequeno grupo quase ao meio]
BARONESA DE GOITACAZES - V. Exas. nem avaliam o que seja a correspondência da Imperatriz com o Primeiro-Ministro. S. M., a cada bilhete, mandava uma palavra de ânimo a José Bonifácio. S. M. sonhou sempre fazer do Brasil um país livre, um império novo e belo.
MARQUÊS DE GABRIAC - Esplêndido! E como é triste pensar, Baronesa, que na França e, talvez, em toda a Europa, muito pouca gente conhece esse belo, esse grande trabalho de S.M.
[Visconde da Cunha vai ao grupo de senhoras, ao centro]
MARQUÊS DE VALENÇA - Foi realmente assim! A paixão da Imperatriz resumiu-se, toda a vida, em fazer do Brasil um império novo e livre!
MARQUESA DE GABRIAC - A Imperatriz, pelo que vejo, é uma grande política.
VISCONDE DA CUNHA À MARQUESA DE GABRIAC - V. Exa. não ouviu falar, Marquesa, do caso da reunião do Conselho?
MARQUESA DE GABRIAC - Não sei, Visconde! O Marquês ainda não era Ministro no Rio quando se deram esses altos acontecimentos. Eis a razão da minha ignorância.
CENA VIII
OS MESMOS E A VISCONDESSA DE ITAGUAÍ MARQUESA DE AGUIAR À VISC. DE ITAGUAÍ - Então, Viscondessa? Não falta nenhum dos dançarinos? Está tudo preparado?
ITAGUAÍ - Há dois casos para serem resolvidos. Deles depende o maior brilho da festa.
AGUIAR - Como assim?
ITAGUAÍ - Ficou combinado que se dançasse a pavana também. Mas falta uma dama: a pequena Queiroz não veio.
VISCONDE DA CUNHA - Isto é um caso muito grave.
AGUIAR - Mas por que não a substituem?
ITAGUAÍ - Umas não sabem, outras não gostam, outras não querem...
AGUIAR - E então?
ITAGUAÍ - A Viscondessa da Cachoeira dança muito bem a pavana...
CACHOEIRA - Não diga isso, Viscondessa. Mal sei dançar a pavana e, o que é mais, já combinei dançar o minueto.
AGUIAR À CACHOEIRA - Senhora Viscondessa! V. Exa. é moça e dança admiravelmente. Não pode recusar este prazer à Imperatriz!
GOITACAZES - V. Exa. tem razão, Marquesa!
MARQUÊS DE VALENÇA - Estou convencido de que a pavana terá um grande brilho com V. Exa.
JACAREPAGUÁ - Nem a Viscondessa seria capaz de esquivar-se a um pedido da Marquesa.
CACHOEIRA - V. Exas. confundem-me! Eu danço muito mal a pavana. Confesso que não há a menor má vontade. Mas há muitas outras que darão maior brilho à festa.
AGUIAR - Senhor Barão de Marshall! Tenha V. Exa. a bondade de intervir como embaixador, em caso muito grave.
MARSHALL - [aproximando-se:] - Muito grave? Como embaixador? Acaso alguma declaração de guerra?
AGUIAR - Mais grave ainda, Barão.
MARSHALL - Diga então, V. Sa.
AGUIAR - O senhor Barão aprecia a pavana.
MARSHALL - Ah! Então o caso é gravíssimo. Eu dou a vida pela pavana.
AGUIAR - Falta uma dama para que se dance a pavana: a senhora Viscondessa de Cachoeira, que a dança admiravelmente, não a quer dançar!
GOITACAZES - Pede-se a intervenção da Áustria, em favor da pavana.
MARQUÊS DE GABRIAC - E o Barão intervirá certamente! Vamos, Barão, é para o maior brilho da festa de Sua Majestade, sua ama e sua Imperatriz!
MARSHALL [indo reverente à V de Cachoeira, x 8] - Senhora Viscondessa da Cachoeira!
Na qualidade de mais velho, ou antes, mais antigo diplomata do Rio, representante, portanto, neste instante, de todas as nações amigas, segundo creio...
MARQUÊS DE MARICÁ - Muito bem! Muito bem!
MARSHALL - Rogo a V. Exa, para brilho da festa de minha Imperatriz e realce da pavana, que V. Exa. dance a pavana perante a Imperatriz.
CACHOEIRA - Senhor Barão, dançarei a pavana. Curvo-me perante a Europa.
AGUIAR - Eu já sabia! Muito bem, Viscondessa!
[X do sofá e senta-se quando todos saem.]
GOITACAZES, VALENÇA E JACAREPAGUÁ - Muito bem!
ITAGUAÍ - Se V. Exa. quisesse vir até o Salão Encarnado, talvez se combinasse melhor.
CACHOEIRA - Com muito gosto.
JACAREPAGUÁ - Eu acompanho a Viscondessa.
[Ambas saem, seguidas de Itaguaí. Mas Itaguaí, chegando à porta, torna a voltar.
Marshall Gabriac e senhora formam um conjunto junto ao cravo, em cujo banco fica a senhora sentada.]
ITAGUAÍ - Senhora Marquesa se Aguiar!
AGUIAR - Viscondessa!
ITAGUAÍ - Não se resolveu o segundo caso: quem marca a quadrilha?
AGUIAR - Quem marca a quadrilha?
MARSHALL - Senhora Viscondessa. Consiga Vossa Excelência que se dance a pavana e deixe por minha conta a quadrilha.
[Itaguaí agradece com a cabeça e sai]
AGUIAR A MARICÁ - Agora, falta apenas a Viscondessa do Rio Seco.
MARQUESA DE VALENÇA - A Viscondessa chega sempre extremamente atrasada. É um hábito velho.
GOITACAZES - Aliás, a sua fina distinção sempre compensa o atraso.
CONDESSA DE VALENÇA - A Senhora Viscondessa é distintíssima.
O CRIADO ANUNCIA - A Senhora Viscondessa do Rio Seco!
MARICÁ A AGUIAR - Pois, Senhora Marquesa, já não falta a Viscondessa do Rio Seco.
VISCONDESSA DO RIO SECO [entrando]: Vejo que não sou a última a chegar, Marquesa.
MARICÁ [indo a seu encontro:] - Precisamente a última.
GABRIAC - Precisamente, não. Elegantemente a última.
VISCONDESSA DO RIO SECO [indo sentar-se junto ao cravo] - Não vejo aqui a Marquesa de Jacarepaguá, nem a Viscondessa da Cachoeira.
GOITACAZES - Estão no Salão Encarnado.
AGUIAR - V. Exa. chegou perfeitamente a tempo. A Imperatriz ainda nem chegou...
MARSHALL A RIO SECO - E eu sei, minha senhora, sei por que V. Exa. só agora chegou ao Paço.
RIO SECO - Sabe? Não é possível.
MARSHALL - Sei. V. Exa., ao sair, recebeu cartas da Europa.
RIO SECO - Exatamente. V. Exa. adivinhou. Recebi cartas da Europa. Vieram pela corveta ancorada hoje no porto. O Senhor Comendador Francisco Gomes da Silva, que é muito atencioso, teve a gentileza de as levar em casa.
VISCONDE DA CUNHA - O Senhor Comendador é pessoa muito amável.
MARICÁ - Isso lá é. O Chalaça é uma pessoa muito prestativa. O Chalaça é um bom amigo.
RIO SECO - Pois o Senhor Comendador Francisco Gomes, o Chalaça, como diz o Senhor Marquês de Maricá, levou-me as cartas da Europa. Estava vestida, pronta para sair, mas não pude resistir; fiquei a ler as notícias do meu filho.
MARQUESA DE MARICÁ - O filho de V. Exa., Viscondessa, é diplomata, não é?
RIO SECO - É, minha Senhora. É secretário em Lisboa. Mas está, neste instante, em Paris. Foi de lá que me escreveu. Mas, vejo que interrompi a conversa. Quem tinha a palavra?
VISCONDE DA CUNHA - A Senhora Condessa ia narrar o caso da reunião do Conselho, antes de 7 de setembro.
RIO SECO - Vejo então que cheguei muito a propósito. V. Exa. deve estar perfeitamente a par do 7 de setembro. O acontecimento deu-se em São Paulo.
AGUIAR - A Condessa é paulista.
GOITACAZES - Uma paulista autêntica!
MARSHALL - Não resta dúvida, Condessa. V. Exa., por ser paulista, tem a obrigação de saber de todas as minúcias desse acontecimento. Vamos lá, Condessa, dê-nos a honra de contar, como estava contando, o que se passou na reunião do Conselho.
MARQUÊS DE VALENÇA [indo ao centro]: D. Pedro havia partido para São Paulo, para apaziguar, lá, a fervedura da província.
MARICÁ - Aquela velha briga entre os Queirozes e os Andradas.
AGUIAR - Oh, Marquês! Por quem é!
[Maricá desce por trás das poltronas e do canapé e vai sentar-se na poltrona 9.]
MARQUESA DE VALENÇA [sorrindo] - Exatamente! Aquela velha briga política entre os Andradas e os meus parentes Souza Queiroz. D. Leopoldina ficou-se aqui, na qualidade de regente. E eis que, nesse momento, justamente, chegam ao Rio despachos de Portugal.
GOITACAZES - Diziam coisas aterrorizantes.
CONDE DE VALENÇA - Exatamente, Goitacazes. Mas D. Leopoldina, diante da agressão, não vacilou. Reuniu imediatamente o Conselho de Ministros. A Princesa presidiu-os. E expôs, com energia, a situação desesperadora. José Bonifácio, naquela angústia, interpelou D. Leopoldina: Que acha V. Alteza que devemos fazer?
MARQUESA DE GABRIAC - E o que respondeu D. Leopoldina?
MARQUESA DE VALENÇA - A Princesa, firme e resoluta, respondeu ali mesmo: - Que fazer? Uma coisa só: "A Independência do Brasil". É separar o Brasil de Portugal. Assim, naquele dia, e naquele Conselho, ficou decidido, definitivamente, proclamar-se a independência do Brasil.
MARQUÊS DE GABRIAC - Quanta coisa nova para mim. Quanta coisa interessantíssima.
MARICÁ - Interessantíssima, sim. Mas perfeitamente histórica.
MARSHALL - Não há dúvida, Exa. A Imperatriz foi a alma da Independência.
MARICÁ - Foi depois desse Conselho que os Ministros escreveram a D. Pedro e D.
Leopoldina, por sua vez, escreveu uma carta ao marido, GOITACAZES - Uma carta, Marquês?
MARICÁ - [Levanta-se e vai ao centro:] - Sim, uma carta. Aconselhava-o francamente a proclamar a independência do Brasil. E dizia-lhe: nem mais um instante de hesitação.
Torna livre o Brasil! Constrói uma nação livre, um país novo! José Bonifácio exultou. E, chamando Paulo Bregaro ao Correio do Paço, entregou-lhe os despachos para D. Pedro.
- Veja lá, "seu" Paulo Bregaro, se Vossa Mercê não me arrebentar meia dúzia de cavalos pelo caminho, nunca mais será correio do Paço. O homem partiu desabalado. E V. Exas.
bem sabem o resultado. D. Pedro, no Ipiranga, ao receber a carta de D. Leopoldina, não se conteve: amarrotou nervosamente aqueles papéis, arremessou-os ao chão, com raiva, arrancou a espada da bainha, e, ali, diante da guarda de honra, com um gesto épico, o mais belo gesto de D. Pedro, proclamou a independência do Brasil.
VOZES - Oh! Oh! Bravos!
MARQUÊS DE GABRIAC - Muito interessante!
VISCONDE DA CUNHA - Curiosíssimo!
GOITACAZES - É um episódio magnífico!
MARSHALL - Nada mais confortador, Marquês, do que ouvir V. Exa. fazer à D.
Leopoldina essa justiça. Realmente, minhas senhoras, a cooperação da Imperatriz na Independência foi decisiva.
MARICÁ - Foi, não há que negar, um serviço altíssimo de Sua Majestade. Mas, além disso, deve-lhe o Império um outro beneficio. Um beneficio incalculável!
GABRIAC - Deve-lhe muitos, eu bem conheço. Mas a que beneficio alude V. Exa., Marquês?
MARQUESA DE AGUIAR - Eu já sei! Vossa Excelência, Marquês, quer se referir, por certo, à influência de D. Leopoldina junto ao Imperador, a fim de que o Imperador abdicasse à Coroa de Portugal, não é?
MARQUÊS DE MARICÁ - Não, minha senhora, não é isso. A abdicação à coroa de Portugal, eu bem compreendo, foi um ato de suprema renúncia. Um ato do mais alto amor ao Brasil. Essa é a verdade! Mas não é isso. Eu quero me referir unicamente à missão científica de Spix e Martius.
BARONESA DOS GOITACAZES - Spix e Martius?
MARQUÊS DE GABRIAC - Como diz, Marquês?
MARQUÊS DE MARICÁ - Sim, meus senhores, a missão científica de Spix e Martius, que D. Leopoldina trouxe da Áustria para estudar o Brasil. V. Exas. bem sabem que o nosso país é um mistério. Ninguém ainda penetrou nos nossos sertões. Ora, graças a D.
Leopoldina, aí estão os dois sábios a penetrar os segredos dos nossos matos! Imaginem, minhas senhoras, o que significa isso de beneficio ao Brasil e às ciências...
BARONESA DOS GOITACAZES - Especialmente às ciências. Aliás, Vossa Excelência há de saber, a nossa imperatriz é uma sábia!
MARQUÊS DE GABRIAC - S. M. estuda muito?
MARQUÊS DE MARICÁ - Tremendamente! Não há nada para a Imperatriz como as ciências... É uma paixão.
[Viscondessa de Aguiar lev. e sobe D.A]
BARONESA DOS GOITACAZES - Mas que paixão, senhor Marquês! O forte da Imperatriz são as ciências. Vossa Excelência não calcula o que é aquilo. Sua Majestade passa dias no seu gabinete, a catalogar plantas. S. Majestade passa noites inteiras, no varandim do Paço, com os óculos de aumento cravados no céu! É uma paixão séria!
CENA IX
OS MESMOS E MARQUESA DE JACAREPAGUÁ, VISCONDESSA DE CACHOEIRA E
ITAGUAÍ. ENTRAM DA D. A. E FORMAM UM GRUPO SUPERIOR.
ITAGUAÍ A AGUIAR - O Salão Encarnado está repleto, Marquesa.
AGUIAR - Todos os convidados já chegaram?
ITAGUAÍ - Todos!
GOITACAZES - Está, então, inteiramente providenciada, a dança da pavana.
ITAGUAÍ - Sim, Baronesa, a Viscondessa de Cachoeira é extremamente gentil.
CACHOEIRA - Foi para atender ao pedido diplomático de Áustria...
[Cachoeira desce e vai formar um grupo junto à Sra. Gabriac.]
MARSHALL - E a Áustria agradece, minha senhora. [Reverência]
GOITACAZES - Falta agora, senhor Barão de Marshall, o caso da quadrilha. Quem marca a quadrilha? V. Exa. se comprometeu.
MARSHALL - A quem, dentre todos, caberá esse papel invejável? Evidentemente, a um dos mais cultos titulares do Império, o moço mais verdejante deste sarau!
GOITACAZES - O senhor Marquês de Maricá!
TODOS - Bravos! Muito bem!
GABRIAC - Ai tem, V. Exa., senhor Marquês, um delicioso decreto de elegância.
MARICÁ - Tem V. Exa. razão, senhora Baronesa. Eu marcarei a quadrilha. Será uma velha experiência dirigindo a afoiteza dos moços. Eu marcarei a quadrilha, senhor Barão.
Mas V. Exa. há de dançar. E, muito cuidado com as marcas. Eu as sei dificílimas.
MARQUESA DE AGUIAR - Nesse caso, podemos começar o sarau. V. Exa., Visconde, conserva no salão as filhas das damas e os moços fidalgos. Nós iremos até lá na hora das danças. V. Exa., porém, faça vir para aqui as senhoras e os cavalheiros que lá estiverem e aqui vamos receber a Imperatriz.
VISCONDESSA DE ITAGUAÍ - Perfeitamente, Marquesa, vou cumprir as ordens de V.
Exa. e volto já. [Faz uma mesura e sai pela D. 4].
CENA X
MARQUESA DE AGUIAR AO VISCONDE DA CUNHA - Visconde!
VISCONDE DA CUNHA - Marquesa!
MARQUESA DE AGUIAR - V. Exa., na qualidade de veador, pode ir aos aposentos da Imperatriz e conduzir Sua Majestade até aqui. Está tudo prestes!
VISCONDE DA CUNHA - Vou já, Marquesa.
CENA XI
MARQUÊS DE GABRIAC À MARQUESA DE AGUIAR - V. Exa. revolucionou o Paço com este sarau, Marquesa! Este sarau é um acontecimento.
MARICÁ - Até a Imperatriz vai hoje sair de seus hábitos. Sua Majestade é tão alheia a festas!
MARQUESA DE AGUIAR - Realmente! Sua Majestade não tem a preocupação de exibições. A Imperatriz é muito modesta.
[Maricá, Aguiar, Gabriac, Marshall, Cachoeira formam um grupo à E. O Barão Gabriac vai sentar-se na poltrona 2.]
BARONESA DE GOITACAZES - Modestíssima! É uma das virtudes de Dona Leopoldina.
Mas, sabe, Senhor Marquês de Maricá, qual é, para mim, a imensa, a grande qualidade da Imperatriz?
MARQUÊS DE MARICÁ - Que há de ser, Baronesa?
BARONESA DE GOITACAZES - É aquele seu espírito de caridade. Sua Majestade é profundamente caridosa.
MARSHALL - Muito bem, Baronesa, muito bem! A Imperatriz é, acima de tudo, possuidora de um coração de anjo! É uma santa!
MARQUÊS DE MARICÁ - A frase é exata, Barão; a Imperatriz é uma santa!
MARQUESA DE AGUIAR - Não há coração mais doce!
MARQUESA DE VALENÇA - Uma alma puríssima. V. Exas. mal imaginam o bem que derramam aquelas mãos! Não há pobre que não receba dela um auxílio. Nem desgraçado que lhe não mereça conforto. [E, interrompendo:] Marquesa, vede aqui os cavalheiros e as damas que estavam no Salão Encarnado.
[Entram 5 ou 6 pajens e todos, ao mesmo tempo, curvam-se.] - Excelências!
[Dois pajens vêm se colocar à E., e três descem entre a pol. 4 e o canapé e ficam à D.B.
Nisso, entra o criado muito rijo, protocolar:] - Alas! Alas! Alas!
[Todos levantam. Um instante de silêncio.]
PAJEM - Sua Majestade, a Imperatriz!
[Surge à porta D. Leopoldina. A imperatriz tem, a um lado, a Marquesa de Paranaguá, de outro lado, a Viscondessa de Itapagipe. A cauda é carregada por duas ou quatro damas.
A Imperatriz, amável, com um sorriso nos lábios, avança, majestosamente.]
TODOS [curvando-se, exclamam, reverentes:] - Majestade! Majestade!
[O séquito atravessa o salão, em direção ao meio-trono armado para D.Leopoldina. Cai o pano lentamente.]
SEGUNDO ATO
D. LEOPOLDINA SENTADA AO MEIO-TRONO. DE PÉ, DE UM LADO E DE OUTRO, MARQUESA DE PARANAGUÁ, CONDESSA DE ITAPAGIPE. NAS POLTRONAS, SENTADAS, A MARQUESA DE AGUIAR E A BARONESA DOS GOITACAZES. UNS
SENTADOS, OUTROS DE PÉ. JUNTO AO CRAVO, OLHANDO A IMPERATRIZ, ESTÁ A
VISCONDESSA DA CACHOEIRA.
IMPERATRIZ [sorrindo com um gesto amável:] - Vamos, Viscondessa! O cravo está à sua espera.
VISCONDESSA DA CACHOEIRA [com uma mesura:] - Com muito gosto, Majestade! É uma honra para mim... Mas, que música prefere Vossa Majestade ouvir?
IMPERATRIZ - Que música? Ora, minha Viscondessa... [Rindo-se] Que pergunta!
Qualquer coisa do nosso José Maurício! [Virando-se para a Marquesa de Aguiar, ao lado:]
Não acha, Marquesa?
[Maricá, que conversava com Valença, vem sentar-se na poltrona 4, junto à Marquesa de Gabriac.]
MARQUESA DE AGUIAR [abanando-se com seu vasto leque:] - Evidentemente, Majestade! Qualquer coisa do nosso José Maurício. É o maior artista do Brasil! O Barão de Marshall que o diga...
MARSHALL - De inteiro acordo: o José Maurício é o maior artista do Brasil. Nem há outro que se lhe compare...
[Nogueira da Gama levanta-se para conversa com Valença]
IMPERATRIZ [com um gesto] - Vamos, então, Viscondessa! Não há que discutir.
[A Viscondessa senta-se ao cravo. Coloca uma peça no mostrador]
IMPERATRIZ - Um instante, Viscondessa. [Viscondessa vira-se solícita.] - Diga-me apenas o que é que V. Exa. vai tocar?
VISCONDESSA DA CACHOEIRA - A melodia do Ingemisco.
IMPERATRIZ - Muito bem! A melodia é um trecho lindo! Vamos, Viscondessa, toque!
[Valença levanta-se e fica adiante do cravo para voltar as páginas.
Grande silêncio, a Viscondessa executa a melodia. Todos ouvem com forte interesse.
Jogo de fisionomias. Ao terminar, o auditório aplaude discretamente. Há, pelo salão, vários "Bravos".
Todos esses movimentos, na ocasião em que Cachoeira prepara a música para tocar, ficando F2, durante a execução da música. Nogueira da Gama vem colocar-se entre Gabriac e Rio Seco.]
IMPERATRIZ [aplaudindo] - Muito bem, Viscondessa, muito bem! A melodia é deliciosa! E
Vossa Excelência., uma artista!
VISCONDESSA [levantando-se] - Oh, Majestade!
VISCONDE DA CUNHA [levanta-se, beijando a mão da Viscondessa:] - Uma artista, pois não! A Viscondessa executou primorosamente!
[Marshall e Cunha sobem por trás do trono, sentando-se Marshall na pol. 5 e Cunha na da figurante que se levantou.
A Viscondessa desce para a E.M., onde recebe a manifestação, a seguir. Valença desce por trás do cravo. Maricá levanta-se e dá-lhe a sua cadeira. Ao sentar-se na cadeira que Maricá lhe oferece, lev. e rodeiam a Viscondessa batendo palmas. Fazem a Viscondessa sentar-se na ponta sup. canapé D.]
VISCONDESSA - Visconde, por quem é...
BARONESA DOS GOITACAZES, MARQUESA DE AGUIAR E CONDESSA DE
VALENÇA - [ao mesmo tempo]
BARONESA: Muito bem! Muito bem!
MARQUESA DE AGUIAR: Executou com perfeição!
CONDESSA DE VALENÇA: A melodia é um encanto!
MARQUESA DE GABRIAC À CONDESSA DE VALENÇA - Um trecho muito fino, Condessa. Lembra um pouco o Mozart, não acha?
CONDESSA DE VALENÇA - Lembra muito! O nosso José Maurício é um artista que honra o Brasil! Tem grande delicadeza na inspiração...
MARQUÊS DE GABRIAC - Mas é brasileiro? Eu julguei que fosse português...
CONDESSA DE VALENÇA - Não, Marquês, é autenticamente brasileiro.
IMPERATRIZ - É brasileiro... El-rei D. João VI teve por ele um entusiasmo imenso. É uma história muito interessante. V. Exa. não sabe? [para a Marquesa de Aguiar] Vossa Excelência., Marquesa, que estava no Brasil, e assistiu ao fato, conte à senhora Ministra da França essa história...
[A Marquesa de Aguiar faz rever6encia diante do trono e passa superior à mesa, ficando canto D. Marshall vai sentar-se superior canapé, no lugar de Gabriac. Gabriac lev. e vai junto ao cravo. Valença levanta-se e oferece-lhe a poltrona, que ele rejeita. Cunha lev. e vem sentar-se na poltrona de Aguiar, para rodear a Viscondessa. Marshall e Maricá perto do cravo.]
MARQUESA DE AGUIAR - É um caso que toda a corte sabe, Marquesa... Foi delicioso!
Imagine Vossa Excelência que o nosso José Maurício vivia por aqui obscuramente.
Homem estranho, metido consigo, tratava das suas músicas, muito às escondidas, sem nunca ter sido notado.
GOITACAZES - Ninguém jamais imaginou que estivesse ali naquele homem um artista de verdade; um desses artistas que engrandecem o seu pais.
AGUIAR - Era a pessoa mais modesta do mundo. Eis que D. João VI vem para o Brasil.
Vossa Excelência sabe que D. João VI tinha paixão por música?
MARQUESA DE GABRIAC - Sei! É uma paixão atávica. Todos os Braganças são assim...
D. João VI, então, adorava música religiosa!
MARQUESA DE AGUIAR - Exatamente. Adorava a música religiosa. Por isso mesmo foi que trouxe para o Brasil compositores do mais subido valor...
MARSHALL - O Marcos Portugal, por exemplo!
MARQUESA DE AGUIAR - Marcos Portugal e tantos outros. Pois bem, um dia estava ElRei a ouvir a missa na Capela Imperial. De repente, no coro, rompeu uma estranha melodia. Era uma melodia formosíssima. Uma melodia nova, de grande inspiração, muito colorida, muito vivaz. El-Rei ergueu os olhos para o coro, enlevado!
MARSHALL - Quem era o músico, Marquesa?
AGUIAR - Ninguém sabia! Mas toda a gente, na Capela, sentiu o mesmo embevecimento.
O rei, esse, então, arrebatou-se. E, quando terminou a missa, no Paço, D. João mandou virá sua presença o artista que tocata o órgão. O Conde de Paraty foi, imediatamente, buscá-lo. E trouxe para o Paço... imaginai quem? Um padre! Um homem modestíssimo, o ar tímido. Era o José Maurício!
MARQUESA DE GABRIAC - O José Maurício?
MARSHALL - Mas era padre?
VALENÇA - Sim, Barão! José Maurício era padre. E D. João perguntou-lhe, diante da corte: - Então, foi Vossa Mercê que tocou o órgão na missa de hoje? O padre respondeu com um sim muito sumido. E El-Rei sempre a rir: - Mas que melodia formosa, padre! É um encanto! De quem é aquela partitura tão soberba? O padre fincou os olhos no chão, ainda mais confuso, mais embaraçado. E El-Rei a insistir: - De quem é aquela partitura? José Maurício não teve por onde sair. E respondeu singelamente: - É minha! D. João ficou assombrado: - "Que diz Vossa Mercê, padre? A música é sua? E José Maurício, envergonhadíssimo, os olhos no chão: - É minha, Majestade! É minha. O rei não se conteve! E, ali, diante de toda a corte, El-Rei arrancou a condecoração do hábito de Cristo que fuzilava na lapela do Conde de Vila Nova Portugal; e, com o mais alto júbilo, D. João, em pessoa, pregou a condecoração no peito do padre. Foi uma alegria! Toda a corte fremia. O padre, trêmulo, chorava de felicidade.
[Marshall vai para junto do trono para dizer à Rainha que está comovido.]
MARQUESA DE GABRIAC - Lindo!
CONDESSA DE VALENÇA - Um quadro saboroso!
MARSHALL - Estupendo o gesto de D. João!
TODOS - Estupendo! Curiosíssimo!
MARQUÊS DE GABRIAC - De forma que o José Maurício ficou condecorado com o hábito de Cristo?
MARQUESA DE AGUIAR - Com o hábito de Cristo! E, desde então, até morrer, tornou-se o Maestro da Real Capela. D. João tomou-o debaixo de sua proteção...
MARQUÊS DE GABRIAC - E com toda a justiça! Marquesa, o padre José Maurício é um compositor de nota; um compositor que honra o Brasil...
BARÃO DE MARSHALL - Em casa do Barão de Santo Amaro, como todos sabem, fazemse lindos saraus de arte.
GOITACAZES - Lindos! É o salão mais espiritual da Corte.
MARSHALL - Pois bem, ontem, em casa do Santo Amaro, passamos a noite a ouvir o José Maurício tocar ao cravo! A Senhora Viscondessa do Rio Seco a cantar...
GOITACAZES À MARQUESA DE GABRIAC - Devia ter sido uma maravilha! A
Viscondessa do Rio Seco tem uma linda voz. V. Exa. já ouviu a canção "Florau"?
GOITACAZES - Sim, Marquês. Uma peça encantadora!
MARQUÊS DE GABRIAC - Sim?
MARQUESA DE GABRIAC - Nesse caso, vamos ouvi-la. Estou fundamente interessada pela Senhora Viscondessa do Rio Seco. Quem há de executar a peça, senhor Barão de Marshall?
MARSHALL - Não há que perguntar, Marquesa. É a Senhora Viscondessa da Cachoeira!
É a grande cravista do Paço...
CACHOEIRA - Eu? Grande cravista? V. Exa. é um galanteador irônico, Barão...
GOITACAZES - Não, minha senhora! O Barão de Marshall é simplesmente um reto distribuidor de justiça. V. Exa. é a nossa artista! Por isso, vamos! Toque! A Senhora Ministra da França há de gostar... É verdade... Há de gostar...
IMPERATRIZ [com um gesto:] - Vamos, Viscondessa! O cravo está pedindo as suas mãos.
CACHOEIRA - Oh, Majestade... [Senta-se ao cravo].
MARSHALL [indo até a Rio Seco] - Viscondessa, estamos ansiosos por ouvi-la! A
Senhora Viscondessa da Cachoeira já está ao cravo...
RIO SECO - Com muita honra, Barão! [Vem para o cravo. Canta.].
[Alguém fica ao lado do cravo para vivar de primeira.
Ao terminar:]
TODOS - Muito bem! Muito bem!
[palmas].
GABRIAC - Vossa Excelência é uma artista!
MARICÁ - Curiosa música!
[Simultaneamente, Marshall levanta-se canapé superior. Lev. para oferecer a poltrona à Viscondessa, leva-a para D., colocando-a na cadeira de Cunha, que se levanta.]
VISCONDE DA CUNHA À MARQUESA DE GABRIAC - A música no Brasil tem tido muito boa estrela.
IMPERATRIZ - Vossa Excelência não imagina, Senhora Marquesa, quanto artista de valor, mas de imenso valor, tem aparecido no Brasil.
MARQUESA DE GABRIAC - Sim? Muito artista de valor?
VISCONDE DA CUNHA - Muitíssimo! Um deles, um verdadeiro gênio, esse veio ao Brasil, por intermédio da França...
MARQUESA DE GABRIAC - Da França?
VISCONDE DA CUNHA - Pois não! Por intermédio da França... Foi o Neukomm. O
Segismundo Neukomm. Vossa Excelência não ouviu falar dele, Marquesa de Gabriac?
MARQUESA DE GABRIAC - Perfeitamente. O Neukomm foi o discípulo querido de Haydn. Taleyrand, em França, protegeu-o grandemente. E Neukomm esteve no Brasil?
VISCONDE DA CUNHA - Esteve! Veio no séquito do Duque de Luxemburgo, o embaixador de Luiz XVIII.
MARQUESA DE VALENÇA - É verdade, senhora Marquesa. O Duque de Luxemburgo esteve aqui no Rio ao tempo de D. João VI.
MARQUESA DE GABRIAC - E dizem que foi recebido com pompas estrondosas, não é verdade?
MARSHALL [Junto ao trono:] - É! Dizem que foi com grandes pompas. Ali está a senhora Marquesa de Aguiar, quem pode dizer...
IMPERATRIZ - A Marquesa, não, que era, nesse tempo, muito moça. Nem se recorda...
[Todos sorriem]. Mas ali, o nosso Marquês de Maricá, esse assistiu às festas; esse é quem as poderá contar...
MARQUÊS DE MARICÁ [Lev. meio da cena sup. Meio canto s. sup. Sorrindo:] - É verdade, é verdade! Sou eu aqui o mais velhos do Paço... Vi a corte de João VI, que Deus haja. Vi muita coisa no tempo do Rei. E vi a chegada do Duque de Luxemburgo.
MARQUESA DE GABRIAC - Foi muito brilhante, Marquês?
MARICÁ - Muito! Foi o primeiro embaixador da França que veio ao Brasil - D. João VI
adorou. E recebeu o Duque num beija-mão de gala. Mandou enfeitar a cidade inteira.
Ordenou grandes iluminações. E a cidade, durante três dias, estrondou sob o repico dos sinos e o estrépito dos morteiros.
[Marquesa de Aguiar, como que vivamente interessada pela narrativa, lev.e vai ficar junto grupo Cunha-Marshall-Maricá (Estão de pé)]
MARICÁ - [continuando] E foi aí, minha Senhora, nessa ocasião, e nessa embaixada, que chegou ao Brasil o Neukomm.
MARQUESA DE GABRIAC - Ah!
VISCONDE DA CUNHA - E o Neukomm, que era uma alma aventureira, deixou-se ficar aqui pelo Brasil. Achou graça nestas paragens.
IMPERATRIZ - Mas, é bom que V. Exa. saiba, Marquesa, que D. João VI aproveitou bem os seus talentos.
MARQUESA DE GABRIAC - Aproveitou os seus talentos?
IMPERATRIZ - Sim! O Neukomm foi o professor de música do Imperador...
MARQUESA DE GABRIAC - Foi o professor de D. Pedro?
VISCONDE DA CUNHA - Sim, Marquesa! De D. Pedro e de todas as princesas imperiais.
MARQUESA DE AGUIAR [entre Cachoeira e Gabriac: O Imperador, Senhora Marquesa, é um grande músico!
CONDESSA DE VALENÇA - Um grande músico, de fato! Um artista!
MARQUESA DE GABRIAC - Já sei! Todos dizem que o Imperador toca admiravelmente...
MARQUESA DE AGUIAR - Sua Majestade esquiva-se de tocar em público; é natural.
GOITACAZES - É natural! Mas, quando a nossa Ama, Sua Majestade, D. Leopoldina, chegou ao Brasil, houve uma serenata no Paço. E que bonita serenata! O Imperador tocou nesta noite.
IMPERATRIZ - Lembro-me muito bem.. Há quanto tempo já lá vai isso... Sua Majestade tocou uma solfa de sua composição.
MARSHALL - Uma solfa linda!
MARQUESA DE AGUIAR E CONDE DA CUNHA - Lindíssima!
MARQUESA DE GABRIAC - Pois sua Majestade também é compositor?
MARQUÊS DE MARICÁ - Compositor, Marquesa! Compositor e poeta. Vossa Excelência precisa conhecer os versos do senhor D. Pedro.
MARQUESA DE AGUIAR - São muito bem rimados...
GOITACAZES - Uns versos muito cantantes...
MARQUESA DE GABRIAC A MARICÁ - Vossa Excelência não sabe alguma coisa do Imperador, Marquês?
MARSHALL - Sabe, sim! O Marquês tem uma memória de anjo.
VISCONDE DA CUNHA - Vamos lá, Marquês.. Uns versos do Imperador.
[Todos sorriem. Maricá está levemente embaraçado. E sorrindo como os outros:]
MARQUÊS DE MARICÁ - Impossível, minhas senhoras! Já não me lembro mais... Então Vossas Excelências pensam que é brincadeira o peso destes anos!
TODOS - Oh, Marquês! Por quem é... Uns versos. Vamos.
IMPERATRIZ [sorrindo] - Vamos, Marquês, um esforço...
MARQUÊS DE MARICÁ - Cumpro as suas ordens, Majestade. Mas vou dizer umas quadrinhas, só umas quadrinhas íntimas, que ninguém conhece. É só para cumprir as ordens de Vossa Majestade.
[Marques de Gabriac vai sentar-se a seu lado e Cunha Vai para a cadeira de Gabriac;
Marshall senta-se pol. F; Cunha vai para junto do cravo; Rio Seco lev. gentilmente; Aguiar senta-se ao lado de Gabriac, indo ela ocupar o lugar de Aguiar]..
MARSHALL, CUNHA, MARQUESA DE AGUIAR - Vamos lá, Marquês! Vamos lá!
MARQUÊS DE MARICÁ - O Imperador estava na Serra do Correia, em férias. E mandou de lá, muito reservadamente, umas quadrinhas a um amigo. Deixa ver se me lembro. Era assim: [Sentado, debaixo do risinho de todos, Maricá diz, com o maior esforço]
I
Nestes campos E nesta serra, Quanta tristeza, E horror se encerra!
II
Olho em torno Seus horizontes:
São serras, matas, E grandes montes.
III
Da bela água E do bom ar Não sei, amigos, Como gabar.
IV
De vez em quando, Pelo caminho, Passa um roceiro.
Passa fumando, Devagarinho, No seu sendeiro.
V
Eis um retiro Sem distrações:
Está de molde Pra "santarrôes".
VI
Eu não agüento Tão feia terra.
E vou-me embora, Mesmo nest'hora, Aqui da serra!
TODOS[batendo palmas] Bravos! Bravos!
MARQUESA DE AGUIAR - Muito bem! O Marquês tem um jeito para versos... E a poesia do Imperador é muito saborosa.
IMPERATRIZ À MARQUESA DE GABRIAC - Vossa Excelência, Marquesa, não sabe que o Brasil tem grandes artistas, não é?
MARQUESA DE GABRIAC - Realmente, Majestade, não sabia. O José Maurício, por exemplo, é uma surpresa para mim.
IMPERATRIZ - Pois saiba, Marquesa, que não é só na música. No Brasil há, também, grandes poetas. Vossa Excelência não os conhece ainda?
MARQUESA DE GABRIAC - Sim, Majestade; já ouvi falar nos poetas brasileiros. Ainda agora, graças ao Marquês de Maricá, saboreamos os versos do Imperador...
IMPERATRIZ - O Imperador, Marquesa, faz versos por desfastio, apenas. Mas há, além de sua Majestade, poetas interessantíssimos. Artistas muito singelos, com grande sabor nacional. [Dirigindo-se a Condessa de Itapagibe] Sua filha, Condessa, a sua deliciosa Maria Francisca, diz versos com muita graça. Tenha a bondade de fazê-la dizer alguma coisa.
CONDESSA DE ITAPAGIBE - Maria Francisca, venha dizer uns versos...
MARIA FRANCISCA[avança até o meio do salão, chega-se ao lado do cravo] - Quem vai acompanhar ao cravo?
VISCONDE DA CUNHA - [indo buscar a Viscondessa e trazendo-a para o cravo] A
Senhora Viscondessa da Cachoeira, que é uma virtuose de nota!
IMPERATRIZ - [com um gesto, apontando o cravo] - Viscondessa!
[A Viscondessa senta-se ao cravo. Silêncio geral. Uma pequena pausa.
V. Cunha fica junto ao cravo.
Marshall vai sentar-se na poltrona em que estava a Viscondessa, pol. Gabriac.]
MARIA FRANCISCA[recita]
Junto a uma clara fonte A mãe do amor se assentou, Encostou a mão no rosto, No leve sono pegou.
Cupido, que a viu de longe, Contente ao lugar correu;
Pensando que era Marília, Na face um beijo lhe deu.
Acorda Vênus, irada, Amor a conhece, e então, Da ousadia que teve, Assim lhe pede perdão:
Foi fácil, ó mãe formosa, Foi fácil o engano meu, Que o semblante de Marília É todo o semblante teu.
IMPERATRIZ - V. Exa. ainda não ouviu falar na Marília de Dirceu?
MARQUESA DE GABRIAC - Marília de Dirceu?
IMPERATRIZ - Exatamente! São os versos de Gonzaga. V. Exa. vai ouvi-los.
MARSHALL - Quem irá dizer os versos de Gonzaga?
GOITACAZES - Oh, não se embarace com isso, Barão. Aqui, entre os cavalheiros, só há um que é poeta, e romântico...
MARSHALL - O Senhor de Maricá!
GOITACAZES - Fale qual...
CUNHA - E, aqui, entre as damas, também, só há uma, que é poetisa e romântica. É a Senhora Marquesa de Aguiar.
TODOS [rindo] - Bravos!
AGUIAR - Eu? Eu?
GOITACAZES - Sim, V. Exa.! A Senhora de Aguiar é a última romântica do século. V.
Exa. adora versos, não é verdade?
AGUIAR - Confesso: adoro versos!
GOITACAZES - Quem não sabe que V. Exa. foi a amiga íntima da Duquesa de Alorna, a poetisa de D. João VI?
AGUIAR - É verdade! A Duquesa de Alorna! Quantas vezes, em Lisboa, em noites de luar, não ficávamos as duas, no varandim do paço, a ouvir o Tejo soluçar! Quantas vezes...
IMPERATRIZ - V. Exa. bem vê que a Baronesa dos Goitacazes tem razão! E V. Exa., como adoradora de versos, é quem vai dizer a Marília.
AGUIAR - Majestade, meus anos.
IMPERATRIZ - Não se esquive, Marquesa! Os anos não são nada para quem tem, como V. Exa., um coração de 20 anos...Vamos, diga a Marília!
AGUIAR[ levanta-se e vai para junto do cravo] - V. Majestade ordena.. Mas há de perdoar que eu não diga a Marília!
IMPERATRIZ - Pois V. Exa. diga o que preferir... Vamos, Marquesa!
CUNHA - Senhora Viscondessa da Cachoeira, seja cativadora, como sempre; complete o quadro. Venha acompanhar a Marquesa ao cravo...
CACHOEIRA [levantando-se] - Com muito gosto!
[Versos recitados pela Marquesa de Aguiar]
O ser herói, Marília, não consiste Em queimar os impérios: move a guerra, Espalha o sangue humano E despovoa a terra Também o mau tirano.
Consiste o ser herói em viver justo:
E tanto pode ser herói o pobre Como o maior Augusto.
[Ao terminar, palmas e bravos.]
MARQUESA DE GABRIAC - Muito bem! É curiosa a poesia brasileira! Tem um sabor especial. Lembra um pouco aquela simplicidade de Ducis.
[Marquês de Maricá lev. e vai para junto do cravo.]
MARQUÊS DE MARICÁ [já junto do cravo] - De Ducis? É verdade. Esse é um poeta muito delicado. Mas, hoje, Marquesa, qual é o poeta mais em voga em França?
MARQUESA DE GABRIAC - Ah! Em França, não faltam poetas. Mas há um moço, rapaz de vinte e poucos anos, que está fazendo furor em Paris.
MARSHALL - De vinte e poucos anos? Quem é esse poeta, Senhora Marquesa?
MARQUESA DE GABRIAC - É um de nome Vítor Hugo.
MARSHALL, JACAREPAGUÁ, CUNHA, MARICÁ - Vítor Hugo?
MARQUÊS DE GABRIAC - Perfeitamente. Um rapaz de gênio. Os jornais de França não falam doutra coisa. É, realmente, um poeta formidável.
IMPERATRIZ - Eu teria muito prazer em conhecer alguma coisa do poeta. V. Excelência não sabe alguma coisa dele, uns versos, por exemplo?
MARQUESA DE GABRIAC - Sei, Majestade. É uma poesia das Odes et Ballades.
IMPERATRIZ [com um gesto, apontando o cravo] - Nesse caso, Marquesa, diga-nos o poeta.
[Marquesa de Gabriac levanta-se, vai até o meio do salão. (Silêncio). Diz os versos de Victor Hugo. AO mesmo tempo, o Marquês de Gabriac levanta-se e fica junto ao cravo.]
MARQUESA DE GABRIAC [recita]
Madame, autour de vous tant de gráce étincelle Votre chant est si pur, votre dance recéle Un charme si vainqueur, Un si touchant regard baígne votre prunelle, Tout votre personne a quelquer chose en elle De si doux pour le coeur, Que, lorsque vous venez, jeune astre qu'on admire, Éclairer notre nuít d'un reynont souríre Qui nous fait palpiter, Comme l'oiseu des vois devant l'aube vermeille, Une tendre pensée au fond des coeurs s'éveille Et se met à chanter!
Vous ne l'entendez pas, vous l'ignorez, madame, Car la chaste pudeur enveloppe votre âme De ses voiles jaloux;
Et l'ange que le ciel commit à votre garde Na jamais à rougir quand, réveur, il regarde Ce qui se passe en vous.
[Palmas. Elogios].
TODOS - Muito bem! Muito bem! Bravos!
IMPERATRIZ - Lindos versos! E Vossa Excelência sabe dizê-los com imensa arte. Meus parabéns!
MARQUÊS DE GABRIAC [junto ao cravo] - Vítor Hugo, minhas senhoras, é, hoje, o poeta querido da França. Ele e Alfredo de Musset. Este Musset, então, tem uma canção que é a coisa mais popular de Paris.
MARSHALL - De Paris?
GABRIAC - De Paris, só, não. De toda a Europa.
GOITACAZES - As canções estão muito em voga na Europa, Senhora Marquesa?
MARQUESA DE GABRIAC - Muitíssimo! Principalmente as barcarolas.
MARSHALL - Vamos ouvir, então, uma barcarola! Uma daquelas bonitas canções da Itália, que é a pátria da melodia. A Senhora Viscondessa canta maravilhosamente! Vamos ouvi-la?
IMPERATRIZ - Bonita idéia, Barão! Vamos, Senhora Viscondessa!
[Todas as damas lev. e circundam o cravo. Nisto, o criado grita, em entono:] - Alas! Alas!
Alas!
[Silêncio. Todos abrem alas. Surge, no fundo, uma menina, de 12 anos, vestida como grande dama, diadema de pedrarias na fronte, trazendo uma enorme braçada de rosas.]
CRIADO - Sua Alteza, a Princesa, D. Maria da Glória!
A menina avança entre as alas. Todos batem palmas discretamente. Ao chegar na frente do salão, em frente a D. Leopoldina, a princesinha, oferecendo as rosas, recita os versos abaixo. O cravo acompanha.]
O céu deixou cair mimosa lágrima, Que logo se julgou no mar perdida, A concha a recolheu dizendo: "Agora Serás minha pérola querida, Contra as vagas terás seguro abrigo, Serena viverás sempre comigo.
Ó lágrima celeste ora em meu seio, Tu és a minha dor, minha ventura...
Permite, ó céu, que em doce e puro enleio Eu guarde das tuas gotas a mais pura!"
[Palmas. Elogios.]
MARQUESA DE AGUIAR[levantando-se, com grande solenidade] - Majestade: no Salão Encarnado, para comemorarmos bem lindamente o aniversário de hoje, estão preparadas as danças. O baile espera Vossa Majestade...
IMPERATRIZ [admirada] - Baile? Pois, também, há baile hoje?
MARQUESA DE AGUIAR - Baile, propriamente, não. Apenas uns números de dança, para alegrarmos a noite de hoje. Vossa Majestade nos dará a honra de assistir a eles?
IMPERATRIZ [sorrindo] - Com muito gosto! Vamos ao baile do Salão Encarnado...
[A Imperatriz levanta-se. Todos abrem alas. D. Leopoldina, seguida das duas damas de honor, a cauda carregada pelas damas, atravessa majestosamente o salão. O pano tomba vagarosamente.]
TERCEIRO ATO
A IMPERATRIZ, SENTADA AO MEIO- TRONO, CIRCUNDADA PELAS SUAS DAMAS.
GRUPOS ESPARSOS PELO SALÃO. TUDO PRESTES PARA AS DANÇAS.
MARQUESA DE AGUIAR[para a Imperatriz] - Majestade, preparamos uns números de dança para a noite de hoje. A quadrilha, se Vossa Majestade permitir, havemos de dançála por último.
IMPERATRIZ - Muito bem, Marquesa! E que números Vossa Excelência preparou?
MARQUESA DE AGUIAR - Três ou quatro, Majestade. O primeiro, no entanto, é a pavana.
IMPERATRIZ - A pavana?
MARQUÊS DE MARICÁ - A pavana, meus senhores.
BARONESA DE GOITACAZES - A pavana? A pavana?
MARSHALL - Pois tiveram uma linda idéia com a pavana. Bravos!
MARQUÊS DE MARICÁ - Foi lembrança da Baronesa de Goitacazes.
BARONESA DE GOITACAZES - A pavana é a dança das elites. Nasceu na Espanha. Foi a paixão de Catarina de Médicis. Numa reunião como a de hoje, não poderia faltar a distinção da pavana.
MARQUESA DE AGUIAR - Tem razão, Baronesa. Alegremos este sarau com a pavana. É uma dança muito aristocrática. ![E, com um gesto, alto, para os bailadores:] Meus Senhores, vamos á pavana!
[Os dançadores agrupam-se. Dançam a pavana. Muitas palmas, muitos aplausos. Depois da pavana, Cachoeira e Gabriac vêm a E. Com Cunha, Rio Seco e Jacarepaguá vão para a D.]
MARQUESA DE AGUIAR - Agora, Majestade, vamos ver os moços dançarem a gavota, que foi lembrança do Senhor Barão de Marshall.
MARSHALL - Pois não, minha Senhora! Uma lembrança minha. A gavota foi a dança da minha mocidade. Vossas Excelências não imaginam, no meu tempo, o que foi a paixão pela gavota!
VISCONDE DA CUNHA - Isso, então, meu caro Marshall, já foi há muitíssimos anos... É coisa das Kalendas.
MARSHALL - Não seja maldoso, Visconde! Não faz tanto tempo assim... A gavota esteve em grande moda muito tempo depois da revolução. Eu estava em Paris. Que furor, meus senhores, que furor faziam, então, as gavotas. Todas as noites, nós, rapazes do tempo, corríamos à Ópera ver o Gardel, aquele famoso dançarino, dançar a gavota do Panurge.
CONDESSA DE VALENÇA - O Panurge, de Grétry?
MARSHALL - Exatamente! Era a peça da voga. Por isso, senhora Marquesa de Aguiar, para lembrar um pouco a minha mocidade, foi que pedi que se dançasse, esta noite, uma gavota.
MARQUESA DE AGUIAR - Pois, vamos a ela. Queira, Barão, movimentar os pares.
MARSHALL - [Com um gesto amplo, muito desembaraçadamente, chama todos os bailadores para a cena:] - Olá, rapazes! Vamos à gavota!
TODOS - À gavota! À gavota!
[Os pares da gavota vem para o meio do salão. Compõem-se e dançam a gavota.
Marshall mostra-se encantado. Todos fazem jogo de fisionomia. Fazer o possível para que todos os espectadores como que conversem durante o bailado. Ao terminarem as danças, todos batem palmas. Há muitas exclamações de aplausos.]
TODOS - Bravos! Bravos! Bravos!
MARSHALL [no meio da cena] - É delicioso, não é? Digam-me lá, excelentíssimas senhoras, se pode haver dança mais distinta.
MARQUESA DE AGUIAR - É muito linda, Barão! Vossa Excelência teve gosto na escolha.
Mas agora, depois desta bela gavota, não pode faltar o minueto.
BARONESA DE GOITACAZES - Sim, o minueto.
CONDESSA DE VALENÇA MARSHALL, GABRIAC, MARICÁ [ao mesmo tempo] - O
minueto? O minueto? Bravos! Bravos!
VISCONDE DA CUNHA À MARQUESA DE AGUIAR [vai ao F] - Oh, minha senhora, que soberba dança o minueto! Não há nada mais fino, mais espiritual do que o minueto. É todo ele um sonho... Um adejar de asas douradas. Distintíssimo.
MARQUÊS DE MARICÁ - É a dança fidalga por excelência.
VISCONDE DA CUNHA - Em França, por muito tempo, havia a frase famosa: "Que des choses dans un minuet"! E, realmente, meus senhores, quanta coisa num minueto! O
gesto, a harmonia dos passos, a galantaria dos modos, a fidalguia do "donaire".
GABRIAC - Depois, aliados a isso, a frase à Marivaux, o galanteio entontecedor. Ah, o minueto lembra marquesas de cabeleiras empoadas. Lembra damas fragílimas, alufadas em seda, o pezinho perdido em escarpins de veludo...
MARQUÊS DE MARICÁ - Tem razão, Marquês. O minueto é a dança da Corte. Vossa Excelência sabe a paixão dos reis por esse bailado gracioso. Anda em todos os livros de mundanismo, Marquês, o episódio de D. João da Áustria.
MARQUESA DE AGUIAR - Que episódio de D. João d'Áustria?
VISCONDE DA CUNHA - Sim, minha senhora. D. João d'Áustria foi um príncipe gentilíssimo. Em uma das suas aventuras cavalheirescas, deixou, um dia, precipitadamente, sem que ninguém o imaginasse por que, os seus domínios dos Países Baixos. Meteu-se na sua capa espanhola. Pulou num magnífico árabe puro-sangue. E
largou-se, num trote rasgado, pela estrada de Paris. Que era aquilo? Que é que ia fazer o príncipe dos Países Baixos? Uma coisa só, minhas senhoras. E uma coisa galantíssima!
D. João d'Áustria veio a Paris unicamente para isto: ver a Margarida de Borgonha dançar um minueto...
BARONESA DE GOITACAZES - Bravos! Eis um gesto perfeitamente romântico.
MARQUESA DE AGUIAR - Um gesto de cavaleiro andante. Muito lindo!
MARQUÊS DE MARICÁ - Lindíssimo! Lindíssimo!
IMPERATRIZ - Maria Antonieta teve, sempre, encanto pelo minueto. Foi a grande dança de Varsalhes. Vamos, portanto, assistir ao minueto organizado pela senhora Marquesa de Aguiar.
MARQUESA DE AGUIAR - Visconde, por obséquio, organize o minueto.
VISCONDE DA CUNHA [no meio do salão, virando-se para os pares] - Meus senhores, ao minueto!
[Os pares reúnem-se. Compõem-se, dançam o minueto. Ao terminar, há muitos aplausos, exclamações, palmas. Depois do minueto, Cachoeira e Gabriac vão à D. baixa. Valença e Itaguaí vêm a E. Maricá sent. sofá da D. e Cunha e Marshall vêm à E. baixa]
IMPERATRIZ - Foi lindo o minueto!
MARSHALL - Dançaram encantadoramente. Em Varsalhes, no tempo de Luiz XIV, estou certo de que não dançariam com maior graça. Que primor!
MARQUÊS DE MARICÁ [Lev.] - Agora, meus senhores, depois do minueto, dessa galantaria viva, vamos a qualquer coisa de bem alegre.
VISCONDE DA CUNHA - Que há de ser, Marquês?
MARQUÊS DE GABRIAC - Que há de ser? Mas, naturalmente, a giga. Não há coisa mais alegre. Aliás, a Condessa de Valença já propôs que se dançasse hoje esta velha dança encantadora. Em França, no século passado, não houve baile em que não entrasse a giga.
VISCONDE DA CUNHA - É uma dança escocesa, não é, Condessa?
CONDESSA DE VALENÇA - Dizem que veio da Escócia, não sei... Mas o fato é que é um bailado muito curioso. Teve sempre grande popularidade na Itália. As "Gigues de Corelli"
tornaram-se famosas e eu propus, exatamente, que se dançasse uma giga da época.
MARQUESA DE AGUIAR - Nesse caso, Condessa, faça executar a dança. Vamos ver a giga!
MARQUESA DE VALENÇA [vem para a cena e reúne os dançarinos] - Senhores bailadores, todos a postos! Venham! [Reúne-os, arregimenta-os e depois, com um gesto, para o maestro:] - Música!
[A música rompe. Dança-se a giga. Grandes aplausos. Palmas e elogios.]
IMPERATRIZ À CONDESSA DE VALENÇA - Eu a felicito, Condessa. A giga teve muito encanto. Foi uma idéia encantadora.
MARQUESA DE VALENÇA - Oh, Majestade... Tenho muita glória em ouvir tão alto elogio.
MARSHALL - Agora, meus senhores, só falta, para coroa deste sarau, uma só coisa.
VISCONDE DA CUNHA - Que há de ser, Barão?
BARONESA DE GOITACAZES Que será?
MARSHALL [solene, com um gesto amplo] - Falta apenas isto, meus senhores: a quadrilha!
TODOS - Bravos! Bravos! Bravos!
VISCONDE DA CUNHA À MARQUESA DE AGUIAR - Vamos, então, à quadrilha!
MARQUESA DE AGUIAR - Pois não, Visconde, comecemos a quadrilha. [E para o Marques de Maricá:] Dê o exemplo, Marquês! Vossa Excelência, apesar dos anos, é o moço mais verdejante do sarau. [Todos sorriem]
MARQUÊS DE MARICÁ [Lev. sorrindo] - Oh, Marquesa! Por quem é.
MARQUESA DE AGUIAR - Vamos, Marquês! Vá tirar o seu par.
[O Marquês de Maricá levanta-se e vai tirar o seu par. Todos os demais fazem a mesma coisa, só ficam, sem dançar, a Imperatriz, a Marquesa de Aguiar e o Barão de Marshall.
Os pares ajeitam-se para dançar. Formam-se duas alas. Todos, evidentemente, com seus vis-à-vis. Há um instante de silêncio.]
MARQUESA DOS GOITACAZES - Senhor Marquês de Maricá; Vossa Excelência é quem vai marcar a quadrilha.
MARQUES DE MARICÁ - Eu?
MARSHALL - Sim, Vossa Excelência! A Marquesa de Aguiar já disse, e é verdade: o Marquês é o moço mais verdejante do sarau...
MARQUÊS DE MARICÁ - Pois seja... Eu marco a quadrilha.
MARSHALL - [para o maestro] - Música!
[A música rompe. Os pares dançam a primeira parte da quadrilha. Maricá é quem marca.
Ao terminar, batem palmas.]
IMPERATRIZ - Dançaram admiravelmente!
MARQUESA DE AGUIAR - O Marquês de Maricá brilhou! Marcou a quadrilha com uma arte única...
MARQUÊS DE MARICÁ - A Marquesa tem para comigo gentilezas vencedoras.
MARSHALL - Não é gentileza, não, Marquês. É justiça. E, para não esfriar a dança, a que Vossa Excelência deu tanto calor, vamos à segunda parte da quadrilha.
MARQUESA DE AGUIAR - Muito bem! Muito bem! Vamos à segunda parte.
MARSHALL [para o maestro] - Música!
[A música lança uns acordes. O Marquês de Maricá diz alto, "Attention! A vos places!" Há um relâmpago de silêncio. Nisto, surgindo na porta do fundo, o criado anuncia com estrondo:]
Sua Majestade, o Imperador!
[Os pares, que já estavam de mãos dadas, largam-se as mãos num gesto de assombro, as duas filas recuam ainda mais. A Marquesa de Aguiar levanta-se de um choque e todos, ao mesmo tempo, muitas vezes:]
Sua Majestade? Sua Majestade?
[D. Pedro, em grande gala, faiscando de crachás, fitão verde e amarelo tiracolo, atravessa, sorrindo, simpaticamente, por entre as duas alas. Dirige-se à Imperatriz e, diante de D. Leopoldina, curvando-se cavalheirescamente:]
Também eu vim cumprimentar Vossa Majestade e juntos assistiremos à quadrilha.
[D. Leopoldina levanta-se, sorrindo. D. Pedro toma-lhe das mãos e, Meus senhores, minhas senhoras, continuem! Senhor Barão de Marshall e Senhora Marquesa de Aguiar, venham ser os nossos vis-à-vis nesta quadrilha.
[Marshall dá o braço à Marquesa de Aguiar. Fica o vis-à-vis de D. Pedro. Há um rápido silêncio. E Marshall, antes de romper a quadrilha:]
Meus senhores, Sua Majestade, o Imperador D. Pedro, com esta surpresa fidalguíssima, acaba de emprestar um inesperado fulgor ao sarau da Imperatriz. Não pode haver, para remate desta festa, mais glória e maior gosto. Portanto, meus senhores, e em honra de Sua Majestade, cantemos o Hino.
TODOS - Bravos! Bravos! Bravos! O Hino! O Hino!
MARSHALL [para o maestro] - A música do Hino!
[Todos começam a cantar com grandes entusiasmos. Cantam uma ou duas quadras da "BRAVA GENTE BRASILEIRA". Apenas uma ou duas. E, enquanto cantam, vai caindo lentamente o pano.]


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