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Actores e autores

ENTREVISTA COM FIALHO D'ALMEIDA
O teatro de D. Maria II não corresponde ao fim para que foi creado — Incompetencia de quem escolhe as peças— Falta de auctores dramaticos —Insuficiencia e falta de disciplina dos actores — Inutilidade do Conservatorio Dramatico — O dialecto falado no teatro Normal — Partilha de lucros pelos auctores —
O governo não tem nada que proteger.
Á graciosidade de Fialho d'Almeida devemos a entrevista de hoje. Enormemente nos ufanamos com a distincção que o notavel escritor nos concedeu. É sem duvida um finissimo regalo do espirito o lêr as considerações sobre o estado actual do teatro portuguez, que ainda aos nossos ouvidos ressoàm neste momento, com aquelle prestigioso encanto, que os que conhecem de perto o notável escritor, tantas vezes teem admirado. Começa o nosso entrevistado por nos dizer 6 FIALHO D’ALMEIDA
que o teatro, como instituição subvencionada e protegida pelo Estado, fez-se com tres fins:
1.° —Desenvolver a literatura dramatica, e dar aos homens de letras segurança sobre a perfeição da representação das peças, enscenação, etc.
2.°—Estabelecer um tipo de dicção para a lingua, tanto mais necessário, quanto é certo que de terra para terra as palavras se adulteram e perturbam, a ponto de em certos logares do reino se falar um dialecto.
3.°—Estabelecer pela selecção no teatro normal, um concurso de artistas, que seja ao mesmo tempo escola para os novos, e exemplo para os outros teatros do paiz.
Desde que a legislação que protege o teatro, creado sob estes pontos de vista, falhe, — é claro que a legislação é imperfeita e tem de ser modificada. Se ainda, ao fim de diferentes tentativas por banda do governo em proteger o teatro, nenhum dos tres fins é atingido de longe sequer, então devemos entender que toda a protecção é inutil, havendo para o governo outros fins mais úteis, a que dedique a sua protecção.
— Quer dizer que a ultima reforma do teatro não satisfaz, não é verdade?
ACTORES E AUTORES 7 —A prova que exemplifica que o teatro normal nunca serviu para proteger a literatura dramatica, é que quando os actores Rosas e Brazão exploraram o teatro D.
Amélia, parte dos principaes escritores dramaticos para lá levaram as suas peças, e não ao teatro de D. Maria n. Demais, tem-se notado sempre que o numero de originaes portugueses não aumentou nem em qualidade nem em quantidade, por termos um teatro aberto á literatura. A escolha das peças, mesmo feita pelas pessoas que a lei investe nesse papel de censores, é por vezes de tal maneira arbitraria, que o nosso espirito duvida que seja o bom critério literário que presida á escolha, ou se é o favoritismo que as lá mete.
—Deve então ter havido irregularidades na aceitação e na recusa das peças...
—Antes do Suave Milagre, haviam sido recusadas naquelle teatro cento e vinte cinco peças, as quaes, no melhor caso, eram eguaes em mérito teatral e literário, ao arreglo do sr. conde de Arnoso, perdendo-se todas no limbo, e salvando-se esta, para cuja sumptuosa instalação o governo mandou dar quatro contos de réis, facto este extraordinario, pois ha 25 annos que se não concedia tal privilegio a um escritor dramatico; e 8 FIALHO D'ALMEfDA
julgo mesmo que Garrett nunca o conseguiu.
— Carecidos de auctoridade e competescia, os gerentes pouco teem feito em favor da literatura dramatica nacional?
—A simples perscruta da categoria mental da personagem ou personagens encarregadas da escolha na preferencia das peças, para logo deve levar o publico á conclusão de que essa escolha não pode ser senão arbitraria. E
o gerente, por via de regra, um actor, e nunca dos mais ilustres da companhia,—
esses teem de se ocupar das suas creações —
que a eleição investe no papel de censor, preferindo-se em geral os mais arguciosos e astutos; pois em matéria administrativa ha sido o que as ultimas gerencias teem tido em vista.
Conhece-se o preparo literario e cultual destes gerentes: são quando muito embriões de bachareis sem criterio, sem leituras, sem experiencia, dominados apenas pelo desejo de levar a bom caminho as finanças da empreza, e açambarcar papeis, que os ponham em evidencia.
—A producção de obras portuguezas de teatro nestes últimos tempos tem porventura manifestado quaesquer progressos?
—Durante o funcionamento constituido ACTORES E AUTORES 9 com o caracter de projecção pelo Estado, as peças representadas em D. Maria não divergem das medias mediocres, que teem caracte-risado a literatura dramática nos outros períodos do teatro portuguez de Garrett para cá. O numero das peças boas, ou pela hábil carpinteria, ou pelo estro literario, é tão diminuto e mesquinho, que bem se pode dizer que a aptidão dramaturgica do escriptor portuguez é uma qualidade de excepção. E assim deve ser. Quem examinar as obras de literatura dialogai ou narrativa, desde os períodos em que este genero literario adquiriu formação autonomica na literatura nacional, imediatamente reconhece que os novelistas e dramaturgos portuguezes, fora da concepção lírica, da tirada oratoria e da devaneação sentimental, poucas ou nenhumas qualidades teem de entrechadores de peças e romances;
sobretudo o teatro requer uma concisão nervosa, uma intensidade de acção e um poder sintético e analítico, que quasi por completo faltam entre os predicados literários do portuguez.
—Dentre os nossos escriptores nenhum haverá que escape a tão sumario e inexoravel julgamento?
—Apontarei nesta verdadeira miseria de 10 FIALHO D'ALMEIDA
temperamento trs nomes que foram tres verdadeiras excepções: O primeiro é Camilo Castello Branco, cujas catástrofes dos principaes romances são maravilhas de potência dramática, tanto mais notavel, quanto é certo se passam em geral com indivíduos de mediocre estatura social, com brazileiros, comerciantes, morgados, etc, que a certa altura dos seus livros adquirem grandeza de heroes. O segundo foi César de Lacerda, que, tendo sido um pessimo literato, inculto e mal preparado, foi um sagacissimo carpinteiro de teatro. O terceiro é Marcellino Mesquita, posto em escala superior á de César de Lacerda, se bem que, não tendo feito todos os esforços que devia para cristalisar a sua forma e definir a essência filosofica e social dos seus personagens, é todavia dos mais raros e fogosos temperamentos teatraes, que entre nós tem existido. Se Marcellino Mesquita, armador de catastrofes, podesse ter tido a cultura de Jacinto Benavente, terse-hia realisado na literatura dramática portugueza urna figura a egualar as mais altas do teatro contemporaneo.
— Diz-se que ha falta de conjuncto e disciplina nos actores da companhia do teatro, e que isso prejudica o exito das peças...
ACTORES E AUTORES 11 —Quanto ás garantias que a actual constituição do teatro, com os artistas de que dispõe, oferecem aos escriptores dramaticos portuguezes para a cuidadosa representação das suas peças, não se pode dizer que desde a empreza Rosas e Rrazão para cá, no teatro de D. Maria, essas coisas tenham melhorado.
É impossivel encontrar ensaiador, a quem os actores obedeçam e escutem como a um mestre; e sem ensaiador que tenha da peça uma visão nitida e critica de conjuncto, impossivel fazer da obra dramatica um todo artístico integro e impecavel. Em geral os actores, com preponderancia no teatro, escolhem o papel em que mais brilhem, com prejuizo das outras creaçoes, e sem o menor escrupulo em prejudicarem muitas vezes de morte, as peças que são chamados a ilustrar.
Sem a menor generosidade profissional, porque nem se arreceiam do ensaiador, nem da imprensa, acontece a miude estenderem deante do publico os colegas, por um reles prazer de vaidade, avançando ou recuando o tom, contanto que a sua vergonhosa victoria seja certa.
—Mas isso não se devia tolerar!
—E o caso da Ceia dos Cardeaes —
graciosa scena passada entre tres velhos, recor- 12 FIALHO D'ALMEIDA
dando, em confidencia num gabunete, ao fim da ceia, os seus amores de mocidade—e que os actores que eu vi fazer a peça, vinham declamar á boca da scena por forma a exceder os colegas em violências de esgares, e crescendo gritado da dicção.
—Como cohibir essa anciã, de concentrar em si todas as atenções e todos os aplausos do publico, que teem os actores mais cotados?
—Num teatro de prova, o ensaiador devia ser um homem excessivamente culto e artista, estranho á scena, e com taes poderes sobre os actores, que não houvesse meio delle ser desatendido, como são os actuaes ensaiadores efemeros — se é que os ha — no teatro de D.
Maria . Assim resulta que ouvir ali uma peça, a qual meta bastantes figuras, é grande numero de vezes assistir a um charivari, que nem dá noções de quadro, nem tem perspectiva nos episodios, e frequentemente traz para os primeiros planos, conforme a argucia dos actores, figuras que o auctor da peça ideara como acessorias, recuando-as para o fundo brumoso da acção.
Este estado de coisas, posto que não apercebido do publico inculto e indiferente, é em absoluto intoleravel num teatro Normal. Pode dizer-se que em D. Maria não há rei nem ACTORES E AUTORES 13 roque no ensaio das peças, na afinação das figuras, na comprehensão critica da acção.
Faz cada um o que lhe parece,—com o applauso da imprensa super omnia.
—Mas não é verdade que lá fora, depois que o actor Antoine creou o teatro livre, se dão excepcionaes disveíos á rigorosa montagem das peças...
—A sciencia da mise en-scène, que foi uma das grandes conquistas da empreza Rosas e Brazão em D. Maria, retrocedeu, ou pelo menos não progrediu, com a actual parceria.
—A realisação material d'uma obra de teatro, tal como seja feita, pode ou comprometel-a, ou salval-a, não-é assim?
—Quanto a scenario, se é certo que Manini continua sendo o grande artista que todos sabemos, não é menos seguro que elle muita vez não pinta segundo as rubricas da peça, mas consoante os caprichos da sua fantasia, de sorte que, em elle entrando, os dramaturgos é que são os colaboradores do cenógrafo; tanto monta dizer que é mais um que precisa ser metido na ordem pelo ensaiador.
E o que se diz d'este, diz-se de todos os outros.
Após uns instantes de recolhimento, o nosso entrevistado acrescentou:
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—Assim como é necessário unificar a ortografia, assim é necessário unificar a dicção, que anda disparatada, estabelecendo-lhe um tipo;
para isso ha em primeiro logar os Conservatorios, que são a escola primaria do teatro, e os teatros normaes, ou subvencionados pelo Estado, no gênero da Comédie, onde as teorias dictadas no Conservatório são na pratica desenvolvidas. É o que dá ao teatro, entre outras missões que elle tem a cumprir, foros de uma escola da lingua portugueza. Isto nos leva a perguntar se o Conservatório cumpre o fim a que se destina, e se o teatro continua a missão do Conservatorio, e é verdadeiramente uma escola de falar portuguez, e exprimir emoções ou paixões por via exterior.
—Tem o Conservatório em Portugal prestado algum serviço?
—Desde que o Conservatório dramatico foi instituído até hoje, não tenho noticia de nenhum grande artista dramático que lá tenha sido educado; até ia dizer que não saem de lá senão medíocres. Ainda ha annos, os dois professores de declamação encarregados de ensinar a mocidade a bem pronunciar o portuguez eram ambos gagos.
Sei que occupam algumas cadeiras d'esse ACTORES E AUTORES 15 Conservatorio pessoas de toda a competencia literaria, e que se tem procurado cercar as provas publicas finaes dos alunos de todos os reclamos possiveis, a bem de demonstrar a excelência de tal instituição. Desgraçadamente os desastres continuam, e os saidos ultimamente do Conservatório entre as hossanas dos mestres, ahi jazem perdidos em teatros de terceira ordem, sem que o publico tenha dado pelos seus talentos. É quasi certo, que por melhores que sejam os professores, o Conservatorio continuará a enfermar dos males de até hoje, parecendo ser já tempo de o declarar uma blagae ridicula, até que algum Franco o suprima de vez.
—Pelo visto, com o que nada sofria a arte...
—Em todos os tempos do teatro portuguez os grandes actores e actrizes se fizeram na rua, em plena multidão, estudando e observando a vida em plena liberdade, ao envez de estarem a ouvir a respeitáveis professores de cincoenta annos, com que intensidade vulcanica se devem exprimir as paixões dos vinte — que elles provavelmente nunca, sentiram. Manuela Rey, Emilia das Neves, Emilia Adelaide, etc, estudaram a sciencia de visionar tipos dramáticos em laboratórios psvcholo- 16 FIALHO D'ALMEIDA
gicos — que eu até tenho vergonha de dizer: —
Taborda era tipografo; Antônio Pedro carpinteiro; Adelaide Douradinha, lavava casas;
Adeíina Abranches, filha d'uma hortaliceira do Campo de Sant'Anna, e foi ahi, em plena multidão, sofrendo, trabalhando e chorando, que esses grandes artistas surprehenderam da vida os lances, que com tanto brilho souberam exteriorisar.
— A forma por que se pronuncia e declama em D. Maria n é com effeito reprehensivel...
—Também já no tempo da empreza Rosas e Brazão era formada a lingua do teatro de D.
Maria H, em termos de constituir um dialecto. A
dição d'este teatro chegou a fazer moda entre os estoiradinhos e gagás da roda lisboeta.
Aveludaram-se as silabas, molharam-se os ll, pronunciavam-se os rr á franceza, fazia-se boquinha aos ditongos, tudo isto com uma garridice, uma coqueterie, de lhes mandar com as cadeiras á cabeça. Os ritmos da conversação naturaes em linguagem portugueza, certas cadencias peculiares da elocução, tudo ali foi alterado ao sabor do andante francez, que os actores ou traziam do estrangeiro, ou d'elle buscavam emitir por via de terceiros.
ACTORES E AUTORES 17 —Com a nova sociedade artistica, que succedeu aos Rosas, parece ter cessado o enfatuamento irrisorio da dicção.
—Este estado de coisas não se agravou decerto com o elenco actual, mas pode-se dizer que continua.
Antigamente em D. Maria falava-se afranciusado, agora, com o predominio de artistas alfacinhas, a fala alisboetou-se, dizendose auga, tisoira, ministro, visita, etc, — o que não é caminho gramaticalmente mais correcto.
Por consequencia o teatro de D. Maria, como escola de dicção não cumpre a missão a que se destina, não tendo também por este lado razão de existir como entidade protegida.
—O conjunto das figuras do teatro, como agora está, é deficiente, obsta á distribuição acertada d'uma peça...
—A ultima reforma (de Antônio Ennes) que rege actualmente o teatro Normal preceituava que a empreza envidaria todos os esforços para escripturar artistas dos mais notáveis dos teatros portugueses, até possuir um elenco que lhe permitisse representar todas as peças, sem recorrência a escripturas supplementares, ou remendo no meio do anno; mas aconteceu que esta honra da cha- 18 FIALHO D'ALMEIDA
mada ao primeiro teatro do paiz foi logo de principio recusada por muitos dos maiores artistas portugueses, como Lucinda, Lucilia, Brazão, Rosas, etc, e depois deliberaram sair (é o caso do actor Joaquim d'Almeida), e emfim que bastantes d'eles, aproveitando as hesitações d'outros mais competentes, tomaram pé no automóvel da gloria, onde se acham com categoria de governadores e vicereis. Varias damas e cavalheiros, que durante uma já longa carreira disfructaram por outros teatros modestos logares de 2.a e 3.a ordem, hoje se acham guindados a actores de l.a classe, com ordenados opiparos e supplemento nos lucros de fim do anno.
—Mas tem havido sempre lucros, a dividir, em todos os annos?
—Consta que o anno passado a empreza tinha seis ou sete contos de lucros a distribuir depois de pagas todas as despezas, ordenados de artistas e mais encargos do teatro. Em balde eu recordei a varios autores das peças representadas durante o anno o direito que lhes assistia em reclamar partilha nesse bolo; mas com o habito de obediencia, passividade, e incuria, que quasi todos os poetas teem em tratar dos seus interesses particulares, nenhum deles ousou formular em ACTORES E AUTORES 19 publico um queixume,— aceitando a expoliação como favor! Por onde se vê que os homens de letras em Portugal, são bem ainda os descendentes dos antigos pordioseros, que faziam sonetos aos fidalgos, e aceitavam o caldo dos conventos.
—Conviria, na verdade, melhorar a desproporção de vencimentos entre autores e actores.
—Actualmente o elenco de D. Maria, aparte uma. ou outra figura, que diria bem em qualquer agremiação de artistas verdadeiros, é um agradavel e modesto asilo de benignos temperamentos dramaticos, falando baixo em materia d'arte, mas fazendo demasiado barulho no que toca a distribuição dos rendimentos. São pessoas que maiormente não dão que falar de si, e que tratam de viver nos bastidores do teatro, como os grilos entre as folhas das alfaces:—
somente, em arte, os grilos cantam! Não é dizer que uma ou outra vez alguma peça, figura ou tipo, não mereçam ser vistos do publico, e aplaudidos pelos que teem obrigação de fazer justiça a quem trabalha;
mas são estes casos tão espaçados, que em boa verdade, vão parecendo escandalosos. Aparte este ou aquele artista de talento, o actual elenco é incompleto, inex- 20 FIALHO D’ALMEIDA
periente em arte e inculto ao ponto de estar provocando reparos que ele ocupe o primeiro teatro do paiz. É uma situação que não pode continuar.
— E como remediar isso?
— Ou o teatro fique por conta do governo, ou dum emprezario particular, semelhante elenco é pessimo. Se o teatro de D. Maria fica na gerencia do Estado,— porque neste paiz as asneiras são tantas, que é possivel que mais esta subsista, mercê da burrice casmurra dos mandantes, — ao menos refundam toda a legislação que lhe dá corpo.
—Parece-lhe...
—... Que é necessario tirar a administração das mãos dos actores; entregar a escolha das peças a um comitê de homens de letras, estranhos ao teatro; levantar as peias que sob pretextos de moral hipocrita, prohibiram em D. Maria a representação do Pae, de Strindberg, — pertencendo hoje ao teatro de D. Maria a gloria de ser o unico teatro do mundo que teve o desaforo de recusar uma peça deste estranho e genial escritor, uma das maiores figuras intelectuaes da Europa, neste seculo; — estabelecer um ensaiador, armado de fortes poderes que o imponham ao corpo de actores, por forma a fazer ACTORES E AUTORES 21 acatadas as suas disposições; e, finalmente, augmentar em muito do que actualmente são os direitos dos autores das peças originaes, fazendo-lhes chegar, por seu turno, boa parte na partilha dos lucros finaes, até agora distribuidos apenas aos actores. Neste ponto de vista, o teatro tem estado sempre num mal entendido a respeito de artistas e escriptores.
A meu ver, a parte do leão deve pertencer aos homens de letras, que em Portugal vivem miseravelmente, numa dependência humilhante dos patrões, — pois são eles que fazem as peças, cabendo apenas aos actores, embora ás vezes com valor, a colaboração de as telefonar.
Vemos pois, chegados ao fim desta longa entrevista, que o teatro não satisfaz a nenhum dos tres pontos fundamentaes para que foi creado e organizado:
1.° — Não augmentou o numero de peças, nem lhes melhorou a qualidade; não melhorou a arte de representar, nem creou para aquelas um tablado melhor, com artistas escolhidos, e com enscenação e scenografia rigorosas e adequadas.
2.° — Não creou uma escola de dicção, e ao contrario está prejudicando a pouca, vernacula e castiça, que ainda existe.
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3.° — Em vez de ter estabelecido para o teatro Normal uma selecção de artistas, baralhou as cousas por forma que mais parece acentuar-se o desígnio de só acaçapar mediocridades. Não abriu nem facilitou caminho a artistas novos, saidos da escola; mas unicamente nisto tem desculpa, porque, como dissemos, a escola não produz coisa que se veja.
—O que ha então a fazer?
—O governo não tem que proteger o teatro de D. Maria. É esta a segunda tentativa de projecção que lhe dá. Qualquer das duas durou bastante para que a experiencia se possa ter por definitiva. Resta-lhe pois a meu vêr assegurar as promessas que fez aos actores que lá consentiu —visto que o governo é governo, e não pode voltar atraz — e depois deste acto de misericordia, fazer dinheiro da casa, entregandoa a um em prezado particular.
(O Mundo — 30 de Setembro de 1906).
Luiz XI
Tragedia de Cazimiro Delavigne, 5 actos, traducção em verso de H. Lopes de Mendonça, De ha muito que João Rosa pensava em realizar sobre a scena, o tipo trágico de Luiz XI, que ás singulares energias carniceiras do nosso rei D. João n, amordaçador da rebeldia dos grandes vassalos, soube juntar todas as finas astucias dum diplomata, todas as traiçoeiras infâmias dum bandido, e algumas belas qualidades de reformador inteligente, que mesmo a extorquir, o oiro aos seus burguezes, lhes ia concedendo de envolta algumas liberdades.
A tragédia de Cazimiro Delavigne, de que o Rossi arcabouçava o protagonista, com os lampejos do seu genio romantico,— posto esteja esquecida dos trágicos, e vergastada sob o ponto de vista da factura literaria pelos motejos da critica, ainda ha-de constituir por muito tempo um papel de prova para os 24 FIALHO D'ALMEIDA
comediantes educados no teatro de 1830, e hiperstesiados, eles mesmos, por essa grande febre poetica que deu vida ás personagens grandiosamente declamatórias de Hugo. Não exigir nesta obra do poeta frances, fidelidades de cronologia e de historia, que rarissimos, de resto, teem observado. O Luiz Xl de Delavigne navega e desenrola-se para assim dizer em plena fantasia, aproveitando da ficção os episódios que mais convenham a iluminar na figura do velho déspota a.
confluencia de qualidades cavalheirosas e sinistras que lhe fasciavam o caracter.
Para bem repintar no espirito do leitor a tessitura d’anacronismos de que está cheia esta tragedia, basta apontar uns dois ou tres.
No Luiz XI, por exemplo, dá-se a morte de Carlos o Temerário a alguns dias apenas de distancia da morte do rei de França, não se sabendo por esta forma, se a acção se passa em 1477, data da batalha de Nancy, se no ano de 1843, época do falecimento do rei.
Adoptada, porém, qualquer das hipoteses, sempre a paixão do delfim pela filha de Cominos ha-de figurar como inadmissivel, visto como no primeiro caso, o filho do rei de França apenas contava uns sete anos (Auguste Vitu), e visto como, no segundo, ele não pode- ACTORES E AUTORES 25 ria ir além dos treze. Tão pouco Nemours podia figurar na peça como o vingador do assassinio de seu pae: o pobre gala tinha quinze anos, quando o hemiplegico carrasco faleceu!
Isto, porém, são meros incidentes, dada uma peça daquela índole, e o tempo de exageraçào romântica em que ella viu a luz. O Luiz XI de Cazimiro Delavigne marca, como se sabe, uma transição do teatro classico para o romntico, quando já a nova escola tomava de assalto o gosto público, demolindo a carcassa da antiga tragédia enfadonha, ao gosto de Ponsard. É incontestavelmente um dos bocados mais fortes de Delavigne, que amadurecido pelos anos, venerado por uma vida fecunda de triunfos, amado, respeitado, protegido, levou á Comedia Francesa a luz da arte nova, mau grado as animadversões movidas contra ella: essa arte opipara, que sete mezes depois desabrochava em toda a sua pompa, nas resplandecentes estrofes do Roí s'amuse, de Victor Hugo.
Pode escrever-se que o Luiz XI é a tragedia dum só tipo, o do rei, cujo caracter ali 26 FIALHO D'ALMEIDA
vem tracejado com vehementissimos valores de claro-escuro. O verso é vigoroso, elastico, simples de cor, mas duma intensidade d'expressão surprehendente: e o tempo que tudo dessora e emurchesse, mesmo as obrasprimas consagradas pelos salamaleques de trezentas gerações, o tempo ainda não poude extinguir muitos dos grandes lampejos de que está cheia aquela obra. Logo a entrada do rei, no segundo acto, é uma tirada á Corneille, e assim o plano de assassinio que o déspota sugere a Tristão O Eremita:
— Tu ne comprends pas?... —Il faut donc. — Tu souris?
Adieu, compère, adieu, tu comprends...
Luiz XI tem figurado no repertorio de todos os grandes actores dos eltimos trinta anos. Foi creado na Comédia Francesa em 1832 (Augusto Vitu, atraz citado) por Ligier, rival de Taíma, que fazia o rei, por Geoffroy, que era Nemours, e M.He Anais, encarregada do papel de Maria de Cominos.
Rossi e Salvini representaram-no, e Lisboa deve guardar daquele ultimo, neste tipo, uma impressão profunda e inextinguivel. Logo de-
ACTORES E AUTORES 27 pois de Rossi, Antônio Pedro, que nunca tivera estimulos, nem desejos, nem ambições, nem orgulhos, e passou a sua vida toda a ser condescendente, e a apagar em papeis de rabula a sua personalidade extraordinaria;
Antônio Pedro ambicionou um dia interpretar sobre o tablado, aquele tipo estranho de facínora, para a creação do qual ia de molde a sua figura lívida e contorcida.
Chegou a pensar em mim para lhe verter em prosa a tragédia, quando afinal já a sua dispepsia 'começava de o ir acabrunhando; e invalidado para a scena, não se pensou.mais no Luiz XI.
Ha quatro mezes correu que João Rosa estudava a personagem, nos livros que mais impressionativamente a descreviam; Maitre Cornelias de Balzac, Quintino Durward de Walter Scott, e numas interminaveis Memorias de Cominos, com retratos em cobre, que só de as folhear tremia uma pessoa.
Para lhes falar com franqueza, eu pouco dava pelo exito artistico de tamanho esforço.
Um actor acostumado em Sardou e Dumas filho, a reproduzir os elegantes tipos da comédia contemporânea de costumes, que espirram paradoxos por todos os monossilabos, só dificilmente amoldaria este feitio particular do seu temperamento, á realização 28 FIALHO D'ALME1DA
dum tipo tão diametralmente fora do genero que desde muito havia preferido.
Pois enganei-me. E redondamente! E
enganamo-nos todos, familiares e estranhos, homens de letras e publico; e logo no segundo acto, a scena do trono, quando Rhetel diz a mensagem do duque de Borgonha, fez comprehender que se não tratava apenas duma tentativa ambiciosa, dum mero devaneio dramatico, senão duma real e esplendida transfiguração artística, que o comediante fortalecera no estudo, investigando com um criterio vivo, sagacissimo, todos os meandros do caracter que havia em mira restaurar, gesto por gesto, scena por scena. O leitor vae-nos dizer que isto é lisonja, tão acostumado já anda a que o iludamos louvaminheiros neutros da imprensa Porém desta vez o caso é sério, e cumpre fazer justiça ao talento dum homem, que arvorando em qualidades todos os seus defeitos, dum só jacto esculpiu uma figura grande e bem tratada, a qual diverge das copias estrangeiras, e toda ela fumega duma poderosa vida dramatica, perante a qual se esquece o actor para só vêr a personagem, e dentro de cuja vehemencia de novo brilha, na alma do filho, a luminosissima e radiosa scentelha do genio do pae.
O Pantano Uma posição dificil.
Temos de expor aqui a nossa opinião sobre o valor desta ultima producção do nosso simpatico amigo D. João da Câmara.
Devemos fazel-o com a sinceridade que costumamos pôr nestas criticas, e que tanto satisfaz á nossa consciencia e a nossa indole.
D. João da Câmara é um dos nossos primeiros escritores dramaticos. As suas peças teem conquistado sempre o aplauso geral. O seu nome marca já uma reputação literaria. Não é qualquer poeta que escreve os excelentes dramas historicos D. Afonso W e Alcacer-Kíbir;
não é qualquer prosador que escreve a delicadissima comedia Os Velhos. O seu talento está provado, as suas aptidões teatraes estão confirmadas.
E por isso embaraçosa a nossa situação neste momento.
Não gostamos do Pantano, drama em 4 actos, original de D. João da Câmara, e que 30 30 FIALHO D’ALMEIDA
se representou, pela primeira vez, sabado no teatro de D. Maria.
Na nossa opinião o distinto escritor ou se enganou com os nossos actores e com o nosso publico, ou se iludiu com a idéa e a fôrma da sua nova peça.
Por qualquer destes modos, ou por ambos, se explica o insucesso relativo do Pantano, A verdade é que a impressão geral do publico na primeira audição não foi a que esperava dum autor de tantas simpatias e de tanto credito.
Teria outro resultado, se os nossos actores dispuzessem de mais recursos e diversa orientação artistica? A insuficiencia do desempenho comprometeria o exito da peça?
É possivel.
A pouca atenção ou menos ilustração do nosso publico contribuiu egualmente para o mesmo fim?
É possivel.
Mas nós não temos por cá melhores actores nem melhor publico; e tudo quanto seja irrepresentavel por aqueles e incomprehendido por este, não vale a pena exhibir.
Ora é o caso: o publico não percebeu a peça e os actores não a souberam representar.
ACTORES E AUTORES 31 Não desviemos, porém, responsabilidades.
O publico não percebeu, porque a peça sae completamente dos moldes classicos das obras de teatro, adianta-se para uns ideaes de arte, que não conseguiram ainda a consagração geral do mundo culto; porque não sabe classifical-a;
porque aceita com repugnância as suas personagens dominantes, cujas evoluções jdiosincraticas ou patologicas não sabe explicar, porque prefere a acção nitida e comovente dum romance, explicada em frase e gesto apropriado, á sugestão que lhe possa dar a contemplação dum quadro ou a irradiação dum meio social;
porque se fatiga com a fadiga dos actores, esmagados, durante 3 ou 4 actos, debaixo do peso duma idéa cruciante, aflitiva, doentia;
porque lhe desafina aquela toada, por vezes insistente e monotona, mais artificiosa que natural, com que o autor pretende aprimorar ou revigorar a intenção de algumas frases; porque finalmente a peça não o impressiona nem pelo interesse e sentimentalidade da acção nem pela fulguração das personagens.
Eis, em esboço, os principaes motivos por que o nosso publico não gostou da peça.
E se muitos dos espectadores, ou mais atreitos a estas divagações netelibatas, ou mais 32 FIALHO D'ALMEIDA
sugestionados pela autoridade do escriptor e pelas qualidades do homem, não se furtavam a elogios e aplausos sinceros e calorosos, não se desluzia a sensação geral do desgosto.
Esta é a verdade.
E nestas condições era difícil pedir aos interpretes que por si vencessem tantos escolhos.
Estamos certos de que outros artistas de mais folego e pulso e mais experimentados nos grandes lances da velha tragedia aproveitariam as passagens mais literarias e mais quentes para exposição de habilidades profissionaes.
Era um serviço para a arte muito para louvar nos actores e muito para agradecer ao autor.
Assim em bem pouco augmentou o lustre da scena portuguesa, senão que ainda revelou deficiencias, que melhor fora se conservassem escondidas.
D. João da Câmara, que escreveu já excelentes peças em verso e prosa, quiz impor a sua incontestável autoridade artistica patrocinando com o seu nome o estudo dessa nova orientação da literatura dramatica.
Não o censuramos por isso.
Estava no seu direito e poucos seriam mais competentes para essa tentativa.
ACTORES E AUTORES 33 Não arriscava a sua reputação, que está bem firmada, dava-nos mais uma demonstração da esmerada cultura do seu espirito e permitia-nos também saborear esses acepipes temperados com as extravagantes receitas culinarias dos modernos Vateis.
Não sabemos se taes comidas se digerem com proveito nos paizes da sua origem; por cá, nos paizes meridionaes, fazem eolicas, e estamos que será custosa a aclimação.
Entretanto, repetimos, não censuramos, até louvamos, o esforço e dedicação de D. João da Câmara, que, melhor do que nós, previa o insucesso do seu novo trabalho, o que não o esmoreceu, proseguindo corajosamente no intento de nos oferecer uma variedade de confecção dramática, que ainda não conheciamos em linguagem portuguesa.
Se na aspiração insaciável do seu espirito para as mais arrojadas evoluções da arte, o mimoso poeta não trilhou agora o caminho mais seguro para lisongear o gosto do nosso publico, deixou ainda assim, neste trabalho, uma afirmação poderosa de superiores aptidões literarias, porque o Pantano será um drama interior nas suas relações estéticas com o nosso meio social e artístico, mas afigura-se-nos uma obra literaria de superior merecimento.
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Do norte chegaram até nós, em romaria penosa, os ecos duma nova escola teatral.
Era preciso imprimir feição diversa na literatura dramatica.
A força impulsiva, que irresistivelmente atrahe o homem para o desconhecido, para a sensação empolgante da novidade, convidou os poetas mais excêntricos ou mais ousados para estas divagações da arte. É nesta lucta incessante que assenta o progredimento de todas as manifestações de vitalidade social.
Se algumas vezes ficam murchos e estereis os loiros destas batalhas; se outras chega a desnortear-se o espirito publico, lançando-o em conflitos cruentos com o bom senso e com o equilíbrio sensacional; contam-se também, por muitos, os sucessos surprehendentes, que avigoram e criam novos teoremas que constituem seguros e brilhantes estadios na constante evolução das sociedades modernas.
Estaremos em presença dum destes fenomenos psicologicos, que precisam derruir muito para se afeiçoarem ao sentimento geral? Talvez.
Mas cumpre medir, se não é mais valiosa e mais util a parte derruida.
ACTORES E AUTORES 35 É o que, por em quanto, se nos afigura, digamol-o com franqueza.
D. João da Câmara estudou alguns dramaturgos modernos, espiritos pervertidos ou iluminados, que sofregamente anceiam por trazer a lume os pesadelos, que lhes agitam o somno, e sonhou também.
Pensou em adiantar-se a Maeterlink, procurando realisar por figuração viva o que o poeta flamengo escrevera para marionettes, tendo o cuidado de suavisar as arestas mais escabrosas.
O seu trabalho parece antes a exhibição duma enfermaria de neuroticos do que um drama propriamente dito. Esboçando apenas a parte romantica em poucas, scenas do 1.° e 4.°
actos, põe o maior cuidado em salientar e desenvolver as crises histericas, que assediam as principaes personagens da peça.
O contagio por imitação, que é uma verdade patológica, transmite a histeria dum velho criado a uma creança, que é sobrinha do amo, a quem egualmente contagia; este contagia a esposa, uma mundana devassa, cinica e cruel, que se apossara do seu nome e fortuna para se vender, assim engrandecida, a um pedante ambicioso, que tanto exige para ser seu amante;
e no meio de tudo isto 36 FIALHO D'ALMEIDA
ha uma paralitica somnambula, duas neuroses, que parecem repugnantes entre si, se estes contrastes não fossem permitidos, e até explorados, na complexa variedade destas afecções.
Não diremos que o escritor abusou do valor tecnico da palavra histeria. Nos bons tempos de Hufeland, Grizolle, Niemayer e outros, a histeria tinha um significado restricto, hoje qualquer patife é um histérico; não é preciso consultar tratados de semiologia para se formular o diagnostico deste verbo; a histeria serve para tudo, desde as mais fundas perversões cerebraes até ao mais insignificante desequilibrio sentimental.
Mas confiou, mais do que devia, numa tese patologica, que é sempre um perigo no teatro.
Este quadro triste, doentio, foi reforçado com todos os recursos da mise-en-scène: — um palacio enegrecido pelos seculos e roido pelos parasitas, talhado em longos e lugubres corredores, em salas espaçosas, vasias de luz e conforto, construido no seio agreste duma Charneca, onde as tempestades, nas noites compridas e negras- do inverno, produzem silvos pavorosos, os cães uivam e corujas esvoaçam em arremetidas sinistras contra os ACTORES E AUTORES 37 vidros pardacentos das janelas; e dentro o isolamento, a doença e o desgosto cruciante de crimes e desgraças, que enlutam e acabrunham a honesta e desolada família, que ali se abriga e ali sofre.
E isto constitue dois actos pesados, monotonos, que não conseguem interessar o publico, como se esperava. O efeito sugestivo perdeu-se, e dificilmente se produzirá nas condições dos nossos meios, artistico e social, mal preparados e mal dispostos, por educação, por indole e temperamento, para taes inovações.
Não conhecíamos absolutamente nada do Pantano, escrevemos sobre a primeira e unica impressão deste trabalho; é possivel que a nossa sinceridade seja, por isso, atraiçoada num ou noutro ponto, o que nos apressaremos a corrigir em artigo, que outra audição provoque.
As considerações, que deixamos expostas, são as que principalmente nos sugeriu a primeira representação do novo drama de D.
João da Câmara. Poderíamos multiplical-as e desenvolvel-as que o assunto presta-se a largos comentários; mas vae longo este artigo e faltanos espaço, e parece-nos ter dito o bastante para definir, clara e francamente, a 38 FIALHO D'ALMEIDA
nossa opinião sobre o ultimo trabalho do nosso amigo e distinto escritor.
Do desempenho pouco diremos.
O 1.° acto, escrito por fora das novas prevenções literárias, foi muito bem representado, destacando-se Lucinda Simões na delineação de algumas scenas e Augusto Rosa na dição quente e bem graduada dos seus monologos. Segue-se nos outros actos a exhibiçâo de nevroses de variadas feições; como trabalho de gimnastica teatral, permita-se-nos a frase, pareceu-nos, em muitos pontos e nalguns artistas, deficiente e pouco nítido; como descripção sintomática, é melhor consultar o dr.
Bombarda.
Para terminar diremos, que alguns espectadores patearam no final da peça.
Estavam no seu direito. Mas não o deviam fazer, porque o Pantano pode não agradar, e a nós também não agradou, sem deixar, por isso de ser um trabalho distinto, como realmente é, e firmado por um nome, que se impõe ao respeito de todos os que prezam as letras patrias.
(12 de Novembro de 1894).
Santa Umbelina No teatro de D. Maria n deu-se a 14 de Março corrente, a primeira representação d'uma peça em tres actos, sem musica, letra do nosso querido amigo Schwalbach. A sala estava cheia de litteratos, madamas, janotas e outros resquicios do cosmos vadio que é costume apellar de boa sociedade, e foi uma noite inolvidavel nos rastos da elegancia e da parvoice. O autor da peça, litterato brioso e cavalheiro mui caro á roda bem vestida, teve orações que marcaram phase: duplamente querido pela humorada alacre que o infantilisa ao ponto de ser por toda a parte o enfant gaté, e pela requintada arte de fazer vida entre o pessoal que o acaso poz ao balcão das graças officiaes, tudo foi pouco para exprimir o quanto é estimado na roda dos que manusêam as lettras, as galardoam, e as protestam.
D'uma dispersão d'espirito ao alcance de todas as intelligencias, tem fama de hilariar 40 FIALHO D'ALMEIDA
suas comedias do Gymnasio como só antes d'elle Gervasio Lobato havia o dom; e quando por D. Maria encavalga o pegaso do drama, suas psychologias difficeis boqueabrem de puro pasmo os dramaturgos da serie extatica, que em propendendo a admirar são muito mais importunes que ataboes. Quando depois d'uma d'aquel!as symphonias do Gaspar, que tão catitamente dispõem o ouvido para a a percepção das finuras dramáticas a seguir, se ergueu o panno sobre a scenographia de casa pobre que serve de papel de embrulho a todos os actos, o golpe de vista da sala, platêa e camarotes, era quanto se possa cuidar d'artistico e estheseante. Todos os Agua-Rozadas da critica nos seus poisos historicos, de sobrecasaca e gravatas em colchão de arame, a argúcia analytica a lhes pouzar da faceira cerce de lanugens; os dramaturgos, aziuma-dos de zelos, trocando entre si pequenos signaes ironicos (com viso á Tarde) de colligados; damas sebastianistas, com modas da Rua do Ouro, attinentes ao espirito da peça, debruçando da amura das frisas, colos de Evas cretinas, e tendo os maridos de guarda á baforagem os ultimos arrotos do jantar; a politica, especialisada em esta distas sem ACTORES E AUTORES 41 domicilio certo nas lettras, e tão alheios ás scintillancias da arte, como aos processos lúcidos de governo; e finalmente, fazendo fundo, multidão, estados geraes, a mercearia do publico pagante, que obedece ás correntes, e está á espera do primeiro signal para explodir. O primeiro acto da Santa (Jmbelina pareceu a todos uma pequena joia de sirn-pleza e encanto litterario dignos de renome: a Tarde a propósito d'elle cita Corneille (?) e Dumas filho; o litterario Correio da Manhã gaba-lhe o primor da linguagem, a finura do espirito, e a superior architectura d'uma obra. perfeita; o Diário Ilustrado aponta que nos moldes geraes são ibsenianos, é claro — e pois que estes periodicos são o vade-mecum das sufficiencias litterarias do publico, o melhor é deixal-os espatinar no margio d'onde não teem pernas para sahir.
O primeiro acto, os jornaes contaram a peça, e não valerá a pena repetir a fastidiosa fabula, já dita. Ha uma ceia de noite de Natal, para festejar os annos do dono da casa, um pobre empregado que alberga um vadio d'um dramaturgo, mal-a a manceba respectiva, menina que esteve com outros; o empregado tem nnia filha educada em conventos, e que vive longe dos pães, como dama de companhia 42 FIALHO D' ALMEIDA
de certa fidalga provincial. O dramaturgo, representado como gênio incomprehendido em gravidez de peça theatral, accumula as funcções de ser uma besta, com as de souteneur da manceba, e immoralão sem escrúpulos nenhunsd’onde provem que descompõe a casa que o recebe, recusa emprego, allegando querer trabalhar sem peias burocraticas, vive d'expedientes, e nem sequer guarda fidelidade á rapariga que fez mãe, pois apenas a filha dos hospedeiros lhe apparece, começa de catrapiscal-a, sob pretextos de ser ella a heroina da peça que sonhou. A sala apreciou immenso a confecção d'este pastel, que foi classificado de psychologico, á falia de termo condizente á inteira desfaçatez banal do substracto; iodo o dialogo se me afigurou lingua de trapos, e pelo que respeita aos conceitos, peço parenthesis para botar algumas pequenas citações.
«O coração, diz o tal dramaturgo de talento, protagonista da peça, ha-de ser eternamente o que deve ser. É o unico orgão que funcciona direito..." Houve aqui manifestamente erro de viscera, mas é natural que a substituição fosse pedida pela empreza.
«Phrases só teem palavras, e as palavras em geral dizem menos que o silencio.» É de ACTORES E AUTORES 43 pradhoimne, mas inda assim para lastimar alie os autores, a bem de todos, nao pensem sempre como os seus heroes.
Luiza, a amante do homem de genio, para um velhacaz que vem reatar com ella relações do tempo de hetaira «sabe porque amei e amo loucamente Carlos? Porque me namorou.» Temos pois o namoro causa determinante da regeneração pelo amor.
Como o publicista Ramalho Ortigão diz precisamente nas Farpas, o contrario, seria bom debaterem' os dois na Academia, problema tão capcioso, enviando os provaras pelo correio a quem esportule o preço da estampilha.
»Então não ha exemplos de peccadoras que se teem regenerado a chá com torradas ?
Pode muito bem dar-se o inverso... (que rico emprego do paradoxo!) O que é verdade é que nós, homens, não percebemos nada d'esses processos cTagricultura espiritual que até fazem com que as malaguetas appareçam cobertas de flor de larangeira...«
O leitor que me diz a esta pequena tirada imaginosa, da agricultura espiritual e das malaguetas cobertas de flores de larangeira?
Puro symbolismo: o pantano alastrou.
Agora philosophia: «O estudo caracterisa o individuo; a poesia e a paixão são ainda 44 FIALHO D'ALMEIDA
a grande força peninsular. No dia em que a poesia falle e a paixão se apague, cavem sete palmos de terra e sepultem-nos depressa, porque estaremos mortos.»
Isto é Chagas puro, com infecção de cretinismo, e muito para o caso a Tarde aponta ser «Schwalbach talvez dos nossos dramaturgos aquelle que com mais precisão e felicidade faz o que quer fazer, sendo a sua arte reflectida, segura dos meios e processos que emprega, e baseando-se numa sciencia profunda do métier.» A passagem sobre a crença me pareceu também notabilissima.
«Ha nada mais benéfico! Se o amor por uma mulher nos dá parte da felicidade, a crença completa-a (ver á dedução d'estes conceitos). A arte attrae-nos, mas se acreditamos nella com firmeza, cria-nos uma nova vida. E na religião... pois conhece-se nada que mais seduza do que a morte, quando o espirito é alimentado pela verdadeira crença?
Oh meus amigos! em geral não se é criminoso, mas brutalmente criminoso, senão por dois motivos: ou por medo, ou por crença.
Eis o que se chama não dizer coisa com coisa, e o que também levanta ao pedestal d'obra prima litteraria tudo quanto o rei da madureza improvisa em se tachando. É ine-
ACTORES E AUTORES 45 dito que o impudor dos jornaes descambe a exaltar tão vergonhosas baboseiras, e que a intelligencia dos homens de lettras explore a bestíficaçâo geral sem acatamento devido á muito nobre arte d'escrever.
O segundo acto é posto pelos jornaes e comediografos da escola do autor, em tal altura de preito, que eu antes de perder tempo a ouvil-o, julguei chegada a hora de ter surgido emfim no teatro nacional, um Shakespeare.
O primeiro acto é encantador, diz o Correio da Manhã, traçado por mão de mestre, cheio de vida e de interesse, mas o segundo sobreleva-o.
Não vemos ha muito uma pagina tão simples e tão sentida, uma scena ao mesmo tempo tão viva e tão emocionante, etc. — O Intimo, acrescenta o Dia, fez uma reputação; a Santa Umbelina confirmou-a... E por qui fora, arma provando que depois do parvo maior que sonhar se possa, ha sempre outro a excedel-o em zurros e pinotes. Carlos, o dramaturgo araancebado com Luiza, está cada vez mais bajojo por Maria, a doutora que veio a ferias para casa dos 46 FIALHO D'ALMEIDA
pães, duas semanas. Luiza é a carne, Marta é o espirito. A carne vem já mordida por outros; o espirito é urna pedanteria de mestra regia, banalisando as conversas com pobres e reles coisas d’almanach. Este segundo acto da peça confirma duas coisas, prenunciadas já no introito d'ella—primeira, Carlos é um idiota sem valor litterario, sem espírito, e de uma indigencia que o apulhastra até aos ultimos galgões do desprezivel — segunda, o autor da Santa Umbelina não sabe positivamente que destino dar aos seus fantoches, e a obra, começada ao acaso, segue como o prestito do João de Deus, esquecido do ponto principal, e cada um dando vivas a si mesmo. Como litteratura, vou a affirmar que as sensaborias e disparates sobrelevem talvez o numero das palavras, pois ha palavrinha representativa de quatro asneiras; e quanto ás deduções raciocinaes do dialogo, ás opiniões, comparações e conceitos filosoficos, só uma vez no Alberto Braga me aconteceu pascer conduto para um carcachar assim desopilante.
«MARIA
O trabalho artistico deve ser uma manifestação tão grande, que todos a comprehendam e todos a sintam, ACTORES E AUTORES 47 CARLOS
Se todos comprehendem o sol, raros comprehen-era o nevoeiro.
MARIA
Comprehende-o o norte.
CARLOS
Reproducçâo do meio.
MARIA
Exacto. Uma obra sahe triste, se tudo quanto rodeia o individuo é triste, vem alegre, e da mesma forma certa ou deshonesta.
CARLOS
Exacto, exacto. Foi o christianismo que dêu a arte romantica, como o oriente dera a arte simbolica.
MARIA
Reproducções do meio».
Por mais que se oiça, esta chateza não se acredita provenha d'um rapaz com fama d'atilado. A debilidade de quem assim encadeia dislates, como se estivesse a deduzir leis d'arte transcendentes, não é alanhadora só 48 FIALHO D'ALMEIDA
pelos vazios fisiologicos de cabeça, como também stygrnatisa não sei que resvalo organico propendente ao amolecimento do encefalo, e uma incapacidade de guiar a atenção atravez dos juizos mais elementares. O
nosso querido Schwalbach necessita a par d'isto, de reíundir por completo a sua educação literaria, e de se afazer á idéia de que o escriptor, quando mesmo por limite de faculdades não possa crear e dizer coisas novas, haverá que pelo menos saber pôr lucidamente as coisas velhas, esquivando-se de fazer rir os que pretende convencer. O
aspecto da indigencia afectando opulencia, em arrazoados de maluquiuho, a dispersão mental enfileirando umas traz d'outras;
coisas mal lidas, e que não guardam entre si a menor relação de lgica ou parentesco, sobre não orgulhar maiormente a vaidade d'um homem superior, tem o mau sèstro de expor inutilmente aos desdens da galeria, e a invalidar inteligencias que, melhor guiadas, alguma vez poderiam vir a brilhar de brilho próprio. Ora toda a Santa Umbelina está cheia de verborragias cretinas, artilhando em anotações de psicologia pessoal, que pelo grandiloquo alpomesco foram tomadas pelos inocentes da critica em guiza de singulares ACTORES E AUTORES 49 clareações. O leitor, que é um namorista insigne de pequenas, poder-me-ha dizer por exemplo o que seja, a paixão? Reflita um pouco e veja se comprehende. «Imagine-se um sceptico a ter fé, um crente a desesperar, um altivo de joelhos e um mendigo num trono. Confundam-se num unico raciocinio, e ter-se-ha uma leve idéia da paixão.»
O leitor, depois d'isto, tem vontade d'ir ás Necessidades; leve o papel de Carlos, leve, que em toda a Lusitania antiga e moderna não ha exemplo d'um deladoiro d'asneiras mais estúpido! A gente quer agarrar pelos cabellos o principio intelligente, a porção de bôa fé que em todas as obras d'espirito, boas ou más, reintegram o autor na honestidade da sua profissão: sondar o fio racional que segundo os críticos, alevanta Schwalbach no pórtico dos novelistas psicologos; mas baldado empenho!
quanto mais se insiste no exame, tanto mais tudo aquillo parece uma mistificação grosseira e uma falta d'espirito deploravel.
Encolhidos os hombros pois, resignadamente, a mais este suicidio, e consignada a 50 FIALHO D'ALMEIDA
urgencia de punir os reincidentes no crime litterario, visto como a dramaturgia da terra nem pelo proteccionismo escandaloso, logra vegetar, diremos sobre o desempenho da Umbelina que não pode haver creações em obras d'esta traça, nem figuras d'aprumo em diálogos que mal deixam guardar aos actores, linhas tremidas de fantoches. Chega a ser humilhante para artistas de força o galvanizar á ribalta tão deprimentes porcarias, e por christianissima tenho a paciência da pobre gente qua o officio força a falazar aravias vindas já dos autores, papagueadas. Por conseguinte haja bodo, e digamos que andaram todos como uns anjos, resalvo feito á snr.a Damasceno sobre o ter-se-Ihe acabado ha muito o prazo para a sua galeria de meninas.
Em balde a desinvoltura da actriz cuida de, com seus rebiques sabios, invalidar escarneos da velhice — pregueado de rosto, gordura deformante de cinta e costas, voz pierrotina, tudo carnavalescamente reclama outros destinos que não as transfigurações do amor virginal em canduras leitosas de vinte annos.
Pasmos de tanta prolongação de juventude, perguntam os espectadores por quantos centenarios ainda continuará o talento da ACTORES E AUTORES 51 sr, a Damasceno a se comprazer naquellas inofensivas intrujices, e por que hão-de as actrizes de D. Maria andar trocadas, fazendo as netas d'avós, e vice-versa, quando todas no seu logar poderiam ser bem recebidas.
As aptidões da sr.a Damasceno não são coisa que se negue ou deite fora, e muito tempo ainda o seu logar está marcado em scena, e se registará com sympathia o cuidadoso amor que o theatro lhe mereceu.
Nos centros de comedia encontraria a actriz vasto proscênio para as suas exhibiçòes de dama ironica; desaproveitar trabalho em bonequinhas ridiculas, julgo obsessão contraria não só á arte, como também ao natural orgulho d'uma mulher intelligente.
(Revista Theatral — outubro de 1895).
O Judeu Polaco Drama em 3 actos e 5 quadros, d’Erckmanu Chatrian, vertido pelo sr. João Sofler A peça Judeu Polaco, data de 1869, a quando a primeira vez representada no Théatre Clany, fazendo o protagonista um certo Talien, que me nâo consta filhasse na creação, coroas de Nero. Retomada por Got na Comedie Française para exhição d'um ponto de vista particular do actor quanto á natureza dupla e contrasta da tetrica personagem, nem por isso logrou viver no cartaz de vida própria, ou reanimar sequer c'o sangue rutilo d'um genio, suas enferrujadas e coxas engre-
(1) PERSONAGENS: = Maíhias: Brazão. — Christian:
Carlos d'Oliveira. — Walter: Augusto Mello. — Heinrích:
Augusto Antunes. — O Judeu: A. Santos. — O Presidente:
Santos. — O magnetisador: Cabral. — O doutor: Bayard.
— Tabellião: O'Sullivan. — Nickel: Monteiro. — Escrivão:
Lagos. — Annette: Laura Cruz. — Catharina : C. Falco.
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nagens. Teem-na salvo do lixo, estas ardentes ancias de destaque vindas aos comediantes illustres que se querem fazer maiores diminuindo nas peças a estatura dos seus companheiros de trabalho —
truccorrente entre as estrellas dramaticas que viajam, e que de resto já conhecemos de Sarah Bernhardt, Novelli, Rossi, e outras mais.
Considerada á luz da esthetica scenica d'agora, o Judeu Polaco não passa d'um soliloquio fixo lardeado de dialogos monocordios conduzindo ao desfecho com a obsessão estupida de quem delibera topal-o sem mór dispendio de provas e argumentos.
Um tal Mathias, estalajadeiro de não sei que recanto agreste da Alsacia, pelitrapo cheio de dividas, assassina de noite um negociante de cereaes, judeu polaco desconhecido no sitio, e cujo dinheiro vae enriquecer o assassino, tornando-o proprietario, burgomestre e homem de fama honrada em algumas léguas de redor. A coisa começa numa noite de Natal (neva e venteja), quinze annos depois do crime commettido. Mathias tem uma filha, promettida do sargento da gendarmeria, e vive cercado d'amigos e d'um pessoal de lavoira e moagem, participando da sua forte actividade. Chega de fóra, e aquen- ACTORES E AUTORES 55 tado ao braseiro, já de roda da ceia, trocando copos com alguns velhos freguezes da baiuca, conta ter visto na cidadesita onde fora ao negocio, certo caso de bruxaria, mui de vêr:
qual o d'um magico magnetisador, adormecendo gente só com fitar nella as pupillas, e espargir-lhe por cima fluidos malditos tirados de si mesmo. Casualmente, a caturreira embarbela-se co'a recordação do judeu polaco assassinado, e um dos presentes emite a probabilidade do mediam poder adivinhar até o pensamento das pessoas, inda o das mais reservadas e manhosas. E neste ponto que se ouve dentro, sobre as poldras da estrada, a campainha do cavallo d'alguem que chega, ou vae passando. O som traz a Mathias a idéia d'um outro, semelhante, que a certas horas (como se afez a abusar do vinho branco) lhe tintinabuía nos ouvidos, des'que o judeu polaco foi morto e ficou no sitio o espectro d'esse cadáver que ninguém jamais poude encontrar. D'estas tres impressões sem relação (judeu polaco, o mágico adivinhando o pensamento, e a esquila no-eturna do viajor que vae) redunda sobre o espirito de Mathias uma especie d'angustia evocativa, de potencia phantasmatica, sob o domínio das quaes a porta se abre, entraum 56 FIALHO D'ALMEIDA
judeu de caftan verde bordado, gorro de pelles, barba e cabeilos longos, que tira um cinto de dinheiro sobre a mêza e diz na sala. as palavras do outro, assassinado — isto é, «a paz seja comvosco, a neve é profunda, o caminho difficil, mettam na cavailariça o meu cavallo...« e a resposta dos que estão, reproduzida por a dos d'essa noite de natal de ha quinze annos. Todos os judeus polacos se parecem, certo; mas Mathias .vendo entrar aquelle, ergue de golpe o corpanzil convulso, e os braços desesperados, dá um grito terri-fico, e cahe para traz no meio do pavor dos seus, em quanto a ventania silva, e as mós rilham, zombeteiras, como sabendo da historia o quer que seja.
Assim acaba o primeiro acto, e cumpre dizer que a apparição d'este judeu polaco, que nunca mais torna a ser visto, sobrevindo na crise d'emoção determinada no espectador pela conversa sobre o crime, sobre o magnetisador, os vidros quebrados pelo vento e a campainha do macho nas poldras da vereda, fazem da personagem antes a allucinação de Mathias, materialisada pelo remorso e a tara alcoólica, do que propriamente uma figura de carne e osso, real no elenco. E eis o que ella é, uma telepatisação na fabula do ACTORES E AUTORES 57 drama, evocada sem o menor sobrenatural ou trágico occultista, por um escriptor ecomanco de febre gestante, um velho carpideiro de narrativas lacrimosas, a quem de certo alguém contou o assumpto, e que na sua inconsciencia molíe o dialogou com vocabularios de porteiro, e meios dramatisantes de dramaturgo chinfrim de boulevard. Para um escriptor de meios modestos e literatura corriqueira, o drama devia acabar neste momento: o espectador adivinhando em Mathias o assassino do judeu polaco, e deixando o gendarme catrapiscar a rapariga, com margem á supposição dos dois casarem e terem muitos filhos. Mas por fatalidade o assumpto do Judeu Polaco, que é com certeza real, acontecido e propalado pela lenda, tem depois deste episodio dramatico do primeiro acto, uma estranha prolongação psychologica, e se os Erckmann-Chatrian já pareceram debeis na conjuncção catastrophica deste trecho, d'aqui por deante a fraqueza ingenita declivará de anemia, a ciphose, resvalando o drama, de banal conto, a espécie d'almorreima romanesca. De feito, o segundo e terceiro actos pretendem desenrolar o estádio moral de Mathias rico e seguro da impunidade do seu crime, e só umas vezes por outras perseguido por 58 FIALHO D'ALMEIDA
instantaneos vislumbres de remorso — remorso que não vem do arrependimento, mas do habito de beber que lhe plaquêa certos districtos do cerebro e da medulla, prevertendo parcialmente a funcção neuropensante, donde a divisão da personalidade que lhe faz a existencia alternativamente tranquilía e presen-tida, as allucinações d'ouvido, tão ridiculamente dramatisadas feio tintinabular da campainha que toca por todo o drama, como numa casa de espanholas, e finalmente os pezadellos catalepticos, de origem cardiaca, onde a scena do crime se restaura, e lhe dão no final a morte por syncope, congestão cephalica ou qualquer coisa assim, circulatória. No segundo acto, por exemplo, Mathias, já restaurado do deliquio, entretem-se ainda com o medico e a mulher sobre as causas do accidente, e que se precisa a feição phantasmal do judeu polaco apparecido no primeiro, a ponto de, por sua analogia estreita co'outro, se confundir com elle no espirito do assassino. «Ça m'a produit l'eríet d'un revenant!» diz elle no texto original. Mathias tem grande pressa de fazer assignar as escripturas do casorio; pode morrer, os moços amam-se — toda a gente da aldeia aguarda a cerimonia; não vale pois fatigar com mais ACTORES E AUTORES 59 delongas a espectativa, e toca a cortar a amarra da goleta, onde Annette e Christian aguardam a hora de os deixarem partir rara Cythera! Esse'dia é Domingo, tocam os sinos para a missa, e Heinrich e Walter os beberrões alegres do primeiro acto, a sr.a Mathias e Annette, sahem para assistir á santa cerimonia—a rapariga um pouco triste, por o namorado nào vir á hora de as acompanhar com seu uniforme de gala até á igreja. Mathias, sósinho em casa, ouve os bons dias da aldeia passando na rua em trajos domingueiros «bons dias, senhor burgomestre, senhor burgomestre, viva!": mas o seu humor é brusco e lobrego, a imaginação retrospectisase-lhe — Baruch, o judeu morto, ronda-lhe as encruzilhadas da memoria onde a idéa das nupcias d'Annette põe sua ronda de festa e de banquete. Esse fantasma tem sede de desforço, e adeja e vem de rastros, exasperado co'a proximidade d'uma hora risonha na vida de Mathias. Janella fechada, cortina corrida, abre o armário para contar o dote d'Annette, uns trinta mil francos, que o gendarme guardará para os refestelos e commodos do lar. Safa, que lição terrivel levaste, amigo! Se por acaso a scena se prolonga, lá se descobria tudo, ao fim de tanto tempo.
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Por coincidencia, são quasi sempre parvos os ouvintes d'estas coisas...; e alorpice d'elle também, em se impressionar c'os judeus que entram e sahem, e magnetisadores que tiram revelações das gentes catalepticas!—Vae contando do sacco, o oiro, sobre a meza;
escudos de lei, vivos como olhos, para Christian, seu genro, que é finorio, e convém ter na familia, não vá elle um dia suspeitar...
Já se enfileiram na mesa as pilhas fuivas, oiro telinta — oiro magnífico, que o cinturão do polaco havia a plenas ondas... Algumas peças mais velhas, vae-l'as guardando no bolso, á precaução. A campainha telint?.... Nickel, o moço das mós...—Se entrou alguém na azenha? —Nada, ninguém. — É que julguei ouvir uma campainha d'alimaria. As allucinações, inferno! E da sua convulsa cólera balam repellões de mau humor.
Nickel, por andar a ler historias de crimes, vae aos empurrões casa pra fora. — Cuidado, Mathias, cuidado! De noite, nada mais natural que sonhares alto: tua mulher pode ir dizer — a forca lá está... Farás - então na mansarda a tua alcova de homem só, que as paredes, graças a Deus, não são como as mulheres. Batem de fora; o bello Christian, de fato rico.
As escripturas estão prestes, e o dote assim;
ACTORES E AUTORES 61 mal venha o notado, e da missa a noiva, e os amigos de casa, assignarão jovialmente a papelada. Mas porque veiu elle tão tarde? — A
historia do judeu fizera-lhe macacos, é singular: e amanheceu-lhe em plena leitura de processos...
Boas horas para descobrir o assassino de Baruch!
Parece peta, sr. Mathias, a cegueira simplória dos juizes... Diabo! gendarmeria, policia, tribunal, opinião, tudo em procuras, e nem um traço do melro a descoberto! Ao tempo havia por aqui fornos de cal. Como foi que a ninguém occorreu pesquizar em todos elles? — Toma tento, rapaz, açode o outro, que um d'esses taes fornos era meu.
No terceiro acto assistimos ao depois do banquete nupcial d'Annette e Christian. O vinho velho e a digestão, rebrilham nos olhares, nos gestos vivos, no fallazar contente dos convivas.
Os homens, a meia camoeca quasi todos, após suas bençãos aos noivos, cada qual tomando a companheira, debanda para a soneca reparadora da cabana, e a scena esvasia pouco a pouco (é na mansarda da casa, transfeita pelo cauteloso Mathias, em sua alcova), até que o nosso homem fica só. Toca a despir, Mathias, com esse fato de gala, os sobresaltos de tantos anos de disfarces. O fu- 62 FIALHO D'ALMEIDA
juro promette mais bonanças. És finalmente primo da justiça, e seu afilhado pois, podes dormir. Sim, o destino cynico cobre de virtuosissimos dons teu negro crime; tua filha, mulher d'um moço justo, a riqueza engurgitando d'oiro as tuas arcas, e o tempo a apagar na neve d'essa noite de Natal, teus passos de assassino... O coro dos beberrões ainda, fora:
Buvons à la fillette que nous aunons, Et pais à tons ceux, liêlas! que nous quíttons, Buvons, amis, buvons! Cest le refrain des compagnons.
Bella noite a levar d'um somno. Podes-te gabar, Mathias, de haver guiado certo os teus negócios. E aqui ninguém te ouvirá sonhar, ladrão, toca a dormir! Mas então, do somno plumbieo do vinho, vapora lentamente um pesadello pavoroso: vê os juizes, a linha dos gendarmes, o magnetisador a enredal-o em fluidos de bruxêdo... Cerra as maxillas com uma força de damnado; não, não dirá! —
quando uma espécie de gaza vem correndo lentamente, entre esta vontade salvadora que lucta por não dizer, e uma outra vis mysteriosa, inconsciente, que o médium manuseia, e que elle bem sente, sem no saber, que o ACTORES E AUTORES 63 está trahindo. Cada um d'esses minutos de tribunal lhe avoluma as culpas d'assassino.
Mau grado a aphonia singular da sua gorja, tem a sensação de que a lingua infame não cessa de perdel-o, e lesta vae, como rameira ciumenta, tagarellando a historia do judeu.
Movimento na teia, os soldados ao fundo apresentam armas: o juiz, d'escarlate, põe as lunetas e encara-o: oh Deus! Annette, Christian — e o quer que seja se passa, o que disse elle? — todos os olhares volvendo sobre a sua cabeça branca, enternecidos... á morte, elle ouviu bem —condemnado á morte; ecom um grande grito escapa-se da cama, o solo gira-lhe, alguma coisa terrivel se lhe enrósca na garganta, e roía no chão golfando o ester-tor em haustos suffocados.
Tal a peça d'Erckmann-Chatrian que como literatura é lixo, e já lhes disse, só tem valor pela inteireza trágica, revelada, do tvpo principal. Precisamente por essa miséria literária é que o tipo se presta ao grande jogo trágico de actores como Got, Irving e Novelli, tanto mais vasto quanto maior a margem de collaboração que os papeis lhes possam dar;
e este de Mathias é tentador, pois só tem de pé a ossatura, venho a dizer linhas fundamentaes, tipo vivido, acontecido: na envergadura 64 FIALHO D'ALMEIDA
humana, inteiro, na perspectiva dramatica certo, d'onde, para os acíores, a sua irrevogavel força fascinante. Ás febres de creação d'urn actor cerebral, complexo, aprouverá então vestir de carne este esqueleto de facínora, imprimir-lhe figura, filiação criminal, vida agitante; todos esses que transfiguraram Mathias sobre o tablado, eram portadores de um sonho pessoal, particular, da psychologia intensa do lugubre personagem; a figura no drama apaixonou-os apenas pelos vasios a encher, pela massa de creação esthetica a apoiar no secco manequim dos dois simplorios escriptores a aura congestiva do alcoolismo, a personalidade dupla, as allucinações d'ouvido, ponto de partida de visões mais vastas, tendo a forma psychiatrica de remorsos; e imaginar-se-ha o que Dostoievsky, ou Ibsen, ou Shakespeare teriam feito do assumpto, e que espantosa avalanche seria um actor de genio fulgurando o papel pela expressão d'algum dos tres jupiterianos escriptores! Todas estas coisas para dizer que o nosso actor Brazão vendo o Judeu Polaco em Paris cuidou de poder exprimir o papel na sua habitual loquela tragica, e como convinha guiar o exito da obra por uma regra de tres que o garantisse, andou elle a ver que nome de ACTORES E AUTORES 65 escriptor nacional quadraria melhor no quarto termo. Got para Srazão, como Erckmann Chatrian para... João Soller. Quarteto admiravel, que se prestaria ao riso, se não fora d'estudo a embirração que os do anormal guardam de ha muito aos verdadeiros homens de letras. A tradição dos vertedores de peças escoicinhando a syntaxe e ignorando a lingua dos textos, julgáramos findasse com Gervasio Lobato, o escritor-machina, tolerado entretanto, mercê da sua verve falstafiana. Mas por desgraça a craveira tem descido, e vertem dramas cavalheiros que saberão quando muito verter aguas. Se é por poupança que a empreza os conciía e prefere a escriptores de nome feito, ainda hontem no Diário de Noticias se offerecia a tres cigarros por pagina, traducções com significados garantidos e a cedencia absoluta de direitos.
Casualmente pudemos justapor na primeira recita, a diremos tradução portugueza, aos diálogos do original francez, que um de nós tinha.
Passagens que na apostilla dos collegios se chamariam difficeis, o tradutor suprimiu-as tartamudeando o resto numa aravia lugubre de mulato. A hegemonia d'África que começa;
eis os primeiros proventos para a arte, de 66 FIALHO D'ALME1DA
Mousinho ter agarrado o Gungunhana!
Também na vertedura da canção d'Annette,-
o sr. João Soller lança os fundamentos d'uma poética novíssima, que muito ha de irritar o poeta Vasconcellos. Ora como nesta tragedia de trapos ha só um boneco grande, circumscrevamos o desempenho ao actor Brazão, que tem no Mathias um dos mais gloriosos fiascos da sua galeria de vacões. Isto de vivi-seccar Mathias na scena tragica, não é coisa a que baste certa aptidão d'exteriorisar paixões por gestos cavos, ou por certas roladas de voz com esgares de bocca e olhos malucos. A febre lúcida d'exprimir psychologicamente um typo estranho, interior, e desajudado para mais do texto literário, fácil ao gênio, descamba em grotesca momice quando á creação se quer substituir a imitação. Pela primeira vez o illustre artista nos pareceu inda mais Soller que o tradutor.
Estado do teatro AS REVISTAS
Revista do Antio chama-se uma figuração teatral dialogada, tomando por assumpto os sucessos publicos decorridos num certo lapso de tempo. Toma a forma critica, satyrica, é então um trabalho serio de synthese, partindo de premissas, e deixando inferir atravez de massas pitorescas determinadas leis sociologicas—trabalho análogo ao que é em livro o Graindorge, de Taine, e em desenho o Vire-locque, de Oavarni, e a obra verde-má de Daumcer — ou simplesmente se satisfaz com extrahir das ephemerides do anno, uma súmula por exclusivo picaresca, pretexto de copias, vistas, guarda-roupa e movimentos de com-parsana mais ou menos estrondosos.
No primeiro caso, realisa a melhor das formas do pamphleto, o pamphleto fallado, aquelle em que o escriptor, bem em face da turba, lhe avergôa as carnes co'seu latego, 68 FIALHO D'ALMEIDA
dispensando o intermedio da imprensa, que falha sempre nos povos sem habitos de leitura, e produzindo um instantaneo de persuação e emoção, mil vezes superior ao das outras arengas criticas, escriptas.
No segundo, isto é, quando a revista tem prosapias d'obra moralisante, serve de pretexto apenas a feeria e musicas canalhas, pôde ella conter em si também fermentos d'arte e boa literatura, o que tudo depende do talento esparso, das phosphenas de graça, dos gluglus d'imaginaçâo — qual tomando por exemplo a forma de mágica ou poema aventuroso, actualisados por entre casos de rua, reviravoltas de chasco, caricaturas, typos — qual pretexto simples de charge, onde todos os assumptos caibam e se deformem, macabrisados pela retina do libretista com carta branca para visionar a loucura, a todas as flammas azues do paradoxo...
D'este segundo genero se approximam as revistas dos teatros de Lisboa, habitualmente escriptas por indivíduos estranhos ao mister de fazer arte, de onde o não passarem de pobres cartas de guia para as misericordias da critica, e pretexto para exhibição de gar-
.gantas e pernas familiares co'a tisana Zitman e outros especificos do bel canto. Por quaes ACTORES E AUTORES 69 razões não abordam os escriptores de talento, em Portugal, as revistas d'anno, tão de molde propensas ás virulências da satyra e ás doiradas improvisações da blagtte voltejante? e porque hão-de estes scintillantes generos de todo o tempo andar entregues a barbeiros?
Ha quem pudesse redigir revistas de trama essencialmente critico segundo um claro plano de premissas seguras e quadros de exposição humorística, escolhidos entre os typicos da Vida portugueza sob respeitos de convergencia á comprovação d'uma these ou lei geral, enunciada como fecho — e citarei Eça de Queiroz, e algum outro, que trabalhando a serio, lograria traçar em dez ou doze quadros dialogaes, o panorama supra, a vôos d'escar-neo; e não faltam por ahi vários capazes de realizar com fortuna o genero revista-magica, Crystã.-charge, revistaimbroglio lançadas sem plano philosophico, á gandaia das improvisações malucas do momento, se melhor comprehendida a missão de fazer letras, e rehabilitada a revista dos baldões chinfrins dos trocatintas, algum gazetilheiro mais vivo, algum humorista mais clownesco, tomassem do encargo a peito, e mergulhassem no assumpto decididos a trazer d'elle uma obra fulgentissima. Como explicar pois este abando no de 70 FIALHO D'ALMEIDA
terreno, este desaproveitamento d'um dos mais ricos filões em que pode espadanar a improvisação satyrica e linguareira? Pelo descredito em que cahiu a revista, desde que se apoderaram d'ella os fazedores da baixa veia comica? Pela antiga divisão romantica dos assumptos literarios, em nobres e vulgares, e o ridiculo portuguez, secular, de que todo o escriptor deva ser um fidalgo, e os fidalgos escreverem só de luva branca? O certo é que o assumpto revista teem-no relegado aos jograes subalternos das letras, que nas platêas infimas, antes da lei de Lopo Vaz, surravam a tolerância policial tornando a scena cloaca d'injuria política, com a rainha batendo o fado e o ministério de gazúa, a arrombar as arcas do thesouro; e depois d'elía mesmo incapazes de mudar de processos, exploram a depravação sexual com pecoras sem roupa a araviar concupiscencia em horriveis palavradas.
Em Portugal a historia das revistas do anno é trabalho que só algum velho cão rateiro dos palcos secundarios poderia fazer, juntando o bysantinismo de recordações pessoaes, á compulsa d'archivos impossiveis de ACTORES E AUTORES 71 completar em teatrinhos tendo cada estação, seu emprezario, e á rebusca de periodicos, cuja inferioridade de linguagem e ausência d'opinião, tolheriam de muito a limpidez bibliographica do ponto.
O assumpto pagava entanto as canceiras da tarei a, pelo que visionaria sobre o humor popular, coliaborador anonymo de todas as revistas, e a lenta metamorphose d'esse jogo de palavras que é o trama das literaturas de ouvido, e obceca ás vezes d'um século e mais pobres paizes como o nosso, vivendo dos restos intellectuaes d'outras nações. Eu menos que ninguém posso enfileirar chronologicamente as revistas que teem ido, de 1840 para cá. Poucas deixaram rastro; (1)
apenas uma, a Viagem á roda da Parvonia, de Junqueiro e Guilherme d'Azevedo, é supportavel como l) Em 1853, janeiro, ioi no Gymnasio a revista do anno, em tres actos. Qual delles o trará?, que o meu illu-tre informador e velho amigo Salvador Marques, suppÕe ter sido escripta por Braz Martins, o compositor jocoso dos teatros populares d'aquella epocha.
em 1854, A vingança do cometa, tres actos, no Gymnasio, pelo mesmo.
Em 1856, Fossilisma e Progresso, três actos e seis quadros, de Manuel Roussado, no Gymnasio.
Em janeiro de 1857, revista em dois actos, Lisboa em 72 FIALHO p'ALMEIDA
escripto, mas peccando pela ironia espremida, e contextura monótona do argumento. Li ha pouco ainda a Viagem á roda da Parvonia, e posto ella seja a mais literária e coherente das revistas portuguesas, conhecidas, é certa J856, de Joaquim Antônio d'0iiveira, o conhecido Oliveint das mágicas, no D. Fernando.
Em fevereiro de 1858, Revista do anno de 1857, dj Francisco Serra e Carlos Braga, representada no antigo Rua dos Condes.
Em 1859, Revista do anno de 1858, com seu prólogo, dois actos e dez quadros, de Joaquim Augusto d'Oliveirat nas Variedades. Teve dm êxito louco, e dizem-na extremamente engraçada.
Em janeiro de 1860, A sombra de 1859, um acto, de Eduardo Coelho, no antigo Rua dos Condes. Neste anno a auctoridade prohibiu uma especie de comedia-revista, Melhoramentos rnateríaes, por um Curioso observador, tres actos e quatro quadros, no Gymnasio. Ainda foi algumas noites. O leitor, se puder indagar, escreverá adeante o nome do auetor.
Em I862, revista em três actos e seis quadros do actor Izidoro Sabino Ferreira, nas Variedades.
Em 1867, revista em três actos, de Costa Braga, nas Variedades.
Em 1869, Celebridades de 1868, dois actos e seis quadros, de Henrique Veron e Nogueira Júnior, no Gymnasio.
A lista, por longa e fastidiosa ao leitor, e excessivamente massadora para nós, salta-se aqui e além, pois só a lograríamos completaindo aos archivos dos theatros, e ACTORES E AUTORES 73 que como obra de teatro não passa d’uma hostilisante e ossosa carcaça d’artigo politico.
Demasiado escripta, vivendo da sua factura symetrica e da sua ironia sem verve, feita por um processo de contrastes, hoje banal, compulsando colecções de quasi trinta annos de jornaes.
Em 1873, Coisas e Loisas, de Sousa Bastos e Baptista Machado, no antigo Rua dos Condes.
Em 1874, Entre as brôas e as amêndoas, revista do primeiro trimestre do mesmo anuo, por Sousa Bastos.
Em 1874, Lisboa no palco, Sousa Bastos, na Rua dos Condes, antigo.
Em 1875, Scenas de Lisboa, por Sousa Bastos.
Em 1879, Revista do anno de 1878, por Sousa Bastos, no Principe Real, Em 17 de janeiro de 1879, a Viagem á roda da Parvonia, relatório em quatro actos e seis quadros, pelo Commendador GilVaz (Guerra Junqueiro e Guilherme d'Azevedo), fazendo Taborda o principal papei. Foi no Gymnasio, e pateada logo á primeira, atirando-se cadeiras para o palco. Nas alturas, do terceiro quadro, um actor, caracterisado de Deputado, dizia a outro: «... é rapaz de grande valor. Ha um epitafio d'elle a minha sogra... a ver se me lembro (declama): «As armas e 03 barões assignalados» ... Ah não, isto é do Luiz d'Araújo». Nisto ouve-se a voz do Luiz d'Aramo a berrar na platéa: < É da grandissima p. que o p.!» Foi o successo da noite, e toda a plateia levantou ás gargalhadas.
Em 1879, aproveitando meio titulo da precedente,.
74 FIALHO D'ALMEIDA
a obra dos dois poetas manqueja de quasi todos os requisitos d'agrado scenico. O
entrecho é uma incolor reedição da eterna personagem critico-pensante, vinda á Parvonia ajuizar da vida contemporânea; a graça pedaA Parvonia, por Antônio de Menezes (Argus), em colaboração com Carlos Borges, no Principe Real.
Em 1880, Tulti-li-mundi, de Antônio de Menezes, na Rua dos Condes. Agradou e popularíiou-se immenso.
Em 1881, O Antônio Maria, por Antônio de Menezes, na Rua dos Condes.
Em 1882, Etc. e tal, pelo mesmo, no mesmo, com muito agrado e obscenidades ás mãos cheias.
Em 1883, Pim-pam-pum, pelo mesmo, no mesmo.
Em 1884, JUÍZO do anno, por Antônio de Menezes (fez o primeiro acto, que foi a sua ultima obra de teatro; morreu de tuberculose, meses depois), Sousa Bastos e Moraes Pinto (PanTarantula), no teatro dos Recreios, antiga esplanada Castello Melhor.
Segue uma serie de revistas, cujas datas de representação ignoro, e que o leitor por certo chronologicamente enfileira, se me quizer ensinar a ser consciencioso. Direi ao acaso. -
De Baptista Machado: Coisas do arco da velha, no Príncipe Real; Faz-me arranjo, no mesmo; Onde está o gaio? na Rua dos Condes, antigo; FFe RR, no Alegria; Pontos nos II. collaboração com Júlio Rocha, no Chalet; OSarilho, collaboração com Eduardo Fernandes (Esculapio), na Rua .dos Condes, moderno.
De Jacobetíy: O Micróbio, no Chalet; O reinado do ACTORES E AUTORES 75 goga hostilisa a platêa que não pode ter a percepção philosophica da ironia; esta, sem verve, descamba no sarcasmo atrabiliario que apavora o espectador simples, e pobre d'invento, e repisando scenas e scenas o mesmo prior, collaboração com Miguel dos Santos, no teatro da Rua do Olival; O atino das pontas, no Chalet; O reino de Pantana, collaboração com Anselmo Xavier, nos Recreios; Vistorias do diabo, no Chalet; D. Qaixote, Chalet.
De Urbano de Castro: Lisboa por um óculo, Gymnasio.
De Baptista Diniz: O stculo XIX, no Rato; O pêcego, no Rato; Zás-trás, (collaboração com Penha Coutinho), no Rua dos Condes; Olaré quem brinca!, no Rato.
Em 1888, Tim-lim por tim-tim, Sousa Bastos, no Rua dos Condes, moderno, representado durante tres annos, e com umas poucas de tournées pelo Brasil.
Em 1890, Tam-tam, Rua dos Condes, moderno, por Sousa Bastos.
Em 1891, Fim de século, pelo mesmo, no Rua dos Condes, moderno.
Em 1894, Sal e pimenta, pelo mesmo, no teatro da Trindade.
De Ludgero Vianna: Na lua, rua dos Condes, moderno; Az de copas, no Rato.
De Ernesto DesEorges e Cruz Moreira (Caracoles): Lisboa em camisa, no Avenida.
De Soller: Um sonho do citado andar.
De Marcellitio Mesquita e Guaidino Gomes: A toirada, no Avenida.
De Antônio José Henriques: Jiga-joga, no Rato.
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truc, acaba por deshumorar fastidiosamente até a gente mais complexa. Todas as surprezas que o imprevisto serpêa á caça de subjugar o espectador desprevenido, e que na revista devem proceder de conjuntos, guarda-roupa, scenario, deslocações, transformações, :
musica, syntheses dialogaes, ditos a esmo, formas, sons, cores e movimentos, estão na revista de Gil-Vaz por tal maneira limitadas De Penha Coutinho: A feira da ladra, no Avenida.
De Sá d'Albergaria: O filho do diabo, no Avenida.
De Carlos Sertorio: Poeta em panças, no Avenida.
De Miranda e Sousa, Ernesto Carmo e Eutropio Machado:
Trocas e baldrócas, no Avenida.
De Júlio Rocha: Á roda da política, no Rato; O Phylloxera, no Chalet.
Revistas, no Porto:
O jogo do diabo, Sousa Rocha, Chalet.
Pão-pão, queijo-queijo, de Guedes d'01iveira e Jayme Filinto, no D. Affonso.
O Porto por um. canudo, Sá d'Albergaria, no Baquet Pastilhas do diabo, Sá d'Albergaria, no Chalet.
Porto em camisa, Sousa Rocha, no D. Afronso.
O Zé num sarilho, Sousa Rocha, Chalet.
Cartas na mesa, Emilia Eduarda, Chalet. Teve um certo exito.
Do inferno ao mundo em 365 dias, Augusto Garraio, no D.
Affonso.
Mundo, diabo e carne, pelo mesmo, no mesmo.
O leitor indagará as datas e completará a colecçao.
ACTORES E AUTORES 77 e abolidas, que a obra fila, sem desenvolvimentos episodicos, na tristura d'um soliloquio —de sorte que num acto inteiro, trinta figuras que entram a abordar o judeu Errante (personagem fecho da peça), dita a gracinha, retiram-se, sem deixar rastro vibratil, radicula que entrance a figura no feixe da acção, e faça da obra um todo concentrado. A
peça salvar-se-hia entanto, para a critica, mesmo com a implicante seccura dos dialogos, como disse engerocados de pequenos soliloquios mal serzidos, se no final houvesse um fecho philosophico, e por toda ella uma relação qualquer á'ensemble critico; mas ao cabo de trez actos de costumes políticos, subitamente o panno desce sobre o nariz do espectador comido á espera de saber onde tudo aquillo vae parar. Mau grado a flagrante inferioridade, e o circumscrever-se estreitamente ao registo de factos politicos, é esta ainda assim a única revista nacional com pretensões formaes de satyra de costumes;
haja vista a insistência com que, cahida a peça, os autores convocaram quasi todos os homens de letras do tempo, para lh'a annotarem em livro, — como quem diz que a consideravam obra d'alcance.
Nas revistas constantes da serie que em 78 FIALHO D'ALMEIDA
nota produzimos, e que, umas mais outras fizeram caminho entre o publico grosseiro e sexual que habitualmente as frequenta, não ha infelizmente signaes d'uma intuição qualquer de critica methodica, ou de debate humorístico prendendo-se nas modalidades diversas da nossa vida social. A mór parte dos autores, nem escriptores podem chamarse, mas simples serviçaes da informação jornalistica, obscuros filhotes do larachismo dos camarins e cafés dos pequenos teatros.
Quási todos sem educação de leituras, nem aptidões literarias definidas, nem gymnastica mental a permittir-lhes autonomia de opiniões sobre quaesquer pontos d'inquerito, imaginese o que poderão fazer de picaresco ou de bello, em assumptos sobre que o espirito d'elles não tem aberta uma só janella, e cujos precipicios ou pinaculos só poderiam vencerse á força d'azas — que o mesmo é esperar de gallinhas chocas, arrojos de condor. Assim, os revisteiros d'esta categoria subalterna que mais teem agradado no genero, são os que como homens de letras menos cotação teem na republica intellectiva, e o seu successo explica-se por um bolhar de facecias plebeas, de desenvolturas grossas, restos de mocidade e bohemia livre que elles espargiram ás ACTORES E AUTORES 79-
peças, em unissono co'as afinidades humoristicas da multidão rudimentar que as frequenta. Em o fôlego curto do cerebro, o esgotamento prestes da verve, e a profunda miseria cultural que lhes não permittem sobreviverem aos primeiros partos litterarios, produzida uma revistinha viavel, eil-os mendicantes pelas larachas dos almanachs, ressequidos, e logo liquidando em imbróglios neutros ou obscenas trapalhadas.
Os resultados d'estas degenerescencias são patentes, e a vergonhosa anarchia do gosto publico, a preferencia dos assumptos crapulosos em matéria de revistas teem posto as coisas num pé de resvalo, de onde não é facil sahir sem uma campanha formal de sanidade. Até á lei de Lopo Vaz, os revisteiros tinham uma receita de peça, invariável: um homem representando o born senso, e que era alternativamente o sr.
Ramalho Ortigão ou o Ti Zé d'Alverca, vinha á cidade examinar o estado de coisas, topando no caminho personagens que lh'o explicavam por formulas conhecidas —para a politica, as syntheses do artigo de fundo do Pimpâo — para os costumes, os ditos e caricaturas dos jornalinhos chamados para rir.
O rei D. Luiz põe uma monstruosa rosa na botoeira, o rei Ontes, de coroa de bicos, dando o braço ás 80 FIALHO D'ALMEIDA
manas Perliquitétes, o Marianno de Carvalho escamoteando libras d'um cofre de fundos falsos representando os fundos publicos, o marquez de Vallada, o Carlos Valbom, o Arroyo —de bailarina, de Onnymedes, de:
telephone —todas as ignomínias d'uma vida!
particular, suppostas ou verdadeiras, que a infamia anonyma subentende e suggere nos jornaes de chantage política, acerca dos homens publicos da terra, tudo isto era a chair à canon da asquerosissima hecatombe e putiha a individualidade moral do homem á disposição do primeiro malandrim pousado em Juvenal gazetilheiro. As peças acepipadas, neste sentido de corrosão sinistra, eram o producto d'espiritos sem alacridade e sem -conceito, medrados no estéreo, bebedos d'insolencia, recorrendo á diffamação para encobrir estiagens de talento e cahindo na legenda latrinaria por homenagem ás ruins paixões da corja vingativa, ávida d'exautoraçoes sanguinarias, e irresponsável como toda a multidão desorientada. Não me deterei sobre os effeitos geraes de tal literatura (o facto é conhecido) na sua fusão com ess'outra politica, que fez nos jornaes a fortuna de certos jornalistas e que falseando o tom, provocando no sacerdocio d'escrever, a suspeita, matando o en- ACTORES E AUTORES 81 thusiasmo, desmantelou a opinião té este desprezo sceptico com que hoje se recebe tudo, e que é bem o esfacelo d'um povo cadaverisado para quaesquer reivindicações purifi-cantes.
Scenas d'estas fizeram avançar entre nós o socialismo e o anarchismo mais que todos os livros de propaganda theorica e todas as privações da classe «productora», e acho que neste ponto a lei está ainda branda, e urgente fora para saneamento das primeiras infecções, que os individuos infamados se desforçassem dos autores, té lhe deixarem as costellas num picado. A lei do Lopo, feita exclusivamente para guardar políticos e reis, por tabeliã protegeu também estranhos, visto a interdicção da caricatura pessoal, e restringiu isto notavelmente o campo d'acção dos revisteiros, cujos successos quasi todos se baseavam na injuria, como disse. Houve um momento turbado neste periodo da historia das revistas; mudarem de processo e assumpto, espíritos immoveis, melros de sapateiro, ensinados a só assobiar a pobre maria cachucha da rotina latrinaria, eis o bastante para descanalisar o veio de sympathia moral transcurso do revisteiro para o publico, e deixar este soffrendo sósinho as nostalgias do charco 82 FIALHO D'ALMEIDA
onde medravam suas necessidades de arte teatral!
Entraram então nas revistas, pelo braço da scenographia, da mise-en-scène e da musica, alguns elementos de phantasia e estouvamento, e o impulso seria bello se os escriptores que lh'o deram tivessem na cabeça outros predicados d'evocação humoristica, imaginaçOes d'arrojo artistico, synergias lucidas de macabro, inventivas satyricas, e como auxiliares, emfim, pintores, costumiers e maestrinos á feição da nova fórma d'arte. Está-se a ver quantas irientes especialidades a desenvencilhar do genero novo: revistas-panoramas, revistas-quadros vivos, revistas-operetas, verdadeiras epopeias polycromas voando da. creação artistica para todos os campos do sonho dissolvente, aproveitando da vida nacional todas as suas flores tradicionaes de poesia evocativa, n'uma palavra enxadrezando ficção e satyra num conjuncto d'esplendidas roupagens, entre vistas de monumentos, cidades e paysagens, balanceando os seus rythmos numa musica viva e dolente, á imagem da nossa indole de sol e saudades. Assumpto magico, apetecivel, unico, para um poeta, satanico, um phantasista, um humorista, desenrolarem a cavalgata das visões heroi-gro ACTORES E AUTORES 83 tescas, identificando-se co'a turba pela effusividade do riso illuminado, e deslumbrando-a por um lado nobre, estheta, fertilisador das cerebrações imaginativas, tão beílas, que a raça portuguesa dizem ter do fundo mosarabe, emudecidas desde as suas feéricas descobertas. Mas onde esse poeta, esse phantasista, esse humorista, capazes de descer do seu throno ephemero de glorias, e de transformar a contemplatividade no phrenesi de acção sob que requer ser feita uma revista do genero apontado? Escrever revistas tem sido sempre entre nós mister de sub-cerebraes.
Haveria a extirpar primeiro a lenda de descredito que esta forma ganhou nos centros pensadores. E os scenographos, costureiros e maestrinos, collaboradores indispensaveis dos comediographos de revista? Nas artes de teatro portuguesas, primordiaes e auxiíiares, todas as incapacidades se eqüivalem. Manini era um admirável desenrolador de perspectivas, um pintor d'architecturas offuscantes, um illuminador de scenas sem rival, levou para a Lombardia cem contos de reis, em dezoito annos, com o vil egoísmo de não deixar no .
paiz um só discipulo! Os pantamonos do Gremio, muitos, cahem de fome a professar a grande arte, sem que nenhum se decida 84 FIALHO D'ALMEIDA
a estudar scenographia, e a fazer-se em pannos de fundo e bastidores uma reputação artística tão certa como as que o oleo concede aos seus eleitos.
O crapuloso estado da scenographia portugueza tocou a meta do vilipendio, e fiado na obtusidade publica, que sem apedrejo a tolera, veio nivelando seu estro pelos da litteratura dramática que ela é chamada a decorar.
Vão ver a Penitenciaria do João José, as Apotheoses das ultimas revistas d'anno em scena, e digam-me se não preferem antes o scenario mental dos séculos barbaros, em que o lettreiro de bosque, salão, rua ou masmorra, supria as lonas tintas, permittindo ao espectador o evocar a vista a seu talante. Com os compositores de musica ligeira, mesmas deficiencias, féses e negaças.
Não ha um unico musico dotado.
A originalidade apropria musica hespanhola ou franceza á versalhada dos libretos, intercala aqui e além modinhas moles e fados choramingas, e assigna o todo como partitura original. A peça-typo d'essa especie de phase nova em que parecia querer entrar a revista do anno, depois da lei lopacea, e o Tim-tim por tim-tim, de Sousa Bastos, e ACTORES E AUTORES 85 poderia definir-se «a Peça em tres actos e vinte e nove pares de meias justas».
Teve um successo doido, mas não se dava por ella como peça, apenas servindo para colar ás aphrodisias d'uma rapariga plastica, com seu fiosóte de voz correndo entre dolencias, pretextos de travesti, de cançonetas coxas, decotes umbilicaes, fraldas fendidas — a exploração da actriz, como os gallegos dizem, rabiosa, metida á cara do publico, cosinhada em ceia d'estroinas, e picando os homens como uma salada de pimentos.
Foi este o advento da nova era das revistas, substituir as abjecções da satyra política pelas nudezas parciaes ou totaes da venus de cloaca, seguradora, androgyna, postiça desde os dentes de perola até ao sesso, faliando pelos logogriphos do Pimpão, e despindo no camarim seus nalgatorios e uberes de chumaço, quando, missão da cantharida finda, forçoso regresssar á cachexia onde a metrite arruina as divettas em agua borica. O que depois do Tim-Tim, sob o nome elastico de revista, se tem posto em scena no theatro, são variações d'este averiguado principio de que, insensivel o publico a quaesquer suggestões d'arte decente e delicada, e sendo forçoso que os comediantes 86 FIALHO D’ALMEIDA
vivam, para captar d'aquelle as graças, forçoso recorrer aos excitantes animaes.
Desfiles pois de mulheres nuas, com pintas de copas vermelhas sobre o púbis, balanços de rins projectando as barrigas em danças de rasga, illucidantes da copula e seus paroxismos syncopaes, linguagem d'alfurja girando á roda da genitalidade, com obsessão nymphoma-niaca; esbandalhado de gestos, guinchos, copias, gargalhadas; a crassidão dos pescoços, a flacidez das carnes, as joelheiras de boi, os suores acidos, a pintura dos olhos, as papulas dos braços, as fedentinas secretas d'iodoformio — todos os stygmas dolorosos e reles de gente manca no cerebral e no moral, sem formosura, sem viço, escriptores de mijadeiro falando a um publico de cala-boiço e costa d'Africa, vasta masseira onde se amassa o pão perverso, escola onde as mulheres de meia-tijella vão completar o curso que as arremessa depois aos semi-circulos nocturnos do amor por seis vinténs — afora quarto. Torno a dizer que se em todos estes descaramentos houvesse uma scentelha d'arte a refulgil-os, se o proposito da ironia se visse, se a convergencia arcabouçal dos episodios e grupos fizesse da obra um duomo de natureza sarcastica ou philosophica, sê .
ACTORES.E AUTORES 87 houvesse elegancia nas frescuras, transcendencias anatomicas nas venus, extensão maliciosa nos ditos, arte, alegria, espirito no todo, claro que a revista, deixando de ser grosseira e de íallar exclusivo á esthesia sexual dos viciosos, encontraria desculpa, mesmo cynica, em todos os adoradores da intelli-gencia, creando no theatro um paganismo podre, porem estheta eeminentemente afu-sador dos instinctos frondistas actuaes.
Mas não succede assim; as revistas d'anno tornaram-se em focos cholericos do já derrancado aviltamento moral do nosso povo;
gagos mentaes, escrevinhadores de má-morte, cretinos sensaborões dos recessos suspeitos das letras, saccodem o rir alcoólico da corja na loucura moral dos pobres cacos obsidíados de deboche — e ha ainda logar para a colíaboração avulsa e porca dos actores, que mettem de sua casa mais féses, mais, té resolver na platéa o aposthema de risadas.
Os maestros, scenographos, costureiros de theatro e machinistas, alguns que houvesse ou podessem ir-se creando á sombra ^nspiradora de libretos bem feitos, sob a thiara d'um phantasista de theatro intelligente, resvalam ante infâmias d'aquellas, num marasmo, e cumprem de cór, sem gosto, á 88 FIALHO D'ALMEIDA
broxa apenas do ganho, a sua parte d'illustradores d'uma obra que lhes não suggere senão bocejos, traques, arrotos, e d'encontro á qual se abysma toda e qualquer primavera ideação.
Ha cerca de dois annos fui a um benefício d'actor em fama grande de volatim de farça e cançoneta, d'estes que passam por dar ás revistas, graças novas, e a quem os autores permittem substituições de texto, na esperança dos cabotinos lhes prenderam aos desrabados cocyx, a bem dos direitos d'autor, algumas irientes plumas de pavão.
A peça era uma revista de grande successo firmado em mais de sessenta noites de bambocha, intercalada a obra de cançonetilhas e fados, pelos principaes canoros da companhia.
Estava uma casa á cunha; viscondessas e baronezas na primeira ordem e nos balcões, cavalheiros do sportismo, maganas da Rua Larga, imprensa, aquário, Campo Pequeno, Turf e... «tudo quanto em Lisboa tem um nome», dizia o elegante Correio da Manhã, cambrando o sapato de verniz, de tacão torto.
ACTORES E AUTORES 89 Ergue-se o panno de sobre uma scenographia de bosque, e começaram a entrar umas sardinhas seccas, de maillot, alegorisando varias sciencias, artes e virtudes, que se suppunha vindas para inspirar o autor-poeta— este representado num titere pansudo, no acto de gatafunhar no papel a grande obra. O homem, a cada sardinha vinda, dizia-lhe, interrompendo o monologo sobre a escassez d'assumpto — «e vós quem sois? « O maestro batia na concha do ponto, a sardinha secca pigarreava e respondia quem era, em verso d'alcachofra.
Durante vinte minutos vieram entrando a formiga, sardo-nicas d'aquelías, quinze ou vinte, de rins chupados, pernas em aspa, mamas nas costas, e o geito valetudinario de se derreterem em leucorrhea pelas fístulas do perineo.
Versos, vozes, musica, plasticas, vistuarios, regrado tudo por uma craveira de plebeismo sordido, suando, a par d'uma vileza sorna d'almas gafas, desleixos d'aceio, inconfessáveis — suores d'axillas fetidas, piolhos, tinha e bebedeiras d'agua raz. Na altura d estarem alinhadas ao fundo as quinze ou vinte croias, rompe uma dengosa de dentro, com duas azas de morcego na cabeça, e um nalgatorio de borracha. É a Inspiração, 90 FIALHO D'ALMEIDA
segundo reza num fadinho brincado, rebolando o salva-vidas appenso ao fim das costas. A esta nova, o autor todo se agita.
Dama Inspiração toca-lhe a testa, d'onde saltam faiscas electricas, dardejo, cuido, da vol-vedura das herpes em talento; e o homenzinho radia, tanto o nalgatorio abstruso da croia promette suggerir-lhe uma obra de theatro, original. A scena nisto ennubla-se com gazes negras descendo das gambiarras... preludio de rabecas, e tornando a subir as gazes, veern-se em scena compadre e comadre, os indispensaveis da revista ha quarenta annos, prestes para o conhecido e jocoso questionario ás figuras que durante os doze quadros hão-de vir morder na deixa.
Eis em que se cifra, desde'que o mundo é mundo, a promettida obra original da Inspiração dos revisteiros! Como a peça não tem na exposição o menor methodo, nem figuras nem grupos revivem por um criterio mirando qualquer synthese parcial ou total dos episódios, aquillo tudo vem confusamente, passando aos trambulhões na desordem da improvisação à Ia diable, imprensa com lojas de modas, politica com hortas, pederastia com patria, arte com zaragatas de ACTORES E AUTORES 91 arroceiros e guardas municipaes. De quando em quando chispa do fundo, a da culatra postiça, a diveta da peça, prognata e tisica, vestida de toureira, d'imprensa, de Sarah Bernhardt, de moda, de dynamite ou de zephiro, a cantarolar versos de cego, que entanto nos parecem sublimes, dada a sen-saboria dos fundos críticos da peça, e o descarado roubo da musica hespanhola e franceza em que ella os canta. Por outro lado, os reforços jocosos com que o compadre da revista (cômico dilecto da sala, a julgar pelos despejos da língua do tunante)
salga os intervallos mortos do dialogo, são d'estas enormidades plebeias cujo deformante poder desculpa em certo ponto a caricatura crua dos propositos. Ha uma alegria de Falstaff voraz palpaudo o rabo ás moças. Esses dichotes são evidentemente achados populares, colhidos da rua, reçumantes, sabendo á brutalidade sã dos misteres inferiores. Mas vae que o applauso, embriagando de prosa até o cabotino, e a sala pedindo pasto sempre para o frouxo de riso neurico, irreflexivo, que a titila, breve o cansaço vindo, pára ao compadre o veio fecundo das zargunchadas e sainetes populares, e eis o pobre improvisa ofeito estafermo, e de rabelaisiano hilare, 92 FIALHO D'ALMEIDA
cahido estanque em exhibidor de torpezas pornographicas.
Esta collaboração do autor da revista com o seu burro sabio, o comico, acaba por nivelar os dois afins no mesmo charco. A turba-multa ri, mas desprezando-os na cumplicidade de pandilhas especuladores da crapula publica. Ao cabo do segundo acto a náusea mal se vence, e sobrelevando a ribaldaria dos monologos acaba por me fazer fugir da sala. Primeiro: a diva, que finge ser noiva d'um general um pouco gasto, vem contar á platéa a sua primeira insomnia de noivado. Por modos o velho passou toda a noite a raspar phosphoros na phosphoreira nupciaí;
mas os phosphoros do velho tinham todos a cabeça a despegar-se. Alvitra a esposa ingenua «e se chamasses, p'ra te ajudar, o camarada?»
Hesita o general, suando em bica... a disciplina, o melindre... e ella, teimosa «verias acceso logo o phosphoro do rapaz!» Teima que teima, amúos d'um lado, falta de lumes d'outro, e os dois cada vez mais as escuras. Té que afinal, fíat lax! o phosphoro do impedido — opinando a patroa que nunca a phosphoreir lhe fora assim raspada. O monologo segund vem mial-o uma segundas erigaita, trajando ACTORES E AUTORES 93 um par de meias altas, e tendo sobre o nombril, como saiote, uma parra de vinha recortada em geito de chamariz ás...
linguarices.
Como contar sem grossa asneira esta historieta tão... do outro lado? Tem a rapariga por querido um velho ciumento, que n'um accesso de zelos lhe pede provas d'amor, bocca na bocca. Tanto se chupam, que a dentadura do tipo descavilha-se, e lá vae guela abaixo da rnoçoila, que afflicta corre a fazer queixa ao posto medico. O
clinico, ingenuo, constatado o facto da rapariga ter nas maxülas os dentes todos com que a brindara a Providencia, formula espanto: tem visto engulir espinhas, espadas, petas, letras falsas, mas uma dentadura completa, é caso raro.
Medrosa como a pomba, ella confessa o aluguer de si, feito ao velhote, os postiços do monstro, e como meio de serenar-lhe os zelos, a villegiatura dos dentes pelo tunnel da caca, ao Deus dará — se aquillo será grave?
O clinico, mui vasto: «só se a dentadura do velho, chegando á tripa larga, teima em ficar por lá mascando tenias!» Não é provavel, e com um bom copo de Loeches inda a veremos restituida ás trombas do dono, que bem 94 FIALHO D'ALMEIDA
merece lamber-lhe as poeiras da viagem O caso esquece, mas quatro mezes depois rompe no posto medico um cavalheiro idoso a gritar ao doutor que lhe acudisse — ?! — Desviara-se, por distracção poética, do sitio idoneo para collagens sexuaes, té uma gruta além, dita dos ventos «quando ao penetrar o umbroso pateo, sente no caduceu d'amor, uma dentada. Ora é já custoso explicar como haja damas mordendo pelas tripas, mas o que em todo,o ponto me perturba, é esta horrivel coisa incongruente: no acto da dentada, a sensação fatal, formal, de ter sido eu que me mordi!»
O que nesta recita d'élite (palavras dos jornaes), depois da obscenidade pulha, mais me choca, é a absoluta faita de gosto, delicadeza, graça e humor de toda ella, a cerebralidade ausente, o descosido, o cortical, o alvar das scenas todas, e dominando o espanto, essa subserviencia com que a platea se resolve a fazer successos publicos a coisas que particularmente conspurcariam cada espectador d'infamia até ao vomito. É evidente estarmos em face d'algum d'estes movimen-
ACTORES E AUTORES 95 tos inconscientes da multidão criminaloide, tarada por degenerescencias de grande cidade, e que uma voz, grito ou boato, põe á mercê da impulsividade suggestiva; d'estas ondulações fluctuantes se teem aproveitado os alquiladores para reverter as sympathias da turba aos seus interesses baixos, e urgente fora que se mettesse a critica austera no pleito, por libertar o rebanho da chacina implacavel de taes feras. A obscenidade em livro é, comparada a esta, coisa pouca: nâo ha testemunhas, esquece, escapa, porque para o homem d'agora só a ignominia divulgada é que é chocante. Ora, no theatro, as que se ouvem dão a impressão de nos terem sahido da bocca, voz em grita, e da sala nos estar fitando, espavorida e prestes a nos correr de si a pontapés. Emquanto nâo familiarisado no genero, cada graçola deixa no espectador um mau estar insupportavel —a consciencia individual revoltando-se de tolerar em multidão, coisas d'aquellas: e fica-se interdicto, a espreitar se os do nosso lado reparam, e alguma violenta pateada se levanta. As gargalhadas da sala podem por contagio e imitação fazer-nos rir, mas nas pessoas limpas. Logo um affluxo de razão briosa interpõe-se, a attitude tempera-se, visto essa necessidade 96 FIALHO D'ALMEIDA
do respeito que é na escala do brio a sobrevivente ultima, que até as meretrizes conservam, e conviria impor a toda a gente.
Da derrocada em massa d'esse respeito d'um perante todos e todos deante d'um, vem resultando a crapulisação geral das platéas, como nos theatros de revista, o deboche em feira franca, como ainda ha pouco os ultimos espectaculos da companhia franceza no D. Amélia, a bestialidade florindo em uivadas e apodos canalhas, como nas exhibições decadentes da Chiquita Á auctoridade cumpre correr com tudo isto.
A rusga é no theatro mais necessaria do que por essas vielas e casas de batota. Pelo que respeita á moral. Quanto ao criterio litterario, á arte, ao gosto, esperemos que tarde ou cedo algum punhado d'escriptores advenha a restabelecer o culto do bello, e a inutilizar no theatro os que traficam com os instinctos grosseiros da multidão.
(Revista Teatral — Agosto de 1896).
Othello D. Amelia. — Companhia de Rossi-Emmatiuel Os arreglos do Othello, para tornar a tragedia representavel, são hoje tantos, que bem se póde dizer: cada celebridade tragica, cada arreglo — indo as coisas a ponto dos arregíadores cortarem a torto e a direito scenas indispensaveis ao conjuncto, deixando as que podem lisonjear as disposições ou talentos especiaes do actor que incarna o mouro. D'aqui as differenças e estranhezas que a peça causa sempre que uma celebridade nova nol-a offerece. Os arregíadores, como alfaiates de escada, pifios, achando no texto primitivo, estofo á farta, permittem-se cortar nelle, vestimentas da moda para os seus afilhados comediantes, sem mór resguardo á lithurgia do culto universal de Shakespeare. O arreglo que faz Emmanuel não é melhor nem peor que os mais por hi servidos; supprimem-se passagens que figuravam nos outros, deixa-
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ram-lhe passagens que estes haviam supprimido. Do segundo acto desappareceu o brinde, que o actor Ruggero Ruggeri, da companhia Novelli, cantava com uma tão linda e juvenil voz de tenor; a scena da entrega do lenço é também omittida, e em compensação, no quarto acto, a leitura d'uma especie de buena-dicha que Othello, ciumento, faz na mão de Desdemona, foi conservada, e Desdemona em vez de recitar, no quinto acto, a bailada do salgueiro, como estavamos affeitos, cantaróla-a, por signal que bem desastradamente. Já dissemos que, tirante as primeiras partes, as figuras do, Othello são detestaveis, e que o guarda-roupa e scenario, além de pobres, acham-se já bastante enxovalhados. A rua de Veneza, no quadro de abertura, é um triste farrapo pintado no tempo dos dóges por algum intransigente do nosso Gremio Artistico, e assim o hangar do porto de Chipre, no segundo acto, onde o panno de fundo pertence á maneira dos que queimam nas paysagens modernas, fogos do S. João.
Tudo isto são detalhes escusados, sabemos, por se tratar d'uma companhia dramatica em viagem, mas nem por isso os reputariamos estranhos ao computo da illusão ACTORES E AUTORES 99 scenica indispensavel á emocional boa-fé do espectador. O guarda-roupa equipara a sua opulencia pela decrepitude dos pannos do scenario. O quadro da chegada de Othello a Chypre, é uma amostra dos bailes da Trindade;
dominós de ramagens, couraças de juta, maillots com remendos no assento, capacetes em balde de lavatorio, tudo alli corre a fazer pied-de-nez ao mouro vencedor, e a feira d'almas sublima-se de grotesco, quando, á entrada de Yago, todo feito de ventres e com um capacete de bombeiro na cabeçorra, se tem a allucinação d'tima taíha das Caldas, fallante, berrante, apopletisante e ironisante! Porque verdade, verdade, aquelle Yago é de peso —
tanto peso, que quasi lhe não deixa ter feitio.
Sem duvida existe dentro d'aquillo, artista d'aígum mérito. Mas a gordura, diabo, soffocalhe o talento; a mimica foge-lhe do olhar para as barrigas das pernas; pode lá ser mephistophelico e perverso um homem assim nutrido!
Desdemona é a graça dos vinte, vaporosa na coma setinea dos cabellos, franzina e docemente alheia ainda aos fortes jogos da tragédia, mas supprindo tudo por esse indefinivel encanto da belleza que sae da adolescência, afiando as plumas, e soltando á vida os pri- 100 FIALHO D'ALMEiDA
meiros gorgeios d'amor, em notas peroladas.
A senhora Nella Montagna pode até, se quizer, deixar de ter talento; ha de agradar incondicionalmente.
A um commissario de policia francez, encarregado de vigiar em Paris, logo depois do accidente Véry, certos cafés revolucionarios do boulevard, apontavam- os agentes uma cervejaria quasi exclusivamente frequentada por portuguezes. Resposta do commissario :
— Esta cervejaria não precisa ser vigiada...
portuguezes só tratam de mulheres.
Demais, que a artista allia á gentileza, predicados de ingênua muito bellos, e certo em peças mais enquadraveis nas disposições do seu jogo, vêl-a-hemos sahir-se com successo.
Emmanuel, o Othello. Diabo 1 Ahi está uma coisa que se sente, sem se poder ao publico explicar como. Fazer montanhas de hyperboles na suasão de persuadir quem não foi vêl-o?
Repetir no encalço d'este o que se escreveu dos outros, com o mesmo exaspero e o mesmo enthusiasmo? Mau gosto.
Eu não sei como sair d'este mau passo, sem tropeço na interjeição ribatejana do Mes-
ACTORES E AUTORES 101 quita, a sua grande, cora que elle corta nos gordios, nas palestras da mesa do Martinho. E
seria caso de a usar, accrescentando após ella — isto é que é!
Ha quatro raezes, quando o grande Novellinos deu do Othello, essa versão grandiosamente barbara e original, alguns tolinhos dos grupos esthetas, permittiam-se encolher hombros, chamando ao actor intrujão, e pretextando não ser aquillo o general mouro de Shakespeare. Talvez não fosse, como não são já Shakespeare os arreglos portuguezes e italianos da tragedia. Mas o que ninguém póde negar é que esse Othello, quadrumano, negro de raça inferior, general apenas pela bravura indomita, grotesco como homem no meio da corte veneziana dos finos senhores e das mulheres ruças, com olhos d'agatha e sorriso dithyrambico, esse Othello interpretado mais pelas saburras do sangue africano, do que pelos rompantes de altivez arabica, era, admittido o ponto de partida, uma das integras, das furiosas e das estranhas creações do moderno theatro trágico, creação que está de pé, formidolosa, a despeito da cretinice discordante, e que, apesar da noite de hontem, nenhum de nós esqueceu, nem esquecerá!
102 FIALHO D'ALMEIDA
Novelli não deu do homem nobre e generoso senão a parte animal e besta-féra que resta, quando o ciume, espicaçando-o, o fez cair na contemplação da sua pelle torrada e do seu cabello em carapinha. Não é pouco porque na tragedia é tudo, e viu-se o vigor de inteireza com que elle levou essa selvageria medonha até ao fim. Emmanuel é outro ponto de vista.
O seu mouro é um homem de casta superior e espirito lettrado; seu gesto é nobre a quando calmo o seu espirito; e jamais ridiculo na corte, a par dos patrícios e das donas. Logo a differença na maneira de detalhar o raconto ao dóge, no primeiro acto, marca para Emmanuel e Novelli a linha directriz da creação.
Emmanuel conta a maneira porque amou e se fez amar de Desdemona, como um gentleman; attitudes d'uma nobreza simples e tranquüla, periodos harmonicos, rythrnos civilisados, aspectos familiares, sorrisos de salão.
Novelli fazia o raconto com o vago ar d'um negralhão baboso e atarantado no meio de todos aquelles senhores de cabelíos compridos, tez loira e sorrisos d'epigramma e de veneno. A
cada instante, voltado para Desdemona, de mãos caidas e sorriso libidinoso, ACTORES E AUTORES 103 seu olhar buscava a flor patrícia com uma vaga subserviência de gorilla, e quasi fazia rir (d'onde os patetas gritarem: estenderete!) só ferindo a nota grande ao evocar reminiscencias de batalhas.
A sua entrada no segundo acto, quando o motim rebenta, era ainda uma passagem d'aspero e despotico chefe, que a presença de Desdemona amadorna pelo sexo, e continuava do quadro anterior a inteireza selvagem da figura, que assim ia crescendo, sempre, sempre na mesma directriz. Emmanuel é ainda, nesta scena, d'uma energia caíma e d'uma severidade polida de senhor.
Na saida com a noiva, ha um sentimento de conveniência, um pudor d'attitudes traindo o homem d'instinctos dominaveis. No acto seguinte Yago suggere-lhe as suspeitas, e o selvagem ressumbra em Novelli e Emmanuel, com a mesma pujança terrível das almas do deserto, exautoradas do respeito e precipitadas do céu deleitoso a que o amor as havia ascensionado.
Em Noveíli o monstro de selva que o ciume revela, existe já, desde o começo da peça, amadornado no arcabouço do quadrumano de braços caidos do primeiro acto.
Em Emmanuel o monstro acorda só na 104 FIALHO D'ALMEIDA
scena de ciumes: esta interpretação, em coherencia com a lettra da tragedia. Mas eu prefiro a outra, por ser, aparte a lettra, mais coherente e humana; e ha o direito de violar um texto quando se tem o genio de Novelli, e o sacrilegio é commettido a bem da arte;
Emmanuel é verdadeiramente, nesta grande scena de suggestâo affectiva, d'uma grandeza trágica que só ella vale a reputação que na sua patria desfructa d'illusionista sublime dos typos shakespereanos. A. sua maneira de escutar Yago a suggerir-lhe zelos de Cassio, é das espantosas cumiadas a que se pode subir em theatro, e a cujo deliquio animico se não furta facilmente um espectador com os meus nervos doentios. Descrever esta passagem, e as seguintes, é perder tempo ,e trabalho, sem mor illucidação para quem lê. Esta scena dos ciumes, móe tanto mais, quanto differe da de Novelli, sem mesquinharia ou desaire p'ra qualquer d'elies. Nesta mais arte, procura, mas que ardente sopro do deserto a outra havia!
Recapitulo a correr notas da noite, que não é de peças de theatro que mais querem saber os compulsadores d'este jornal. Os topes da creação emmanuelica do Othello, além da grande scena de ciumes do 3.° acto, ACTORES E AUTORES 105 já dita, são como segue. Ainda no 3.o acto —
o adeus das armas, a expulsão d'Yago e raconto que este íaz do sonho de Cassio, aos gritos do mouro —sangue! sangue! No 4 o acto, a buenadicha que lê Othello na mão de Desdemona, a scena do lenço e saida sequente do mouro, aos uivos, para a não estrangular, na estrebuchante raiva que o desvaira; a scena com o emissario da republica; o esbofeteamento de Desdemona, e deliquio nervoso resolvendo-se por uma crise de soluços, e finalmente, no 5.°
acto, a asphyxia da mulher, seguida do suicidio do mouro, parte frouxa, para nós, da creaçâo.
Todos estes pedaços do Othello emmanuelico são grandiosos, mas os intervallos brancos que os ligam, no desempenho parece que fraquejam a ponto de darem na envergadura do personagem, para assim dizer, duas vidas periódicas, alternando-se paralellarnente, por pauseds epilepticas, uma feroz e intensa, o Othello dos acumes trágicos, outra coma que lassa e moida —d'onde o resair o typo do mouro, fragmentario e irregular. Duas grandes scenas bastam, porém; a dos ciumes com Yago, no 3.° acto, e o deliquio syncopal, findando em choro, no 4.°, para em Emmanuel se adivinhar o comediante de 106 FIALHO D'ALMEIDA
grande escola e grande raça. É alguém, c'os diabos! Nervos de psychopata, temperamento archi-phantasista, estranha versão calaírienta d'esses allucinatorios que a arte moderna suscita no embate da degenerescencia latina co'as monstruosidades da analyse interior, e que neste período torpido de negações, contradicçòes, deixa pelo caminho da arte calvarios com nazarenos da força de Dostoyevski, Villiers-de-risle-Adam, Sarah Bernhardt, Baudelaire, o esculptor Rodin, e outros malditos.
(Paiz, 12 de abril de 1896).
O Rei Lear D Amelia. — Companhia de Rossi-Emmanuel Na platea estariam cem pessoas, trinta e nove das quaes sabendo ouvir, e talvez umas dez sabendo lêr. Nas frisas, três camarotes ornados, e na primeira ordem, dez, tudo com restos de condessame e canastrame que entre nós, sob o nome de sociedade elegante, vae os theatros estragar a noite aos espectadores intelligentes. O resto, ainda bem que lá não esteve, porque á uma os applaudidores do Paradis e do Mr. Chasse deshonrariam com a sua presença o nobre e estranho espectaculo de hontem, e á outra, a atmosphera, limpa das excreções mentaes da gente estuda, permittiu á outra o respirar mais livremente. O actor Emmanuel não enche a casa emquanto não annunciar drama onde se dispam em scena, tres pessoas, e alguma d'ellas arranje de modo a mostrar á platea, no buraco do ponto, o do...
intestino. Se assim 108 FIALHO D'ALMEIDA
fizer, ficará certo de lhe cahir lá toda a Lisboa da gomma e da nobreza, com a monarchia, o ministerio e a fina roda nos balcões, e no dia seguinte mandam-lhe a cruz de S. Thiago, com uma carta autographa, conferindo-lhe o titulo de parente. Emfim, as coisas são o que sào-as rusgas começaram por baixo, e não pôde sentir as angustias do Rei Lear, gente que rodopia só, traz das rapiocas do rei Caramba. E todavia o espectaculo de hontem , D. Amélia, é um d'esses que fazem epocha, e de que toda a vida se lembra o mortal qir o assistiu. Nos grupos musicos de Lisbo ainda hoje se falia no Barbeiro da Patti e d Cotogni; este Rei Lear ficará por seu turn sagrado na memoria dos gostadores d'art dramatica. Coisa suprema, indefinida, ideal resgatando em duas horas misérias tantas que a gente sofre na vida, rehabilitando o nome da sua condição de besta de carga e farrap Iugubre da morte! Leram talvez esta hyperborea tragedia de Shakespeare:
um rei decre pito partindo o reino em fatias, para engord de tres filhas, fiando-se nas juras d'amor fie que duas lhe fazem, e desterrando a mais nova, que por ingenua e sincera não.
souber arranjar discurso á guisa de deslumbrar emphatico coração do pobre tonto.
ACTORES E AUTORES 109 Apenas despojado do sceptro e do diadema, e integradas as duas megeras, Reganha e Gonerilla, na posse dos dominios paternos, cada qual começa d'atirar para a outra o encargo d'aturar quem já nada possue, a ponto que o rei, susceptível e treslouco, as amaldiçoa, exilando-se allucinado pelas charnecas do antigo reino, onde tudo lhe serve para exacerbo da grande mossa moral que a ingratidão das filhas lhe causou.
Em que retalho da carta geographica se desencadeia esta catastrophe? Qual epocha pôde fixal-a na cadeia chronologica das coisas de que o homem se recorda? É tudo vago, e isso mesmo alarga a infinita suggestão do poema pela emotividade dolorosa de quem escuta, e faz gigantesca a evocação d'essa esqueletica bailada, tão bella! tão bella t tão bella! que é nos mundos conceptiveis da arte um grande lago lunar onde formas deslisam, imprecisas, almas de cores, almas de tons, almas de movimentos, almas d'almas, coisas longínquas, ondeante pavor d'origens cosmogonicas, escapando aos sentidos, vivendo como nas recordações d'um sonho morphinado, suppondo consciências ancestraes, heranças de recordaçôes transcursas de dez seculos, fianco-se por sepulchros sem fim de gera-
110 FIALHO D'ALMEIDA
ções, e vindo cingir o homem actual num cinto vasto de bruxarias cósmicas e maleficas .Admittida esta concepção fogo-fatuo do Rei Lear (e é a d'Emmanuel com certeza» pois elle a justificou nos tres ultimos actos, a primor)
comprehende-se entre que scenographias, vestuários, figuras, rythmos de dicção, gestos hieraticos e sentimentos, sej necessario visional-a, e quaes exigências ter riveis as requeridas pela critica, para cada interprete, o menor cathegorisado, da tragedia— onde nem um só pôde deixar d ser artista ülustre, capaz de pôr no dia logo e composição da figura, o cunho phantastico, allucinatorio, incorporeo, que d'alt a baixo domina toda a obra.
Desideratum impossivel, d'acordo: uma companhia dramática, de mais a mais errante ao ganh vida, tem d'ordinario recursos tristes de com parsaria e pannos de scenario; vestiário, guarda-roupa d'occasião, recruta para papeis menores, cabotinos infelizes e pobres trocatinias de feira —d'onde a grandeza do effeito scenico amesquinhar-se ou falhar, todas as vezes que a natureza d'esse effeito dependa de conjuntos, de collaborações geraes, ou d'accessorios impossíveis de supprir por subentendidos, ou de convencionar ACTORES E AUTORES 111 verbos d'encher — e é necessariamente o caso do Rei Lear.
Todos os pobres saltarellos que cercam o protagonista, pobre gente! entendem Shakespeare como a commissão do nosso centenario da India, entende a descoberta, isto é, fazendo nos Jeronymos exposições de chitas que desbotam, no Tejo cortejos de botes, e na Academia sessões solemnes com discursos sobre a divulgação universal de arroz de caril.
Vestuários com velludos e sedas de ramagens, dominós de panninho com capuzes do Boccacio, sapatinhos Molière, espadalhões e cinturões do século XVII, mobilias-gothicas em salões da Renascença, pateos de architectura normanda, pannos de fundo da. Suissa, florestas trovejantes com céos claros, eis o envolucro miseravel e fatal do Rei Lear, que podem darnos companhias ambulantes (em theatros portuguezes, seria peor), e que por mal de nós cerceam a absorvente illusão polysecular que o tragico nos dá, fazendo-o rei.
Passaremos sem isso — que remedio —mas não é razão para não chorarmos o irreparavel de assistir a uma tão bella obra, autorada! Que scenographia a compor Para o Rei Lear ideal, irreal, de Shakespeare 112 FIALHO D'ALMEIDA
e Emmanuel! Nada mais que sonhando genio pictural a dispender num tal involucro, a imaginação vagamundeia e delira saccudindo das azas, nocturnos polens carregados de visões. Tudo deve passar-se em Iogares irrestringiveis por linhas geométricas cores nítidas, architecturas definidas. Definir é matar; o quadro pede o paiz brumal onde tudo seja evocação transmutaníe, em deslocações de perpetuas fumaradas, atravez das quaes se aperceba um ou outro detalhe formidavel, antediluvial, super-humano.
Nas scenas do throno e na da refeição de Lear (actos primeiro e segundo) perspectivas babylonicas, massas de columnas parecendo troncos, véus distanciando a realidade, tenebrosas abobadas como grutas, lampadarios de luas cadavericas, as estatuas, molossos punicos, tropheus de espanto, utensilios de mysterio, armas irreconheciveis —a terrivel infancia dos povos dominadores no acto de aspirar ao pasmo do mundo, e se proclamarem semi-deuses.
Na scena da esplanada (terceiro acto), muralhas cyclopicas, montanhas de torres, pontes de robles, sanguinolentos brazões, forcas ao vento. A floresta, um assombro lacoontico, perspectivas d'inferno, vagalhões ACTORES E AUTORES 113 de cyclone, pandemonios de rochas e torrentes e a figura do rei, desesperada, dominando, como Moysés, o bíasphemar da natureza, colossal, com gestos de hypogripho entre o sabbat de passaros com azas em formas d'estrella, girando em ventoinha, e em cada ponta uma garra, espedaçando, a latejar, um coração. Este o scenario, que a figura do Rei Lear d'EmmanueI nos suggeriu, tanto o singular convulsiva, nos domínios do legendario macabro, este magnífico espectro, cuja estatuaria é verdadeiramente a glorifícação d'um povo, nosso irmão. Pouco mais a dizer.
Entre scenarios incongruentes e uma esganiçada matilha de figurantes derreados, mercê dos quaes caiu o acto da floresta, e que mais meia hora em scena teriam compromettido a creação d'EmmanueI, quando um actor resiste ao ponto de cegar o publico para os accessorios e concentrar em si todas as vistas, e mau grado a moldura ordinaria da obra, o phantastico é attingido com uma tão inverosimil assumpção de meios dramaticos, o melhor é admirar comme une brate, dizia o tctor Hugo, atarantado com a insuffíciencia dos meios d'expressâo. É o que eu faço, cogitando em que ,por este andar, nem outro 114 FIALHO D'ALMEIDA
tanto do espaço me chegaria para dizer o que inda falta.
O Casamento de Figaro, de Beaumarchais, rehabilitou um pouco a companhia dos passos tristes que tem dado, pelo tragico, e deu-nos um Emmanuel ladino e volante, em completo contraste com a expressão carregada das outras noites. A comedia é um encanto de espirito gaulez e satyra social, irreverente, tão actual, tão fresca, que ninguém dará pelo seculo que conta. Ahi está um classico que fez ter lastima dos escriptores de theatros contemporaneos, e que nós gostariamos d'ouvir todos os dias. Emmanuel distinguiuse, como sempre, e o conjuncto por banda dos mais actores foi menos mau, distinguindo-se a sr.a Varini, no papel de creada, que fez, desenvolta, alegre e finamente, dizendo as copias com graça e muita afinação.
(Paiz, 16 de abril de 1896).
Hamlet D. Amelía. — Companhia de Rossi-Emmanuel Já lá vae o tempo do Hamlet preoccupar os commentadores com a sua incoherente e philosophica personalidade, e de cada sedento de mistério, referindo-se a este estranho typo de Shakespeare, pôz a interrogação pavorosa —
que quiz elle dizer?
É uma figura Iitteraria, certa com os presentimentos psychologicos do tempo, e longa e secularmente actual, por symbolisar a hesitação do espirito humano, bruxuleante entre germens d'affecções modernamente estudadas pelos collaboradores da escola de Richet e de Charcot.
Até certo ponto simples, e só diffusa pelos labyrinthos em que cerebralmente a perderam os desfiadores de problemas litterarios, que muitas vezes prestam aos autores, intenções que elles nunca podiam ter. Accentuadamente nevropatha, e predisposto portanto 116 FIALHO D'ALMEIDA
para as eflusões intensas de sentimento Hamlet sofre um grande abalo moral pela morte do pae, e sequente casamento de sua mãe com o cunhado. O seu pendor, ou melhor diriamos, delirio, das negações, leva-o a não ver como coisa natural, aquella morte brusca, e a presentir no mysterio, o rastro d'um crime, que ainda mais morbidifica a sua organisação imaginativa, em completo desgoverno da vontade. A suspeita, á medida que o seu mal estar interior resvala ao pessimismo, e negação amarga de tudo, a ponto se avoluma, que bem depressa eil-a tornada idéia obcecante; e a obcessâo alfim. telepathisa-se, fazendo-lhe ter allucinações de vista e ouvido sob a fôrma do espectro do pae, surgindo á meia noite, na esplanada d'Elseneur, a pedir ao filho pacificação, pela vingança. A allucinação, porém, foi collectiva; dois companheiros da universidade participam d'ella, e Hamlet, apavorado pela responsabilidade da missão vingadora, e receando não poder dissimular na corte, seus intentos sangrentos de desforra, delibera exagerar ainda mais a allare extravagante do que previne os amigos, pedindo-lhes não estranhem quando as suas palavras e acções, perdendo a clareza e a coheren-
ACTORES E AUTORES 117 cia parecerem coisa d’irresponsavel tresloucado.
Definido assim o seu caracter, onde Shakespeare aponta, diffusamente, com uma intuição sublime, inaudita, todos ou quasi todos os stygmas do typo degenerado, tão rigorosamente restituido hoje pela criminologia contemporanea, a tragedia que se segue não faz senão confirmar e desenvolver d'uma maneira fatigante, é certo, um pouco lorpa e demodada, sem duvida, as premissas-bases do caracter cerebral e moral do principe dinamarquez.
Dar num desempenho de papel todas estas intenções complexas do personagem, construirlhe scientificamente um arcabouço, ir enxadrezando no jogo scenico, na mimica rostal, nas linhas quebradas da voz de Hamlet, tantas cambiantes varias d'esse typo hospitalar, tão estranho, e durante séculos impossivel de comprehender, por atraso medico, eis trabalho theatral que, podendo fazer a gloria d'um actor, pouco hausto lhe dará perante um publico sem educação nem Curiosidade, e por via de regra pouco intelligente. Razão porque os Hamlets maluquinhos são para Lisboa infinitamente superiores aos Hamlets conscientes, e porque os 118 FIALHO D'ALMEIDA
gritadores do papel, os monocordios de voz cavernosa e gestos de peço a palavra! hão-de ser sempre regalo d'um povo educado a vêr nos discursos do Arroyo o ideal da arte d'...
empolgar.
O desempenho do Hamlet deixa em conjuncto a desejar, como de resto outras tragedias d'esta serie. A sr.a Montagna, linda, linda, é na scena da loucura uma ideal quinquilheria. Ouviu applausos; das artistas que teem feito o papel, nenhuma cá veio melhor, mas devemos dizer que todas patinaram.
Emmanuel, como sempre, desegual. Os nervos que tem, não lhe consentem fazer d'um jacto as creações. Numa grande peça, só os acumes e scenas celebres o preoccupam. Grande aos rompantes, está muito longe de possuir a egualdade serena de Novelli, posto faça maior impressão em certas scenas culminantes. Por exemplo, o seu Hamlet de hontem, só se vê no segundo e terceiro actos, em que se não confunde, e deu o mais estranho principe dinamarquez que Lisboa tem visto em cincoenta annos de celebridades italianas. O
resto, como no Othello, baço e trivial, a ponto de cada um dos seus papeis parecer feito de dois, ACTORES E AUTORES 119 alternando-se em vidas paraleüas, desligados porém na sequencia episodica — d'onde no publico a desconfiança que ainda hontem se viu mesmo em pessoas d'uma certa lucidez.
Sobretudo o segundo acto, no monólogo e dialogo com Ophelia, e nascena dos comediantes do terceiro, o actor é grande e verdadeiramente possesso da alma philosophica do papel. Exprimiu a irresolução divinamente, deu a duvida pessimista como ninguém ainda dera, . e na scena quando recebe o cofre d'Ophelia, que cerebralidade rara e múltipla no magnifico poder de cambiar o sarcasmo e a fingida loucura, com o amor!
Papá Martin, foi hontem o drama representado, dando Rossi o protagonista para descanço do nosso Emmanuel. Muito pouca gente e o espectaculo muito discretamente desempenhado.
O velho Rossi deu no protagonista um bello typo de homem do povo, estudado e feito com uma stricta probidade de artista.
O segundo e terceiro actos ouviram aplausos, que reforçamos e reputamos metidos.
120 FIALHO D'ALMEIDA
O Cantico dos Canticos, um acto em verso, viu na sr.a Montagna uma adoravel miniatura de ingenua, en petit bleu. Mas é theatro em verso, e os versos só para mandar com amendoas ás namoradas. Hoje vae o Rei Lear; amanhã, o Hamlet; e o Nero segunda-feira.
(Paíz, 18 de abril de 1898).
A Duse na "Mulher de Cláudio,, I — A peça Resume-se, a intriga geral da peça de Dumas filho, num breve schema, alumbrado só nas linhas indispensáveis á comprehensào moral de Cezarina. Bastará copiar o que já de hontem ficou escripto:
«Um inventor de genio, deshonrado pelas prostituições da mulher (hyper-nervosa com todos os delírios da sua tara) é pouco a. pouco ferido, pela tigrina creatura, nos seus affectos mais puros e mais nobres, e afinal roubado por ella nos seus segredos de laboratorio, por suggestão de uma espécie de Mephistopheles de óculos, agente de não sei que sociedade exploradora do talento.
Cezarina, a mulher de Cláudio, que por uma d'essas reviravoltas de consciência multipla, fragmentaria e desparallela, das hystero-epilepticas, volta á casa conjugal com o dinheiro do adulterio, curiosa de ser perdoada 122 FIALHO D'ALMEIDA
e erguida outra vez no affecto do marido vê-se de repente enredada nas teias papulosas do Mephistopheles, e é forçada, por um conjuncto de choques moraes, a roubar-lhe de um movel, manuscriptos famosos que rezam da formidavel invenção.
Cezarina tem, como se diz na peça, a mania do amor. Da adolescência turbante e abandonada lhe viera esta obcessão vaidosa de seduzir e não deixar passar um homem sem lhe instiílar no peito o philtro convulsi-, vante da sua belleza sphingica e pervertida. Até ao momento da peça, Cezarina só por fora do domicilio conjugai prevaricara; de sorte que mesmo opprobriando Cláudio Ruper, tivera ainda o recato de lhe não empeçonhar o ardo seu remanso de sabio espiritualisado no ofertorio d'uma obra ás grandes causas da humanidade e da justiça — visto como Cláudio Ruper, se inventa machinas de guerra visando destruir fortalezas e couraças, põe o problema da hecatombe em tal grandeza de ferocidade e de ruina que todo o criterio da victoria ficai pelo mortifero dos seus inventos, aniquilado naquilo em que o vencedor melhor se estriba para domar, isto é, no consenso unanime a auctoridade obtida sobre os fracos, pelo sen- ACTORES E AUTORES 123 timento attrahente do heroico, que a estupida arnagem da machina para sempre anniquila nos espiritos. Mas eis que o panno sobe sobre uma infâmia peor de Cezarina, que vendo Antonino, o discípulo amado de Cláudio, um adolescente de genio, e, como o mestife, inventor de grandes coisas, proposita vampirisal-o nas puras fontes da sua alma inexperiente, enredando-o na teia que os seus olhos garços de etaíra fiam de roda ás juventudes ainda invioladas. Antonino é assim turbado na consciencia do seu límpido amor por Cláudio Ruper; não pode evitar a diabólica attracção de Cezarina, que o espicaça, e, já criminoso moral, sente o resvaladíço da sua deslealdade para o mestre, e quer fugir.
Cláudio adivinha: amou também com um coração de vinte annos, e a tempestade interna do discípulo symptomatisa-se par e passo por syndromas que o seu vastíssimo espirito reduz, com precisão dolorosa, á nosologia da sua antiga paixão pela mulher.
A scena em que essas duas edições do mesmo affecto, apenas distanciadas pelo tempo, estacam deante uma da outra, adivinhando-se, confessando-se, é realmente de uma desoladora e tragica poesia; e a bondade 124 FIALHO D'ALMEIDA
de Cláudio dizendo a Antonino que soffra e pague o tributo á mocidade, vencido o qual a amizade dos dois seguirá divina, pelas afinidades da crença e do talento, attinge uma grandeza, uma altitude, que todo o grotesco da posição conjugai do inventor se esquece restando, em vez do homem, uma espécie de inviolavel serni-deus, Cezarina volta a casa depois de alguns mezes de ausencia, durante os quaes o seu segundo grande crime é commetido. Esse crime lh'o lança em rosto o sr. Guilherme Cantagnac, o mephisto que compra invenções de genio para um syndicato phantastico, a todo o preço, e que, descobrindo em Cezarina o panctum saliens da convizinhança de Cláudio Ruper, ha tempos espia o momento de surprehender, em flagrante delicto, a creatura.
É também uma das grandes scenas do primeiro acto, e aquella onde a facinorosidade da mulher desenha o monstro. Cantagnac, para se apoderar de Cezarina, começa por lhe ler, no cabalistico da face, a buena-dicha.
Diz-lh'a na cara —frivola, feroz, inconsequente e venal. E quanto quer ella por lhe vender as descobertas do marido ? Mas ACTORES E AUTORES 125 Cezarina tornava a Cláudio, moida de adulteros e com duzentos mil francos num cheque, oultimo amante lhe vasara nas dobras do ultimo leito, partilhado, vão lá saber em que pocilga.
Por uma impulsívidade de uterina, ella vem mirando accender, com esse dinheiro da venda do corpo, os fornilhos exhaustos do laboratorio scientifico do marido, que, como Bernardo Palissy, vae vender a casa, para poder continuar as experiencias.
Quer reentrar na vida do inventor, interessal-o pela piedade, ser erguida; e Cláudio, repulsando o dinheiro, é breve e secco, e, evitando fítal-a, passa adeante, sem demonstrar interesse ou misericordia.
N'esta solidão completa, sanguisuante de desprezos, acorda por sua vez a fera humanisada, deante de Cantagnac, que friamente lhe desfia a historia dos seus crimes.
E no meio de leviandades de solteira, um menos escrupuloso fal-a mãe; reclusão de alguns mezes numa baiuca dúbia de parira, um engeitado ao mundo — reapparição e Cezarina na antiga phase de flirtações e coqueteios, amores, amores, todos secretos; Por fim Cláudio Ruper, ingenuo, nobre, dá a sua mão de esposo á vil comborça.
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Cezarina, num momo desdenhoso:
— Meu marido conhece a historieta.
— Alguém lh'o disse.
— Uma mulher não conta nunca essas vergonhas.
— Denuncia então?
— Exactamente. E perdoou-me.
Razão de mais para Cezarina fechar, pelo respeito a Cláudio, a antiga ulcera. Não foi assim, e amantes novos reengurgitam a serie das suas grandes aventuras. Qual a razão?
A justificativa da mulher de Cláudio, de pavorosa e humana, attinge um acume; é a historia de todos os orgulhos mal pisados, recidivando no ódio ao sentir que o perdão ; dos juizes apenas seja uma suave forma de ; desprezo.
Cezarina recahe, por nunca mais ter podido ser esposa. O perdão que ella queria de Cláudio era differente; e abatida do culto primeiro, como é de raça heroica e indomavel fereza, uma irreparavel saudade a atormenta, arrastando-a, para illudir os nervos, de prostituição em prostituição, e de culpa em culpa. Cezarina é uma versão portanto d'esse principio do mal, goethiano, que se desirmana do bem, pelo egoísmo aspero do próprio bem, e que na sua anciã dos paraisos perdidos revolve céos e terra, ACTORES E AUTORES 127 de catastrophes, contaminando os que tocar e amontoando com victimas um grandioso hymalaia de protesto!
E Cantagnac de lhe retrucar, sardonico, que se o inventor perdoou um primeiro parto, não perdoará segundo, certamente. Aqui se crispa a fêmea, alanceada no secreto de um mysterio recente, ainda mais lugubre.
O ultimo amante acaba de a largar (e de onde quer que está, nunca mais volta), deixando-lhe o cheque dos duzentos mil francos, e novo cachorro no ventre, que ella despejou, lhe diz, nas alovas de qualquer megera confidente.
Acontece, porém, ser esse amante um agente banal do svndicato, que, demasiado amoroso, roubou a caixa forte para pagar as exigencias febris de Cezarina. Cantagnac tem pois a mulher de Cláudio nas mãos. Ou entregar-lhe os segredos do inventor, ou incorrer no escândalo divulgado de prostituta receptadora de roubos.
Percebem, hein? Cezarina vae agora seguir um de dois fios: obter o perdão de Cláudio e livrar-lhe assim a obra, da pilhagem; ou commetter o extremo delicto, o supremo, o terrivel, de vender a Cantagnac os manuscriptos do sabio, inutilisando uma 128 FIALHO D'ALMEIDA
vida sagradamente entregue á gloria de um paiz.
*
A anciã de purificação esfogueia-lhe a sensibilidade amolgada por tamanhos resvalos na lascivia, e é o perdão de Cláudio que ella quer, por força, indo a elle com o olhar dianteiro»
onde nas pupillas se esmalta d'esta vez o sudario franco da sua vida passada e saudosa de céos claros. Começa por lhe pedir que a creia sem garantias que não lhe pôde dar, por lhe jurar que está sinceramente arrependida, por lhe dizer que a nivele com elle e novamente a reintegre no seu tão curto papel de companheira e confidente, collabo-radora de trabalhos, discipula nos inventos, a ponto que a obra de Cláudio seja também um pouco, orgulhosamente, filha sua.
—Vendel-a-hias —diz-lhe o sabio.
—Não, não, não é isso ? — Que Cláudio se decida num minuto; ella não poderá prolongar muito mais aquelle transe; occultas determinantes aguardam que elle a repitta, para o demonio perverso novamente a estudar do seu diabólico virus agitante. Ai! ei amara-a tanto n'outro tempo, tanto, tanto! ACTORES E AUTORES 129 de quando um homem d'aquelles chega a querer a uma mulher como ella era, alguma oisa fica de eterno e indestructivel na ductilidade psychica da mulher. Se reincidira no vicio, é que esse perdão primeiro de Cláudio a trespassara d'um glacido desprezo, reduzindo-ihe a vida a uma servidão de sombra obediente, que a sua aristocracia barbara contunde, acordando revoltas contra a incom-prehensão da sua indomita energia. De rojo agora, agarrada aos joelhos de Cláudio, a misera supplica, como Magdalena de que eíle fosse o Jesus inexoravel: não com o absoluto remorso de quem irreparavelmente se resigna, abdicando, mas por essa curiosa duplicidade da hysterica, que, saciada de culpas, por seu turno, em arroubos mysticos quer experimentar a sensação novíssima de ser pura e alvinitente. Ha um supremo minuto em que a cabeça de Cláudio pende, commovida, e naquella bocca, murcha de não rir ha tantos annos, passa um murmurio de amarga sympathia.— Pobre mulher!
Perdoará? — Perdoa ? Oh livida chimera! O
coração do sabio evoca o religioso amor d'outr'ora e não no sente; a imagem perpassante é outra, Rabecca, a sua doce judia, consoladora das horas de ludibrio, e que n'essa 130 FIALHO D'ALMEIDA
hora lethal se vae partir c'o pae direito ao Logares Santos.
De novo a raiva crispa, nas mãos supplicantes de Cezarina, o humilhado gesto em repregos de garra sofreada, e a voz se lhe cambia em uivo, e o rictus do lábio, dulcifícado de esperança, se lhe põe a tremer de babas convulsivas.
Satanaz codilhado, não é mais terrifico do que ella, a diabolica repulsa, em cuja espinha de serpe perpassa o calafrio do mal outra vez debordante no seu peito. Oh miseria de a não quererem anichar no canto de calor que procurava; impôr-se-ha, vingar-se-ha! e desgraça aos que attingir a sua mão-sedenta de represalias e protervias. Cláudio lê-lhe a resolução tremenda nas pupilas. Essa furia será fecunda, certo — e o desfecho da ragedia prenuncia-se.
— Miseranda de ti se ousas tocar nos seres que me são caros? Miseranda, se com teus extranhos malefícios travares a missão sagrada que me impuz. Matar-te-hei!
E ella direita, fumegante de peçonhas epicas, toda num hausto de perversidade, divina de raiva, sublime de ignomínia, estende o braço e aceita o desafio. Acabou-se! Não na querem melhor. Pois será criminal até ao fim-
ACTORES E AUTORES 131 do final do segundo acto. O resto, conclusão umniaria, e pouco diz. Tendo chamado ao frio o fragil Antonino, fal-o sahir de lá para uardar no cofre dos manuscriptos de Cláudio o famoso cheque destinado a pagar as experiencias paradas do inventor. O cofre, berto, baixada a chamma do candieiro, por ausa dos ladrões, Cezarina, aproveitando penumbra, rouba os papeis de Cláudio, é entào que o singelo rapaz vê fundo na armadilha, e que Cezarina, triumphante, hama, da janella, Cantagnac, que espera, óra, o signal dado. Um tiro de Cláudio:
realisa-se o prognostico da bruxa, que, sendo Cezarina pequena, lhe predissera uma morte violenta. E o corpo cae no chão, de uma só eça.
Reduzida assim á simpleza narrada do ntrecho, a Mulher de Cláudio, de Dumas Ibo, não passa, como vêem, de um melodrama inverosimil, escalando as regras do aturalismo flaubertiano e zolaico, e apenas erado na contemporaneidade da scena, nome do dramaturgo, até ha pouco por uma reputação vivaz de mora- 132 FIALHO D'ALMEIDA
lista. Infelizmente a morte envelheceu-lhe a obra um pouco mais depressa que o costume, tendo-se começado a reparar que os famosos prefacios eram antes uma justificativa engenhosa das peças, depois de escriptas, do que propriamente taboas do evangelho philosophico de um poderoso e arguto pensador, que exemplificaria assim, com figurações theatraes, dialogadas, os fundamentos :de uma moral social, visando abolir muitas idas antigas convenções e preconceitos. Em breve, no rapido evolutir das litteraturas, d'essa sociologia paradoxal de Dumas filho, restará apenas o espirito sarcástico, a lingua brunida, fria e incomparavelmente correcía dos diálogos, e mais que tudo uma incapacidade creadora e uma phantasia pouco fertil, mettendo em scena o mesmo typo autobiographico, venho a dizer Dumas filho, correcto e nitido, sempre o mesmo, paradoxando atravvez dos seus dois ou tres centenares de personagens. Quando, n'um aparte d'essa preoccupação philosophica, que tantas cabeças de artistas estraga, ao dramaturgo lhe dava para inventar coisas mais cerces, de longe a longe sahiam-lhe, d'entre construcções difficeis, deliciosas joias de sensibilidade e de ternura, como essa Dama das Camelias, que nao ACTORES E AUTORES 133 inova a regeneração da cortezã pela paixão, pois Margarida Gauthier é uma honestíssima rapariga, mas que eterna, eternamente ficará na saudade dos que tiveram vinte annos; ou como esfoutra Mulher de Cláudio, que travestindo em feminino o espirito malevolo, creou assim um pequeno Fausto contemporaneo, accessivel aos cérebros rasteiros, e de um encanto perverso, onde todas as mulheres de grandes homens podem rever, um pouco, as suas almas incompletas.
O desempenho?... Uf! tem de ficar para amanhã.
— Hoje, Magda ou a Casa Paterna, de Sudermann.
(Paiz, 14 de abril de 1898).
A Duse na "Mulher de Cláudio,, II— A actriz Eleonora Duse é uma mulher de quarenta alnos, magra quanto se pode ser no ponto eu que a saúde, por demasiado melindrosa, aitraiçoa, já latente um mal minante — longa de membros, linear, sem ancas, insexual de stilos, e com uma cara, onde, aparte um queixito de rabeca, nenhuma linha d'aresta lhe noblifíca e accentua a mascara dramática. O olhar, porém, celeste e intermino de raio, cono o das pessoas sòsinhas que teem passado a vida a contemplar, o olhar teni a realeza magnifica do genio, essa profundidade morbida da idea que espiritualisa as faces ttaisinertes, e deixa cahir olympicamente a sedução.
Tem quasi sempre a tinta pallida, a pelle um pouco morta, os olhos fundos; e para mimas paixões de chamma intensa, nem sempre adaptaveis ao constrictus d'uma physio-
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nomia sem linhas dominantes, creou um facies scenico, pessoal, que occulta o mau impõe o prestimoso, d’onde caprichos de jogo preponderantes no computo final de sua aureola. A voz de fôlego curto (d'ahi -dicção cortada, a par do gesto neuropatha e o som falhado das larynges estragada; tem, todavia, um encanto supremo nos tors labiaes da caricia murmurante, quente ra confidencia, e estrugindo, pela meia rouquidão, diabolicamente, nos accentos da raivas da maldade.
A vida do espirito só, parece immens divinamente disposta á violação de todos os meios termos da expressão, e sobrepairando na altura dos mais altos genios tragicos. Deve ser uma hyper-nervosa com todos os martyrios da sua tara espinhal e cerebuí, de uma sensibilidade estranha e adivinhante, mortalmente desconnexa fora da illusào ;gloriosa do theatro, de uma altivez de princeza, serpentina, espargindo fluidos telepathicos, e perpetuamente vergada ao tormento de izer viver, morrendo aos poucos, como esses soes que allumiam, fertilisam, e dentro do coação só teem lavas. Quem uma vez a escut na o pôde mais furtar-se ao mysterioso sortegio, para poetas que como nós nunca mais orna-
ACTORES E AUTORES 137 rão a vci a,, essa recordação fivará como uma das coisas doces e amargas da cerebrahdade artistica moderna, feita de sonho, duvida, mysticismo e perversão.
Eleonora Duse pertence, como o grantie Novelli, á escola criminalista italiana, que na modelaçâo exterior tão insinuantes acquisições serve ao theatro, e do coração da qual tarde ou cedo brotará uma litteratura poderosa, reveladora, naturalista e psychologica a um tempo, quando as doutrinas lombrosistas, ferriistas, morellistas, sahindo da rigidez dos tratados, alagarem completamente as bellas-lettras, desenvolvendo e fixando, nos romances e nos dramas, em cada figura viva consoante a intensidade e a estranheza, o respectivo typo hospitalar.
Pela educação litteraria, porém, Eleonora Duse é franceza, com um jogo scenico francez, predilecções por peças francezas, e de uma identificação de educação e de caracter taes com Sarah Bernhardt, ao contrario do que por ahi parvejam, que as duas grandes Mulheres se parecem como duas irmãs do mesmo leite, embora dessemelhando-se na creação, como genios autonomos que esculpissem com a mesma genuinidade de meios, estatuas differentes. Nem d'outra coisa pro- 138 FIALHO D'ALMEIDA
vém a sympathia carinhosa de Paris por esta parisiense italiana, cuja celebridade, n'aquella cloaca-cerebro do mundo, deriva das exaltações de Dumas filho no prefacio da Bagdad e de ser a Duse a mais alta expressão dá supremacia dramática franceza, que até em Itália, pátria da arte, enfloresce e anima d'aquellas grandes flores. Ouço por ahi jor-naes araviarem: só pretende a verdade, a verdade isenta de trucs scenicos e artificios. Outro distate!—Verdade, verdade... o que é na arte a verdade, e sobretudo na arte do theatro, onde tudo é illusão, ficção idealista, composição p'ra ver d'um lado?
O typo de Cezarina é tão verosimil com Sarah, como ante-hontem o foi com Eleonora;
ambos existem, pois nenhum d'elles é real —no sentido, já se vê, de ser qualquer d'essas figuras dramáticas o cumulado da maior somma de caracteres psychologicos, anatomicos, sensiveis e motores, das mulheres perversas, nas condições sociaes da mulher de Cláudio.
A scena da tentação com Antonino; a da espingarda; a scena muda com Cantagnac, logo após; a scena de paixão co'as rosas, piano, no segundo acto; o humilhar-se ante o marido; o juramento, a vingança, nada, abso-
ACTORES E AUTORES 139 lutamente nada d'aquillo é verdadeiro fóra de scena, porque a realidade seja no theatro uma das mais sutis e complexas fórmas de idealidade artistica, que a Duse tem hoje, num grau de transfiguração, de suggestão passional, como ninguém. As differenças pois de detalhe entre essas duas musas da poesia dramatica moderna, Sarah Bernhardt e Eleo-nora Duse, por forma alguma derivam d'um predominio de ideal ou real n'ellas proposto como acto voluntário da sua comprehensâo particular do personagem. As differenças proveem dos ares do tempo, e da íitteratura em que cada uma d'essas extraordinárias mulheres desabrochou.
Sarah é da litteratura romantica de Hugo e Musset; a Duse vem já depois, com Dumas filho e outros proceres do drama observado. Torno a dizer:
differenças simples de composição e detalhe, porque a mesma idealidade que incende o romantismo e a actriz romantica, vive e floreja no naturalismo e na actriz o incorpore sobre a scena, pois sendo a ideal e ficção que vivem as artes, querer reduzil-as á banalisação automática da vida, fazer a apotheose da photographia coloca. Porém, dada esta peça da Mulher de Cláudio, qual das duas creações prefere você?
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Com tal pergunta, já o caso da preferencia muda muito; e responderei «prefiro a Duse porque a Duse, em primeiro logar, é a ultima que eu vi, e infelizmente as recordações, na corrente do tempo, murcham a esthesia do goso esthetico, em torpe ingratidão; e em segundo iogar, porque essa mulher, modelando a perversão de Cezarina n'uma armadura de malhas scientificas, familiares ao meu espirito, características do meu tempo e predilectas da minha educação, fala-me, por esse facto, com redobrada eloqüência, lisonjeia a minha vaidade de sábio, jungindo n'um admiravel complexo coisas que até ha pouco pareciam não se poder jamais auxiliar.
Tornando a Cezarina. Pela narração feita da peça reconstroe-se a facinorosidade moral da creatura; uma degenerada da raça das Theodoras, das Messalinas e das Tullias, de grande tara e grande estirpe, magnifica imperatriz despotica, abandalhada numa pobre residência de sabio impotente, escravisada pelo desprezo, e revoltando-se, como se revoltam as feras, á dentada.
A neurose d'ella inicia-se por desvanos uterinos — com amantes, noitadas, saturnaes, perdida a linha de dama, contrae um fascies de gandaia, que os partos forçados, os rins ACTORES E AUTORES 141 partidos, a hysterogenia espinhal, a inconfluencia impulsiva, e o perpetuo estado delirante clownescamente aureolam num cortejo mor de estygmas e derrancos.
O abandono de Cláudio, luctas com os amantes, o dinheiro faltando, os desejos de luxo, a raiva de domínio, todos estes sobresaltos fazem convergir do tenebroso fundo morbido de Cezarina, em carga cerrada, o completo quadro da loucura moral, fechado co'a scena do roubo dos papeis, ou talvez coisa peor, se a peça proseguisse. Eleonora Duse, chamando a si todos os infinitamente pequenos da symptornatologia nervosa, tão bem definida nos estudos criminaes dos seus patricios, reforçou formidavelmente a psychologia d'esse typo rebelde e obsidionado allumiando, com ineguaiavel pujança, a alma de Cezarína no corpo de Cezarina, e dando a illusão d'um typo inteiro, fora da mediania humana, e tão cerradamente feito de uma só peça, que o publico ingenuo, não podendo separar dos triviaes aspectos da vida a illusão artistica conseguida a poder d'estréme Realidade, o publico ingênuo, pela bocca nos jornaes, pôe-se a dizer —é differente da Sarah, tem mais talento que a Sarah, na o produz nem quer senão a verdade!
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E todavia que delicada e transcendente aristocracia, a d'essa seductora tigrina, dando com Antonino no primeiro acto, vindo cheiralo e miral-o, sentindo-lhe a virgindade timorata, e como panthera sedenta, não o largando mais co'a vista. Como ella exprime o vicioso desejo que lhe avassala a alma impudica, girando á roda d'esse corpo que cheira a carne sã, estudando, comparando olhando-o por cima das cabeças, procurando o seu calor e os seus contactos, mulher serpente, cuja narina resfolga o cio da femea afeita ás laceraçòes mortaes do amor bruto! A scena da espingarda, em que a mão de Cezarina resvala da arma, buscando por successivos avanços a pelle do rapazola, é uma coisa que só tem parallelo na similar de Guerrita, fascinando o toiro, e tornando-lhe as costas depois, sem se voltar.
Com Cantagnac reapparece a phase cynica:
a impotencia da cortezã perante a injuria, a frialdade mordaz de affrontar perigos, a insensibilidade chegando á heroicidade, e por fim, quando o outro allude ao roubo dos duzentos mil francos, a cobardia calculista, que, sentindo-se perdida, procura, na agitação convulsa do perigo, um caminho, de dois, para se escapar.
ACTORES E AUTORES 143 É n'estes lances que a admiravel percepção da actriz vence os maiores perigos dos seus talvez incompletos recursos physionomi-cos e que uma sabedoria maravilhosa do officio recorrendo a manobras estheticas, como o jogo dos braços, a mimica adunca dos dedos, a serpentinidade dos giros e as reful-gencias do olhar, vence e domina os reparos que a voz, talvez, a cara chiffonnée, a escor-rencia das ancas e o busto insexual, podiam despertar.
Cada scena, cada reviravolta, cada gesto que d'aqui por deante succeda, é um completo encadeado de testemunhos sublimes, levando a conclusões d'assombro e perdição. A linha hysterica domina nas incapacidades da attenção, nos impulsivos da replica, nos haustos vocaes que a todo o instante cortam a tirada... an? an?...; as mãos, no fim de braços torvelinhantes como cobras, teem por dedos garras com o ar de se desembainhar das palmas, em crises de desafio ou de furor. E quando, no meio dos desvarios, a alma acorda, e Satanaz tem saudades, oh! Deus, que cyclone sublime aos pés de Cláudio, que phrenesis de humilhação!
e como ellas e roja, a face em terra, e como esse passado vibra em bofetadas de remorso, n'um furacão de 144 FIALHO D'ALMEIDA
gritos e de gestos, que é a aura do ataque prestes a fazel-a rolar em contorsões...
Fecho esta arenga paraphraseando o dizer de um sultão de Bagdad, para a Judith: — Esta Duse é uma alma de chamma, n'um corpo de gaze.
Cedo, tarde, a chamma tem de queimar a gaze.
(Paiz, 15 de abril de 1898)
A Duse na "Magda,, Magda, por uma falta de amor, solteira ainda, é expulsa de casa dos pães, uma famüia de militares e pequena burguezia.
Pouco depois de expulsa, o amante, barão Keller, por quem ella se perdera, abandona-a por seu turno, e Magda, sòsinha na vida, cora um filho nos braços, tem de soffrer miseria, fome, pisaduras do mundo, todos os baldôes emfím das raparigas desviadas do ramerrão do casamento.
Animada das energias viris de uma rebelde, sahe da miseria dubia, pelo canto; e feita cantora de cafés, e pouco depois estreita de opera, rapidamente alcança uma invejada celebridade. Nas suas jornadas de artista, e attrahida mesmo por uma nostalgia de infanta vem á cidade natal, e busca no bairro quieto a casita modesta de seus pães. O pae de Magda, velho coronel hemiplegico, intuido de auctoritarismos, senhor despotico a casa, recusa a principio recebel-a; mas 146 FIALHO D'ALMEIDA
alfim cede, instado pelo pastor, que tem sobre elle um ascenso moral de grande força.
Magda, penetrando os humbraes da residencia, sente logo querendo apoderar-se d'ella o despotismo feroz do coronel, que contém nas medidas todavia, forçando-o a acatal-a como creatura independente. Depois dos reparos instantes do pae, e d'uma parlamentação habilmente adoçada do pastor, que outr'ora a amou, ou ama ainda, Magda consente em ficar de todo na casa paterna, sob clausula porém de jamais o velho coronel a interrogar. O seu espirito frondista, os habitos de vida livre, o seu despego das fórmulas e a altivez d'um caracter soberbo de haver feito caminho só, co's seus recursos, dão constantemente na casa motivo de extranheza, onde pela vehemencia da replica salta o espirito de Magda, chocando aquelles pobres parentes peados nas convenções banaes da sua burguezia. A par do drama moral de Magda sagrada de triumphos e roendo a agonia da sua historia anterior, vive um idylio da irmãsita Maria, com o tenente Max, e d'este contraste das duas mulheres, pura e manchada, mana a ribeira lyrica do drama, irrigando as mais delicadas scenas da peças.
ACTORES E AUTORES 147 Entre as visitas da casa, por acaso, apparece a do barão Keller, o antigo amante de Magda, que em carreira diplomatica, ambicioso de coííocar-se e fazer vista, evita agora as falsas posições, os romances sentimentaes, e todos os empecilhos que possam comprometter-lhe a sonhada fortuna.
Magda, recebendo-o, indaga, com ironia cortante, dos seus projectos; e, furiosa do egoísmo do biltre, lança-lhe em rosto, subito, n'uma explosão de desprezos, a infamia de a ter deixado a um canto, a mais o filho.
O velho coronel tem estado a ouvir, porque lhe fora sempre idéa fixa esse passado da filha que elle adivinha tocado de podridão secreta; e chamando Keller a terreiro, recebe d'elíe o pedido official da mão de Magda. A
rehabilitação, a vida honesta... o pobre coronel exulta de alegria; mas Magda, sem enthusiasmo algum pela proposta, sondando o noivo, ouve da bocca d'elle as condições sine qua non do casamento: deixar o theatro, e abandonar o filho que daria á baroneza Keller um passado em que a sociedade tinha de vêr, por força, a nodoa irreparavel.
A estas palavras, Magda rebenta. Das suas imprecações sahe o protesto vermelho, viril, 148 FIALHO D'ALMEIDA
formal, da mulher emancipada, esmagando as hypocrisias sociaes que a victimaram, polluindo todas essas falsas virtudesinhas burguezas, e leonina surgindo, espumante de sarcasmos, de todas essas miserias cynicas da vida honesta, para expulsar Keller. e dizer ao pae emfim que quer continuar a ser cantora, liberrima no mundo, embora mãe sem marido e amante conspurcada!
Como naturalmente sentem, tem este drama a sua these feminista, extremamente actual; e por isso, e porque se presta á exhibição coleante de uma primeira actriz na posse de recursos, figura elle na bagagem de todas as celebridades internacionaes e viageiras, que assim o vão passeando como obra prima, quando elle afinal não passa, aparte algumas scenas, de uma fastidiosa e longa conferencia.
Como entretanto succeda haver papeis absorventes, o ponto sendo fisgar actores que os saibam dar—Novelli no coronel da Magda, não deixava reparar em mais ninguém — certo me acredita o leitor que para casos de artistas, como a Duse, fabulação e entrecho, não existem; o que se quer é seguir o personagem.
Vou dizer a minha opinião sobre a Magda de Eleonora, um pouco afflicto de me sentir ACTORES E AUTORES 149 tão incompleto, que, mesmo sob a fascinação do gênio, eu não posso abstrahir jamais da forma physica que o dimana. O proposito altivo de se não corrigir physicamente, prejudica a illusâo d'este papel da Duse aos olhares de todos os voluptuosos que, como eu só podem ser allucinados por uma illusão d'unisono, venho a dizer, com os sentidos todos vibrando ao mesmo tempo.
Ora uma figura magra, de busto curto e peito chato, de braços emaciados e mãos rugosas, penteada como na Cezarina, e sem um refresco de caracterisação na pelle ardida, é para a lubricidade dos meus nervos uma frem imperfeita incarnaçao da grande cantora errante, que vive de pisar corações e rolar riquezas, e que no apogeu dos desdens e das revoltas não guarda, abuzada e deslumbrante, uma belleza de imperatriz.
Claro que isto seja exigência parva dos nervos, e que o talento supra, nas transfigurações divinas do seu halo, todas estas negações falazes da estatuaria e da belleza. No mais, Magda é perfeita. Logo se nota, á segunda audição de Eleonora, como ella é demasiado pessoal para entrar num papel dominando o seu eu quotidiano. São os papeis que entram por ella, ageitando-se á con-
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figuração primacial do seu espirito, por forma a ficarem com uma marca da fabrica, que os amesquinha depois, vistos por outras. Assim havia no 2.° acto de hontem, entre Magda e Cezarina, evidentes pontos de contacto.
Emmanuel também os tinha; Novelli era mais raro. Nos 3.° e 4.° actos da Magda da Eleonora Duse, em successivas scenas, a escala toda de uma pujança dramatica rarissima. A confidencia com a irmãsita, é um poema de etherea graça, cantado todo de beijitos que zumbem, como abelhas, nos cabellos da pequena — ou perante aquelle amor tão puro, a entrecortada angustia de Magda, lembrando-se do seu — ou depois, com o coronel e o amante, a explosiva independência da bohemia voluntariosa, acostumada a vencer e a dominar — e os seus protestos de liberta, batendo as convenções sociaes á bofetada e a explosão de lagrimas finaes, quando a apoplexia fulmina, no meio da maldição contra a filha, o auctoritario e estreito coronel..-Genio em torrentes, correcta arte, o bello raro, o bello unico —mas porque diabo vim eu para casa aborrecido?
(Paiz, 16 de abril de 1898).
A Duse na "Dama das Camelias,, A peça de Dumas filho tem um sabor dos vinte anos amorosos, que todos hão sentido refrescar-se-lhe na alma, quando, á hora dos cabellos brancos, um pouco de melancholia torna a contemplação para o passado, e nelle remira os chuviscos e soes da primavera. A
impressão deixada pela leitura d'essa peça é ; a de um lacrimoso e claro hymno á mocidade, ao amor, e ás absorpções sentimentaes da vida livre; mas as successivas audições, boas e más, da peça, em drama e em opera, realejo e prima donna, tisicas gordas e peccadoras no seu estado interessante, teem seccad um tanto o publico para os effeitos emocionaes de alguém que porventura ainda d'ella uos dê qualquer versão inedita e original.
Aconteceria isto á Duse, o outro domingo, se a comprehensão dada por ella ao typo ideal de Margarida Gauthier, a principio desenhado em meias tintas, não entra a diversões e a esfugar, do quarto acto em deante, 152 FIALHO D'ALÍMEIDAA.
para uma immateríalidade de caracter, para uma diaphanisaçio de sentimennto, que antes d'ella nenhuma definira e fixarra, naquelle pé de martyrio apotheotico.
A Duse em Margarida Gsauthier não é como esperávamos, a cortezã que o amor absorve e transfigura, e Sarah Bernhardt nos deu, com a sua itiegualavel fascinação romantica, passada de dandysmo. A Duse em Margarida Gauthier é, como Annunzio lhe disse, a grande amatrhi, debordand«o de temperamento, encarnando a paixão «das amorosas, prestando a sua mysteriosa alma italiana aos profundos pelagos do amor tornado delírio sentimental e idéa fixa.
Em Sarah Bernhardt vê-se «a cortezã parisiense, educada nas festas espherneras da noite, enrubescida ao calor do artificial, com fructas raras, licores e toilettees; e assim o typo circumscreve-se num aro de sociedade e de paiz, saltando para os palcos da Europa, como figurino por onde as ssubalternas da scena vestirão. Em Duse, a cortzezã não existe, maiormente, posto esteja nas tiradas e rubricas da peça; a Índole da actriz tira-lhe um pouco essa essência capitosa, introduzindo a Madona, e, para assim dizer, soffreando o desejo numa saudade lethal do paraiso.
ACTORES E AUTORES 153 Concorre para isto, na Duse, a quasi completa ausencia d'isso que se chamaria a belleza profissional, e a natureza de um genio, que com ser de um tempo analytico, e preoccupar-se de almas excepcionaes, não duvida, á força de personalidade altiva, encontrar nos personagens, variantes suas, como outras tantas correcções á obra dos escriptores a quem ella faz a honra de acceitar.
A Margarida creada por ella, é talvez mais absorventemente amorosa, mais tragica, mas, na vida da crapula, apenas roçou, sem macula, as pontas das azas, e aspira ao casamento, como as amorosas dos romances de Stendhal aspiravam ao claustro, por um excesso de morbideza italiana, que faz do amor o irmão da morte. Dentro d'este criterio, a creação da Duse, um pouco molle até á renuncia do terceiro acto, começa d'alli a sua linha divergente; os adeuses a Armando, que fecham esse acto, sellados com beijos na bocca, onde a alma d'ella se instilla, fazendo Armando comungar-lha no halito, são já uma das acquisiçôes pessoaes da artista italiana, oprimindo por contactos as ancias do afastamento, e a volupia aguda da dor.
No quarto acto, o grito d'ella, Armando!
Armando! modulado em escala crescente, 154 FIALHO D'ALMEIDA
umas dez ou doze vezes, na contrascena c'o amante, é toda uma visão novissima da arte de contrascenar, sem se ficar neutro na acção Verdi dissera, ouvindo esses Armando! nas dez ou doze inflexões que vão do queixume triste á supplica angustiada, d'esta ao grito estridulo do assassinio —e que se mais cedo ouvisse a Duse, noutro final, largo e differente, exprimiria a desesperação da Traviata.
É natural que a Traviata ficasse sempre o que tem sido, mas nem por isso esta palavra do velho musico especifica peor a melancholia de um Solness repezo, na torre do seu phantastico castello, de não ter achado a tempo uma Hilda assim.
Onde, porém, a Duse excede tudo é no final. Margarida agonisa, e vê-se uma d'aquellas exhibições pathologicas em que o italiano sobreléva, tocadas, porém, na concatenaçâo dos detalhes, de uma sobriedade fina e de uma elegante mise-enscène. O arranjo do leito, em branco, resahindo como frouxel no quarto escuro; a luz velada de verde, ao alto, plaqueando de livido a magreza etherea da enferma; as grandes roupas bordadas, com pregas lentas, amarfanhando a forma diaphana — a voz quebrada da Duse, babando infantilmente os seus queixumes de rola, tudo ACTORES E AUTORES 155 isto suggere a lenda longinqua da tisicasinha que todos tivemos, irmã, cunhada, viuva, mulher, filha ou parenta; e só isto basta para nos velar de crepe o coração.
Começam nesse inicio de agonia, as desordens reflexas e nervosas: calores, frios, suffocações, vislumbres; e a scena da carta do pae Duval, promettendo ligal-os, a carta que Margarida guarda no leito, como um attestado de escrava liberta, abrindo-lhe as portas do respeito, da dedicação e da familia;
a carta que ella sabe de cór, lida vezes sem conta, abre, assim recitada de cór, num tom monotono de reza, sobre esse estreito quadro lugubre, perspectivas de visão shakespereana, alongando a personalidade moral da peccadora, e accrescentando para assim dizer um acto novo á peça conhecida. É estupendo e simples o invento d'esse truc, que tantas coisas suggere, e angustias novas faz nascer no espectador. Com a chegada de Armando, fructo da emoção subita-nea, avança o período das syncopes, nas já vagamundeadas ancias do terminus;
por vezes, cortando as palavras lucidas, uma sombra interpõe-se... Armando! — ella deixa de ter sensibilidade, e os dedos roçamno, premindo-o para o achar...Armando! —
156 FIALHO D'ALMEIDA
riso spasmico, que se humanisa afinal nas pupülas dilatadas, quando, num jogo mais vivo do coração, novamente a vida circula e os sentidos prestam testemunho.
Oh, essa cara crispada, de pupülas de cinza, absorvidas no eterno horror do vacuo aberto —
esses dedos de gelo, tateando em circulos de caranguejo, as roupas sobre o seio —esses deliquios mais perto, essa já subterranea voz de Armando! Armando!,.. Centuplicada força do genio! Na hora da morte a valer, oh pobre Eleonora! tu serás muito menos interessante.
(Paiz, 19 de abril de 1898).
A Duse na "Princeza de Bagdad,, Na obra theatral de Dumas filho ha uma parte que é obra consagrada, outra que é obra discutida, e outra que é obra de fancaria. A esta ultima pertence a Princeza de Bagdad, coisa desconnexa, com um brilho factício, e situações dramáticas qual mais disparatada.
A Princeza de Bagdad nem sequer tem literatura que a desculpe, e ironia que a sobredoire e esfusie, como nas outras peças incongruentes de Dumas. Pelo seu segundo acto d'escandalo, figura sempre no repertorio das actrizes celebres que nos visitam. E, como elías dizem, peça para estrangeiros, e bem no parece, pelo espalhafato com que quasi todas entre nós a teem representado.
A Duse deu na Bagdad todas as bellas coisas que já lhe temos visto, porque é da sua physionomia artística, repetir-se, sempre que os papeis, por sua pouca nitidez e humanidade, não desviem a comediante de 158 FIALHO D'ALMEIDA
si mesma; nao conseguiu, porém, imprimir á figura da condessa de Hun, traços profundos, á uma porque a peça não tem um unico caracter definido, e á outra, porque a actriz, também não tinha, segundo mostrou do papel de Lionette, nenhuma comprehen-são demorada e particular.
Foi durante toda a peça muito pouco condessa, detalhando e representando sem distincção aristocrática, e até com uns vagos ares de cocotte, as scenas com Nourvadoy e com o marido, no 1.° acto; e abusando do andar cambaleante, dos rodopios em scena, como se estivesse tabetica, ou perturbada do jantar. No 2.° acto, o famoso quadro do cofre, o tom dramático subiu, e a Duse pareceu animar-se do sopro tragico que a animara na Cezarina da Mulher de Claudio, e na Paula da Segunda mulher de Tanqueray; mas ainda n'este, as scenas finaes peccaram por exaggeradas e gritantes, terminando pela chuva de oiro, que foi um verdadeiro fogo de artificio. No 3.° acto, o dialogo com Richard, foi apontado pela Duse, com verdade, e um tom de dôr mal soffreada de ironia.
A scena do filho, porém, não deu effeito, foi mal preparada e pouco feita: d'onde ACTORES E AUTORES 159 recapitularmos que não é de espectaculos como a Bagdad que se precisa em Lisboa, porque se faz por cá menos brilhante, e, umas vezes por outras, mais correcto. Claro que a nossa admiração pela Duse da Cezarina, da Paula e da Mirandolina, está de pé, fremente de enthusiasmo e de emoção, e por isso mesmo seria generoso evitarem-nos especíacuíos como o de hontem, que não illudem o publico illustrado, nem concorrem para a gloria de ninguém.
Veremos a Hedda Gabler, esta noite.
(Paiz, 22 de abril de 1898).
Alleluia Estreia da companhia Novelli, com o drama em 3 actos Alleluia e a comedia n'um actoOGabinete n.° 13 O drama Alleluia, do escriptor italiano Praga, é um dos muitos racontos de adulterio de que vivem os theatros e os actores, e que, com mais ou menos situações, tresandam sempre á assimilação indigesta de Dumas filho e d'Augier, e pela insistência do thema começam a fatigar os impacientes. Um certo Alexandre Fará, personagem de aparencia jovial, tem uma nodoa no thalamo e soffre d'ella. Perdoou, para que a filha nunca pudesse vêr na mãe uma creatura despoetisada da aureola que a tradição de familia ordinariamente presta ás mulheres fecundas no matrimonio. A certa altura ha por noticia que a filha, por qualquer fatalidade atávica, já casada e mãe de filhos, tem, como outr'ora madame Fará, um amante a quem escreve e dá entrevistas de natureza peccaminosa.
Alexandre Fara que, 162 FIALHO D'ALMEIDA
para não destruir a respeitabilidade dos seus procura conter os impetos separatistas do genro, convém afinal, provada a infamia da filha, em que o pobre rapaz deixe a mulher, levando o filho —mas, entre tantos desgostos, sobrevem-Ihe uma apoplexia que o fulmina ao cabo de algumas gaguejadas scenas pathologicas, que são especialidade do illustre Novelli, e Lisboa applaude sempre, como novas. Na peça distingue-se, como sempre, Novelli, no papel de Alexandre Fará, e o actor Orlandini, n'um papel de diseur, que fez correctamente. As scenas violentas, as transições apparatosas, fal-as Novelli, como sempre, usando da sua mimica incomparavel e dos engrossamentos de face e gesto em que é talvez unico no mundo. Quiz-nos parecer, porém, que a peça não pedia ao artista um tão intenso poder amplificante, e que a indole d'Alexandre Fará foi pelo illustre actor desviada do meio termo sensato, para uma espécie de caricatura tragica de mau gosto.
Necessário se faz, sobretudo no dia immer diato ao da Duse ter partido, não representar exclusivamente para a platea, que de resto ficou fria com certas interpretações de scenas da Hedda Gabler- e da Segunda Mulher de Tauqueray, e hontem perdeu a cabeça nos segundo e terceiro actos do Alleluia, de pro-
ACTORES E AUTORES 163 posito enrodrigados para ella. Não nos cega tanto o respeito pela arte e a admiração intensa por Novelli, que não admitiamos, n'um actor viajante, uma vez ou outra, um pouco de commercio, á uma porque a pacotilha do talento ainda é oiro, e á outra porque as proximidades da Duse, creatura de tão raras apercepções interiores, e tão intensa psychologia, tornam, para assim dizer, no nosso espirito, ainda escandalosa esta intensa figura de histriãogesticuíante, exprimindo tudo por fora, e chegando ávida por processos oppostos aos da melancholica Pythonisa que o Porto a esta hora tem, e tantas saudades nos deixou. Não é dizer que nos não venhamos a acostumar dentro de pouco ao jogo furioso d'um actor a quem tantas noites devemos, de emoção, e que o illustre Novelli, conquistada a posse do publico, que n'este momento, cançado de drama italiano, poderia periclitar, e certo de ter casas, não reintegre novamente em austeros escrupulos d'artista, os lampejos de um talento que não precisa violentar para exprimir. Como a noite de hontem foi para os hotentotes de Lisboa, aguardaremos que o sympathico grande artista represente um pouco para nós.
(Paiz 1 de Maio de 1898).
A Réjane na "Sapho,, A Sapho, como romance, é o unico de Daudet onde o assumpto domina e preenche o livro, ao contrario do que nos outros succede ao enternecido contista, onde a trama é uma successão de contos ou delicados perfis do flagrante da vida, cosidos a fio frouxo por um alfaiate de genio sacrificando á elegancia e á distinção. Tem Sapho o travor de historia vivida, e d'aquellas, dolorosas, que se escrevem a sangue de saudades: por isso o romancista recomendava ao filho a lesse, passados os vinte, quando já o coração, sangrado dos primeiros idyllios, verga á amarga resignação dos desenganos. Sapho é o typo da mulher puida em amores d'occasião, tomada por um e outro, servindo o leito e a cosinha, esposa a mezes, que o primeiro acaso divorcia dos amantes, e que está condemnada, ave arribadora, a educar adolescentes para o amor esponsalicio, e a ir pra lua, volvida a aprendizagem sentimental dos 166 FIALHO D'ALMEIDA
educandos. Pelas deljcadezas do seu coração, raros se interessam: o que fica d'ella é a memoria das dissoluções, e a alcunha sinistra, ganha em bas-fonds de ceias e cotes. Eis que já no regresso da edade, um rapazola artista lhe apparece, cheirando aos trevos poeticos da aldeia, embriagante de ingênuo calor dos vinte annos, e que o acaso envía á pavorosa solidão moral da sua pobre alma de cocotte.
Os dois fazem casal num canto de mansarda;
tudo sorri á vida d'esses seres, e a alma de Sapho crystalinisa-se, vindo ao de cima os instinctos bons da mulher que se sente útil e reintegrada no papel d'eterna companheira, astro do lar, descrevendo no universo do amor a eterna translação, e depondo-se no fundo do passado, como vasa de mortas marés, a horrivel bohemia das ceias, dos bars, dos leitos alugados, que lhe dava notoriedade entre todos os nocturnos dos bairros escolares parisienses.
Mas os primeiros arroubos volvidos, começa no coração do moço a raclagem sentimental a lhe inquietar as effusões. Elle ama com todos os sentidos e instinctos de uma alma branca e sem mysterios, e essa mulher mais velha inquieta-o, com o muro impenetravel do seu passado, a que elle não assistiu, ACTORES E AUTORES 167 e que por mais que ella queira, e conte, e contraprove, elle não pôde bem conhecer e medir profundamente. Ciumes vagos, confusas apprehensões, suspeitas anonymas, palavras surprehendidas em acasos fluctuantes de conversas, tudo isto faz herpes, e põe de atalaia a aura cruciante do ciume, cão de guarda do amor, que não deixa dormir o dono, nem habitar na casa a felicidade. Alfim, um jantarsinho de hortas faz com que Sapho tope do vicio, antigas relações: uns poucos a reconhecem: Tiens, Sapho! Sapho!—e de todas as partes vozes a apunhalam, intimidades d'outr'ora fazem pst!, remóques sordidos a arrastam para a cruz d'esse passado que deixou campainhas d'alarme, e por cujas encruzilhadas ella não pode mais passar sem risco de despedaçar-se nos dentes da matilha perversa dos seus antigos souteneurs.
Emfim, de tombo em tombo, suspeita em suspeita, a onda sobe, salsa de angustias apprehensivas, Iethalisando os filtros límpidos da vida a dois, que o demoniaco destino mira romper a todo o transe. E quando, emfim, se separam para sempre, a despedida tem esse cunho irreparavel que todos sentido havemos, nalguma hora de sermos esse rapaz de vinte annos, amando a serio, ou d'ellas terem sido essa 168 FIALHO D'ALMEÍDA
creatura lagrimosa e naufragada, pedindo á ultima paixão sonhos de ingresso na vida honesta, única profunda, fecunda, consoladora, projectavel, no além — attonitas do pavor de ficarem na rua, quando os invernos da vida já lhes não permittem retorno a novas flirtações.
E este approximadamente o arranjo que o amigo Adolfo Belot fez do romance, e muito mal, pessimamente, porque não falando já nas invenções carpinteiraes com que deformou a acção original da obra de Daudet, o monstro só viu na peça scenas pittorescas ou dramaticas a encher e fechar actos, tirando portanto ás figuras a sua logica convergente, e falhando os tipos do romance por forma a lhes deixar apenas um esbracejar de manquins, É de resto este sempre o papel dos cucos que vem fazer creação em ninhos doutras aves; só a exploração dos emprezarios e cabotinos de theatro, e a confessa pobreza d'uma Iitteratura dramatica, explicam .estes ridículos enxertos de mesquinhos alvaneís cortando barracas em muros de cathedraes e de palacios.
Por isso, e porque, seja dito, a companhia da Réjane é uma pobre tropa via-jora, surprehendida de se ver escutada, de casaca, num primeiro theatro de capital, é ACTORES E AUTORES 169 que a grandeza da actriz Réjane só nos appareceu, radiosa, dolorosa e sublimemente solitaria, ao quarto acto, na grande scena da separação, suando sangue, e que nunca mais se olvidará. Esta scena é em summa o que subsiste de nobre e singular em todo o trabalho da sensibilissima actriz, na peça de hontem, e ella nos basta para lhe enfileirarmos o vulto na cordilheira de cimos que a arte alcandora no planispherio da geniographia contemporanea.
Réjane é grande, e por ella a arte franceza nivelaria, certo, a italiana, da Duse, se o gosto alto, o precioso genio, o criterio seguro e superior d'Eleonora, que a salva do ephemero e tão fidalgamente lhe prohibe de dar alma a futuras creações e figurinhas, podessem tocar a consciência artística da franceza, filha de Paris, flor d'uma civilisação esgotada, nefasta, que corrompe o occidente, e todos pagaremos caro, como os avassalados de Roma pagaram ha seculos as dissoluções da cidade centro. Lastima se faz que prestigiosas creaturas, como esta, das raras que abrem na banalidade grosseira da vida, tão dilatados plainos de visão, prestem seu corpo, por interesse ou capricho, á modelação de tão apoucadas obras litterarias, e roçaguem pelo reles, azas de tão cerulas re- 170 FIALHO D'ALMEIDA
miges, crescidas nos seus hombros para olympicos voos na grande arte! Fazer Macousine, Madame Sans Gene, e tutti quanti quando se tem na fronte o halo electrico das liricas, e quando escusado seria sahir de França para encontrar, na contemporaneidade das lettras, figuras menos mortas, e consciencias novas a exprimir!
Que sestro o d'estas mulheres francezas que veem cá!? Cuidarão ellas que Lisboa fica na Martinica, e os portuguezes são alarveirões sensuaes e imbecilisados caixeirolas? Elonora Duse admirou o silencio religioso, o angor pedoris com que a escutavam piatéas portuguezas, quando na Segunda Mulher de Tankeray e na Hedda Gabler, evangelhos novos rolavam, da sua bocca de Gorgona, sobre a idealidade artistica, presentida, susceptibilissima, da nossa gente culta. A França, com a sua puíverisação litteraria, reflexo do nihilismo philosophico, moral e mental que por lá sopra, inda ora conta oito ou dez escriptores theatraes, de certo pulso, não digo atleticos, originaes, creando colossos, mas emfím registrando os choques do tumulto social, com lucido estylete, e restituindo as impressões d'esses choques, em obras que, fragmentadas embora, nefastas ACTORES E AUTORES 171 algumas, antagonicas, todavia realçam no seu ocaso a alma d'essa França desthronada da realeza do mundo, e cuja agonia, dado o canibalismo das raças íulvas, enche já hoje d'inquietação os velhos pequenos paizes da Europa latina, occidental. A
lista é talvez longa, nem Réjane precisa que estrangeiros lh'a recordem. Haveria para todas as cordas, morbidezas estheticas, estatuarias, gritos e visões. Galeria moderna de mascaras colhidas no flagrante dos desejos e dos vicios, no inconfessável das consciências aprizoadas ou revoltas, na fugacidade dos problemas com que o hamletismo moderno tortura, na gaiola da razão prevaricante, essa felósa miserrima que se chama a duvida do ser. De Maurício Donnay a Affranchie, a Doautoureuse e Le Torrent. De François de Curei, a Figurante, a Nouvelle Idole, o Repas da lious, Invitêe e Les fossiles. De Lavedan, a Cathêrine e o Prince d'Aarec. A
Ainée, de Júlio Lemaitre. De Becque, os Corbeaux, o Enfant prodigae, e a Parisienne, que foi hontem. O Berceau, de Brieux, a Epidémie, de Mirbeau, e o Boabouroche, de Courteline. A
Princesse Lointaine, de Rostand, a Amoureuse, e o Passe, de Porto Riche. As Tenailles, de Hervieu... E isto para não fallar da 172 FIALHO D'ALMEIDA
dramaturgia franceza, até Dumas Filho, e para lhe não pôr em foco de humilhante paralello, o theatro scandinavo e allemão de Strindberg, Bjorn Bjõrnson, Hauptmann, Sudermann, etc.— que isso seria para estas calaceiras celebridades um não acabar de recriminações e vergastadas.
Verdade, verdade: em parte alguma se acolheriam festivamente, como nós temos acolhido, actrizes vindas, como Sarah Bernhardt, num cyclo de desoito annos, quatro vezes a Lisboa, fazer em todas quatro, por preços triplos, o mesmo reportorio anedotico e sediço, e com entourages de correcção mais que suspeita. Pois se o que pen» sara Portugal pouco accrescenta ao computo total da gloria d'estas deusas, de duas, uma: ou as deusas cá tornam, incognito, pelo preço e reclame de mulheres, ou haveremos que as tornar responsaveis pelo pouco que nos dão, a par do muito que promettem.
(Pátria, 8 de Dezembro de 1899).
Zá-Zá S. Carlos. —Peça em 5 actos de P. Bertoa e Ch. Simon Pelos jornaes vemos ser Zá-Zá peça d'estima e d'um relevo a bem merecer encomios da critica e enthusiasmos da rapaziada que lê do bom e do melhor. Não discutiremos o caso, e vamos succintamente dizer o que uma primeira e enfastiada audição da peça nos dictou. Zâ-Zá é a versão millesima do já caduco problema da regeneração da mulher, perdida pelo meio, e susceptível d'accordar ao choque d'um amor sincero e puro. É uma cantora de café, tendo provado da vida todos os travos da fome e da miséria e conhecido do amor apenas collages transitorios e flirtações ultra-safadas. Entre os habituaes do camarim, figura um sorumbatico cavalheiro, que parece não dar pelas seducções picantes da cantora, e que por isso mesmo provoca nesta a impulsão diabolica de o tentar.
O pato morde; estabelece-se o amiganço; e Zá-Zá é 174 FIALHO D'ALMEIDA
feliz, d'uma felicidade nova e toda unida, uma felicidade de noiva, que lhe faz abandonar o palco e consagrar ao amante a sua vida. Corre assim tempo, e um dos actores do café, interessado talvez nas perdas que faz o estabelecimento, des'que Zá-Zá lá deixou de cantar, vindo d'acaso visita-la, conta-lhe ter visto o amante com uma mulher formosa e nova, o que provoca em Zá-Zá ciúmes terríveis, levando-a a ir procurar a todo o transe essa mulher. O amante de Zã-Zá é um homem casado; Zá-Zá vai nada menos que fazer escândalo no foco conjugal. Por felicidade, o dono e a dona da casa estão ausentes; quem recebe Zá-Zá é uma filhita, que pela sua ingenua candura desarma a ciumenta, provocan-do-lhe uma crise de lagrimas, e a diffusa comprehensão d'uma vida honesta, tranquilla e respeitada, de que Zá-Zá até alli não tinha a menor noção. Quando Zá-Zá torna a encontrar o amante, chega a dizer-lhe por uma enfiada de scenas que omitíimos que sabe do seu casamento, e fallou em casa d'elle com a filha. O amante enfurece-se, insulta-a, e de violência em violência, os dois separam-se.
Decorrem annos, e, quando se tornam a vêr, Zá-Zá tornou-se uma celebridade de café concerto, e elle prosegue com fortuna e pachorra ACTORES E AUTORES 175 os seus negocios. Como se vê, Zá-Zá é uma banal e escusada explanação theorica sobre os effeitos purifícantes do amor sobre a mulher, e um dos tres ou quatro assumptos de que vive ha cem annos a litteratura íranceza e em que espatinam, com mais ou menos talento, tres ou quatro duzias de fabricantes de volumes. A companhia representou a peça d'uma maneira commum, e sem lhe dar mais importância do que nós aqui lhe estamos dando. Réjane teve coisas mui lindas, mas, salvando as scenas do terceiro acto com a creança, tudo o que fez, não nos pareceu á altura do seu nome. Uma das coisas a que a gente difficilmente se acostuma, antes de lhe começar a sentir a influencia do talento, é a figura, a face, o olhar, o rir, que tudo isto nelía é anti-theatral e inexpressivo. A sala não se encheu e houve no terceiro acto applausos calorosos.
(Pátria, 10 de Dezembro de 1899).
El Estigma D. Amélia. — Tres actos de Echegaray, pela companhia de Maria Guerrero.
O drama que hontem se representou no D.
Amélia, é uma das mais abstrusas e palavrosas coisas que pode ouvir pachorra de homem drenado nas maçadorias da oratoria lusohispanica. Pueril de contexto, girando em situações convencionaes, expresso em lingua heperbolica para uso de cerebros alvoriados, desagrada logo desde o inicio, e só se ouve para lastimar que o talento fogoso e real do auctor, se tenha gasto em tão artificiaes e ingratas construcções. Desculpa-se dizendo: «É á hespanhola», e para sentir que o theatro d'esse illustre povo esteja ainda tão fora da vida d'acção, que convém á arte dramatica contemporanea. A companhia de Maria Guerrero não é má, tfias não se deve acceitar sob os foguetorios de celebreira que para ahi teem estrondeado.
178 FIALHO D'ALMEIDA
Tem uma certa egualdade de conjuncto, conta quatro ou cinco artistas conscienciosos e muito úteis, e se não devemos acceita-la entre as culminancias dramaticas que nos teem visitado, nem pôl-a ao lado de Emmannuel, do Novelli, da Duse e de Sarah Be-nhardt, convém que a integremos justiceiramente num justo meio d'escrupulo artistico, de cultura e de gosto, que muito honra o theatro hespanhol e os seus artistas.
Maria Guerrero é talvez uma boa dama de comedia, de comedia hespanhola, mas falta-lhe envergadura para exprimir intensamente o drama e as suas dores. Não tem face niobica, porque é de bochecha larga e lunar, limpando saúde; não tem figura coleante, d'estas que se enroscam no papel, chispando, como a Duse e a Sarah, das mil cambiantes da figura, nervosidades persuasivas; e com aquella grande bocca, de mimo ironico, aquelles dentes de jaspe, onde uma sensualidade moira se distilla, exprimirá antes as ladinices das personagens jocundas, fartas de saude, vibrando na estridencia sensual da vida physica, do que as torturas do ser interior, hamletico, roido dos monstros da duvida, que opalisa e esmaece na alma das cerebraes mais complicadas. E uma hes-
ACTORES E AUTORES 179 panhola que representa e sente o drama, á hespanhola, isto é, trasteando o papel com passes d'aparato, mas deixando a outros o cuidado de lhe acordarem o mysterio, e de lhe porem uma lâmpada no logar do coração. Eis o motivo talvez d'ella nào querer exprimir senão o theatro de seu paiz, onde se fez, e para o qual a impellem por certo os seus bellos recursos exteriores.
O actor Diaz de Mendóza é o typo do actor orador, de que nós temos, ou tivemos, em Eduardo Brazão, um mais cavalheiroso representante. É uma figura ingrata para a scena, de voz má, de face pouco vibratil, d'olhos apagados, e gesticulação pouco elegante. Tem todavia nas situações capitães, um bocado de calor, e ouve-se aqui e além com certo agrado, porque nos empolga, como Brazão, pelo lado do discurso — ou nós não fossemos do paiz dos Castelares e dos Alpoins.
(Pátria, 5 de abril de 1899).
"Comédie,, d'arribação Não foram de molde as peças exhibidas pela troupe Bartet no D. Amélia, a nos deixar apreciar o sem mistura d'arte que rigorosamente possa constituir o talento esthetico das duas figuras principaes, e justificar sequer, a calorosa reputação que a imprensa de Paris lhes ha creado. Porque, se nem tudo que luz é oiro, amigos, nem tudo o que vem de Paris e maravilha. A cautela, que é a virtude saloia dos muito tempo embahidos por celebridades de candonga, a cautela manda julgar as coisas pelo que as vêem os sentidos e intelligencia de quem julga, e não assignar de cruz salvo-conductos que outros lazaretos passaram, sabe Deus com que propósito escrupuloso. É certo que quem traz a um theatro portuguez artistas estrangeiros de nomeada, presta um relevante serviço ao grosso publico, pelos deleites novos que lhe causa, e par e passo serve a educação das gentes d'arte, visto os elementos de comparação que introduz no seu modo de vêr e 182 FIALHO D'ALMEIDA
de julgar. Nesta rotineira terra anti-esthetica em que tudo se aclima e nada nasce, o único meio de nas Bellas-Lettras termos coisa arre-medante ao que a civiíisaçào produz nos centros grandes, é trazer ao pascigo mesmo dos artistas o modelo a seguir, cortado e prompto, a vêr se o fluido imitativo (que é faculdade mãe das raças taquenhas) lubrifica na celuloide d'esses cerebros alguma mola integra, alguma circumvolução original. Por desgraça, mercê da lingua estranha e do preço exageradamente caro dos logares, só do grande publico concorre ao theatro a gente rica e ociosa, que é quasi sempre a menos progressiva e propensa á vibração — e da banda artista, aparte um ou outro caso de pensador e homem de lettras, aquella parte rasteira que vive de cozinhar nos jornaes o noticiario conciliante, que attrae o feitor, pule a mentira e entra na cumplicidade moral de toda a gente. D'aqui resulta que estas missões dramáticas, de tão proveitosa nata, fiquem estéreis, mesmo quando, como nos casos da Duse, da Sarah, do Emmanuel, de Coquelin e do Novelli, trazem comsigo o verbo novo, ou não vão além de passatempo anodino, no caso dos comediantes, em vez de genios innovadores, serem apenas, como ACTORES E AUTORES 183 esse Le Bargy e essa Bartet, essa Réjane e essa Hading, medianias umas pelas outras correctas e academicas, feitas pela tradição historica d'um palco, pelo tacto d'um ensaiador, pela tesoura d'um costureiro ou pelo savoir-jaire d'um dramaturgo.
Quererá isto dizer que se da commettida orgulhosa do empresario Braga em trazer ao D. Amélia troapes estrangeiras, algum beneficio pudesse resultar, esse beneficio pelas circunstancias particulares em que é offerecido, falharia cobardemente, porque os escandalosos preços dos logares interdizem a presença da multidão progressiva d'estudantes, artistas pobres e pessoinhas de nenhures a quem espectaculos taes dariam lustre, e por outro lado, os actores nacionaes não n'os frequetam, uns porque não podem, e porque não querem outros, na soberbia d'um desdém quando muito legitimado pela reputação profissional de dois ou tres.
Pois medianias correctas! Tal o qualificativo a dar aos artistas francezes que a outra semana nos deixaram, e que sahiram d'aqui assoberbados d'epithetos olympicos, 184 FIALHO D'ALMEIDA
de coroas, placas e veneras, de que a esta hora se irão rindo, afeitos como todos os cabotinos ao diagnostico da imbecilidade, mesmo através das mais pantaíaçudas galas da cortezania inconsequente. Para estas troupes francezas de viagem, eram noutro tempo a Inglaterra e a Russia as duas steppes selvagens onde escavar a mina de lucros que as revertia á França, abarrotando libras e triumphos. Agora aquellas duas nações civilisaram-se, e com o seu theatro autonomo, nascente, começam pouco a pouco a sacudir o vampiro estranho, desnecessario, precavendo espiritos e bolsas contra a incursão d'aquiIlo que sob a egide da arte pura, não passa afinal d'uma maneira industrial de fazer arte. De sorte que emquanto o Tonkin não põe theatro, e Madagascar e o Senegal, seccos os pantanos, não armam cidades de esquadria pelo modelo barato de Marselha e de Paris, são o Brazil e as republicas do Equador que occupam no orçamento dos actores dissidentes da Comédie, ou das divinas envelhecidas sem pé de meia bastante, a um trem de vida sumptuoso, o logar das antigas steppes londrinas ou petersburguezas, onde a peso d'oiro se vae vender a charogne d'um talento em crise d'embollar, ACTORES E AUTORES 185 ou d'um renome arranjado em peças e artigos de dramaturgos e criticos mediocres, cozinheiros de restos, —d'uma sucata de plumazes que a Sorbonne manda á litteratura franceza, como nós mandamos á fava os bachareis. Ora como seja Portugal, não por categoria selectiva, mas por investidura chronologica, para os estrangeiros ainda, a ante-camara intelleçtual das terras brasileiras — daí o hespanhol do continente, em relação ás republicas coloniaes que elle fundou —
resulta ser a sanção portugueza e hespanhola o primeiro attestado que essas companhias dramaticas procuram, antes de se aventurarem na America ás longas toarnées germinattvas de fortunas. D'ahi os testemunhos de preferencia e d'amor que as entrevistas dos reporters nos trazem, da bocca. pintada de todos esses divos, divas e divetas, que aqui veem reclamar-se, antes da longada ás scenas do Brasil.
Agora essas thuriferações jornalisticas perante a realeza problematica de dois cabotinos de scena, revestiram um tal caracter de mulataria aguda que pouco faltou para haver beija-mão na sala do throno, e anunciarem-se os espectaculos com o tambor e pifano dos archeiros. No homem, do feitio dos lacões 186 FIALHO D'ALMEÍDA
ao xadrez das gravatas e ao insolitismo dos coletes, da voz raspante e seca, á figura impessoal e ao gesto monocordio, tudo pareceu ineditamente raro, emanado da transcendente esthetica pessoal d'um Brummel-Kean, vindo por erro aos paizes da embasbacação saíoia revolucionar os fracks virados da imprensa e os colarinhos de borracha da elegância. Na mulher, a gentileza morbida e a graça murcha de femme de trente ems, que Balzac celebra, a morrente sensualidade perversamente envolvida num vapor de candida doçura, a tal ponto aqueceram as cabeças, que do resto pouco se quiz saber para o computo critico da actriz.
Nem a frieza sahia do jogo, trahindo uma ausencia de personalidade, nem a erudição profissional suprindo o talento ausente sem lhe iludir o fogo ou imitar a divina sugestão, nem a forma d'exprimir, solista e palida, dando a falencia da intuição psychologica (a qualidade mestra da Duse) —nada d'isto contou no ajuste de contas; e eis as duas bolas d'espelho, feitas astros, os dois astros perpassando no ceu dá scena lusa, o homem egualado á mulher, a mulher restabelecida no culto das madonas, e os pretos todos de cocoras, com o da Instrucção Publica a dizer que é uma honra, e a ACTORES E AUTORES 187 cruz de S. Thiago, coitada, em caminho de se abandalhar como a de Christo, penduricalhando glorias que ficariam melhor na Cruz do...
Taboado.
Porque, torno a dizer: eu não sei o que por ahi d'insolito se viu nos artistas franceses da ultima tournée, além da situação profissional que lhes impõe vestirem-se com elegancia copurchic, e das tradições da Casa de Molière que lhes ensinam a pousar e a dizer com correcção.
O Le Bargy? —Mas é um galã de segunda qualidade. Anguloso de corpo, a cara sem feições predominantes, olho azedo de gato, apenas bom para as expressões da astucia ou da maldade; má bocca, sem moldura de labios, cortada como os bordos d'uma ferida, a pelle de livores esverdinhados, os cabellos do louro sujo de certas creaturas ordinárias, voz aspera, quebrada, sem vibrações de caricia e sem notas altas de bravura, nenhum poder de tocar por dentro uma fibra, de mimar com delicadeza ou com originalidade flagrante um sentimento, tal nos parece ser, pelo repertorio exhibido, o primeiro galã da Comédie, que inventa coletes, tem questões com Claretie, faz os typos decadentes da gentry viciosa e mundana dos faubourgs, mas 188 FIALHO D'ALMEIDA
aqui para nós, nem deve muito ao talento nem nos parece maiormente escrupuloso na maneira scenica de fazer. Pelo que respeita á diva Bartet, não se poderá dizer que não tenha talento, desde que se considere a belleza uma especial feição de o revelar. O
resto são vinte e cinco armos de Comédie, com outros tantos de reinado em plena voga fetichista, sob atmospheras d'arte e de elegancia, entre legiões de poetas e escriptores, pintores, estatuarios, costureiros de genio, que dia a dia aconselham, refazem, remodelam no respirante barro da mulher, a divina estatua transmutavel, ensinando-lhe, se ella o não adivinha logo, a plástica de todos os momentos cyclicos d'um gesto, a perolação da voz e a arte de cascatar o vocabulo em successões de musicas ondeantes, o rhythmado do andar, reminiscenciando o voo e o piso cauto, inponderavel dos animaes de sangue e de crueza, de que a mulher é irmã pela luxuria felina e perversidade inconsciente.
A mesma escolha das peças faria o leitor familiar co'a litteratura de proscenio ter mui profundas suspeitas sobre o poder illuminante dos dois astros. Em sete noites de recita, tres peças de Dumas filho e uma ACTORES E AUTORES 189 infantil comedia de Musset são ponto elucidante para quem sabe lêr nas entrelinhas. Vão-me dizer que é repertorio da Comédie, mas sem sahir d'elle, poder-se-hia escolher alguma coisa melhor e menos vista.
Dumas Filho quer dizer o moralista em scena de principio a fim da sua obra, enxadresando recontros para a exhibição d'um paradoxo ou thése estapafurdia, dialogados sempre n'uma lingua d'analyse, excessivamente escripta e litteraria, que as figuras faiam mais como abstracções do que como seres de carne e osso, todas pittorescamente arranjadas com o espirito e dicção cultural do dramaturgo, todas completamente encerradas e descriptas intrabalisas da rubrica e do dialogo, de sorte que os actores, reduzidos a manequins raciocinantes, ficam para assim dizer estranhos ao substracto artistico da peça, não teem margem para creações fulgurantes, nada podem inventar no papel, além da caracterisaçâo e um ou outro detalhe pequenino... —Vestindo bem, dizendo com justeza, pouco mais teem que fazer na soirée. Em termos que para o computo do merito dramatico do comediante, trazer Dumas filho sem outra coisa mais forte, é confessar uma secundariedade de recursos 190 FIALHO D ‘ALMEIDA
que os conservatorios e os alfaiates só muito mal conseguem disfarçar.
Mademoiselle Bartet tem por si a belleza madura e saborosa d'uma jeane personne que espreita a cincoentena sob chapeus de rosas e lilazes, como se para estas sereias de theatro a primavera entrasse pelo outono, e a natureza d'entretida a admirar nellas a fraude, se esquecesse de lhes contar os annos com os esfacelos usados na outra gente. Tem a par da belleza, a erudição do seu officio, e é essa a sua superioridade e a sua força, porque quem a possue jamais resvala á banalidade; mas é uma actriz incapaz de creações, pois como quasi todos os francezes, faz os papeis de fora para dentro, quero dizer, tentando pelo recorte exterior da personagem, dar-lhe uma apparencia de alma e uma illusão de consciencia, o que é o processo fácil d'embahir o espectador desprevenido, e marca o jogo francez entre os de maior brilho e menos folego, na arte de representar do mundo inteiro. Fallei das peças no ponto de vista da collaboração que ellas consentem ou negam ao talento do actor que as representa, e se só me refiro ás de Dumas, é que neste ponto o criterio é o mesmo para as outras, com a aggra- ACTORES E AUTORES 191 vante de serem todas peores como obras d'arte.
Posso agora chamar a attenção do leitor para a moral social de todas ellas — as peças d'um acto excepto, que são frioíeiras literarias, e a comedia On ne baditie, que hoje só deve agradar num theatro branco d'educandas. São sete dramas francezes, de escola Tioderna, ires Dumas filho, um Lavedan Mr. de Priola), um Hervieu (VEnigme), um laupassant (Paix da ménage) e um Donnay (Le Torrent), todos elles virando e revirando a trisecular questão do adulterio,— adulterio do marido, adulterio do amante, adulterio da mulher — com differentissimos molhos, escusas, theorias, que mal conseguem tapar a senilidade rançosa da questão.
Se como dizem os livros, a literatura dá o pulso da raça e o grau de elevação da vida social, bem desordenada e asystolica deve ser a franceza para não tratar senão dos meios de sofismar o casamento, desorganisar a família e fazer do amor, em vez do esteio da raça, um processo tactil de deboche.
Esta reincidencia que na litteratura do romance e do drama quasi se tornou idéia fixa, quando outras questões de psychologia e moral se debatem nos livros dos filosofos, 192 FIALHO D'ALMEIDA
grangeando para a arte novos campos d'esthetica e novas forças, esta reincidencia é um signal da profunda miséria psychica e descalabros moraes que irremediavelmente derrancam o talento francez, já de longo tempo sujeito a viver d'adapíações estrangeiras, e a espatinar na facilidade scribeana, falaz, armada com ditos d'espirito e observações d'a superficie, que é na mór parte o segredo dos modernos successos dramáticos de Paris. A verdade é que essas peças vistas por series, como a da troape Bartet, dão da dramaturgia franceza uma impressão de habilidade mise-en-scenica, aliada a uma impressão de cachexia filosofica que reduz a arte o escrever a um esgravato de fabulas malsão, e a um fogo futil d'improductivos paradoxos. A
litteratura só é um elemento de civilisação quando o cerebro dos escriptores eguala, na altitude complexa, o dos maiores filosofos e sábios da terra; de contrario nunca ha-de passar d'uma entretenga. Ora actualmente não ha em França um escriptor que seja ao mesmo tempo um pensador. Sinto dizel-o, mas tudo está vincado pela mediocridade da democracia e da republica.
(O Dia, 27 de Novembro de 1902).
"Troupe,, Mounet-Sully Primeira audição com o CEdipe-Roi, de Sophocles, em arreglo do síeur De La Croix.
Quem hontem no D. Amélia, antes de começar o espectacülo, dissesse que o publico afeito ao theatro moderno e aos processos de dicção naturalista, cortada, havia d'applau-dir com frenesi uma tragedia de Sophocles, nessas mesmas taboas pisadas pela Granier e pela Hading, e d'aqui a pouco batidas pelo Polin dos bars cantantes, certo formularia um asserto a que pouca gente teria dado fé. Correra, de mais a mais, uma prevenção aos cautelosos, tendendo a resfriar appetites de dramaturgia classica: dizia-se que era um espectacülo escadeirado e já velho, muito mais enfático que nobre, e sem pontas com que urticar a sensibilidade estanque do nosso publico, principalmente composto de janotas e toques.
A tal adaptação do La Croix, feita sob o 194 FIALHO D'ALMEIDA
ponto de vista de condensar os cinco actos de Sophocles, em dois actos ou partes, cortadas dos superfluos, é como todos os arreglos uma obra manca e pouco ductil, immoral como tudo o que representa a amputação do genio por uma querençosa thesoura de alfaiate. Teem entretanto os grandes escriptores antigos de soffrer, coitados, esta mutilação dos costureiros, pois só assim condensados e postos á moda as futeis multidões podem escutai-os, mercê da fadiga nervosa que tantos séculos d'arte pozeram nos nossos pobres cérebros de maníacos. Está claro que não vamos contar a peça ao leitor, na mór parte dos casos ignorante, mas sempre gostando de se vêr tratado como pessoa de solida educação classica, e decidido gosto para as musas.
CEdipo é uma espécie de monstro creado pelas forças cegas e coléricas dos deuses hellenos, e que de nascença o oráculo destina aos horrores do incesto e parricidío. Em balde, na infância, condoídas mãos tentam afastal-o da voragem, fazel-o esquecido das maldições anonymas que o buscam: por uma serie d'episodios que a tragédia celebra, em tiradas enfaticas, e umas vezes por outras grandiosas, o fio que o prende á fatalidade, ACTÜRES E AUTORES 195 não poude por forma nenhuma partir-se, e o miseravel que já se julgara liberto dos malefícios tremendos da sorte, breve reconhece que nem por um instante deixou de ser por elles, trabalhado. Arranjado por escriptor francez, para exhibição d'um tragico francez, num theatro que procura manter no mais puro da tradição, as hereditariedades dramaticas das suas grandes epochas, o (Edipe-Roi não é já propriamente uma tragedia grega. O coro, que representava nesta a multidão, é substituido por uma ou duas vozes que commentam os lances da catastrophe, ao som de musica, cuja ondulatoria melopea simula os queixidos e inurmurações da comparsaria agora silenciosa.
Como na tragédia grega, ha uma simplicidade d'entrecho circumscre-vendo o assumpto entre um pequeno numero de figuras, a narrativa ou reconto substituindo a violencia da acção e o movimento, longos monologos desenrolando efusões patheticas e estadios anormaes de situação — uma observancia rigorosa das unidades, uma teimosia amoral em considerar o homem como inconsciente joguete de mysteriosas forças cósmicas, falando pela bocca dos idolos» e de que nenhum mortal logra dobrar a energia sinistra e capciosa...
196 FIALHO D’ALMEIDA
Por mil razões que é inutil dizer, já não pôde, nesta altura da evolução filosofica, um tal theatro servir as exigencias estheticas mesmo as mais rudimentares, dos públicos d'agora, que soffrem d'outras angustias e gritam d'outras sedes, batendo as forças brutas em vez de serem vencidos por ellas, e gastando as energias do sangue em mais mesquinhas luctas, que já não dão azo (é ver o theatro de hoje) a situações atiormaes e a apostrophes patheticas, nem servem mais de incentivo ás nobres attitudes que a estatuaria antiga nos deixou.
Significará isto que o espectaculo de hontem seja dos ultimos que veremos ajaezados dos esplendores hieraticos dos grandes seculos;
porque assim como não é mais possivel, com estes corpos ressequidos, a esculptura de Miguel Ângelo e as planturosas nudezas de Rubens, assim com nossos cerebros de analyse e nossas agitações de proletarios e onzeneiros, também as amplíficações da tragedia classica são coisas de, quando muito, só o gênio heróico d'um ultimo velho artista nol-as poder resurgir na sua materialisação phantastica, extra-terrestre.
Este ultimo velho artista é em França o actor Mounet-Sully, provençal como Daudet ACTORES E AUTORES 197 e como Gambeta, e d'uma estatura scenica tão rara, e d'uma tempera caíastrophica tào pura, que o vel-o fazer um gesto e desenrolar a voz de trovão melodico, é só por si evocar das sombras dos séculos idos, a alma dos immortaes que a poesia épica modelou. O espectaculo de hontem no D. Amélia é como os da Duse, os do Emmanuel, e os da Sarah, um d'aquelles que sagram um theatro, e religiosamente fixam na memória dos artistas a hora augusta em que lhes foi dado vibrar d'uma grande e nobre commoção. Mounet-Sully tem tudo quanto a mais ardente exigencia pode pedir a um actor do theatro classico-romantico. Tem a figura aquilina de combatente e de heroe, o perfil burilado com uma nitidez de medalha, o braço esplendido rimando c'o gesto a maravilhosa pureza da voz baritonal. As suas attitudes dão estatuas, tão amplas e magníficas que parece que o mundo regressa ás antigas eras da belleza academica e muscular.
A sua alma extravasa nesses terriveis mugidos, de inflexão cantada, em que a convenção secular da Comédie resolve repercutir, como através d'um mundo concentrico, mfinito, toda a vasa cyclica e hyperborea das 193 FIALHO D’ALMEIDA
catastrophes. Que abundancia nobre e rythmada, que arte sabia e suprema, em que tantas coisas artificiaes, convencionaes, se sommam para um crescendo d'effeito a que não pode eximir-se até o mais frio dos ana-lystas decadentes!
Não! Não! A noite de hontem será para o D.
Amélia uma das mais altas glorias dos seus annaes, como aquella em que Emmanuel peia primeira vez alii nos fez o Rei Lear, e a grande Ouse alli representou, pela primeira vez, a Hedda Gabler.
(O Dia. 2 de Dezembro de 1904).
A lucta pela vida A lucta pela vida, que o theatro de D. Marli levou á scena a semana passada, é um d'estes dramas com pretenções de critica social, seccos e nullos, dos quaes se diz em publico: é pensado! — e dos quaes se murmura intimamente: é massador!
Imagine-se um architecto moço e cheio |Tambições furiosas, conhecendo o valor do tiro, e comprando ás mãos cheias d'elle as sensações mortaes da vida dissipada, Esse architecto, que tem todos os predicados convencionaes do galan de livro, que é bello, vigoroso, seductor, intelligente, astuto e cynico, logra fazer-se adorar d'uma duqueza, mulher edosa, resto de cortezã nuns restos d'amante—as duas nuns restos de mãe talvez—durante o tempo em que lhe andara a restaurar os salões d'um velho solar.
Celebra-se o casamento alfim, e em pouco tempo a esposa, vendo a sua grande fortuna senhorial ruir nas delirantes loucuras do marido 200 FIALHO D'ALMEIDA
que paga as amantes como principe, e perde no jogo de fundos como duzentas vezes millionario, apercebe-se de que não vae só jogada naquelle sorvedoiro, a riqueza, mas qxe todos os dias lhe sossobra com ella una pouca da sua altiva dignidade.
Vêm então os primeiros arrufos do amor, que a differença de edade já não deixa conjugar com beijos fervidos, de amor só d'un lado, que se afervora e enlouquece sob os martyrios que lhe causa a indifferença antejada, do outro lado.
A duqueza está precisamente no resvalo da edade em que a meno pausa insurge o sexo, pela ultima vez, contra os invernos do utero que se despede da função procreadora; e, como se sabe, nesse periodo os desejos levantam-se como víboras; os ardores da volupia fallam ás vezes, em certas mulheres, essa voz mais alta do que a auctoridade da honra e dos cabellos brancos; querem-se braços que amarfanhem, boccas que mordam, e contorsões que ejaculem a alma, num soluço supremo e esfacelante! Eis definida a paixão d'essa mulher pelo architecto; é a posse da sua juventude que ella reclama, com as possiveis delicadezas, claro está, das naturezas dignas e sensiveis, mas nem por isso com fremitos menos tre- ACTORES E AUTORES 201 nios, com saudades da vida menos lugubres e com sensualidades carnaes menos contundentes.
É natural que esta paixão arroje ao tédio a creatura magnifica e moça que a provoca, e o que succede. O architecto, Paulo Astier, começa a não poder supportar as caricias da duqueza, a viver longe e a ter necessidade de se renovar nuns braços menos velhos. O seu afastamento disperta então ciumes, e como as extravagancias d'esse vencido da vida deixam prever a ruína, a breve trecho, ha um momento em que a situação dos doas esposos é esta: por banda d'elle a necessidade d'alijar a mulher, trocando-a por outra, cuja opulencia lhe ajude a completar o sonho d'ambições qne se creou; por banda d'ella uma paixão terrível que a humilha no fundo da sua raça de patricia, e por satisfação da qual se sente prestes a descer ás mais lobregas decepções.
Eis a situação moral do ménage, quando o panno sobe para o primeiro acto. Astier e a duqueza estão, ha cerca d’alguns mezes, separados. Ella, vivendo uma vida de reclusa, no sumptuoso casteílo que o marido restaurou;
elle, entretendo em Paris, sobre os moveis da esposa legitima, pequenos amores 202 FIALHO D'ALMEIDA
ephemeros de rapariguinhas que vae conseguindo prender ás suas artimanhas de seductor. A essa hora já o temos indigitado para ministro, graças á situação que a duqueza lhe preparou, e isto a par de loucamente enamorado de certa austriaca formosíssima, ave d'arribação no tohu-bohu de Paris, e de cuja fortuna se contam as mais assombrosas coisas nos saiões. Como vigora a lei sobre o divorcio, Astier para encontrar na fortuna da austríaca o fio de oiro de que ha mister a sua sede do goso e predomínio, só tem a fazer o seguinte: topar nas suas relações com a duqueza fundamentos para uma separação definitiva; depois do que, facil lhe será ser esposo da outra, captiva já da sua linha gentleman, e da gentileza real das suas seducções. É o que elle trata de fazer, indo ao Castello entrevistar sua mulher. A primeira abordagem é rude, e por mais que Astier suppíi-que, sempre a duqueza se contém na sua inflexivel dignidade. Oh! mas o rufião bem sente que a deslumbra, que o amor a incende:
e eu - a vencida, vibrante, prompta a seguil-o onde elle queira.
Vão p'ra Paris; ha uma festa em palacio, para afixar, entre íntimos, a reconciliação que vem de ter logar. Emquanto as salas se incen-
ACT0RES E AUTORES 203 dem d'esplendores, e todo Paris vem assistir as novas bodas d'esse architecto pulha e d'essa duqueza vulcânica, nenhum d'estes se illude sobre o futuro da sua nova vida em têteà-fête. A duqueza tem cabelíos brancos e rugas na cara demais, para persuadir-se de que será capaz de prender á cinta nua os braços d'esse voluptuoso, em cujo sangue os vicios de Paris filtram veneno. Tudo quanto elle fizer será por misericordia, por coagil-a a se dobrar ás suas ruinosissimas exigencias de dinheiro. E a victima definha-se nos seus veliudos esplendidos de festa, pallida e fervente como a allegoria do amor insaciado, á espreita que o miseravel faça um signaí para turvar-se contanto que a sua bocca esmague inda uma vez esse bigode, de cujos fios distilla a vermina de todos os beijos pagos a dinheiro.
Precisamente o dia fora trabalhoso e infernal para Astier. Uma das suas ultimas amantes, filha de um pequeno burocrata, e promettida noiva d'uma especie de chimico, que accumula na peça as duplas funcções de sábio e d'idiota, ao saber da propria bocca da austríaca os projectos d'enlace pendentes entre ella e Astier, toma a resolução d'envenenar-se. Para isso corre ao paraiso onde tinha os endezvous c'o seductor, accende todas as 204 FIALHO D'ALMEIDA
velas e lampadas da peça, cobre as alcatifas e os moveis de flores, e, vestida de noiva bebe a morte, em cujas vascas, quando chega Astier, está a estorcer-se. Toda esta scena lugubre é contada pelo heroe a um amigo, no quarto de dormir, em mangas de camisa, c'os suspensoríos cahidos, e numa roda viva do lavatorio para o toucador, e d'este para o lavatorio. É a famosa scena nova com que a esthesia de Daudet presenteou o theatro contemporâneo, para fazer pendant á surra de nalgadas que a Virginia do Assommoir apanha no acto do lavadouro.
Astier despe-se, lava-se, apara as unhasse procede a outros pequenos actos intimos;
inteiramente á vista do espectador. Não se vê o bidet, no momento em que o stingglersz reclue para um cacifo da scena, mas sente-se o ruido da água, e o chapinhar freqüente não deixa duvidas sobre a região pudenda que o homenzinho refresca num instante.
Casualmente, trouxera elle comsigo o frasco de veneno arrancado á suicida, e, ao esvasiar os bolsos da sobrecasaca, atira co frasco para cima do marmore do toucador. Só depois de vestido para o jantar reparou bem, pela primeira vez, nesse pequeno objecto que podia livral-o da duquez a num apice, ACTORES E AUTORES 205 tendo para mais a vantagem (inda ha d'estes venenos no theatro) de não deixar vestigios nas visceras, nem dar signal de si nas analyses medicolegistas. Eis, por consequencia, o frasquinho orientando a perversidade do struggler, para um galope novo d'aventura, e d'esta vez melodramatica! Está-se a ouvir o monologo do archttecto deante do frasco, a cobardia do homem que diz não! a saciedade do esposo que diz sim! —
e todos os artifícios que o theatro tem para estes casos, sempre os mesmos, e cada um tendendo a exprimir o horror por gritos guturaes, avanços e recuos, olhares allucinados, e todas as sortes de phrases curtas e d'exclamações desencontradas, té que chegue o momento da platéa, calafriada d'espanto, dizer — basta! basta!— que é do que o contra-regra está á espera para o actor metter o frasco no bolso, e para a duqueza entrar e vêr ainda a rolha d'esmeril.
Passa-se ao acto seguinte: é um salão de baile, o panno sobe sobre o quadro plasmo dos convidados palestrando em sofás, uns com os outros, em planos differentes, 206 FIALHO D'ALMEIDA
segundo a importancia das tiradas a dizer, e segundo o tapage dos vestidos e dos hombros, a mostrar. Quando esta sociedade se afasta para ir ouvir, p'rá estufa, não sei que estupenda leitura, entra a duqueza com sede e como o marido está perto, elle mesmo se offerece para ir buscar um copo d'agua. Já se vê, deita veneno na bebida:
ella percebe, faz menção de beber, e quando vae a levar o copo aos labios, arrependimento do arehitecto que se penitenceia do crime, certo de que a esposa nào terá coragem para o entregar aos tribunaes.
Não tem, de facto, a pobre nymphomaniaca, e tudo quanto a sua energia pode contra esse algoz é libertal-o, acceitando o divorcio, e indo envelhecer para onde não chegue o rumor de seus escandalos.
No ultimo acto é o leilão do castello e seus pertences. A duqueza arruinada cede o seu antigo domínio senhorial á condessa austriaca e com o dominio o esposo e a felicidade, porque o casamento de Astier com a aventureira é um caso tramado e decidido. Ahi temos em scena o ditoso noivo, que, buscando no leilão mimo que dar a sua promettida, so nesse espolio encontra digno d'ella — como é moderno isto! —uma parelha de cavallos.
ACTORES E AUTORES 207 Mas o velho empregado, pae da creaturinha.
que Paulo Astier seduzira, como a filha lhe morreu, e toda a aventura do seu suicidio lhe macula d'infâmia as barbas brancas, deliberou entre si vingar a morte, e eil-o que avança em plena hasta publica das bugigangas do castello, á procura de encontrar face a face o architecto.
No momento em que o velho entra, apregoa o leiloeiro as excellencias de um par de pistolas que vae ser arrematado: é o famoso truc do acaso interferindo no monologo de cerebro enfermiço, e coagindo esse velho a uma resolução brutal e imperiosa — truc de que Daudet já usara para metter o veneno entre mãos do seu protogonista, e topar a crise maxima do drama, e que ora lhe vae servir também para trancar a logica da acção, e pôr bruscamente ponto na peça que sem esse truc continuaria a massar-nos até ao fim dos séculos.
Assim, pois, á palavra pistolas, o velho ergue a cabeça — pistolas, meu Deus!... e eu... mas não!
não! — e aqui o estremecimento de hombros da rubrica, um ora a Deus! no ar, em tom resoluto, ao nm do que, corre a arrematar,as armas em leilão. Como se pode prever, a disputa é renhida, e a offerta sobe successivamente de 208 FIALHO D'ALMEIDA
duzentos, a setecentos e a mil francos, sendo por fim as pistolas adjudicadas ao velhote. Não se sabe bem porque, mas as pistolas acharam-se carregadas —a imprudencia de deixar as armas com os cartuchos intactos; por estas e por outras é que ha desastres! — de sorte que quando Astier se produz diante do homemzinho, este deita-lhe em plena face esta bujarrona:
— O mundo é do mais forte, não é? Pois bem. Neste momento o mais forte sou eu.
E desfecha sobre elíe á queima roupa.
Acabam de ver a afabuiaçâo da Lucta pela vida. É o complemento das figuras de Vímmortel que tinham ficado por acabar. Como these, flagella, ou pretende flagellar aqueíla theoria do sabio que dá razão ao mais forte, seja elle, muito embora, o mais culpado. Como arte, tem, como vêm, todos os pendores do melodrama, e nenhuma das qualidades de espirito da litteratura actual. Inda porém o arcabouço pesado e desconexo da peça passaria, se as scenas fossem escriptas numa lingua mais ductil, se as situações guardassem, pelo dialogo ao menos, uma scintilla rutila e vehemente, e se pelas boccas dos personagens secundarios hou-
ACTORES E AUTORES 209 vesse, aqui e além, traços de espirito. Mas nada d'isso. A língua da Lucta pela vida é baça, emphatica, sem vibratilidade d'alma, nem delicadezas, nem graças maliciosas. Os personagens mais importantes rethorisam, os outros grunhera; e á parte a entrada dos visitantes ao castello, no segundo acto, não ha dois segundos de verve, nas quatro horas que dura a exhibição.
Vamos á psychologia artística dos typos. A
duqueza é uma mãe nobre que debita ao modo antigo tiradas absolutamente chilras e sabidas.
Daudel achou-a feita nas duas ou tres mil peças da litteratura dramatica de 1830. Não lhe deu nada de inconfundivel, de visto, e de condizente á evocação d'um typo vivo; contentou-se com metter crina nova no ventre d'um manequim servido e claudícante. Esse Astler, de quem toda a gente na peça elogia a audacia fina, o espirito inventivo e fertil para a lucta, a alma cynica e galanteadora, que esconde os vicios com paradoxos de graça desdenhosa: esse Astier, homem do mundo, representante das gerações cultas e podres, que fazem do oiro unia força e escadarias de tudo, p'ra subir, em que se revela ele na peça o pulha superior que todos dizem, o stinggler invencivel, 210 FIALHO D'ALMEIDA
diplomata e facinora a um tempo ? Mas é um idiota, o tal luctador pela vida; é um facinora grosseiro, d'estrada, o tal gentil-homem — e se a duqueza não fosse uma especie de gatarrona desejosa de macho, onde elle estava a estas horas era na guilhotina. — O pateta!
Recorrer ao veneno para se ver livre da mulher, tendo o divorcio na lei! Descobrir o seu jogo a cada passo, como um gabarola vulgar, quando na cartada do seu casamento com a austriaca iam os milhões tão necessarios ao seu plano ambicioso.
Francamente, é de cuspir. E isto o typo do struggler parisiense?
Mas nós temos ahi, em qualquer redacção politica ou syndicato, creaturas por quem este imbecil poderia fazer-se explicar o grande repertorio.
Vêm depois os personagens secundarios:
o secretario d'Astier, que é um fantoche; o chimico pelludo, que berra contra Darwin, e tem todas as benignidades de um Sganarello consciente; a ingenua, que apezar do seu arsinho de victima, fede de longe á morbideza hysterica que deita a mulher no leito de todos os homens; e finalmente a austríaca e a senhora sua tia, duas seresmas, sobre cuja entidade ha duvidas profundas, dizenda ACTORES E AUTORES 211 uns que sejam feitas de biscait, e suppondo outros que sejam feitas d'algodão.
Cabe também dizer que o desempenho é deploravel. Tirante João Rosa, que fez o velho Vaillant com desafogo, o resto contentou-se em reproduzir de si a versão já conhecida: bonitas barbas, gestos mui nobres, vestidos de velludo e caudas fartas, e as mesmas vozes de cabeça, os mesmos saccos de reso-nancia na larynge, os mesmos esgares e os mesmos prantos, a que D.
Maria traz acostumado o publico ha tantos annos. A falta d'estudo e a falta de conselho tem tornado os nossos mais destros artistas em actores d'um papel só, que elles vão reproduzindo invariavelmente em todas as peças, com uma pachorra e uma altivez bem dignas de outra sorte. Raro é que algum proceda ao estado interno dos papeis, único que a meu ver deve interessar o comediante conscio de sua arte; e o mesmo detalhe exterior, o contorno pictoresco da figura, que dantes ainda apaixonava um ou outro, agora relegam-n'o desleixadamente quasi todos, como se não valesse a pena gastar cera com tal publico.
212 FIALHO D'ALMEIDA
Ninguém os persuada de que parar êéenvelhecer, e de que nenhuma arte requer formulas mais constantemente variadas do que o theatro, sobretudo quando o genero de talento dos actores se estriba, como entre nós, antes numa jonglerie de Jicelles, do que propriamente em dissecções psychologicas.
A par d'estes desleixos d'interpretação, ha inda outros, porém, mais lastimaveis. Refirome á dicção, que já nem sequer é alfacinha, mas um dialecto d'esta, cantado, guturalisado, comido, com esfusiados de bocca, accentos errados nas syllabas, e todos os ridiculos que a declamação emphatica e o applauso incondicional foram accumulando no proscenio do nosso primeiro theatro. É muito especialmente nos novos que esse defeito mais arma ao insupportavel. Queiram seguir por exemplo a scena lyrica do terceiro acto, entre a ingenua e o pharmaceutico. Não ha uma entonação no seu logar. E o resultado é tornar-se esse pequeno quadro d'amor ferido, num lamentavel boi de curiosos. Também o jogo scenico deixa absolutamente a desejar.
Está-se tornando necessário que alguém explique em D. Maria a localisação das visceras, no tronco, porque de ha uns tempos ACTORES E AUTORES 213 pra cá que os amorosos insistem em palpar o fígado, quando faliam do coração, e em levar as mãos ao baixo ventre, sempre que a vehemencia do amor lh'as manda pôr no peito. D'esta mimica errada podem resultar equivocos terriveis, especialmente com espectadores de ouvido rombo: não vão elles tomar o adoro-te do galan á ingenua por uma licença d'ir... lá fora.
O espaço falta-me, e eu desejaria fazer referencia á traducção, que emfim foi feita num dialecto tão aproximado do portuguez quanto o permittiam ao traductor os seus doze annos d'ausencia do paiz.
Trinca-Fortes na Parvonia (‘)
ACTO I
QUADRO PRIMEIRO
(Rua de Lisboa: no bastidor da direita, a fachada do Colyseu da Rua Nova da Palma. Engraixador á esquina. No bastidor da esquerda, restaurant de luxo, tendo por baixo uma typographia com caixa junto â porta, onde um typographo está compondo.
Panno de fundo representando architecturas).
SCENA I
Trinca-Fortes, typographo e o engraixador Trinca-Fortes (vem pelo fundo, envolto na capa e de espada núa. Ê côr do bronze da estatua, e vestido com ella. A cara conserva a côr natural, barba ruiva e chapeu desabado sobre os olhos Applausos no Coliseu, voz d'orador declamando lá dentro).
Fiz talvez mal em descer do meu poleiro: a rigidez do bronze era um bom carcere para (‘) Revista de 1891, o anno do ultimatum.
216 FIALHO D'ALMEIDA
a agonia do que, nesta effigie de mim proprio, inda restava de espirito; mas tamanho; clamores ouvi fazer por baixo do meu pedestal, tantos discursos e supplicas a moc-dade portugueza me fez de roda, que, tocado de piedade, resolvi descer do olympo, para soffrer de mais perto as desventuras da minha patria. Pude então vêr, coberto de crefe o meu proprio monumento, com um carítz que prohibia mãos sacrilegas de arrancaren de lá esses trajos de dó; e, de roda da praia, a soldadesca, interdizendo aos enthusiasta ao approximarem-se de mim. Isto me enterneceu até ás lagrimas, e disse commigo; pois que este povo insultado faz um appéllo a edade heroica de que eu sou para ele o symbolo supremo, nada de hesitações, barbi-ruivo! e vim.
— É singular como Lisboa tem mudado. O Tejo mais estreito, os nenens mais mesquinhos, palácios em ruinas, mulheres de barba toda, e nos conventos, en vez de frades, pobres do asylo e soldaios da guarda municipal. Procurei no peto as armadas da índia e da Etiopia, os navegadores e os arsenaes, e vi o Tejo varrido de naus e caravellas, a multidão fallfido um portuguez desnaturado, a Mouraria em gaz, e na Casa dos Bicos, um bacalhoiro. Paiz ACTORES E AUTORES 217 de navegações e descobertas, em que balburdia infernal venho encontrar-vos! Os descendentes do meu Jau são especialistas de olhos e directores geraes. Filhos de capitães e grandes e fidalgos, despacham na alfandega, ou deram em moços de boíea e taberneiros. A Africa, em vez de paiz de aventuras, tornou-se deposito de degredados. A índia é valhacouto de inglezes e padres da Propaganda. E dos grandes Brazís, apenas o peor nos ficou —o papagaio e o brazileiro!
Typographo (compondo á porta, para o engraixador)
Então visinho, não vae um bocado até ao circo? O orador tem sido admiravel. Vê-se que está cheinho de assumpto.
Engraixador Assim deve ser, porque se despeja com uma força!
Typographo Taes coisas tem sido contra a Inglaterra, das cadeiras até já lhe atiraram com ci-
218 FIALHO D’ALMEIDA
garros. Se o Petre sabe, temos amanhã a esquadra ingleza por ahi.
Engraixador O visinho bem sabe que eu já me não metto em politica. Da ultima vez que votei, deram-me cinco tostões falsos; protestei nunca mais.
Typographo Pois quanto a mim, se não tivesse que compor, ainda esta noite, seis estrophes dos Luziadas...
Trinca-Fortes Seis estrophes, dizeis ?
Typographo Dos Laziadas, uma massada! Felizmente que a edição é toda corrigida pelo João Felix.
Trinca-Fortes Algum grande poeta, João Felix?
ACTORES E AUTORES 219 Typographo Julgo que sim, porque escreveu o Manual &
Civilidade.
Trinca-Fortes E que acharia elle no texto, digno de emenda?
Typographo Faltas de syntaxe, erros de historia, e aquelie episodio da Ilha dos Amores, muito indecente.
Trinca-Fortes De sorte que, emendado o poema, o verdadeiro Camões fica sendo eíle...
Typographo Não sei porque...
Trinca-Fortes Pois não é o auctor dos Luziadas?
220 FIALHO D'ALMEIDA
Engraixador Bem se vê que o senhor é estrangeiro. Entre nós só se chama Camões a um homem quando elle é cego de um olho.
Trinca-Fortes E por causa d'esse defeito é que celebraram o centenario do... outro.
Typographo Não haveria, julgo, outra razão. Em Portugal, os homens de um só olho são muito raros.
Trinca-Fortes Mas porque vejo eu tantos de monoculo?
Engraixador A vêr se apanham estatua.
Trinca-Fortes Quer dizer: neste paiz, estatua deixou de ser uma consagração...
ACTORES E AUTORES 221 Typographo Qual consagração! Estatua é um allivio p'ros cães, e uma pasmaceira p'ros vadios.
Trinca-Fortes Vejo que fiz bem em me apear da minha.
SCENA II
Os mesmos, Primavera e D. Egas D. Egas (entra perseguindo e querendo enlaçar Primavera)
Um instante, minha perola. Oh, como tu és croquette!
Primavera Deixe-me, senhor!
D. Egas Abro-te o meu coração e uma duzia d'ostras.
Subamos aqui ao restaurant.
222 FIALHO D'ALMEIDA
Primavera Já lhe disse; deixe-me, ou chamo alguém.
D. Egas Encommendei um menu de resuscitar o proprio Senhor Morto. Vou apostar em como antes do assado já tu me pedes para cantar a Portugueza.
Primavera Pela ultima vêz!
D. Egas É que ainda não gostas de mim (quer prender-lhe as mãos). Mas acostumas-te.
Também eu em pequeno não gostava de sopa, e agora gosto.
Primavera Soccorro! quem me acode!
Trinca-Fortes (interpondo-se)
Tranquillise-se senhora; ha aqui uma fo-
ACTORES E AUTORES 223-
lha acostumada a escaramuçar de noite pelas bellas. (Agarrando Egas pelo gasneíe) Eh, para traz! Quem é você?
D. Egas (debatendo-se, asphixiado)
Carreira dos Cavallos, viuvo, repenicadas...
Trinca-Fortes E é de luto pela outra, que se atreve a brutalisar esta! Grande pulhastro!
D. Egas O cavalheiro desculpe. É forte como um foiro! Mas a morte de minha esposa deixou-me por tal forma mal da cabeça, que todas as mulheres bonitas me parecem ella. Eu até vinha a matutar na questão ingleza, e a dizer comigo que as correrias patrioticas teem posto as ruas num lameiro. Bem se vê que não é revolução de gente fina; pois não é verdade! (Á parte) É de má catadura! (Para Trinca) O cavalheiro então dá-se ao encom-Riodo de acompanhar esta senhora? Não ha que vêr; de todos os animaes que eu conheço, o mais feliz é o porco...
224 FIALHO D'ALMEIDA
Trinca-Fortes (indo para elíe com a espada)
Quando o não matam.
D. Egas Emfím, jantarei só! (Enfia pela porta do restaurant).
SCENA III
Primavera e Trinca-Fortes Primavera Agora que me livrou d'aquelle imbecil, quer fazer o favor de me deixar?
Trinca-Fortes (beijando-the a mão)
Boa noite.
Primavera Não sem que me explique primeiro a extravagancia d'esse trajo...
Trinca-Fortes Imagine que me apartei de Lisboa ha tre-
ACTORES E AUTORES 225 zentos annos, e que durante esse tempo tudo mudou, sem eu mudar.
Primavera É um romance. Seja. Mas, nem sequer quem é posso saber?
Trinca-Fortes Para lhe fallar a verdade, sou o que era, antes de ser o que sou. Chamavam-me TrincaFortes, e fui no meu tempo um dos poucos bipedes que reagiam contra os quadrúpedes que se diziam seus irmãos. Vivi muito de coração e pouco de dinheiro, e á hora em tjue os gentishomens da minha edade negociavam na corte posição e casamentos ricos, fazia eu versos, e por causa d'elles morri no hospital.
Primavera É, pelo que vejo, o phantasma de um antigo incomprehendido, em cujo coração ha quartos para alugar. E se eu me instalasse?
Trinca-Fortes Achadas lá o perfume d'alguem que pouco se demorou.
226 FIALHO D'ALMEIDA
Primavera Talvez a renda fosse cara...
Trinca-Fortes Ou a installação pobre de mais para a moradora.
Primavera Essa creatura era então muito exigente?
Chamava-se...
Trinca-Fortes Catharina de Athayde, e era fidalga.
Primavera Uma historia d'amor que já lá vae. Se o seu destino é repetil-a de noite, á porta dos restaurants, e no momento em que a fortuna lhe traz uma mulher bonita —então, adeus, salgueiro funebre!
Trinca-Fortes Oh não me deixes, peço-te! Apesar de carrancudo, tenho ainda vocação para o ga-
ACTORES E AUTORES 227 lanteio e a tua gentileza captiva-me tanto, que sinto renascer em mim o antigo trovador. Dizme quem és.
Primavera Quem sou? dizeis —sei lá!
Truffa do enxurro, Toutinegra do amor, Musa das ceias Do riso e das canções:
Raio de luar que vá Fiando teias, Feitas de som e côr, De roda aos corações, E louca, A sacerdotiza Do amor —na bocca, Juntando a camisa, Dá-vos beijos taes, Que a paixão impera, Que o delírio íncende;
E tudo isto vende... Soror Primavera.
Quem sou? dizeis —seí lá!
Truffa do enxurro, 228 FIALHO D’ALMEIDA
Espumeo paraiso, Colibri e pica-peixe Dos, rios do prazer...
Banho d'amor que dá A quem se queixe De não ter juizo, Juizo p'ra vender.
— E louca, etc.
Quem sou? dizeis—ai não, Não m'o perguntes!
Manon Lescaut, chímera, Margarida Gauthier De murcha côr;
Prestes á adoração Se uma bocca sincera Minha bocca beijou, De puro amor.
— E louca, etc.
Trinca-Foctes Conheço-te, não digas mais. Espirito que eu sigo ha longo tempo! Atravez de todas as metempsychoses, és sempre o mesmo sylpho volatil que enche de luz o coração dos ACTORES E AUTORES 229 poetas desgraçados! Não é portanto occasional o nosso encontro, senão o resultado d’esse instincto de harmonia que casa entre si as almas semelhantes. Fôste Catharina de Athayde, depois Barbara escrava, Beatriz, Latira, e agora és Primavera. Inda solteira?
Primavera Completamente, não; apenas tomei do casamento o necessário para apreciar as alegrias do divorcio. Meu marido fazia-me vêr as estrellas.
Trinca-Fortes De pé? Primavera ?!
Trinca-Fortes Era então astrologo.
Primavera Era picador.
Trinca-Fortes Estranho tempo em que os picadores fazem vêr as estrellas ás mulheres! Em ter-
230 FIALHO D’ALMEIDA
mos que a astrologia não ficou para ti de commercio interessante...
Primavera (sorrindo)
Depende tudo do alcance do telescopio.
Trinca-Fortes Deliciosa! Como eu te adoro já! Não, não ha nada mais quente do que o coração de uma mulher.
Primavera Pobre rapaz! Bem se vê que nunca pegou numa ferradura em braza.
Trinca-Fortes Pois que a nossa intimidade está feita, deixa-me explicar-te o que me fez descer do monumento onde me empoleirou a admiração de alguns que me não leram.
Primavera Já sei. Queres visitar Lisboa por miudos...
Trinca-Fortes Estudar se o paiz de hoje é digno do passado, e se este humilhado povo que ha ACTORES E AUTORES 231 tres semanas se esfalfa a pedir justiça pelas ruas, e a invocar pelos jornaes os manes dos lieroes, realmente inda é capaz de um destino Glorioso. Has-de mostrar-m'o desprevenido, ao acaso, e em todas as manifestações de sua vida publica e domestica. Quero vêr como elle faz a raça, como elle educa os filhos, como sente a poesia e locubra a sciencia, que noção tem de patria, como interpreta o amor, galardôa os heroes e julga o papel dos governantes.
Primavera Uma especie de viagem sentimental ao redor da vida portugueza... E se, a meio caminho, a coragem te faltar?
Trinca-Fortes Darei mais cedo a minha missão por terminada, e voltarei novamente a immobilisarme em massa de patacos.
Primavera Voltarás, mas chorando de raiva, por ver o paiz heroico dos teus sonhos debater-se numa agonia que nem sequer lhe deixa tempo para amaldiçoar os seus carrascos.
232 FIALHO D'ALMEIDA
Trinca-Fortes Tam baixo vamos, Primavera? Por ventura este paiz que fatigou o mundo com as suas façanhas, não pode ainda reconquistar um dia o prestigio antigo? Mas os clamores que elle solta, as revindictas que prega, os protestos que faz de vida nova?
Primavera Bravatas, senhor, mais espectaculosas do que sinceras. A nossa sentença pronuncias-te-la nas voltas a Jorge da Silva:
« Se a queixumes se soccorre, Deita no jogo mais lenha: Não ha mal que lhe não venha!»
Trinca-Fortes Mas os seus estadistas, os seus politicos?
Primavera Fructa que já vem de Coimbra sorvada pelo bacharelismo, e que só se resolve a produzir celebridades, depois de alguns annos d'insoIação no parlamento.
Trinca-Fortes O parlamento, que vem a ser?
ACTORES E AUTORES 233 Primavera Uma machina singular. Mette-se um burro, sae um deputado. Faz-se o deputado ministro, e torna a sair o burro.
Trinca-Fortes E são esses os mandantes! Mas é natural que as instituições sejam bastante solidas para lhe contrabalançar a acção demolidora...
Primavera E natural; mas desconfio que ellas soffram da espinha, porque não fazem senão tratar-se pela suspensão.
Trinca-Fortes Mas, emfím, tudo está gasto, podre? Não haverá uma classe, ao menos, onde as antigas virtudes se conservem intactas? A nobreza ?
Primavera Ah, meu senhor! A nobreza antiga morreu sem descendentes; e, pelo que respeita á moderna, é toda de salchicheiros. A sua ga-
234 FIALHO D'ALMEIDA
leria de familia é a casa dos prezuntos. Não dá orgulho, dá sandwiches.
Trinca-Fortes Meu Deus, e as classes cultas, o exercito?
Primavera O exercito é sem duvida alguma um cavalheiroso esteio da pátria, mas tem elle culpa de o terem feito guarda da alfandega, de o terem mandado á Africa defender a pátria de ella mesma, e do resto apertar as ligas para metter susto aos ministerios?
Trinca-Fortes Tu exageras sem duvida, queres desgostarme, fazer-me renunciar a essa viagem...
Primavera Se ainda é tempo, evite-a, por Deus, lh'o digo eu.
Trinca-Fortes Não, não poderia; agora mais que nunca, é mister que eu assista de perto á grande feira.
Para quem apelar, em quem pôr esperança?
Restaria talvez o povo...
ACTORES E AUTORES 235 Primavera Esse, como perdeu de ha muito os habitos viris, desforça-se pelo riso das vilanias que lhe fazem; e esse riso que á primeira vista parece cynico, guarda no fundo uma melancholia nobre e resignada. Acostumou-se a ser desgraçado e de isso vive, sagrando na vespera Messias que no dia seguinte crucifica, e não se cançando de procurar o D. Sebastião que ha-de salval-o, sem querer saber se elle é o desejado, ou o de Magalhães Lima.
(Canção hespanhola ao longe)
Pescadorcita mia, Descietide à la ribera, Y escucha placentera Mi cantico de amor!
Sentado en su barquilla, Lamenta su cuidado, Cual nunca enamorado Tu tierno pescador.
Trinca-Fortes Esta voz...
236 FIALHO D'ALMEIDA
Primavera Vem do outro lado da fronteira, é inutil ouvil-a.
(voz)
No el hondo mar te espante, Ni el viento proceloso, Que ai ver tu rostro hermoso Sus iras calmaran;
Y silfídas y ondinas Por reina de los mares Con placidos cantares A par te aclamaran.
Trinca-Fortes E uma canção de amor e assusta-me!
Primavera Ouve-se sempre que Portugal se vê a transes com alguma desgraça irreparável.
Trinca-Fortes Sim, reconheço-a d'outro tempo, essa cantilena maldita. Que nos quer ella?
ACTORES E AUTORES 237 Primavera Primeiro attrahir-nos, depois garrotar-nos.
Trinca-Fortes Emfim, coragem! O drama ainda vem longe. (Entram dois policias pelo fundo, trazendo uma coroa de palha e alhos, e um garoto esfarrapado.)
Primavera E de mais a mais a farça principia.
SCENA IV
Os mesmos, Garoto, Policias, Commissario de policia e um Cartazeiro Typographo Oh camaradas ! Essa coroa é para depor na sepultura de algum escabeche?
2.° Policia Estava na grade do Terreiro do Paço, e 238 FIALHO D'ALMEIDA
chegámos a tempo de ainda deitar as unhas a este metro.
Primavera Primitivamente, a coroa era de flores e destinava-se á estatua de Camões; mas na travessia do Largo das Duas Igrejas para o terreiro do Paço, as flores tornaram-se alhos, e a folhagem em palha.
Trinca-Fortes É a historia de todas as homenagens contrariadas, que ao mudarem de caminho, mudam também de intuito. (Vem um cartazeiro colar um cartaz na esquina.)
Typographo E foi este rapaz quem pendurou a coroa na grade?
2.° Policia Nada, nào senhor, estava a tirai-a. Mas elle não era tão tolo que a fosse tirar, não a tendo lá posto, logo foi elle. Como te chamas?
Garoto Victor Hugo.
ACTORES E AUTORES 239 2.° Policia Victor Hugo; cada vez se enterra mais... O
teu domicilio?
Garoto Posta restante.
2.° Policia Lado direito ou lado esquerdo?
Trinca-Fortes Já no meu tempo os quadrilheiros da.
Mouraria eram desta força.
1° Policia (notando o cartazeiro)
Que está você a pôr ahi?
Cartazeiro É um cartaz da Companhia Editora.
l.° Policia Um cartaz com lettra d'esta! Está preso, Cartazeiro Preso, porque, senhor? Estas garaiujas 240 FIALHO D'ALMEIDA
querem dizer Egypto; é uma obra que se vae publicar...
l.° Policia Ora o finorio! Estas garatujas querem mas é dizer «viva a republica». Ande lá para diante, para não soltar gritos subversivos.
Cartazeiro Oh senhor, mas isto é o titulo d'uma obra editada pela casa. (Entra o commissario.) Aqui o snr. commissario deve saber.
Commissario Que?
1° Policia Este homem foi apanhado a affixar pasquins revolucionarios.
Commissario Prendam-no!
l.° Policia Naquella esquina.
ACTORES E AUTORES 241 Commissario Prendam-na!
1.° Policia E nega que aquelles gatafunhos sejam para incitar o povo á revolta.
Commissario Prendam-nos!
1.° policia Os gatafunhos talvez não seja preciso, senhor commissario...
Commissario Um verdadeiro policia prende tudo. E
quando não tem mais que prender, prende-se, e depois de preso, prende ainda, se poder.
Vamos. (Sahem os policias levando a coroa, o garoto e o cartazeiro, depois de terem arrancado o cartaz.)
Engraixador Realmente estas prisões foram injustas.
242 FIALHO D'ALMEIDA
Typographo A culpa também é do governo. Manda para aqui policias que nem egypcio sabem!
Engraixador E não só por isso. Então elles prendem o cartazeiro e o cartaz, e deixam ficar a esquinai A lei devia ser egual para todos.
SCENA V
Commissario de policia, policias disfarçados, um preto, um negociante de fazendas brancas, policia, Primavera e Trinca-Fortes; ovação no circo. Sahem alguns homens, a quem o commissario faz um signal: elles approximam-se.
Commissario Então?
l.° Homem O circo está cheinho d'elles. Não falta um unico. Ha muita gente da maçonaria; esta o de bigode e pera russa, com lunetas de ACTORES E AUTORES 243 oiro (1); está um pequenino, já velho, que anda sempre com o mano (2); está o loiro do Seculo, (
3) de gaforinas, que falia muito nos meetings...
Commissario E a respeito de discursos? Fortes?
1.° Homem Um disse que a Inglaterra vae feita com o governo para nos roubar as colonias. Não o prendemos, porque ninguém acreditou. A
Inglaterra para roubar não precisa de socios.
Outro disse que as colonias vão feitas com o governo para deitar abaixo as instituições.
Pedem concentração de roda das quinas —
effectivãmente o Diario de Noticias diz que ha muitas sezões este anno — e no fim houve um peditorio para offerecer um decilitro de honra aos nossos irmãos d'além roar. Como os irmãos não estivessem presentes, fomos nós, e o vinho não era mau.
(1) Manuel d'Arriaga.
(
2) Latino Coelho.
(3) ) Magalhães Lima.
244 FIALHO D'ALMEIDA
Com missario Tumultos, houve?
l.° Homem Tumultos, não podemos fazer nada. O 345 ainda chegou a pedir a palavra, mas chamaramlhe espião.
Com missa rio E vocemecês assistem a um comicio, de braços cruzados, sem dar um grito subversivo, nem atirar com as cadeiras para a arena Bestas!
Queriam talvez que o povo fizesse os tumultos.
É não perceber para que nós vestimos policias á paisana.
2.° Homem Mas senhor commissario...
Commissario Ha duas semanas que os jornaes dizem que ha revolução em Lisboa. Depois de jantar, junta-se gente no Martinho á espera d'ella. O
governo assustado, e, apreciando pelo numero de presos o tamanho da effervescencia ACTORES E AUTORES 245 publica, ao vêr as cadeias ás moscas, suspeita a policia de benevola para com o povo. Ora, é necessario provar-lhe que se engana. De que maneira? prendendo. Não ha revoltosos?
Inventam-se. Que diabo de homens são vocês que ainda não perceberam isto?
2.° Homem Mas não é de justiça tirar a liberdade a quem não abusa d'ella, senhor commissario.
Commissario Não seja tolo! Em epochas calamitosas, manter a ordem é perturbal-a, para nas aguas turvas pescar desgraçados a quem attnbuir a responsabilidade de certos desastres. Nós servimos o governo, é elle quem nos paga — o povo que se arranje!
2.° Homem Bem. Quantos cidadãos quer V. S.a no estarim ?
Commissario Tenho já lá quarenta e oito, não contando os gatunos da rusga d'esta noite... preciso de duzentos... faltam-me portanto uns cento 246 FIALHO D'ALMEIDA
e cincoenta. Gente de certa ordem, percebem?
para dar importancia ao movimento...
2.° Homem As forças estão a postos?
Commissario Tudo está prestes.
2.° Homem E quantos cabeças de motim desejam filados?
Commissario Bastam dois dos mais catitas. Algum chamou á Inglaterra, mãe descaroavel?
2.° Homem Só se foi o de bigode e pera loira, que está sempre a dizer coisas que a gente não entende.
Commissario Pois seja esse. Mãe descaroavel é uma phrase que o Diario de Noticias emprega muito, e que me contende com os nervos.
ACTORES E AUTORES 247 2.° Homem E qual ha-de ser o outro?
Commissario O de Grandola fallou?
2.° Homem Nem abriu bico.
Commissario Catrafilem-no também. Quem não falla, é porque tem alguma cousa grave que dizer. Logo, é como se fallasse (Sahem).
Primavera Que diz a isto o meu caro moralista?
Trinca-Fortes Digo que os homens me parecem tanto menos livres, quanto mais liberaes as instituições creadas para os explorar; e que, sob este ponto de vista, os barbaros desfructavam uma liberdade individual muito maior. Nas sociedades nomadas, o homem tinha que defender elle mesmo a propriedade e a vida, 248 FIALHO D'ALMEIDA
é certo, contra as ambições dos inimigos naturaes; mas nas sociedades contemporaneas é peor, e não só se está muito menos protegido contra os inimigos avulsos, como nos creamos também um outro fixo, terrivel sobre todos, que se chama o Estado, e que a pretexto de nos defender, não faz senão incommodar-nos, quando nos não rouba, a beneficio de minorias de influentes e de devassos.
Primavera Essas observações tresandam o mau humor de quem já foi filado muitas vezes. No fim de contas isto não passa de um estratagema da policia...
Trinca-Fortes Da policia, certo, que representa para todos os effeitos, o Estado e as suas leis; que é por toda a parte, segundo vejo, um obstaculo; que em todas as circumstancias da vida impede o homem de ser elle mesmo; e que a pretexto de proteger os direitos dos cidadãos, no que pensa é em dar força as prepotencias dos governos. Se tu quizeres amanhã ser livre como os teus outros companheiros de fauna, o cão, o gato, o passaro, ACTORES E AUTORES 249 a policia, Primavera, não t'o consente. Has-de crer, has-de crer, has-de pensar, has-de applaudir aquilio que a policia te ordenar que comas, ceies, penses e applaudas. E se recalcitrares... (Grande tumulto no Colyseu, assobios, bengalas batendo taboas, pateada, gritos, brados; sane gente, seguindo um policia que foge). Ha desordem, camarada?
Polícia Vae lá o diabo. Eu sou muito nervoso, não posso ver prender injustamente. De mais, vou em serviço; tenho de acompanhar uma sopeira ao bom caminho.
Trinca-Fortes Ao bom caminho... bravo!
Policia Quero dizer, ao Caminho Novo. Como não passa por alli ninguém, já se vê que é o caminho melhor (Sahe).
Um Preto (procurando nas algibeiras)
Não ha que ver, limparam-me os cinco tostões. Algum inglez. Até aqui roubam a Africa!
250 FIALHO D'ALMEIDA
Um Negociante (com um masso de prospectos)
Ah, meus amigos! A guerra commercial á Inglaterra, é muito mais difficil de fazer do que se cuida.-— Viva a Patria! — Ha artigos que só os mercados inglezes nos podem fornecer em condições. O publico está acostumado a compral-os por um certo preço, sem lhes indagar a nacionalidade... Se amanhã lh'os negarmos, ou substituirmos por outros, desconfiará que a iíludimos, — Abaixo os tyrannos! — e deixará de ser nosso freguez.
Comprehende-se o que isto vae dar de complicações— Morra a Inglaterra! — não contando que ha-de haver collegas, que sendo os primeiros a berrar contra o commercio inglez, passarão depois a comprar artigos inglezes por atacado — (Cantando.) Vozes do mar, nobre povo!... — quando os preços tiverem descido, e tudo isto para nos causarem prejuízos. — Viva Azevedo Coutinho! Hurrah!
— Mas José Maria Soares & filhos não é desses! Jurou nào comprar mais á Inglaterra, e ha-de cumpril-o — Viva a marinha! — até á morte.
Um Homem do Povo Isto é que se chama um negociante ?
ACTORES E AUTORES 251 Outro Todos como elle, e a Inglaterra via uma bruxa.
Outro É uma pena não dar fiado!
Todos Viva o Soares da Rua Augusta!
Negociante Soares & filhos, meus amigos, fazendas brancas, barato em absoluto, vêr e admirar...
(Começa a distribuir prospectos.) Como çuero que os meus freguezes saibam quanto é sincero o patriotismo do homem que tem a honra de lhes vender o panno das ceroulas que vestem, fui ás redacções participal-o — Viva o exercito!— de maneira que tive o gosto de vêr a loja annunciada em todos os lornaes gratuitamente (Em tom de cantilena.) Soares &
filhos, Rua Augusta, barato em absoluto, enxovaes para noivas, algodões e linhos adamascados, malhas e piugas — Abaixo a Inglaterra! — vendas a dinheiro, preços sem competencia, — Não se falla inglez — Soares & filhos, liquidações excepcionaes por 252 FIALHO D'ALMEIDA
occasião do ultimatum...» (Vae a sahir encontra um inglez que passa.) Olá, seu John.
O sermão que você me ensinou, deu resultado.
Ficaram todos doidos pelo meu patriotismo. E
agora veja se me manda as 4.000 peças de algodão. Do peor. E não lhe ponha marca, hein?
Quero intrujar estes papalvos duas vezes (Sahe).
Trinca-Fortes É edificante, este discurso, como revelação de consciência collectiva. Já começo a me explicar melhor, o commissario de policia de ha bocado. Entretanto, não me explicaras o alcance politico da tam fallada guerra commercial á Inglaterra?
Primavera A Inglaterra é um paiz pratico, que tendo dado ao egoísmo foros de theoria scientifíca, não duvida provar por actos que o uso-fructo do mundo pertence, de direito, ao mais forte. Num paiz assim disciplinado, a sensibilidade não está no coração, está na bolsa, que e o ponto vulneravel por onde os inimigos devem combatel-o. Ora, mantendo nós com a Inglaterra transacções commerciaes que lhe mettem ACTORES E AUTORES 253 na bolsa metade quasi do valor das importações das nossas alfândegas, claro que a unica vingança que podíamos tirar dos roubos de Africa, seria supprimir de todo essas transacções. Eis o que no primeiro impulso de raiva tentaram fazer os homens de commercio grandes e pequenos. Mas, decididamente, Mercúrio não tem patria, e os que mais protestaram, foram os primeiros a trahir, por detraz da cortina, as juras feitas.
Trinca-Fortes Talvez por os artefactos inglezes serem melhores do que os dos outros mercados...
Primavera Qual melhores! A antiga probidade fabril da Inglaterra é pelo menos tão contestada hoje, como a sua probidade politica. Nesta teimosia de lamber os pés a um paiz que só humilharnos sabe, o que ha é, primeiro, uma ausencia de senso moral absoluta, e em seguida um espirito de rotina deploravel.
(Entram pela esquerda muitos policias, que formam cordão deante do Colyseu, por cuja porta sahe um homem do povo com uma alcofa.)
FIALHO D'ALMEIDA
Homem Camarada, achei este embrulho lá dentro, debaixo de uma cadeira.
Policia (abrindo a alcofa, e revolvendo)
E uma creança recem-nascida.
Homem Menino ou menina?
Policia Como posso eu saber, se ella ainda não está baptisada?
Homem do Povo E vem já morta!
Policia É necessário indagar a quem pertence.
Trinca-Fortes Não vale a pena. Creança morta á nascença... deve ser o patriotismo dos taes 254 ACTORES E AUTORES 255 corntnerciantes. Leve-a para a Misericordia, que bem precisa d'ella.
SCENA VI
Primavera, Trinca-Fortes, Estudantes, Manuel de Arriaga, J. Nunes, Policias, um Homem Fino e um Gatuno (No Colyseu redobra o tumulto, e começam a sahir operários, homens de chapéu alto, mulheres vestidas de grumetes, de estudantes de Coimbra e de atumnos da escola militar. Esta gente vae engalfinhada uma na outra, empurrada de dentro, e enche a scena.
No meio d'ella Manuel de Arriaga e Jacintho Nunes, barafustando entre operarios enthusias-tas, que procuram cobril-os. A policia cerca toda esta gente.)
(Voz de estudante)
Viva a patria e também viva a...
(Menção de dizer a palavra ao ouvido, mas sem a pronunciar.) Morra a bife na grelha! Que segundo a voz publica, Da impunidade á tona, O Chire nos roubou, mais a Machona, Num momento de telha!
256 FIALHO D'ALMEIDA
(Coro)
A sciencia só é nossa esposa, Que importa a guerra? É leve fardo. Só temos medo da raposa Nunca a tivemos do leopardo!
(Voz de estudante)
A Gran-Bretanha é o vomito do oceano;
Este navio immundo, Navega a todo o panno!
— Em tres dias de... ferias. Nós promettemos afogal-a em ferias E riscal-a do mundo!
(Coro)
A sciencia só é nossa esposa, etc.
(Voz de estudante)
Afrontaremos a Inglaterra em peso!
Somos o sangue novo, Já velho no desprezo.
Vereis por um canudo, — Dando-nos ferias-mendigo o Topa-a-Tudo, E um só barqueiro: o povo!
ACTORES E AUTORES 257 (Coro)
A sciencia só é nossa esposa, etc.
(Voz de estudante)
Sem muitas ferias nada póde haver.
Nós somos o trovão Que faz estremecer No seu leito o tyranno...
Dêem ferias somente por um anno, E salva-se a nação!
(Coro)
A sciencia só é nossa esposa, etc.
(O cordão de policias, emquanto isto se canta, tenta cingir a multidão, empurrando-a para o fundo; Arriaga e Jacintho Nunes são agarrados).
Arriaga (para os policias)
O que os senhores acabam de fazer é um wsuito ás regalias da Carta, que nossos pães conquistaram a preço do seu sangue. Nunca em paiz algum, por mais retrogrado, injuria.
ACTORES E AUTORES 257 (Coro)
A sciencia só é nossa esposa, etc.
(Voz de estudante)
Sem muitas ferias nada pode haver.
Nós somos o trovão Que faz estremecer No seu leito o tyranno...
Dêem ferias somente por um anno, E salva-se a nação!
(Coro)
A sciencia só é nossa esposa, etc.
(O cordão de policias, emquanto isto se canta, tenta cingir a multidão, empurrando-a para o fundo; Arriaga e Jacintho Nunes são agarrados).
Arriaga (para os policias)
O que os senhores acabam de fazer é um insuIto ás regalias da Carta, que nossos pães conquistaram a preço do seu sangue. Nunca em paiz algum, por mais retrogrado, injuria 253 FIALHO D'ALMEIDA
assim foi atirada ás faces d'um povo livre.
Protesto!
Policia Não se me faça tnanjarico e ande lá para o Pimpão! (Rumor, vozidos da turba).
Arriaga Protesto com todas as minhas forças de cidadão livre, de portuguez e de republicano! O
direito de reunião está garantido, a palavra é sagrada...
Policia (desembainhando o terçado)
É, e foi dada ao homem para os policias lhe cortarem as orelhas.
Arriaga A mim, correligionarios! (Põem-lhe ama mordaça, e elle gesticula furiosamente para todos os lados. — Tumulto).
Trinca-Fortes (a Primavera)
Que apparelho lhe applicam á queixada?
ACTORES E AUTORES
Primavera É uma das formas da liberdade de pensamento, tal como a entende o governo.
Nunes Realmente e infame, senhores policias!
Infame não digo, porque isso seja uma injuria expressa no codigo, mas menos regular e por minha vez, protesto! Senhoras testemunhas, é necessario desafrontar estrondosamente a liberdade! A que horas lhes faz mais conta a revolução?
Um homem Para esta noite?
Nunes Para esta noite. (Põem-lhe uma mordaça; o mesmo jogo de Arriaga).
Trinca-Fortes Mas se é a indignação que os move, porque não fazem elies a revolução já?
Primavera Em Lisboa, os movimentos civicos começam sempre á hora dos espectaculos.
260 FIALHO D'ALMEIDA
Trinca-Fortes Desgraçado paiz! Até para sentir as affrontas necessita ter acabado de jantar.
Nunes (a quem novamente tiraram a mordaça)
Se me soltarem, senhoras testemunhas, lá estarei no Martinho ás 8 horas; se fôr para o Africa, lá estarei também, de revolver, mas em espirito.
Arriaga (a quem tiram a mordaça)
E dois! (Sahem entre policias, emquanto os policias restantes arrebanham e contam os outros presos, e o coro se repete em surdina, pelos coristas e pela orchestra).
Um estudante Ás 8 horas. Juremos não faltar ao grande appello!
Outro Ás oito. Estarei prompto a morrer. O diabo é que talvez não possa ir: tenho de acompanhar a pequena ao Colyseu.
ACTORES E AUTORES 26l Outro E eu que vou jantar com o meu cunhado!
Quando não, seria dos primeiros a sacrificarme.
Outro Pois eu sinto muito, mas puz o gabão no prego, isto de revoluções sem commodidades...
Outro Se chover, francamente não vou.
Vozes Nem eu! Nem eu!
O mesmo O meu sangue pela liberdade, prompto! mas constipações não admitto.
Trinca-Fortes Adiada a revolução para quando o tempo o permittir. (Sahem os presos cantando).
«Sem muitas ferias nada póde haver, Nós somos o trovão Que faz estarrecer, etc.«
262 FIALHO D'ALMEIDA
Homem fino (debatendo-se com um policia que traz também um gatuno)
Mas porque me prende você? Eu nem a bocca abri. Com cincoenta annos de edade.
nunca na minha vida dei um viva.
Policia Não admira, é medico.
Homem E esta! Queixo-me á policia de esta sendo roubado, e ainda por cima vou preso.
Policia Hoje não se quer saber cá de gatunos, nem de roubos. Faltam-me dois malandros para a conta do snr. commissario, e vocemecês vêem ao pintar. Marchem!
Homem Mas com os diabos! este gatuno estava-me a metter as mãos nas algibeiras.
Gatuno Eu procurava troco de uma libra. Ha tanta falta de prata...
ACTORES E AUTORES 263 Policia Vamos.
Gatuno E com estas arbitrariedades, não ha-de commercio fazer-se republicano!
(Sahem — Mutação)
(Revista Portuuaeza, abril de 1895).
Tres peças originaes mui pouco originaes O que morreu d'amor Quatro actos historicos por JÚLIO DANTAS
Júlio Dantas é um medico recem-formado, d'um talento decorativo bebido em leituras de livros velhos e preoccupações d'epithetos raros. É interessante, e debutou com um livro de versos, Nada, onde o valor provém do-poeta haver juntado Baudelaire com o vocabulario exotico de chronicons portuguezes, e o horror de amphitheatro anatomico, com um dandysmo scientifico, algo pictoresco, e bastantemente almiscarado. É uma organisaçâo franzina, com sensibilidades d'artista, talento litterario facil, e uma verdadeira e moderna educação de homem de lettras detido dos mais bem dotados espíritos da gente nova, enferma todavia de todos os desmazelos e defeitos inherentes ao talento litterario portuguez, que é um assimilador 266 FIALHO D’ALMEIDA
facilimo, um borboíeteador brilhante e caprichoso, mas nada cria por si, e parente proximo de preto, pára e amosenda aos quarenta annos, a edade forte das outras raças, cançado das trezentas paginas reflexos que deixou. No livro Nada, ha a reconhecer uma forma correcta e portuguesa apesar do pessimismo dos effeitos; pessimismo nascido de leituras francezas próximas, o que lhe artificialisa o espirito a ponto de o tornar por vezes num soliloquio fastidioso; a tristeza, imprópria dos vinte annos, e parecendo referir-se a alguma falta d'orgão essencial;
finalmente, a amorosidade obsedante, polucional, em allucinações de vista e olfato, desvairando as imagens da belleza para repulsivas evocações tumbaes e cadaverosas.
Posteriormente deu Júlio Dantas um folheto satyrico, Auto da Rainha Claudia, remo-que furibundo a certo copioso poeta que beliscava os talentos d'uma dama. E a sua melhor composição, e se me recordo, uma das vibrantes arremetidas que a perversidade letrada haja floreado em terras dentre Tejo e Oudiana. Na peça O que morreu d'amor pouco haverá que ver e admirar. E uma fabula d'amor, lambida, declamatoria, e sem o menor interesse dramatico. Pero Roiz, men-
ACTORES E AUTORES 267 cionado nos códices por esta perifrase «O que morreu d'amor», tem uma paixão inconsolavel por certa dama casada, e de roda da casa d'ella vagueia, dia e noite, a sua existencia ;
ambígua, perorando ás estrellas o amor que o faz penar. Pero Roiz é irmão d'um bispo rebelde ao auctoritarismo do rei Sancho, que se exila até Roma, e só é integrado na mitra, no ultimo acto, vindo a celebrar o sacrificio da missa quando Pero Roiz agonisa num canto da capella. Elle ha coincidencias! Muitas tiradas poeticas, muita palavra antiga para dar o seculo XIII em Portugal, scenas paliidas e frouxas, nenhuma lógica no entrecho; enfim uma obra débil, revelando no autor talvez um narrador de pequenos contos, um prozador burilado, um talento de coisinhas, mas por forma alguma, como quer o reclame dos jornaes, alguém que surja a affirmar coisa que se veja.
A Noite de Natal de JÚLIO e RAUL BRANDÃO
E uma comedia tragica em tres actos, sobre que também nos permittiremos divergir dos bombasticos reclames que lhe fizeram os 268 FIALHO D'ALMEIDA
jornaes. Ha um pobre diabo de santeiro, ridiculo e doente, casado em segundas nupcias com certa mulherita que o atraiçoa.
Do primeiro matrimonio tem uma filha, gorgulho histerico que descobre o adulterio da madrasta, e o revela ao pae, depois de varias hesitações e contra-scenas mais ou menos sybillinas. A mulher do santeiro, possuida de remorsos, bebe um frasquinho de veneno, e morre no meio d'allucinações. O
entrecho, como se vê, não tem surpresas, e os personagens da peça ainda menos. E o que se chama uma obra de rapazes, desconnexa, sabendo a leituras de livros demasiado conhecidos, e dialogado por forma que nem.sempre as respostas seguem a linha logica e racional das perguntas, e a acção parece seguir por forma a definirem-se caracteres num crescendo de syntheses provantes. Se a peça não passa d'um carnicão litterario, desligado, e misturando o serão da Santa Joaneira com pobres reminiscencias d'alguns romances e peças russas, o desempenho, bem melhor que o texto, por banda de dois actores da companhia nova do theatro normal, lá conseguiu livral-a do barranco da primeira noite, e fazer-lhe suppôr meritos que realmente escaceavam no original.
Ferreira da Silva, na composição ACTORES E AUTORES 269 do papel de Santeiro, deu uma figura a recordar Novelli e Antonio Pedro, e que certamente espantou até os autores da peça, que nunca suppozeram ter escripto papel de tal cubagem.
Delfina Cruz, uma pequena actriz talvez reservada a um futuro scenico brilhante, e a quem os dramaturgos da Noite de Natal só fazem dizer, numa fabula de filha do santeiro, monosyllabos parvoinhos, da mais completa ataxia psychologica, conseguiu tirar da gagueira informe do papel, como que a delineação phantomatica d'uma sombra de hysterica lúcida, e vencer a crassa inercia do texto a poder de collaboração sua, intuitivamente conversa á representação de qualquer coisa d'evocado e interior. Mal empregado talento d'artistas em tão desafigurado melodrama! e aqui se vê o que elles fazem quando estudam; e por aqui lhes podemos censurar as vezes que, em peças magnificas, mal apontam papeis de que entretanto podiam fazer admiraveis creações!
270 FIALHO D'ALMEIDA
Peraltas e Secias Cinco actos por MARCELINO DE MESQUITA
Neste mesmo teatro de D. Maria acaba de dar-se com grande successo, uma peça original de Marcelino de Mesquita, por titulo Peraltas e Secias, cinco actos d'espirito, de referencias históricas e sobrelaivos de critica e pintura d'epocha, a respeito de cujos esplendores me acordam duvidas que passarei, a expor, como hei costume aos bons leitores.
A peça decorre em reinados de Maria Primeira, na quadra d'embrutecida decadencia, jesuitica e devassa, que seguiu ao governo de Pombal, onde a sociedade não era melhor, mas havia ao menos, assomos de força viril e uma tal ou qual plethora civica.
No salão de certa marqueza austera e abeatada, reuniu Mesquita os elegantes e as elegantes (peraltas e secias, como bem diria Tolentino) que se lhe afiguraram da epocha, juntando-lhes outros elementos que lhe pareceram característicos e a molde de compor quadro (Vensemble, como padres, desembargadores, ministros d'estado, fadistas, e para o contraste um revolucionario recemchegado ACTORES E AUTORES 271 do Paris de Noventa e Tres, que é quem provoca a crise de palmas jacobinas nos finaes de sensação.
Como para assim dizer a peça não tem enredo, as scenas encadeiam-se e ligam-se (as que se ligam)
por via de futilidades espirituosas, onde predomina o dito, nem sempre á altura das conversações aristocraticas. O revolucionário (um bem fallante, á Lamartine), a principio antipathico ao salão, da tia marqueza, acaba, ao fim de varios discursos, por se instalar nas boas graças geraes, e casa com uma prima no quinto, o que é o meio de se acabar a representação na altura de serem horas de dormir.
É muito possivel que este raconto da peça. , deixe duvidas e lacunas d'entrechó no espirito meticuloso do leitor, mas não ha meio de o referir d'outra maneira. São cinco actos que por baixo da folhagem toda, se resumem nisto, apesar dos seus desesseis ou desesete personagens, e o que é mais, entrèteem o publico tres horas —ultimo desideratam do teatro, nestes meios pueris como Lisboa. Vale a pena discutir na essencia esta comedia? Não será melhor deixal-a entregue á gloria dos applausos, e achar que os povos teem o teatro que merecem? Se a tomássemos a serio, e fossemos discutir por exemplo a vero-
272 FIALHO D'ALMEIDA
similhança historica das figuras, que de profanaçoes injuriosas para a memória d'algumas, e quanta ignorancia desenvolta fugindo ao estudo pela porta do comico grotesco ; O pobre padre Theodoro d'Almeida, o pobre poeta Caldas, o pobre intendente Manique! Que chéchés d'entrudo, que cretinos de farça que alguazis despoticos e chulos!
Theodoro d'Almeida, um dos espiritos encyclopedicos da quadra pombalina, tendo passado a vida no estudo de sciencias experimentaes, lente na sua congregação aos 29 annos, fazendo experiências com machinas, vulgarisando na Recreação Philosophica e Cartas physico-Mathematicas sob fórma dialogada e popular, todas as acquisições da physica, da geometria e da mechanica do seu tempo, homem de cerebro largo; assignalado educador reduzido pelo snr. Mesquita a um tropego imbecil fanatizado por crendices, no serão da marqueza, adevinhações de sentido duvidoso!
Eu não sei até onde a ignorância chega, sem passar de vacuidade a delicto; mas se e certo que a lei defende os vivos das diffamações do jornal e do proscênio, porque não exercerá ella a mesma protecção desvelada e benéfica sobre os mortos? Tam pouco me ACTORES E AUTORES 273 atrevo a suppôr que o poeta Caldas dos peraltas e Secias seja qualquer figuração comica inspirada no pobre Caldas Barbosa que presidia em 1790 á Nova Arcadia, no solar dos Pombeiros, ao Paço da Rainha, e tão canóra fama adquiriu, d'improvisador repentista, pelos outeiros e serões da capital. Caldas Barbosa não passava, é certo, d'um poetastro de fôlego curto, mas de recorte agradável, grande acompanhador e cantador de modinhas á viola;
modinhas que são a parte mais abundante e melhor da sua obra. Era prestaveí, estudioso, massador e d'uma grande bonhomia. Foi muito o alvo dos chascos de Bocage e José Agostinho.
É de suppôr que entre o poeta Caldas, de Mesquita, e o beneficiado Caldas Barbosa, da Nova Arcadia, haja apenas coincidência de appelido, e que o autor da comedia nem sequer de nome conhecesse o mulato das quartas-feiras de Lereno. O caso de Pina Manique é porém, de todos, o mais grave, a comprovar que o Snr.
Marcelino Mesquita flão faz a mais ligeira ideia da invergadura moral do terrivel intendente.
(Inédito).
Teatro de D. Maria O CONCURSO DE AMANHÃ —ENTREVISTA
PARA AS NOViDADES >
(19-1-1907)
Ninguém melhor que o Illustre escriptor e nosso querido amigo, snr. Fialho de Almeida, poderia expor uma critica mais interessante e opportuna acerca das condições do concurso de D. Maria, que amanhã deve realisar-se no ministério do reino, pela uma hora da tarde... se houver concorrentes. O
programma do concurso é conhecido. Parte da imprensa analysou-o, eoncluindo-se que, se algumas das suas cláusulas são acceitaveis e boas, as outras não o são, tornando inexequivel para o candidato a adjudicatario a sincera e leal execução do programma imposto.
Encontrando nós, casualmente, o eminente prosador e critico, pedimos-lhe a sua opinião sobre um acontecimento que tanto interessava á nossa litteratura dramática. Para mais, o snr.
Fialho de Almeida já em tempos manifestara o seu parecer sobre o que deveria ser o programma do concurso nas suas bases geraes. Na entrevista de hoje, além da grande auctoridade do entrevistado, como critico e homem de Iettras dos de niais alto nome, acompanha-se sm facto de palpitante actualidade, que as Novidades não podiam deixar no esquecimento:
FIALHO D'ALMEIDA 27ó — Leu V. o programma para a adjudicação do teatro de D. Maria, publicado no Diario do Governo e transcripto em jornaes da capital?
Riu-se o interpelado, e respondeu;
— Li.
—E póde dizer-me as suas impressões sobre esse texto?
—Posso communicar-lhe impressões àvol d'oiseau. Analysar detalhadamente o programa, não; nem tão pouco V. teria pachorra para me ouvir.
— Pois sejam as suas impressões à vol I
d'oiseau.
— No programma em questão ha a con siderar deveres do Estado para com o adjudicatario e deveres do adjudicatario para com o Estado.
—Vamos aos primeiros.
—São pequenissimos.
—Vamos aos segundos.
— São esmagadores. Mas isto tem que ir de vagar para se entender. O Estado cede ao adjudicatario, por tres annos, o teatro, e pedelhe logo cerca de 15 ou 16 contos de reis de depositos, garantias, rendas e transferencia de creditos.
— Só um homem de dinheiro pode concorrer ...
ACTORES E AUTORES 277 —Sem maiores probabilidades de lucro;
pois que diabo de lucros pode elle tirar em três annos de exploração do teatro, pagando tanto, e tendo de manter uma companhia interminavel de parasitas com os ordenados fixos, entre socios de merito e sem merito, genios, autores, commissario e o diabo que os carregue?
—Diz que ha uma lei que impede o arrendamento de edifícios do Estado, por mais de tres annos...
—Se ella prejudica o Estado, impedindo a adjudicação do teatro, revoga-se. Ou não será que se invoca precisamente para impedir que alguém venha ao concurso?
—Faltava em avanços de 15 a 16 contos.
—Ora vá vendo. Logo d'entrada, ao fazer da proposta, deposito de dois contos na Caixa Geral, que permanece effectivo, como garantia dos ordenados d'actores e direitos litterarios dos dramaturgos... Como garantia de contracto, deposito na Caixa Geral, de quantia equivalente á renda de um anno (que não será, julgo eu, mmca inferior a quatro contos) subsistindo esse deposito até expirar o praso da adjudicação. Renda do teatro, paga adeantado, aos semestres... Seguro do teatro, nunca em quantia inferior a 40 contos. Quinto 278 FIALHO D'ALMEIDA
e ultimo: «O adjudicatario obriga-se a depositar 5 contos na Caixa Geral, que reverterão definitivamente ao Estado, se na data do respectivo vencimento não estiver integralmente pago pela actuai sociedade o emprestimo de aquella quantia, resultante da portaria de 12 de maio de 1902». Vae entendendo...
—Explique um pouco.
—O seguro do edificio do theatro acho que deveria ficar a cargo do Estado, que é o senhorio do predio. Ao adjudicatario pertenceria apenas segurar o que lá tivesse de seu. O deposito de cinco contos para garantir o pagamento de dividas feitas pela companhia transacta, não entendo...
«Se a companhia transacta deve ao Estado, que a não deixem sair sem liquidar. Que tem o adjudicatario a ver com cães alheios?
— Nada, por certo.
«Mas é que pagando a divida, é-lhe reconhecido o direito ao espolio da antiga companhia, em scenario, guarda-roupa, adresseria, etc; coisas ernfim de que a nova empreza necessita, e afinai poderão valer os 5 contos do deposito, sendo até para ella essa acquisição uma vantagem, pois escusa de entrar com reportorio desmontado, o que lhe acar-
ACTORES E AUTORES 279 retaria prejuizos maiores, dado que logo a primeira peça lhe cahisse.
—Admittido. Entretanto não acha V.
estranho que a actual sociedade tenha distribuido, em varios annos, contos de réis de lucros pelos associados gordos, em vez de pagar com elles a cifra de cinco contos que ao Estado deve? Acaso não é funcção do fiscal do governo impedir a distribuição dos fundos sobrantes, sem de todo estar saldada a divida em questão?
—Estavamos em que os deveres do adjadicatarlo para com o Estado eram completamente esmagadores para o primeiro.
—Já viu a mina de oiro que é necessario gastar e depositar para a exploração do teatro, por três annos. Repare agora na auctoridade do adjudicatario sobre os actores da companhia que elle escriptura, paga e mantém com o seu dinheiro.
«Na companhia ha artistas escripturados, de tres sortes. Primeira: quadro de honra, ou medalhões, formado, pelos actores societarios que fazem parte do elenco actual de D. Maria, e são transferidos á nova empreza com os ordenados, reformas e mais regalias que ora desfrutam como empregados do Estado e (oh Viróscas!)
servidores beneme-
280 FIALHO D'ALMEIDA
ritos da nação. Segunda: quadro ordinario formado por actores que a empreza escri-pture (até 18), de reconhecido merito e validez physica, e serão chamados a preencher as vagas dos medalhões ou societarios, gozando os direitos d'estes, desde que requeiram e obtenham do governo, classificação conveniente. Terceira:
Recrutas ou pechótes, composta dos ratos de bastidor que a empreza recrute, estes a seu talante, e em numero illimitado, e que não tendo classificação do governo, constituem o quadro extraordinário. Como V. vê, ao emprezario impõem-se obrigações de escripturar uma certa gente, a quem será pago um certo ordenado, e garantidas certas prerogativas de estadão. Não o sur-prehendo se lhe disser que dois terços dos artistas que ha actualmente em D. Maria, não valem dez reis, e que portanto o primeiro cuidado de um emprezario sabedor do officio, seria, ou despedil-os, ou emprehender sobre elles um trabalho de reconstrucção e educação profissional, antes de os apresenta a publico em papeis de certa monta. Nenhum d'elles, a começar por Brazão, sabe detalhar e compor um personagem, e as famosas cartas saudando a estupenda creação do Afonso d'Albuquerque fazem o giro da chalaça publi-
ACTORES E AUTORES 281 ca, como agapes de familia que não póde comer peru sem vir arrotar para a janella.
Raros pronunciam correctamente, e ainda menos sabem, por exemplo, dizer versos com brilho, ou teem os gestos do papel que representam. Para a organização d'uma companhia completa e á altura da missão de bem representar, seria preciso mudar o plano scenico, ou alijar mesmo muitas das inutilidades do elenco actuaí, fazendo-as substituir por elementos alheios, que menos pomposos e mais ducteis trouxessem á companhia sangue vivo e elementos de vitalidade mais rica e mais pujante.
Ora lendo o programma do concurso, verá V. que o adjudicando tem de acceitar os artistas que estão, e no pé de grandeza scenica em que estão, e que além d'isso não lhes pode dar papeis reputados inferiores á cathegoria adquirida (veja só neste ponto a fonte de chicana a mover, se os actores, fazendo purria com o delegado do governo, se resolverem a guerrear o adjudicatario para os seus fins!), nem reprehendel-os, nem castigal-os além de um limite minimo, pois tudo isto lhe acarretaria ameaças, rescisões de contracto, desavenças com o commissario, emfim, uma vida de inferno, de não poder 282 FIALHO D'ALMEIDA
respirar tranquülo um só momento. Vae entendendo?
—Voa entendendo que o programma se armou de proposito para afastar adjudicatarios e manter a constituição interna de D. Maria no pé de sinecara anti-esthetica em que hoje está.
—Quer que sigamos?
—A ver que figura faz no tal programma o tal commissario...
—Pelos condicionados de concurso, o commissario resulta uma espécie de podestá, que achou meio de espalhar por toda a parte a pompa das suas deliberações, arbítrios e sentenças, talvez para vingar no adjudicatario pagante a nenhuma importancia social do seu mister. É o imperador romano da procissão de Endoenças, onde fosse de crucificado o emprezario que caisse em lhe acceitar o sobremando. Manda tudo, dispõe tudo, resolve tudo, cavalga tudo... A
sua voz está destinada á especie de vazio apocalyptico que tem nos ajuntamentos da rua a sereia do automóvel Affonso Cosia. Sente-se que deve dar todas aquellas pequeninas e implicantes licenças, sentenças e votos de qualidade com que no papel do concurso se engrandece, de cima d'um throno de campainhas, com um fato de ACTORES E AUTORES 283 velludilho vermelho, e um chapéu armado de plumachos. Tudo passa por elle, vem a elle, -
parte d’elle. O emprezario não pode escripturar um actor, dar uma multa, escolher uma peça, que elle se não metta de permeio com a sua ferula, o seu bicorne e a sua caixa de rape. Se o teatro de D. Maria for dado á exploração particular, trinta dias depois, entre concessionário e emprezario explodirão taes vinganças e contendas, que para ganhar socego, este ultimo prefira perder os 16 contos e rescindir a concessão, para se ver livre da tutella odiosa do pintalegrete ofíicial.
Bem sabe você qual tem sido o papel dos commissarios regios, a, quando o teatro de D. Maria, estabelecimento funccionante do Estado, vivendo sobre a protecção ofíicial. E
um pape! ou de cumplicidade flagrante, ou de inoffensiva acção presencia!; pois desinteressado o Estado, como de feito se desinteressa, das questões d'arte, e deixando os actores fazer na casa de Garrett, o que lhes praz, a missão de commissario limita-se simplesmente a consentir na mixórdia dramática, cobrindo a anarchia dos actores em questões de ensaios e reparto de papeis, protegendo entradas de actrizes e actores com mais empenhos, e emfim, afastando ou preferindo 284 FIALHO D'ALMEIDA
peças segundo as sympathias pessoaes interferentes. Se alguma vez este funcionario tentasse sair da sua guarita de sentinella somnambula, para tomar a serio o papel de louvado da arte offícial, cair-lhe-iam em cima os comicos todos, e era d'uma vez um S. Jorge de pau com lança de latão! De sorte que se limita, para manter o cargo, a ser um delegado do syndicato de direitos de auctor, que pomposamente se chama conselho dramatico, e o medianeiro official dos comicos, nas suas relações com o governo. Foi um commissario que prohibiu no teatro de D. Maria, por immoral, a representação do Pae, de Strindberg.
—Profundo burro!
—São os commissarios que toleram chronicamente no cartaz os traductores mascavados que queimam pivetes nos jornaes, em honra dos actores, tratando-os de genios, em vez de cumprirem o regulamento que manda que essas traducções sejam feitas por escriptores de nome garantido. São os commissarios que imobilisam o teatro em peças de amigos, fazem reprises da «Madrugada e do Intimo», e não teem um gesto para chamar ao teatro tentativas admiraveis como a «Sabina Freire», de Teixeira Gomes. ACTORES E AUTORES 285 «Já portanto V. vê que os commissarios não foram nunca, nem serão, junto do teatro protegido e com chancella do Estado, funccionarios prestantes, senão pastellões sumptuosos e mangas de alpaca dormidos...
Diga-me então se é no momento de se entregar o teatro á exploração particular, por fallencia completa da arte dramática official, que a funcção de commissario regio necessita ser complicada e aggravada, sob pretextos de zelar a dramaturgia fallida e o futuro da arte de representar... pedindo accrescimo de ordenado!
—Resumindo: se as imposições financeiras da adjudicação de D. Maria eram de molde a fazer fugir concorrentes o avantesma do commissario accentua e confirma o propósito sorna de continuar a macaqueação da Comedia Franceza no pardieiro artístico do Rocio.
Porque é evidente que com tal programma ninguém concorrerá! E sobre a escolha das peças...
—Sobre a escolha das peças, ò adjudicatario é o mesmo pau de vassoura de que para a escolha dos actores.
«Quem escolhe as peças não é elle, mas uma espécie de jury de quatro membros, arranjado pelo commissario, de parceria com 286 FIALHO D'ALMEIDA
o conselho dramatico, e onde o pobre adjudicatario tem apenas um voto garantido que é o seu. Ria á vontade d'esta mariolice propria da ronha sophistica de quem finge dar o que com ambas as mãos segura para si! Calcule a situação d'esse pobre concessionario, que relegado a um exhautorante papel de creado de troupe, paga por deseseis contos o direito de levar pontapés e soffrer as imposições de toda a confraria.
—O programma de concurso é pois uma obra de hypocrisia. Finge acceitar a imposição dos jornaes na questão da adjudicação do teatro, e arranja o condiccionario por fôrma que ninguém concorra, e todas as coisas sigam como estão. Sabe V. o nome do autor de tal maravilha?
—Palavra de honra que não, nem isso me interessa, porque eu combato idéias e factos, e só as rezes ruins perseguem vultos.
Já em tempos me insurgi contra a idéia do teatro do Estado, segundo a formula franceza, allegando que nem temos litteratura dramatica que. valha ser protegida, nem actores que por seu progresso e talentos pareçam dignos do formar elencos de escolha, sob a chancella Estadoal. Esta opinião me pareceu fosse também a de quase toda a ACTORES E AUTORES 287 gente de algum senso, a ponto do governo, acquiescendo á imposição pratica do teatro a concurso, manda escrever e publicar o condicionado sob que o supradito se faria.
Esse condicionado, que temos estado analysando, reflete linearmente as opiniões e vontades do governo, ou algum ancienrégimista, devoto da situação despotica que o elenco actual de D. Maria occupa no teatro, em menoscabo da arte e da justiça, o confeccionou de conta propria, fiado na ignorancia dos estadistas nestas questões de proscenio e de ribalta? Você indagará. O que em todo o caso me parece justo, é o seguinte:
Desde que oficialmente foi reconhecida a inutilidade, para a arte, de um teatro do Estado, e ficou assente dar-se a exploração do edificio á industria de um emprezario, o dever do governo era confeccionar um programma de adjudicação claro e leal, amputando-o de todas as peias e condicionados grotescos de que está recheado o actual.
É evidente que emprezario algum quer D. Maria só para gastar dinheiro e ter conflictos. Assim, a primeira coisa seria reduzir ao possivel a cifra dos depositos. Por exemplo, deslocar do concessionario, para o Estado, a obrigação do seguro do edifficio.
Obri-
288 FIALHO D'ALMEIDA
gar o elenco actual de D. Marta a pagar, antes de sair, os 5 contos que ao Estado deve, de sorte a evitar ao emprezario novo esse deposito. Logo, supprimir o conselho dramático, que é um tribunal de pavões, sem funcção nem competência julgativa, e também o commissario regio, seu não menos soprado porta-voz. Porque eu ainda comprehendia um commissario regio com acção correctiva nos teatros todos, regulando questões de linguagem e moralidade, fiscalisando as allusões injuriosas, etc, o que seria meio de dar papel social a um funccionario, que recluso simplesmente a D.
Maria, quando não é inoffensivo, é irritante...
«Finalmente, sem deixar de garantir aos actores do elenco actual de D. Maria os ordenados e reformas a que o governo se obrigou por lei, comtudo eu daria ao emprezario, de ora em diante, a faculdade de escripturar, tratar e demittir os artistas que bem quizesse e de escolher e pôr em scena as peças que melhor lhe parecesse, pois estando em sua casa, e pagando rendas com o seu dinheiro, lhe caberia nella dispor e mandar como senhor.
— Ouça uma coisa: Sendo o cofre de reformas dos actores bastante rico, e tirando você, ACTORES E AUTORES 289 aos que vierem, a faculdade de reformar-se, a quando inválidos, tarde ou cedo reverteria ao thesouro, inutil, o capital d’ essas reformas.
— E quem lhe diz que eu não reformaria os que viessem? Desde que o teatro de D. Maria não fosse escola de arte dramatica (e nunca o foi), e os actores, pelo facto de passarem a uma empreza particular, perdessem o titulo de funccionarios do Estado, cessaria a razão de se estarem a garantir em D. Maria reformas não extensíveis a actores de outros teatros. Comtanto que se represente com talento e estudo meticuloso de observação e composição dos personagens, ser artista em D. Maria, no Gymnasio ou na feira de Alcântara, tudo é contribuir, supponho, para o lustre das artes e das lettras, e bem merecer da civilisação por via esthetica.
«Por conseguinte o cofre continuaria a servir para reformar actores que a cabo de envelhecidos e inuteis para a scena, e não tendo juntado passadio bastante, por seus cathegoricos serviços á arte scenica, comprovassem a justiça do Estado os manter e agasalhar condignamente.
Mas note que reformaria só os que o merecessem e precisassem, fosse qual fosse o teatro em que 290 FIALHO D'ALMEIDA
houvessem vivido; e assim já se não daria o caso de andar Joaquim de Almeida a mendigar por homens de íettras e políticos a aposentação que a lei lhe nega, e o velho João Gil a fazer no Principe Real fabulas pittorescas, quando á mesma hora medíocre dades impam nos logares que este honrado trabalhador devia ter.
—Realmente, não terá o programma da concurso actual, nada de bom?
—Tanto não disse. O programma encerra algumas disposições sympathicas, respeito por exemplo a alumnos do Conservatorio, e sobre acautelar direitos de autor, representações de originaes e outros commercios do adjudicatario com os dramaturgos. Tudo isto porém, muito incompleto, lançado a medo, numa balbuciação de espirito pouco avezado a viagens no mar largo. Assim, um artigo impõe que o adjudicatario admitia alumnos do Conservatório como actores, em papeis á altura dos recursos scenicos que houverem. Para quem põe fé na efficacia dos Conservatorios dramaticos, esta concessão a escolares não vae de guiza a lhes fazer brilhar completamente os primores colhidos nas lições. Algo de mais solemne e triumphal quizera eu, como por exemplo, fazerlhes repetir em ACTORES E AUTORES 291 recitas de festa, certas peças de cunho que a companhia dramatica houvesse representado com successo. Essas recitas, gratuitas, para que, confrontando a opinião publica os dois elencos, o de principiantes, e o de actores feitos, confirmasse e julgasse das disposições dramaticas dos rapazes...
«Sobre fiscalísação e regulamentação da entrada de originaes no reportorio de D. Maria, também era mais sabio estendel-as logo, sob o influxo moral de um commissario de theatros, a todas as casas de espectaculos de Lisboa, fixando os direitos de autor conforme a lotação das sallas, o genero de peças e preços dos logares, e acabando de vez com as arbitrariedades e explorações de que o escriptor de theatro é victima por banda das em prezas.
«A seguir logo ás intelligentes disposições reguladoras da representação de peças e direitos de autores de originaes, vem sobre traducções, uma obscura restrição, quasi imbecil.
"Das exclusões de peças traduzidas, não haverá recurso, diz o programma. Ora o reportorio traduzido é, por via de regra, como litteratura e these social, o melhor que os theatros portuguezes usam dar. Porque razão, pois, havendo recurso para os origi-
292 FIALHO D'ALMEIDA
naes, não ha-de havel-o para as traducçòes? Para se continuarem a recusar peças de Strindberg?
Para se poderem acarinhar melhor os traductores sympathicos á casa? Também sobre a recusa de originaes pelo jury de quatro membros, uma disposição inquisi-torial revela o parentesco d'este programma com a recem-votada lei de imprensa. O jury, diz um artigo, não é obrigado a fundamentar as exclusões que vota.
—Devia sel-o.
— Ou d'outra maneira, com os costumes da terra, se íôr um tribunal de arranjistas, serão garrotados todos os autores que lhe não servirem de capacho. Ha uma omissão criminosa, tanto nos regulamentos do theatro protegido (e parece incrivel esta lacuna, no trabalho de Antônio Ennes, que tudo via!), como no actual programma de concurso; e diz respeito a interesses de espectadores e missão educativa popular do theatro dramatico. Sabe toda a gente que o theatro de declamação é principalmente necessário á turba popular e ás classes menos cultas, que com o seu pouco tempo de leituras, e emotividade fresca para as commoções estheticas da scena, sacca das representações dramaticas, copia de prazer artistico, e nutrientes suecos ACTORES E AUTORES 293 de filosofia social e bellas lettras. Ora é precisamente esta turba, de ordinario pobre ou mediocremente arranjada, que não tem nos theatros de decíamação, poiso condigno, pois os logares bons são de tal modo caros, que o theatro fica apenas mais um logar de tedio para ricos. Todos deviam ter, quando não um vasto espaço para logares de preço módico, ao menos uma ou duas noites de recita popular, semanal, quasi gratuita.
«Emfim, meu amigo, seria um nunca acabar de observações e notas á margem, e V. já deve estar moido de me ouvir.
«Olhe por exemplo aquella de, fixando o programma em nove mezes por anno a duração activa do theatro, reservar um mez apenas para a companhia íazer o giro das scenas de provincia.
«Veja que disparate! Por motivos identicos aos que me fizeram reclamar nos theatros de Lisboa, copias de logares baratos para o povo, gritarei que a todas as companhias dramáticas protegidas do Estado, ou dependentes d'elle por clausulas tacitas, deveria o governo impor, quanto possível, uma continua circulação pelo paiz.
«Pois se a litteratura dramática tem funcções educativas, deve ella ser levada aos 294 FIALHO D'ALMEIDA
grandes e pequenos focos da civilisação portuguesa, verbia gratia, ás cidades e grandes povoações que possuam theatro, e onde a vida permanece ainda semi-barbara, e outros meios de cultura escasseiam por completo. Tudo isto, é claro, criticando as coisas dentro do programma do concurso, venho a dizer admittindo que mesmo adjudicado a terceiro, o theatro de D.
Maria não deva desligar-se completamente d'umas tantas obrigações officiaes.
—Vê-se, portanto, que o programma de adjudicação de D. Maria descontenta inteiramente.
—Como tudo que finge querer o que não quer.
—E se apesar do seu prognostico, apparecessem concorrentes...
—Sendo bem intencionados, diria que estavam doidos; não no sendo, que alguma parceria de actores do elenco actual, sabidos já nas ronhas da casa, se havia conluiado no propósito de malpeorar tudo o que está.
—Emfim, sobre o Normal a sua ultima palavra.
—A maxima liberdade como incentivo á maxima iniciativa. Os bafos officiaes crestam a vida do espirito e fazem das proprias aguias ACTORES E AUTORES 295 patos mudos. Com esta são já, no theatro de D.
Maria, duas tentativas de arte protegida e durando o bastante para se tirar lição dos factos.
Veja o resultado. Nem um actor illustre, nem uma escola de artistas, nem um dramaturgo, nem um scenographo, nem um critico! Um jigo de mediocridades que se aconselheiram na pompa da sua propria mediania. Peste!
ERRATAS
Pag. linhas Onde se lé Leia-se 24 2.a hiperstesiada hiperesíesiada 24 22.a 1843 1483 41 25.a mal-a a manceba mal-a manceba 67 13.a Daumcer Daumier 77 l.a fila finda 88 11.a prenderam prenderem INDICE
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Teatro de D. Maria II ............................................... 5 Luiz xi ...................................................................... 23 O Pantano................................................................. 29 Santa Umbelina........................................................ 39 O Judeu Polaco ........................................................ 53 Estado do teatro........................................................ 67 Othello ..................................................................... 97 O Rei Lear................................................................ 107 Hamlet...................................................................... 115 A Duse na «Mulher de Cláudio». I — A peça . 121 A Duse na «Mulher de Ciaudio». II — A actriz . 135 A Duse na «Magda»................................................. 145 A Duse na «Dama das Camelias» ............................ 151 A Duse ua «Princeza de Bagdad» ............................ 157 Alleluia .................................................................... 161 A Réjane na «Sapho» ............................................... ' 165 Zá-Zá........................................................................ 173 El Estigma................................................................ 177 «Comédie» d'arribação............................................. 181 «Troupe» Mounet-Sully........................................... 191 A lucta pela vida ...................................................... 197 Trinca-Fortes na Parvonia ......................................... 215 Tres peças originaes mui pouco originaes . . 265 Teatro de D. Maria ................................................... 275 Erratas...................................................................... 297 Conceitos de Homens Notaveis na Sciencia e na Literatura sobre a Obra de Fialho d'Almeida CINZELADOR MÁXIMO DO
Actores e Autores A' Esquina Aves migradoras Barbear, pentear Cidade do Vicio Contos Estâncias d'Arte Figuras de Destaque Os Patos Paiz das Uvas Saibam quantos...
Vida Ironica ... Oh! infeliz e grande artista! Ter-te ia alguém profetizado que serias dos maiores, entre todos os teus contemporaneos ?
A. M. Rita Martins ... ele é, sem contestação, uma das mais raras, das mais vigorosas, das mais originais organizações de prosador que Portugal jamais tem tido.
Antero de Figueiredo ... não é necessario colocar Fialho entre os primeiros, porque é lá naturalmente a sua posição.
Antônio Sardinha ... a sua obra é a sua eterna glorificação e quem a ler atentamente reconhecerá quanto é inimitavel e imprevista. Alberto Pimentel ... ao divino pintor-sinfonista da prosa portuguesa ha de prestar-se emfim o culto reverente que lhe teem negado.
Dr. Alberto Saavedra. ... estranho e colossal temperamento de gentilhomem e principe das letras... o mais alto e estupendo prosador da nossa terra.
Braz Burity ... Que sinistro pavor o dessa agua-forte horrivelmente bela do «Conto do Natal»! E o «Enterro de D. Luiz»? E o «Sérgio violinista»? E a «Madona do Campo Santo»? E tudo, quanto os seus olhos viam, o seu poderoso engenho criou e a sua pena artisticamente nos transmitiu para nos prender, nos emocionar, nos curvar, respeitosos e cheios de admiração, ante a obra genial desse grande morto.
Bento Mantua ... Fialho enriqueceu a lingua — materialmente e artisticamente. Variou-a, maleabilizou-a, deu-lhe palavras e ritmos, agilidade e eloqüência, esbelteza e poesia... aperfeiçoou-a emíim, em rasgos ineditos e geniais.
Dr. Cláudio Basto ... sou dos que mais admiram a. sua originalidade de conceitos e as suas qualidades de estilo.
Dr. Cândido de Figueiredo ... os «Contos» firmam definitivamente o nome de Fialho, impondo-o como a organização mais rica da moderna camada literaria.
Domingos Guimarães ... o artista dos mais altos e imaculados sonhos.
Eugênio de Castro ... a sua obra ha de ficar com a grandeza magestosa dos velhos bronzes.
Garcia Pulido ... a mais rica natureza artistica que Portugal tenr gerado ha duas dúzias d'anos, um talento grande, rutilando em genio.
Guerra Junqueiro ... na ascenção triunfal do seu talento, ele galgara os primeiros socalcos sem pousar neles. Tinham sido as azas a leva-lo, que não os pés.
Henrique topes de Mendonça ... Ganharam as letras portuguesas as paginas imorredoiras dos «Ceifeiros» as prosas rutilantes do grandesatirico dos «Gatos».
J. de Melo Viana ... Fialho, foi incontestavelmente um dos raros artistas de gênio, que deu á prosa portuguesa vivacidade, graça, naturalidade, criando no seu estilo pessoalissimo, verdadeiras maravilhas de arte.
J. Vale e Silva ... «A Madona do Campo Santo» é a obra prima, dum sonhador.
Joaquim Costa ... um dos nossos mais brilhantes prosadores.
Júlio Moreira ... como um Deus, tinha a intuição do ritmo. Com o ritmo foi o maior poeta do som.
K. d'Alvarenga ... Fialho deixou paginas soberbas, que para sempre o consagraram entre os primeiros prosadores do seu tempo,.na alta e insigne companhia de Camilo, de Ramalho, de Eça e de O. Martins.
Luiz de Magalhães ... obteve prodigios de orquestração silabica, maravilhas ineditas no movimento euritmico do periodo, efeitos jamais atingidos por escritor português e raro surpreendidos nos de fora.
Dr. Martinho Nobre de Melo ... paradox-rex das letras lusitanas escreveu as paginas magistrais de « O Sérgio» e de «Os Ceifeiros» intercaladas nessa maravilhosa colecção de Os Gaios», paginas como talvez outras não produziu melhores a prosa portuguesa.
Ribera y Rovira ... Fialho foi, depois do desaparecimento de Camilo, o primeiro na novela e na critica.
Dr. Silva Carvalho ... O epico cantor de« Os Ceifeiros» ceifava e cantava.
Dr. Sousa Costa


LISBOA
LIVRARIA CLASSICA EDITORA
De A. .M. TEIXEIRA & C.ª (FILHOS)
Praça dos Restauradores, 17
1925


Domínio Público Gov.BR


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