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Textos para uso geral de domínio público.

A judia

DRAMA ORIGINAL EM 5 ACTOS
PERSONAGENS
D. JOÃO III Snrs. Rosa D. VASCO DE MENEZES Tasso PAYO JUZARTE Cesar FERNÃO BOTELHO Pinto de Campos D. PEDRO MASCARENHAS Polla D. ANTONIO D’ATHAYDE Heliodoro FR. JERONIMO PADILHA José Antonio FR. JOÃO DE TARA Moreira PERO AFFONSO Amaro THOMÉ CAYADO Leal 1.° VEREADOR Moreira UM PORTEIRO DA CANNA Barreto DAMIÃO DE GOES, pagem, G. Carneiro BEATRIZ Snr.as Emilia Adelaide A RAINHA D. LEONOR Gertrudes BRANCA GIL Carolina Emilia JOANNA VAZ Jesuina ZAIDA, escrava incira, Maria das Dôres CORTEZÃOS, VEREADORES DA CAMARA DE LISBOA, MENDIGOS, UM CRIADO, DAMAS DO PAÇO.
Época, Século XVI fim do reinado de D. Manoel, principio do de D. João III (1521). Logar da scena, no primeiro acto nas proximidades d’Almada, nos outros em Lisboa, nos Paços da Ribeira.
ACTO PRIMEIRO
Jardim nos arredores d’Almada, arvoredo, bancos rusticos.
A’ direita corre o muro interrompido pela grade e perdendo-se ao fundo, onde se divisa, por entre a folhagem das arvores, scintllarem ao longe, com os ultimos raios do sol, as aguas do Tejo. A’ direita fachada da casa, com alpendre e escada, e porta ao cimo da escada; duas janellas visiveis, e sendo a do fundo praticavel. Vai a cair a tarde, e no fim da scena 5.a a noite invade o palco.
SCENA I
PERO AFFONSO, JOANNA VAZ, depois successivamente BRANCA GIL, THOMÉ CAYADO, E FR. JOÃO DE
TARA, E MENDIGOS
Ao levantar o panno, os mendigos acham-se agrupados caprichosamente; alguns são velhos e enfermos, outros robustos, indolentes e mal trajados. Durante o principio da scena vão entrando successivamente pela grade. Pero Affonso, proximo do proscenio, estendido no chão e encostado a uma arvore, dedilha na sua guitarra.
JOANNA VAZ, entrando e dirigindo-se a Pero Affonso.
Mantenha-vos Deus, senhor Pero Affonso. 8 A JUDIA.
Pero Affonso, sem mudar de posição.
Venhais embora, senhora Joanna Vaz.
Joanna, sorrindo.
Sempre foliando com a vossa guitarra! Alegre vida passais.
Pero Se der eu outra coisa não faço!
Pentear e jejuar, todo o dia sem comer;
cantar e sempre tanger, suspirar e bocejar.
Foi para mim de molde que Gil Vicente fez a trova.
Joanna Verdade é que sempre me admirou que tendo militado, como dizeis, com o senhor D. Vasco de Menezes na Africa e na India não estejais servindo em casa d’elle.
Pero, sentando-se d’um impeto, e indignado.
Servir, eu! Sou um soldado portuguez, mulher! Dizei-me então, lá segundo a vossa ruim cabeça, para que se inventaram os escravos? Se o senhor D. Vasco de Menezes quizer quem o sirva, n’um pulo vou a Tanger ou a Arzilla, e para cá lhe enxoto uma boa manada de Moiros.
A JUDIA. 9 Joanna Mas nunca vos falta com a mesada, a senhora D. Beatriz?
Pero, tornando a recostar-se.
E’ verdade, tenho moradia como um fidalgo.
Mas é um instante em quanto ella se vai pela agua abaixo... não digo bem, pelo vinho abaixo.
Se elle está tão caro! Bem se lamenta a Maria Parda! (Cantarolando, acompanhado pela guitarra).
Devoto João Cavalleiro, que pareceis Isaias, dai-me de beber tres dias, e far-vos-hei meu herdeiro.
(Joanna ri-se, encolhendo os hombros, e subindo um pouco a scena).
Branca Gil, entrando azafamada pela grade.
Ai! a Virgem Maria vos acompanhe, e todos os santos e santas da côrte do Ceu! (para Joanna) Tambem vós por cá, Joanna Vaz? Agora, agora. Vosso marido partiu para a India, e não vos deixou nem um ceitil, o fastio? Podieis castigal-o sem pau, nem pedra. Ainda hontem um fidalgo me dizia: Quem é aquella guapa moça, que mora 10 A JUDIA.
para o lado da azenha de Lopo Eanes? «Ai, meu fidalgo! isso é uma rosinha d’abril, uma frescura de maio, a minha rica Joanna Vaz.»
Joanna, offendida.
Então, senhora Branca Gil!
Branca, mudando logo de tom.
São modos de fallar. (Sentando-se n’um banco, e respirando com força) Ai! meu rico martyr S. Sadorninho, venho estafadinha. Se não é uma consciencia obrigar uma creatura de Deus a vir de tão longe para receber a esmola d’uns magros ceitis, que para nada chegam!
Pero, voltando a cabeça com desdem.
Mal empregados!
Branca, reparando n’elle, com ira.
Estaveis ahi, Pero Affonso, mais a vossa lingua afiada? Ai! mano, olhai por vós! Andar á boa vida, e receber o dinheirinho que melhor cabia aos pobres!
Pero, desdenhoso.
Fallai, fallai que é o mesmo que chiar um carro!
Joanna, baixo para Branca.
E’ verdade, senhora Branca Gil, era o que eu ainda agora lhe dizia. Ser pago e não trabalhar!
A JUDIA. 11 Branca, baixo tambem, e com modo importante.
Ai, minha querida Joanna Vaz, a senhora D.
Beatriz lá tem as suas razões. Quem ha-de levar os recadinhos ao fidalgo, que ahi vem agora, sempre ao cair da noite, desde que o senhor D.
Vasco está na côrte com el-rei?
Joanna, curiosa.
Um fidalgo?
Branca Guapo e loução é elle que não ha lá mais dizer! E então vestindo ao modo portuguez antigo, que não é como esses pintalegretes d’agora que andam sempre entrajados á franceza ou á saboyana. Que eu, ainda assim, estou em dizer que elle é algum d’esses fidalgos moços que andam com o principe real á caça para as bandas d’Almeirim.
Joanna E dura isso ha muito?
Branca Ha que tempos que eu o vejo passar e tornar a passar no seu barco por baixo das janellas de D. Beatriz! mas ha coisa de oito dias que eu vou pôr as mãos n’umas horas em como elle já está de muros a dentro. Aquillo não é para bom fim, 12 A JUDIA.
que, se o fosse, viria a senhora D. Beatriz ter comigo; que eu, louvado Deus, não sou mulher que tome conta de negocios d’outro lote. (Insensivelmente foi levantando a voz de modo que Pero Affonso ouvio o final da conversação).
Pero, voltando-se de má catadura.
Olá, velha bruxa, que estaes ahi a babujar na vossa bemfeitora?
Branca, fincando as mãos na ilharga e começando logo uma oitava acima.
O’ maldito! Bruxa sou eu, por dizer as verdades? Olhai o D. Galaor como saío em defeza da sua dama! Pois digo e redigo que a senhora D. Beatriz vive em peccado, que não ha vêl-a na igreja senão aos domingos e dias santos, em quanto eu, graças a Nosso Senhor, me confesso todos os dias.
Pero, desdenhoso.
Duas vezes por dia que vos confessasseis, sempre terieis peccados novos que dizer ao padre.
Branca, furiosa, e avançando para elle com os punhos cerrados.
Tu não te calarás, excommungado?... O’ minha rica Virgem Maria, dez corôas vos rezo eu, se pedis a vosso bento filho para que dê um ar /
A JUDIA. 13 na lingua d’este maldito que lhe tolha a falla...
Ave Maria, cheia de graça, o Senhor é comvosco... Enforcado sejas tu no inferno com Judas o traidor... Bemdita sois vós entre as mulheres...
Sabujo pellado, alma de judeu...
Pero, indignado.
Judeu? Menos isso, senhora Branca Gil.
Branca, berrando, triumphante.
Judeu, herege, marrano, pagão, Berzabum!
E’s judeu, e tornas a sêl-o... Por isso a senhora D. Beatriz te paga, que lá os christãos-novos são as meninas dos seus olhos... que parece-me que tão christã ella é como eu sou moira!
Pero, indignado.
Não é christã, a sobrinha do senhor D. Vasco de Menezes!
Branca, com ar de desdenhosa duvida.
Sobrinha? Será sobrinha, será. O senhor D.
Vasco assim o diz... que eu de irmãos nunca lhe soube. Alli anda grande peccado, que vol-o digo eu... Sobrinha! Filha de quem, fazeis favor de me dizer?
Os mendigos, que se acercaram desde o começo da discussão, e deram signaes d’approvar Branca, sempre que ella dizia mal de Beatriz.
E’ verdade, é verdade!
14 A JUDIA.
Pero, levantando-se d’um pulo, indignadissimo, e brandindo a guitarra como se fosse uma arma.
Juro ao corpo de Deus que vai aqui tudo raso, canalha. (Os mendigos recuam em desordem diante do gesto ameaçador de Pero, atropellandose uns aos outros, e deixando isolado no meio da scena Thomé Cayado, velho e côxo, que entrára poucos momentos antes, e que procura, todo encolhido, resguardar-se com as mãos).
Thomé, humilde.
O’ senhor Pero Affonso, eu não disse nada.
Pero, desatando a rir.
Olá, estaveis ahi, D. Jacob, Ezechiel, Isaias, ou como é a vossa graça?
Thomé Thomé Cayado, senhor Pero Affonso, Thomé Cayado para vos servir.
Branca, saindo do grupo, e avançando ameaçadora para Thomé.
Que vens tu cá fazer, Iscariotes? Vens roubar as esmolas que pertencem ás almas christãs? (Os mendigos acercam-se de Thomé, com os olhos scintillantes, dando-lhe empurrões e maltratando-o).
Thomé, com as lagrimas nos olhos, encolhendo-se todo.
Tenho a minha filha a morrer.
A JUDIA. 15 Branca Foi mau olhado que lhe deitaste, bruxo.
Thomé, como acima.
O alcaide das sizas pôz-me os trastes na rua, e vendeu-m’os.
Branca Peior fizeste tu a Christo.
Thomé, espantado.
Eu?!
Branca Tu não és filho de Judas, e neto de Poncio Pilatos?
Pero, voltando a cabeça, sentencioso.
Olhai, senhora Branca Gil, que Pilatos não era judeu.
Branca, voltando-se, indignada.
Que está aquelle herege a dizer? Pilatos não era judeu? Então que era elle?
Pero, grave.
Romano.
Branca, estupefacta.
Romano!... Romano de Roma?
Pero, com modos de commiseração pela ignorancia da sua interlocutora.
Podéra! Havia de ser Romano d’Alcobaça!
16 A JUDIA.
Branca, desdenhosa e ironica.
Com que então Pilatos era Romano? Porque não dizeis que era o Papa?
Pero, fulminado pelo argumento.
E’ verdade... Pois quem me disse isto foi o capellão de Chaul.
Branca, vendo entrar fr. João de Tara.
Ahi vem o tira-teimas.... O’ snr. fr. João, Pilatos era judeu?
Fr. João, trajando o habito d’uma das ordens mendicantes;
saccola de pedinte no braço; na physionomia ascetica, e no olhar brilhante e feroz transluz um fanatismo selvagem. Bruscamente.
Não, mulher, era Turco.
Branca, voltando-se para Thomé.
Vês? Por isso tu és judeu, e tens costella de moiro.
Fr. João, voltando-se indignado.
Um judeu!... (Vendo Thomé) Que fazes entre christãos? (Com gesto intimativo e energico) Vaite, excommungado!
Thomé, afflicto e supplicante.
Mas, senhor, eu sou christão.
Fr. João E’s christão?... Responde n’esse caso.... Quantas são as pessoas da Santissima Trindade?
A JUDIA. 17 Thomé, balbuciante.
São cinco.
Fr. João, indignado.
Heresia! heresia! Não vedes vós o christão?
Quantas são as pessoas da Santissima Trindade, maldito?
Thomé, mal podendo resguardar-se dos murros e pontapés que chovem sobre elle.
São dez, senhor, são dez.
Fr. João, furioso.
E não ha uma fogueira para crimes d’estes? E
assim consentis, irmãos, que este judeu insulte os sagrados mysterios. (Os clamores e as ameaças dos mendigos redobram com isto).
Thomé, chorando.
Mas, senhor, a mim nunca me ensinaram doutrina. Os inquisidores em Cordova disseram-me:
Ou baptisado ou queimado. E vai eu preferi baptisar-me.
Fr. João, no auge do furor selvagem, arrancando do seio um crucifixo e brandindo-o como um punhal.
Blasphemou do sacramento do baptismo! Cuspiu na face de Jesus. Não vêdes, irmãos, o Christo crucificado a pedir-vos vingança? Vingai Christo, Senhor nosso! Ao rio o blasphemador!
2 18 A JUDIA.
Todos, lançando-se furiosos a Thomé.
Mata, mata! Ao rio, ao rio! (Os mendigos, entre os quaes se distingue Branca Gil pela violencia do gesto, e feia furia das ameaças, arrastam Thomé, que se debate em vão, para o fundo.
Pero Affonso, que se conservara estranho á scena, faz um movimento, como se, impellido por natural generosidade, quizesse ir em soccorro do christão-novo).
Joanna, que esteve tambem sempre affastada do grupo, approximando-se da grade, e espreitando para fóra, volta-se, bradando.
Ahi vem a senhora! Ahi vem a senhora! (Acalma-se tudo como por encanto, e os mendigos largam Thomé, que se encosta a uma arvore, pallido e limpando na fronte o suor da agonia. Só fr.
João de Tara fica no meio da scena n’uma attitude desdenhosa e selvagem).
SCENA II
OS MESMOS, BEATRIZ, ZAIDA E UM CRIADO
Beatriz, Entra, preoccupada, pela grade; olha frequentemente para o céu como que espreitando a approxitnação da noite. Seguem-n’a a alguma distancia Zaida e o criado, que a acompanharam ao passeio. Meio dis-
A JUDIA. 19 trahida para os mendigos que a cortejam humildemente.
Bons dias, meus amigos. Estaveis gritando, pareceu-me?
Branca, pondo as mãos como n’um extasi e querendo desviar a attenção de Beatriz.
Ai que bonina dos ceus, que rosa perfumada!
Ora vêde, vêde se não é mesmo o retrato do seu bom tio!
Beatriz, passando junto de Branca, sem lhe responder, e com visiveis modos de fastio, sorri-se depois amavelmente para Joanna, dizendo-lhe.
Adeus, Joanna. (Vendo Thomé Cayado, dirige-se para elle com vivacidade; compassiva) Tens tua filha a morrer? Coitado! (Para a escrava) Zaida, acompanha-o a casa, e vê que nada lhe falte.
Zaida Sim, minha senhora. (Thomé Cayado sem poder fallar de lacrimoso, beija a mão a Beatriz, e sáe acompanhado pela escrava).
Beatriz, ao voltar-se dá de rosto com fr. João, que, immovel no meio da scena, sombrio e carregado, lhe estende a saccola.
Estremece violentamente, e faz um movimento como para fugir. Reprime-o comtudo, e, tomando a bolsa, tira de dentro algumas moedas de prata que deita na saccola, dizendo com voz trémula.
Deus vos acompanhe, meu padre. (Fr. João não lhe responde e conserva-se immovel e desde-
20 A JUDIA.
nhoso. Beatriz apressa-se a dirigir-se a Pero Affonso, dizendo-lhe com um sorriso amavel) Boas tardes, Pero Affonso; então em trabalhar não se pensa?
Pero com indignação reprimida pelo respeito e affecto.
Um Portuguez não trabalha, senhora minha;
isso é bom para os Inglezes e para os Framen gos.
Beatriz sempre sorrindo.
E os Portuguezes o que fazem?
Pero intimativo.
Combatem e vencem.
Beatriz meneando a cabeça.
E sois tantos a pensar assim! Ai, pobre Portugal! (Dando-lhe dinheiro) Tomai, tomai, ruim cabeça, e lembrai-vos que, se meu tio estima os valentes, não gosta dos ociosos. (Pero corteja-a e sai. Beatriz continúa, voltando-se para o criado, e dando-lhe a bolsa.) Distribui lá fora as esmolas, estou fatigada e desejo estar só. (Os mendigos saem com grande borborinho, atropellando-se com soffreguidão em volta do criado. Fr. João permanece immovel.)
A JUDIA 21 SCENA III
BEATRIZ, FR. JOÃO DE TARA.
Beatriz, voltando-se e vendo o frade, estremece de novo sensivelmente, mas, reprimindo esse movimento involuntario, diz com leve tremor na voz.
Não vos attendi já, meu padre?
Fr. João, com rude exigencia.
Os dormitorios do nosso convento estão arruinados, e contamos com o vosso auxilio para elles se concertarem.
Beatriz, sêccamente.
Isso é com meu tio.
Fr. João, com mais rudeza.
Cautella, D. Beatriz de Menezes, todos notam que fallais combrandura aos judeus, e tratais mal os servos de Christo! Cautella!
Beatriz, tremula mas procurando reagir contra o ascendente do frade.
Ainda ha judeus em Portugal?
Fr. João de Tara, sem a attender e crescendo para ella com gesto energico.
Quem communica com excommungados, excommungado é. Anathema! Anathema! Anathema!
22 A JUDIA.
Beatriz, recuando diante d’elle, ao vêr entrar D. Vasco, lança-se-lhe nos braços, exclamando.
Meu tio, salvai-me.
SCENA IV
OS MESMOS E D. VASCO.
D. Vasco, protegendo Beatriz com um braço, e olhando para fr. João da Tara, com olhar firme e gesto soberano.
Quem ousa proferir anathemas em minha casa? Sois vós, fr. João de Tara?
Fr João, sem baixar o tom.
A palavra de Deus em toda a parte se póde fazer ouvir.
D. Vasco Guardai os sermões para quem vol-os pede.
(Apontando-lhe a grade com gesto energico.) Saí.
Fr. João, indignado.
D. Vasco de Menezes, a tua cabeça condemnada...
D. Vasco Lembrai-vos que tenho senhoria, que fui embaixador d’el-rei em França e em Castella.
Fr. João, ameaçador.
Desprezai, desprezai os ministros do altar! Ce-
A JUDIA. 23 do virá o tempo em que tereis de curvar diante d’este habito a vossa fronte orgulhosa. Adeus! (Sai de fronte levantada, sempre torvo e ameaçador. D.
Vasco segue-o com a vista com tristeza e desdem.
Beatriz, que estivera sempre ao abrigo de seu tio, assim que o frade desapparece, solta-se dos braços de D. Vasco e olha para elle com inquietação e surpreza, como quem o não esperava.
SCENA V
D. VASCO, BEATRIZ.
D. Vasco, olhando para o sitio por onde fr. João saío.
Tem infelizmente razão. Vai começar o reinado dos frades, e com elle talvez a decadencia espantosa de Portugal. (N’este momento o criado que saíra para distribuir as esmollas, volta, fecha a grade e entra para casa).
Beatriz Porque, meu tio?
D. Vasco, triste.
Porque el-rei D. Manoel poucos dias contará de vida.
24 A JUDIA.
Beatriz, aterrada.
Que dizeis?
D. Vasco.
A verdade. O meu grande monarcha, o meu real amigo está com um pé na sepultura, e quem lhe succede no throno? O príncipe D. João, fanatico, devasso, que encheu d’amargura os ultimos dias de seu pai, e que só se deixa guiar por frades ou conselheiros ruins.
Beatriz Que desgraça!
D. Vasco, melancolico.
Vê tu, Beatriz, de que depende ás vezes o destino d’um povo. Se o acaso do nascimento houvesse dado a primogenitura ao meu nobre infante D. Luiz, retrato de seu pai nas prendas e nas virtudes, oh! então, lamentando a morte do meu rei, não tremeria ao menos pelo destino do reino.
Beatriz, olhando para seu tio com attenção, e procurando disfarçar o interesse que liga á pergunta.
E, estando el-rei tão mal, assim o desamparastes? Não vos esperava hoje.
D. Vasco Trouxe-me cá um negocio urgente. (Depois d’um instante de silencio) Levo-te para a côrte, Beatriz.
A JUDIA 25 Beatriz, com terror.
A mim!
D. Vasco, grave.
A ti. A minha senhora rainha D. Leonor querte para dama do seu estrado. Reprehendeu-me lisongeiramente por te haver escondido em Almada.
Partiremos amanhã.
Beatriz, afflicta e supplicante.
Meu tio, eu vivo aqui tão feliz entre os meus queridos arvoredos, ao vosso lado, ou, quando cá não estais, com as minhas donas tão meigas, com a minha escrava moira que tanto affecto me tem.
Fóra d’este horisonte eu nada ambiciono. Oh!
não me arranqueis, meu tio, a esta placida ventura.
D. Vasco, meigamente, e fazendo-a sentar junto de si n’um banco.
E julgas que não me desgosto com tal mudança, eu que tanto desejava conservar-te longe d’aquelles ares apestados da côrte? mas é forçoso obedecer á rainha. Aquella boa senhora, que tão calumniada tem sido, precisa de uma amiga leal como as não ha na côrte, como tu saberás sêl-o.
Beatriz, sem se resignar.
Ah! meu tio! meu tio! (A’ parte.) E elle, elle!
26 A JUDIA.
D. Vasco Porque te affliges tanto? Repara, que, se da rainha vais ser amiga, tambem n’ella vais ter uma protectora?
Beatriz, com desespero.
E não sois vós, meu tio, o meu querido protector.
D. Vasco Nem sempre heide viver. O reinado que se vai abrir será o reinado da hypocrisia, e o teu genio altivo e franco hade attrahir-te sempre o odio dos devotos. (Olhando para ella com attenção, a fim de observar o effeito da sua pergunta) Dize-me por exemplo, qual é o motivo da repugnancia instinctiva que os frades te inspiram?
Beatriz, estremecendo.
Não sei, meu tio... Dizeis bem; é instinctiva e inexplicavel.
D. Vasco, tremendo de ouvir uma resposta afirmativa.
Alguma recordação de infancia?
Beatriz Uma recordação! (Olhando fito para D. Vasco.)
Meu tio, porque não me fallais nunca em minha mãe? A JUDIA 27 D. Vasco Porque é uma triste historia a da tua... a da nossa familia.
Beatriz, seguindo as suas idéas.
Uma recordação, dizeis... Parece-me que sinto effectivamente dentro em mim um redemoinho confuso... Um panorama obliterado aviva-se na minha memoria. (Sentindo acudirem-lhe as recordações em tropel. D. Vasco ouve-a com anciedade). Esperai, esperai! Um dia, era eu uma criancinha, estava brincando junto da janella illuminada pelo sol, oiço de subito ao longe um clamor terrivel, um rugido vago... O rumor approxima-se. (Levantando-se agitada) Acorda nos sinos o pavido rebate... Uma mulher pállida... (com um grito) minha mãe! (As palavras precipitam-se-lhe acompanhando as peripecias da scena que narra; D. Vasco segue-a ancioso) toma-me nos braços, arranca-me da janella, já o tropel enche a rua, arromba-se a porta, uma turba furiosa invade a casa, dois homens, dois frades, com as vestes manchadas de sangue...
(Com um grito dilacerante e deixando-se cair no banco) Oh! lembro-me, lembro-me!
28 A JUDIA.
D. Vasco, tomando-a nos braços, convulso, e procurando fazêl-a calar.
Não, não te lembras, não quero que te lembres! (Olhando entorno de si com terror) Foi um sonho terrivel, um pesadelo da tua infancia. (Em voz baixa) Sepulta-o no canto mais escuro da tua memoria, e nem sequer no Paço, nem junto da rainha, oh! nunca, nunca evoques esse devaneio fatal.
Beatriz, fatigada e com espanto.
Mas, meu tio, que mysterio é este que pesa sobre a minha vida?
D.Vasco, meigo e grave.
Revelar-t’o-hei quando tiveres vinte e cinco annos. (Mudando de conversação) Vai-se fazendo tarde, e as noites são frias. (Levantando-se) Dá-me o teu braço, minha doce Beatriz. (Ella dá-lhe o braço, e encaminham-se ambos para a escada do alpendre que sobem, continuando elle a fallar) Quero aproveitar o resto da noite escrevendo aos meus velhos amigos, os fronteiros d’Africa, para lhes dar a triste noticia que tanto os hade affligir. (Entram ambos para casa. Beatriz, emquanto subio a escada, foi olhando com inquietação para o fundo como esperando que alguem venha).
A JUDIA. 29 SCENA VI
BEATRIZ, só.
A scena fica um instante deserta e silenciosa. A noite caío durante a scena antecedente. Pouco depois ouve-se ao longe um canto de barqueiro que se vai approximando.
A voz torna-se cada vez mais distincta, até que se ouvem as palavras. Beatriz abre de manso a porta do alpendre e escuta, voltando de vez em quando a cabeça para dentro, tremendo que seu tio venha.
A voz Aguas amargas do rio vai-as o remo a cortar.
Nuvens da minha tristeza, Meu amor, vem-n’as rasgar.
Beatriz, descendo vagarosamente a escada.
E’ o signal da sua chegada. Pela primeira vez vou estar junto d’elle; mas é forçoso que o avise de que não podemos ter hoje a nossa longa conversação. (Neste momento D. João trepa ao muro pelo lado de fóra, atira para dentro o chapéu e a capa, salta em seguida, põe a capa e o chapéu, e, sem vêr Beatriz, dirige-se para baixo da janella, dispondo-se a bater as palmas).
30 A JUDIA.
SCENAVII.
BEATRIZ, D. JOÃO.
Beatriz, mostrando-se apressadamente porque até ahi estivera escondida pela escada.
Jayme!
D. João, com um grito de contentamento, vendo-a e correndo a ella.
Tu aqui? O’ suprema ventura!
Beatriz, em voz baixa.
Silencio; falla baixo. Está cá meu tio. Não sabes? Tristes novas tenho a dar-te. Quer-me levar para a côrte. (Com afflicção) Separar-me de ti! Oh! não posso.
D. João, com jubilo, mas em voz mais baixa.
Para a côrte? Mas essa era uma felicidade que eu nem ousaria ambicionar. Vêr-te-hei todos os dias. Nunca mais nos hão-de dividir aquella avara janella, aquelle muro despiedoso.
Beatriz, com alegria.
O que? E’s da côrte?
D. João, sorrindo.
Sou.
A JUDIA. 31 Beatriz, com curiosidade infantil.
E occupas n’ella um logar importante?
D. João, sempre sorrindo.
Dizem que um dos mais importantes.
Beatriz, com gracioso orgulho.
Devia têl-o adivinhado, devia ter adivinhado que essa tua altiva fronte não era para se curvar entre as frontes vulgares. Nunca te perguntei o teu nome. Eras o meu Jayme; que me importava o resto? Mas dize-me, és titular? (Signal affirmativo de D. João) E’s conde?
D. João, como acima.
Mais alto!
Beatriz, meia triste.
Ah! se até agora receiava que não fosses nobre bastante para satisfazer ás exigências de meu tio, agora receio que o sejas tanto que não queiras mais olhar para a pobre mulher que te ama.
D. João, com ternura.
Que ousas pensar?
Beatriz, com entranhado affecto.
Olha, parece-me que desejava que tu fosses pobre e proscripto para que o meu amor fosse para ti riqueza, nobreza, gerarchia, vida, tudo emfim. Vê como eu sou egoista! Queria que tu 32 A JUDIA.
fosses como a flôr pendida, queimada pelo sol de estio para que fosse o meu amor como o fresco orvalho do entardecer que a vivifica e reanima.
Queria que a noite espessa te envolvesse no seu manto escuro para o meu amor te recobrir como uma immensa irradiação. Queria encontrar-te perdido, sumido no fundo d’um abysmo de tréva e de miseria, e eu, chegando, debruçar-me para ti, banhar-te com a luz do meu olhar, attrahir-te a mim com a força da minha vontade, do meu affecto, do meu extremo, e dizer-te: Vem, vem que sou eu a aurora, sou a luz, sou o amor.
D. João, meigo.
Louquinha!
Beatriz, graciosa e ternamente queixosa.
Bem sei que não te devia dizer isto; sou eu a mulher, sou eu que devo ser requestada, e estoume entregando assim, estou-te abrindo a minha alma, para que leias n’ella, para que vejas a tua imagem aqui (apontando para o coração) profundamente gravada, e tu entretanto ouves-me em silencio...!
D. João Oh! mas bem sabes quanto te amo!
A JUDIA. 33 Beatriz, como acima.
Ah! não o dizes bem! não o dizes bem! (Com ardor) Essa palavra, quando eu a profiro, pareceme que a vou arrancar ao fundo do coração e que a trago, como uma torrente de chamma, a vir queimar-me os labios. Quando a profiro?
Mas é que a não profiro. E’ ella que me foge da bôca, é ella que se exhala espontaneamente como o perfume da minha alma em flor. Amo-te, amote! Não sentes palpitar n’esta palavra o meu coração, a minha vida? Não te parece que a noite se accende emtorno de nós, e que ao seu influxo) magico desabrocham no céo milhares de desconhecidas constellações?
D. João, attrahindo-a a si com vehemencia.
O’ alma de fogo, quem não se sentiria abrazado pela tua palavra?
Beatriz, pondo-lhe as mãos nos hombros, e affastando-lhe o rosto de si, para o contemplar com ternura.
Jayme... oh! como hei-de eu chamar-te?...
Jayme, não, outra palavra ainda mais suave...
meu doce amor (como ensaiando a melodia da frase) meu do...ce...a...mor. (Com enthusiasmo) O’
pombas que arrulhais nos vossos castos ninhos, dizei-me: qual é a melodia com que chamais o 3 34 A JUDIA.
esposo na hora dos vossos transportes namorados...? Estrellas, que palpitais no céo azul, com que raio de luz ignota vos enlaçais umas ás outras atravez da immensidade...? Flores, que rescendeis na aragem abrazada, que aroma de vós se exhala, quando celebrais á noite os vossos consorcios mysteriosos? Oh! dizei-m’o, dizei-m’o, para que eu possa impregnar as palavras, que dirijo ao meu amado, em toda a vossa luz, em toda a vossa fragrancia, em toda a vossa melodia! (Fatigada pela sua exaltação deixa pender a cabeça no hombro d’elle).
D. Vasco, fóra.
Beatriz!
Beatriz, voltando a si com sobresalto e terror.
E’ meu tio! (para D. João tomando-lhe as mãos)
Esconde-te!
D. João, com orgulho.
Oh! mas que importa que elle me veja?
Beatriz Que estás dizendo? Não sabes como elle é violento! Matava-te! matava-te !
D. João, como acima.
A mim!
A JUDIA. 35 Beatriz, com terror.
Em que pensas? Querias bater-te com elle, querias derramar o seu sangue? Oh! não sabes que era o meu sangue que derramavas? (Emquanto se trocou rapidamente este dialogo, Beatriz conseguio que D. João se escondesse por traz d’uma arvore junto do proscenio, e, collocando-se entre elle e a janella, occultou-o com o seu corpo, conservando-lhe uma das mãos presa nas suas).
D. Vasco, abrindo a janella ao fundo, e percorrendo o jardim com a vista.
Beatriz!
Beatriz, com voz tremula.
Meu tio!
D. Vasco.
O que fazes no jardim a estas horas?
Beatriz, como acima.
Meu tio... ando colhendo plantas medicinaes.
(para D. João em voz muito baixa) Oh! cala-te!
D. Vasco.
Que murmuravas então? Pareceu-me ouvir-te a voz.
Beatriz, procurando assumir um tom jovial.
Bem sabe, meu tio, que sou um pouco feiticeira. (Ouvindo isto, D. João faz um movimento 36 A JUDIA.
involuntario de espanto e horror. Beatriz que lh’o sente, sem o comprehender, na contracção da mão aperta-lh’a mais, dizendo n’um murmurio e sem voltar a cabeça). Oh! por piedade! (Continuando para D. Vasco) E estava murmurando as magicas palavras que dão ás plantas a virtude.
D. Vasco, em tom de meiga reprehensão.
Louca, não gosto d’essas superstições; deixa as plantas, e vem ceiar que te espero.
Beatriz Sim, meu tio, eu vou. (D. Vasco fecha a janella. Beatriz volta-se para D. João, e, tomandolhe ambas as mãos, diz-lhe em voz baixa) Adeus, tornar-nos-hemos a vêr na côrte, não é verdade?
D. João Sim.
Beatriz Viverás sempre a meu lado? Serás sempre meu, como eu sou tua?
D. João Oh! sempre.
Beatriz Adeus, parte. (Segurando-lhe de novo as mãos)
Oh! mas espera, eu tinha tanta coisa que te dizer, tanta, tanta, tanta!
A JUDIA. 37 D. João Oh! falla, anjo querido!
Beatriz, depois de ter procurado como que um pretexto para o não deixar partir.
Onde passas o resto da noite?
D. João A contemplar a tua janella illuminada.
Beatriz, com jubilo.
Oh! sim, sim, a minha imagem segue-te sempre, como a tua fica ao meu lado, doce phantasma d’amor? Pensas sempre em mim?
D. João Em ti só.
Beatriz Olha bem para mim, deixa-me ver os teus olhos, quero vêr se elles mentem. O’ noite, illumina-te para que eu veja se a minha imagem se reflecte desassombrada no espelho da sua pupilla.
D. João Sem que uma nuvem a tolde, meu amor.
Beatriz Adeus, parte, quem te demora? (Retendo-o de novo) Oh! mas ouve. Tu és da côrte? Não me lembrava d’isso. (Com receio infantil) Ha lá muitas damas formosas, não é assim? oh! mas tu não 38 A JUDIA.
as achas mais bonitas do que eu, não é verdade?
Olha que eu não quero que tu as vejas. (Repetindo a frase com graciosa ameaça) Não quero que tu as vejas, quero que a minha imagem se interponha sempre a ti e a ellas (D. João, attrahindo-a a si, procura beijal-a; ella repelle-o, murmurando com supplica) Não, não! depois, depois!
D. Vasco, fóra.
Beatriz, então!
Beatriz, com impaciencia reprimida pelo respeito.
Eu vou, meu tio, eu vou (para D. João) Adeus, amo-te! (Correndo para o lado da escada, com o rosto inundado de jubilo) Oh! como eu sou feliz, como eu sou feliz! (Chegando ao fundo da escada, volta-se para D. João, e diz-lhe) Amo-te.
(Sobe a escada a correr, e dizendo alto para fóra, para D. Vasco) Que linda noite, meu tio! Que de estrellas no ceo! (Ao chegar ao cimo da escada, volta-se uma ultima vez, e envia a D. João, como um murmurio, a palavra) Adeus! (Sáe).
A JUDIA. 39 SCENA VIII
D. João só; fica um instante a olhar para o sitio por onde Beatriz desappareceu, e depois d’um instante de silencio, exclama Que provocadora mulher! Queima-me a sua voz! Oh! para a possuir, dera o throno do universo. (N’este momento apparece por cima do muro ao fundo a cabeça de Payo Juzarte, a explorar o jardim. D. João traçára a capa, enterrára mais o chapéu na cabeça, e dispoem-se a partir).
SCENA IX
D. JOÃO, PAYO JUZARTE
Payo, vendo D. João, brada Meu senhor, ó meu senhor!
D. João, fazendo-lhe signal para que falle mais baixo.
Scio! Que é isso, Payo Juzarte?
Payo, que saltou do muro, dirigindo-se para o seu interlocutor, de chapéu na mão. Com modos alegres.
Meu senhor, grande noticia! El-rei está a morrer.
40 A JUDIA.
D. João, assombrado.
O que?
Payo, sempre muito satisfeito.
Não escapa. Os pbysicos já perderam a esperança. Ainda agora o secretario Antonio Carneiro encontrou-me no Paço, e disse-me por cima do hombro: « Sabeis onde está o principe real? —
A’ caça na Outra-Banda, respondi eu não menos seccamente.—Mandai-lhe dizer que el-rei lhe deseja fallar.—E’ grave a doença? perguntei eufazendo-me consternado — O principe que não se demore na caçada, se quizer receber a ultima benção de seu pae. (Com modos de confidente magano) Eu que já sabia qual era a caça que Vossa Alteza seguia, vim logo direitinho ao poiso. (Virando e revirando o chapéu nas mãos, e com um sorriso servil) Espero que Vossa Alteza nunca se esqueça de que fui eu o primeiro a trazer-lhe a noticia.
D. João, dando um passo para o proscenio com os olhos scintillantes do jubilo da ambição satisfeita, com voz surda.
A corôa, oh!... (Cahindo em si, e voltando-se para Payo com modos de reprehensão) Que maneiras são essas, Payo Juzarte? (com dôr transpa-
A JUDIA. 41 rentemente hypocrita) Meu pae está a morrer; profunda tristeza me punge.
Payo, que estava esfregando as mãos muito satisfeito, olha para elle primeiro de boca aberta, depois percebe, deixa cahir o chapéu que tem debaixo do braço, e, tir-
ando o lenço e levando-o aos olhos para limpar as la-
grimas ausentes, diz. imitando o tom do principe, e cortando as palavras com um soluço.
Tambem a mim, senhor! (Cáe o panno).
ACTO SEGUNDO
Salão vasto nos paços da Ribeira, alcatifado e com as paredes forradas de razes; portas lateraes com reposteiro, portas ao fundo. O salão desimpedido de mobilia; alguns assentos razos e a cadeira em que se senta o principe. Portas lateraes e do fundo abertas e reposteiros corridos, deixando vêr outras salas, havendo durante todo o acto passagem de cortezãos d’umas para as outras.
SCENA I
D. JOÃO, D. VASCO DE MENEZES, PAYO JUZARTE, FERNÃO BOTELHO, D. PEDRO MASCARENHAS, D.
ANTONIO D’ATHAYDE, E OUTROS CORTEZÃOS, depois DAMIÃO DE GOES, depois FR. JERONYMO PADILHA.
Ao levantar do panno reina uma certa agitação entre os cortezãos que conversam entre si baixo e inquietos. O
principe D. João está á esquerda sentado n’uma cadeira e absorto nos seus pensamentos. D. Vasco de Menezes á direita passeia vagaroso e meditativo. Os cortezãos como que fluctuam entre estes dois personagens principaes, sem saberem a quem hão-de rodeiar. Logo depois de subir o panno, D. Pedro Mascarenhas entra pela esquerda, e Fernão Botelho, Payo Juzarte e outros cortezãos se approximam d’elle com avida curiosidade.
Fernão, em voz baixa.
Como está el-rei? 44 A JUDIA.
D. Pedro Mal. Aquelle já sente mais de perto o ranger da sepultura do que o psalmear das orações.
Payo, em voz baixa.
Não escapa, hem?
D. Pedro, sarcastico.
E’ sol poente devéras. Podeis voltar-lhe as costas sem perigo. (Payo nem o attende, e apressase em communicar a noticia ao cortezão que lhe fica mais proxim., A nova passa de bôca em bôca, e logo todos os fidalgos vão em massa rodeiar o principe, deixando D. Vasco de Menezes n’um isolamento bem pronunciado. Fernão Botelho fica junto de D. Pedro no meio da scena, como quem deseja obter mais amplas informações. D. Pedro continua dirigindo-se a Fernão Botelho, e designando D. Vasco) Ahi tendes o que é sêr-se valido d’um rei que morre; foge-se d’elle como da peste.
Fernão, maneiras hypocritas, modos condescendentes, mas sorriso fino e velhaco.
Coisas do mundo!
D. Pedro.
Sabeis guiar melhor o vosso barco, snr. Fernão Botelho! Valido d’uma rainha ainda nova, A JUDIA. 45 que estava bem com o marido, e não está mal com o enteado...
Fernão Calumnias, senhor D. Pedro Mascarenhas!
D. Pedro, grave.
Eu a ninguem calumnío, nem digo coisa alguma em desabono de Sua Alteza. Pedida em casamento primeiro para o joven principe D. João, depois para o velho rei D. Manoel, a rainha D.
Leonor, cumprindo, como cumpre, estrictamente os seus deveres de esposa, póde sem crime suspirar em segredo ao contemplar o noivo gentil que lhe destinavam. (Tornando ao seu tom habitual) E dizem que na sua primeira entrevista, a que estaveis presente, senhor Fernão Botelho, os olhos d’ambos fallaram uma linguagem mysteriosa...
Fernão, com ingenuidade.
Ah! eu não entendo essa lingua... Sei apenas o portuguez e o latim...
D. Pedro Sois um modêlo de discrição. (Cortejando-o.
A’ parte) Hypocrita!
Fernão E vós um espelho de cortezia (Cortejando-o.
46 A JUDIA.
A’ parte) Velhaco! (Affastam-se. Fernão dirige-se ao grupo que rodeia o principe; D. Pedro vai primeiro apertar a mão a D. Vasco de Menezes com quem troca algumas palavras).
D. Antonio, dirigindo-se ao principe.
Resignai-vos, senhor; é o destino que a todos nos espera..
Payo Tal qual! Era o que eu ainda hontem dizia a Garcia de Rezende, em latim... E’ verdade, até lh’o dizia em latim: «Garcia de Rezende, meu velho amigo, Pallida mors oequo pulsat pede...
D. Pedro, que n’este momento se approximou do grupo, concluindo a frase.
Pauperum tabernas, regumque turres. Já Horacio o dissera.
Payo, voltando-se com fingido espanto.
Já! E também em latim?
D. Pedro Tambem.
Payo ingenuo.
E’ notavel. Pois encontrei-me com Horacio!
D. Antonio, continuando a conversação com o principe.
Confessemol-o; os máos conselheiros, de que A JUDIA. 47 vosso augusto pae se rodeára, começavam a fatigar o reino.
Payo Era o que eu dizia. Desculpai, meu principe, a minha rude franqueza. O meu defeito é ser franco. Mas o povo espera com anciedade que Vossa Alteza suba ao throno. (Voltando-se para D. Pedro Mascarenhas e para os outros fidalgos) Sou franco; é o meu defeito.
D. Antonio Depois a impia tolerancia com os christãosnovos, que não são mais do que judeus disfarçados.
D. João, levantando-se com impeto.
Deus prolongue os dias de meu pae; mas, se eu empunhar o sceptro, perseguirei sem piedade essa raça maldita. (Senta-se.)
Payo E então um reinado em que só se faltava na Africa e na India! E heroes para aqui, heroes para acolá! O que são os heroes? Uns aventureiros esgalgados que não arriscam senão a pelle e os ossos! Conheci Affonso d’Albuquerque; era um magrizella, (Voltando-se para D. Pedro Mascarenhas, porque o principe dá n’esse momento at-
48 A JUDIA.
tenção a D. Antonio d’Athayde) Todos os heroes são magros.
D. Pedro A historia romana o confirma. Ahi temos Scipião! Um heroe! Todo ossos! Ingrata pátria, exclamava elle, non possidebis ossa mea! (Voltase a conversar com Fernão Botelho.)
Payo, imperturbavel para o principe.
Estava eu agora dizendo ao meu amigo, o snr.
D. Pedro Mascarenhas: Scipião! E’ um heroe. O
que dizia elle? Non possidebis ossa mea. Meu senhor, os Brutos e os Cassios são sempre magros.
D. Pedro, que interrompeu a sua conversação para o ouvir com espanto, alto para Fernão Betelho, designando Payo Juzarte.
Em quanto ha muitos gordos, que esses são brutos só!
Payo, imperturbavel, e sem parecer têl-o ouvido.
E dizia eu tambem: ha muitos gordos... (Suspendendo-se de subito e voltando-se para procurar com a vista D. Pedro Mascarenhas, que já se affastára) Não, bruto será elle! (Para Fernão Botelho) Este D. Pedro Mascarenhas é tolo.
A JUDIA. 49 Damião de Goes, pagem de dezeseis annos, esperto, gaiato, atrevidete, e vivo como um azougue. Entra pela esquerda azafamado, e diz para os cortezãos, mas sem que o principe o oiça.
Meus senhores, el-rei está melhor. (Agitação entre os cortezãos que se agrupam emtorno do pagem, e depois vão-se, pouco a pouco, escapando para irem comprimentar D. Vasco de Menezes.)
Payo, á parte.
El-rei está melhor! Cautella! (Para Damião)
E então isso como foi?
Damião Um verdadeiro milagre! Parece que Deus disse a el-rei como Horacio a Augusto Lucem redde tuoe, dux bone, patrioe.
Payo, satisfeito com a explicação.
Sim senhor! Altos juizos de Deus! (Approxima-se disfarçadamente de D. Vasco; só ficam junto do principe D. Antonio com quem elle conversa, e Fernão que olha desconfiado para o pagem.)
D. Pedro, approximando-se de Damião, e olhando fito para elle.
El-rei está melhor?
Damião, sorrindo.
Cada vez peior. Quiz eu dispôr esta comedia.
4 50 A JUDIA.
(Apontando para o grupo) Gil Vicente que a transcreva.
D. Pedro, sorrindo.
Ainda o meu Damião vem a escrever comedias!
Damião, com enthusiasmo.
O que eu desejo escrever é a historia.
D. Pedro, tocando-lhe na face.
Comedia tambem é, meu joven amigo, com tablado mais vasto e maior numero de personagens. (Affasta-se.)
Payo, continuando uma conversação com D. Vasco.
E dizia eu agora em latim alli ao Damião de Goes... Eu faço-lhe ás vezes citações latinas que é para o instruir... Um rapaz esperto aquelle Damião... Sou eu que o vou guiando. (D. Vasco mal o attende) Dizia-lhe pois... (Procura lembrar-se e em seguida) O’ Damião!
Damião, approximando-se com máo modo.
O que é?
Payo, imperturbavel.
O que te dizia eu agora em latim?
Damião, voltando-lhe as costas.
Já me não lembra!
A JUDIA. 51 Payo, para D. Vasco.
Tem pouca memoria! E’ o defeito d’elle.
Fr. Jeronymo, entrando azafamado pela esquerda e encontrando-se com D. Pedro Mascarenhas.
Dizei ao principe que el-rei lhe quer fallar immediatamente.
D. Pedro Está peior?
Fr. Jeronymo Não tem uma hora de vida. (Sáe, D. Pedro vai transmittir o recado ao principe que se levanta immediatamente e sáe tambem.
Payo Está outra vez peior?! (A’parte) O’ senhores, que maldita doença! Nem um homem de bem sabe o que ha-de fazer.
SCENA II
PAYO JUZARTE, FERNÃO BOTELHO. Os outros cortezãos agrupam-se ao fundo caprichosamente. D. Vasco, muito inquieto, vai collocar-se junto da porta por onde saío o principe.
52 A JUDIA.
Fernão, depois de ter verificado que os cortezãos estão ao fundo e distrahidos, chama Payo Juzarte. Este di logo todo é muito rapido.
Payo!
Payo, vindo ter com elle á bôca da scena.
O que é?
Fernão A sobrinha de D. Vasco já está no Paço.
Payo Já?
Fernão Deixou-a o tio ficar na camara de D.Beatriz de Mendonça. Ella conhece-te?
Payo De vista, de certo; muitas vezes passei por baixo das suas janellas no barco do príncipe real.
Fernão Bem. Aproveita a primeira occasião para lhe fallares. Faze-lhe sentir que a sua fortuna da nossa fortuna depende. Valido da rainha, mas percebendo que a Hespanhola, orgulhosa como digna irmã de Carlos V, não se curvaria aos meus projectos, aconselhei-lhe que tomasse para dama de honor D. Beatriz de Menezes que o tio se obstinava em conservar arredada da côrte. Se ella ser- A JUDIA. 53 vir a nossa influencia, será a amante inabalável do novo monarcha, senão pôl-a-hemos de parte como instrumento inutil.
Payo Deixa isso por minha conta. Mas não te esqueças da commenda que me prometteste.
Fernão, impaciente.
Não esqueço.
Payo Lembra-te que fui eu que te descobri os amores do principe.
Fernão Sim.
SCENA III
OS MESMOS, A RAINHA D. LEONOR, DAMAS E CORTEZÃOS.
A rainha entra pela direita, seguida pelas damas e um ou dois fidalgos. Todos os que estão já em scena lhe formam alas, e se curvam respeitosamente diante d’ella.
D. Leonor, chorosa.
Meus senhores, estive ainda agora com el-rei.
Poucas esperanças poderemos conservar. Eu é que soffro uma perda irreparavel. (Chora.)
54 A JUDIA.
Payo, curvado com todo o respeito, baixo para Fenão sem voltar a cabeça.
Tem tanta pena d’elle como eu que não tenho nenhuma. (Alto com voz entrecortada de lagrimas e gemidos) Real senhora, partilhamos todos a sincera dôr de Vossa Alteza.
D. Leonor, para D. Vasco.
D. Vasco, trouxestes vossa sobrinha?
D. Vasco Está já no Paço, real senhora, mas não me atrevi a apresental-a Vossa Alteza em tão doloroso momento.
D. Leonor N’estas occasiões d’afflicção ainda mais se estima a vinda d’uma nova amiga.
D. Vasco Irei então buscal-a, real senhora. (Corteja-a e sáe).
SCENA IV
OS MESMOS menos D. VASCO.
Fernão, que esteve conversando com um fidalgo da comitiva da rainha, approxima-se de Payo. A rainha senta-se á direita rodeada pelos cortezãos.
Tendes a vossa commenda.
A JUDIA. 55 Payo, muito alegre.
Tenho!
Damião, que os ouvio, fallando sem olhar para elles.
Medraria este rapaz na côrte mais que ninguem, porque lá não fazem bem senão a quem menos faz.
Payo, que logo aos primeiros versos fez um movimento, irritado.
Que estás tu a dizer, ó Damião?
Damião, com innocencia affectada.
Estou recitando versos de Gil Vicente.
Payo Se tornas a recitar ao pé de mim versos de Gil Vicente, puxo-te as orelhas, entendes?
Damião Para ficarem do tamanho das de vossa mercê? Muito obrigado, não me faz conta. (Esgueirase; Payo furioso faz um gesto d’ameaça).
Fernão, com modos risonhos, suspendendo Damião que vai a safar-se.
Sabeis historia, senhor Damião de Goes?
Damião, pondo as mãos atraz das costas, e olhando para elle com atrevimento.
Eu sei, sim senhor; e vossa mercê sabe?
56 A JUDIA.
Fernão, sorrindo tranquillamente.
Muito gracioso.... Sabeis então o que dizia Ricardo III de Inglaterra?
Damião, como acima.
O que dizia elle?
Fernão, accentuando as palavras.
As crianças muito espertas vivem pouco.
Payo, intromettendo-se na conversa, e imitando o tom de Fernão.
E’ verdade, era o que elle dizia: as crianças muito espertas vivem pouco.
Damião, olhando para elle, e meneando a cabeça.
Ah! por isso vossa mercê está homem feito!
(Safa-se).
Payo, indignado.
O’ galopim! (Fernão, rindo, procura socegal-o).
SCENA V
OS MESMOS, D. VASCO E BEATRIZ
D. Vasco, dirigindo-se á rainha e apresentando-lhe Beatriz que se curva com respeito.
Aqui tem Vossa Alteza a sua nova serva.
A JUDIA. 57 D. Leonor, dando a mão a beijar a Beatriz, e mirando-a complacente.
Se fôrdes tão boa como sois linda, se o coração confirma as promessas do rosto, terei junto de mim um anjo, D. Beatriz.
Beatriz, confusa.
Envergonhais-me, real senhora. Mas, se o meu rosto não mente, o que elle deve revelar a Vossa Alteza é um coração dedicado.
Damião, que a mira extatico desde que ella entrou.
Á parte.
O’ meu Deus, que estrella! que sonho de poeta! Brotou por acaso Venus da alva espuma do Tejo?
D. Pedro, observando Damião; á parte para Payo Juzarte.
Ai! o nosso pagem que está perdido!
Payo, para D. Pedro, piscando-lhe o olho.
Vou-lhe jogar um epigramma. (Approxima-se de Damião, com modos ironicos) O’ Damião, como é que se diz em latim: (designando D. Beatriz, e depois designando-o a elle) Não é o mel para a bôca do asno?
58 A JUDIA.
Damião, tranquillamente.
Non est mel ad buccam de Payo Juzarte. (Escapa-se).
Payo, furioso.
O’ maldito.
D. Pedro, rindo-se.
O’ senhor Payo Juzarte, perguntai-lhe agora como é que se diz em latim, ir buscar lã e vir tosquiado.
D. Leonor, que esteve conversando com Beatriz, para D.
Vasco.
Acompanhai-me, D. Vasco, vou vêr se el-rei me recebe. (Sáe pela esquerda, seguida por D.
Vasco, Fernão Botelho, que faz a Payo um signal indicando-lhe Beatriz, D. Pedro Mascarenhas e mais alguns cortezãos. Os restantes e as damas vão-se agrupar ao fundo da scena, passeiam, sáem e entram, deixando desimpedido o proscenio).
SCENA VI
BEATRIZ E PAYO JUZARTE, DAMAS ECORTEZÃOS ao fundo Payo, baixo a D. Beatriz, que tem mais de uma vez olhado para elle, como reconhecendo-o.
Senhora minha! (D. Beatriz affrouxa o passo A JUDIA. 59 indecisa. Payo insiste) E’ elle quem me envia.
Beatriz, parando, e olhando para Payo entre receiosa e alegre, hesitando.
Elle... quem?
Payo, com modos mysteriosos, e sorrindo.
O enamorado moço que vos ia fallar, sempre ao cair da noite, saltando os muros do jardim.
Beatriz, com jubilo, e desaffogada.
Ah!... Elle está no Paço?
Payo, modos protectores.
Podéra; pois onde havia de estar?
Beatriz, em voz baixa e rapida; durante a scena toda, em quanto falla com Payo, olha a cada instante inquieta emtorno de si.
Dizei-lhe que me peça a meu tio.
Payo, estupefacto.
Que vos peça a vosso tio?
Beatriz Sim.
Payo, cada vez mais pasmado.
E então vosso tio entrega-vos assim sem mais nem menos?
Beatriz Parece-me que está bem disposto para qualquer pedido n’esse genero.
60 A JUDIA.
Payo, á parte.
Que tal? Aqui está o que são os heroes, uns sublimes desavergonhados. (alto) E então como ha-de elle formular o seu pedido? Est modus in rebus, como Bernardim Ribeiro... (emendando)
como eu dizia a Bernardim Ribeiro.
Beatriz, olhando para elle espantada.
Que me peça em casamento.
Payo, com assombro. .
Que vos peça em casamento!... Quem?
Beatriz, impaciente.
Meu Deus, Jayme.
Payo, cada vez percebendo menos.
Qual Jayme? O duque de Bragança!
Beatriz, com terror.
Céus! Jayme é duque de Bragança?
Payo Pelo menos o duque de Bragança é Jayme.
Beatriz, passado o primeiro momento de terror, exclama levantando com orgulho a cabeça.
Ah! mas que importa? Se nas veias dos Braganças corre sangue real, não é menos nobre a ascendencia dos Menezes.
A JUDIA. 61 Payo, querendo desembrulhar esta meada.
Mas dizei-me, senhora minha, o que vem o duque de Bragança fazer em tudo isto?
Beatriz, impaciente.
Meu Deus! não vos percebo. Não sois enviado pelo fidalgo, com quem vos vi n’um barco?
Payo Exacto!
Beatriz Pelo fidalgo a quem todas as noites eu fallava da minha janella?
Payo Isso mesmo.
Beatriz Por Jayme emfim?
Payo, impacientissimo.
Lá tornamos nós á antiga. Se eu vos digo e redigo que Jayme é o duque de Bragança!
Beatriz Então ahi tendes. (Neste momento D. Vasco entra procurando com a vista sua sobrinha. Beatriz que o vê diz baixo e rapido a Payo) Esperaime um instante. (Corre ao encontro de seu tio).
62 A JUDIA.
SCENA VII
OS MESMOS, FERNÃO BOTELHO, E D. VASCO ao fundo.
Payo, scismando.
Me mellem se eu percebo... O duque de Bragança ia ao jardim ao cair da noite, o principe tambem... Que demonio faziam ambos lá ao mesmo tempo?... (Com pausa) O duque namorava o principe... quero dizer... o principe namorava o duque... não ella é que namorava (impacientado) o diabo que a leve, que me pôz a cabeça em agua.
Fernão, que entrou momentos antes, vendo D. Vasco e Beatriz conversarem ao fundo, dirige-se rapidamente a Payo, e pergunta-lhe.
Então?
Payo Não temos nada feito... A rapariga tem amores com o duque de Bragança.
Fernão, espantado.
Com o duque de Bragança?
Payo Pois que duvida. Fallo-lhe no principe, res-
A JUDIA. 63 ponde-me com Jayme. Jayme falla-lhe á noite, Jayme salta os muros do jardim, Jayme dá passeios de barco...
Fernão, que esteve reflectindo, exclama com impaciencia.
Toleirão! (Payo olha em torno de si como procurando a quem se dirige o epitheto). Pois não vês que Jayme era o nome com que o principe naturalmente se disfarçava?
Payo, imperturbavel.
Foi isso mesmo que eu pensei!
Fernão, absorto nas suas reflexões.
Amava-o sem o conhecer... Mau!... Emfim toda a mulher é ambiciosa, talvez ainda possâmos fazer d’ella alguma coisa. Verêmos. (Para Payo)
Deixa-me. (Vendo que Beatriz procura approximar-se disfarçadamente, depois de haver terminado a conversação com seu tio que sáe pela direita, diz com impaciencia a Payo que o mira estupefacto) Vai-te. (Payo encolhe os hombros, e sáe pela direita, primeiro plano).
64 A JUDIA.
SCENA VIII
FERNÃO E BEATRIZ
Fernão, curvando-se respeitosamente diante de Beatriz que procura Payo com a vista inquieta.
Senhora minha!
Beatriz, indo a affastar-se.
Perdoai!
Fernão, suspendendo-a com o gesto, com intimativa supplicante.
Rogo-vos, senhora, que me queiraes escutar um momento. Não tornarei a encontrar tão facilmente outro ensejo como o que hoje me proporciona a agitação da côrte para implorar, eu humillimo, a vossa valiosa protecção.
Beatriz, sêccamente.
Senhor, eu nada valho e nada posso.
Fernão Vale muito e póde tudo quem possue a vossa esplendida formosura na côrte de um rei moço e ardente.
A JUDIA 65 Beatriz, indignada.
Sabia já que na côrte o veneno corruptor se envolvia em mellifluas palavras, não julgava porém que se expozesse com tão insultuosa impudencia.
Fernão, com indignação fingida.
Attribuis-me pensamentos que estão bem longe do meu espirito. Pois julgaveis-me capaz de vos aconselhar a que vos servisseis da vossa belleza para comprardes o valimento d’um rei?...
Oh! (Insinuante) Mas os reis são homens e como taes podem sentir e inspirar amor. (Com intenção) E, se uma nobre donzella, vivendo longe da côrte, amasse um gentil mancebo sem n’elle conhecer o principe...
Beatriz, approximando-se.
Como?
Fernão, cravando os olhos n’ella para não perder uma só expressão do seu rosto.
Que gloria não seria a sua, quando reconhecesse no seu amador o seu monarcha, no homem que tivera a seus pés aquelle a cujos pés se curva um reino!
Beatriz, com um grito de terror.
Gloria, dizeis? Oh! seria horrivel.
5 66 A JUDIA.
Fernão, á parte.
Hum! foi espontaneo o grito! (Alto) Horrivel, se elle desprezasse, como soberano, a mulher que amára como homem, se não lhe tivesse o affecto ardente (em voz baixa) que Jayme vos consagra.
Beatriz, escondendo o rosto com as mãos, com desespero.
Jayme! O’ Deus! O meu segredo, todos o sabem n’esta côrte maldita.
Fernão Só eu e Payo o sabemos. (Curvando-se para ella, prescrutando com avido olhar a sua physionomia, e proseguindo implacavel) Mas se fosseis vós a donzella que imaginei, se Jayme fosse o soberano, o que farieis?
Beatriz, descobrindo a face banhada de lagrimas, espontanea e energica.
Morria!
Fernão, á parte, rapido.
Não me serves! (Alto, e sorrindo) Socegai, foi uma hypothese apenas...
Beatriz, desvairada, e segurando-lhe no braço com violencia.
Não, não foi... Qual o motivo que vos impel-
A JUDIA. 67 le não sei, não sei por que razão quizestes perturbar o socego da minha alma, não sei o que as vossas palavras, o que as vossas insinuações escondem, mas já que me deixastes entrevêr um futuro de desgraças haveis de revelar-m’o todo...
Conheceis Jayme? Quem é elle? Dizei-m’o claramente e sem rodeios... E’ mais do que um simples fidalgo? E’ mais do que um duque?
E’...?
Fernão, que esteve olhando para o fundo da scena impondo silencio a Beatriz.
Escutai.
SCENA IX
OS MESMOS, UM PORTEIRO DA CANNA, e depois D.
JOÃO
O Porteiro, abrindo a porta da esquerda, segundo plano, e ficando immovel junto ao humbral. Com voz grave e lugubre.
Senhores, é morto el-rei o senhor D. Manuel, que Deus tenha em gloria. (Agitação entre os cortezãos. O porteiro continua, mas com voz sonora e festiva) Chega el-rei, o muito alto e poderoso senhor D. João III que Deus guarde! (Entra 68 A JUDIA.
D. João, passando por diante do porteiro que lhe deu caminho curvando-se respeitosamente).
Beatriz, que se debruçou avidamente para vêr o rei reconhecendo-o, lança-se para traz soltando um grito de desespero.
Jayme!
Fernão, tomando-lhe o braço com energia, e apertando-lhe o pulso.
Silencio! (Os cortezãos agrupam-se em torno de D. João III. Quadro. Cáe o panno).
ACTO TERCEIRO
Salão esplendido do Paço, preparado para recepção. A’
esquerda um estrado forrado de velludo com espaldar e docel, e no estrado duas cadeiras ricas, aos lados do estrado tamboretes rasos. Sala alcatifada; portas ao fundo, portas lateraes. O estrado fica entre duas portas com reposteiros de velludo vermelho e com as armas reaes bordadas.
SCENA I
PAYO JUZARTE E FERNÃO BOTELHO
Entram pelo fundo, mas por dois lados differentes, e encontram-se no meio da scena.
Fernão Por aqui, Payo Juzarte?
Payo, modos importantes.
Serviço d’el-rei!
Fernão Estaes sendo pois....?
70 A JUDIA.
Payo, cada vez mais orgulhoso.
Confidente de Sua Alteza.
Fernão Parabens. E que vindes fazer?
Payo Segredo d’estado. Vistes D. Beatriz?
Fernão Trazeis a D. Beatriz algum recado d’el-rei?
Payo, com espanto.
Quem foi que vol-o disse?
Fernão, sorrindo.
Adivinho. Ah! meu pobre Payo Juzarte, quereis seguir então a fortuna de D. Beatriz? Pessimo calculo. O amor sincero exclúe qualquer idéa ambiciosa, e nada se ganha com uma favorita que, em vez de amar o rei, ama o homem. Por isso vou desvial-a do meu caminho. Prefiro a rainha, que essa ao menos precisa de mim.
Payo De ti?
Fernão Podéra! Para ella casar com o enteado, não basta o desejo de ambos. E’ necessario um homem habil para preparar o espirito do povo, para luctar com a vontade de Carlos V, para desfazer A JUDIA. 71 intrigas do embaixador de Castella. Meu caro, reciprocidade de serviços.
Payo, chegando-se para elle.
Tu sabes que eu sou franco! Nunca me pude desfazer d’esta maldita franqueza, que é um terrivel defeito na côrte. Dir-te-hei pois que sempre admirei o teu genio, sempre fui teu amigo.
Amicus certus...
Fernão, interrompendo-o.
Bem sei.
SCENA II
OS MESMOS, D. LEONOR, BEATRIZ E DAMAS
A rainha entra pela esquerda, seguida das suas damas com as quaes vem D. Beatriz confundida. Apenas entra, os dois fidalgos vão-lhe beijar a mão.
D. Leonor, affavel.
Bons dias, meus senhores. (Para Fernão) Que ha de novo, Fernão Botelho?
Fernão Real senhora, a camara de Lisboa vem hoje em corporação dirigir a el-rei e a Vossa Alteza 72 A JUDIA.
um pedido, que exprime o desejo de todo este povo leal. Os vereadores estão já no palacio.
D. Leonor, com agitação alegre.
Já? Vou-me preparar para os receber. (Para as damas) Vinde. (Dirige-se para a direita, seguida pelas damas, e conversando animadamente com Fernão Botelho).
Payo, approximando-se rapido de D. Beatriz, em voz baixa.
El-rei deseja fallar-vos.
Beatriz, impaciente.
El-rei? Para que?
Payo, com respeito supersticioso.
Ordem de Sua Alteza.
Beatriz Obedeço, já que é um dever a obediencia.
(Payo corteja-a, e sáe pelo fundo. A rainha, as damas, e Fernão Botelho sáem pela direita).
SCENA III
BEATRIZ, só.
(Agitada) Vou-me encontrar com elle. (Com profunda tristeza) Que revolução na minha vida!
A JUDIA 73 Jayme era D. João III, o homem que meu tio tanto odeia, que é, segundo a sua descripção, um monstro de perfidia, de fanatismo e de crueldade. Oh! meu Deus, e devo, e posso ainda acredital-o?
SCENA IV
D. BEATRIZ, D. JOÃO
D. João, entrando apressado pelo fundo.
Beatriz!
Beatriz, estremecendo.
El-rei!
D. João, approximando-se d’ella com ternura insinuante.
Perdôas-me?
Beatriz, respeitosa.
Perdoar... eu!... a Vossa Alteza!... o que?
D. João O haver-te occultado o meu nome.
Beatriz, com respeito, em que transluz uma leve e dolorosa ironia.
Quem sou eu, senhor, para censurar, para discutir sequer um capricho de Vossa Alteza?
74 A JUDIA.
D. João, com amor.
Vossa Alteza! E’ assim que tu me tratas? Eu para ti não sou rei, sou ainda, sou sempre o teu Jayme.
Beatriz, com um triste sorriso.
Oh! Perdoai. Não julgueis que não percebo perfeitamente a differença da situação. Aprouve um dia a Vossa Alteza descer do throno para vêr se, descoroado do esplendor da magestade, podia ainda assim captivar o affecto dos seus subditos.
(Com amargura) Bem viu Vossa Alteza que foi feliz a tentativa, bem vio que pode inspirar amor.
A experiência foi talvez para mim dolorosa, oh!
mas uma vassalla deve sacrificar o seu repouso, a sua vida ao desejo do seu monarcha.
D. João, arrebatado.
Vassalla, tu não és minha vassalla. (Ajoelhando) Eu é que sou teu escravo, eu que te offereço agora o amor e o throno.
Beatriz, forçando-o a levantar-se.
Vossa Alteza a meus pés! Oh! por Deus, senhor...
D. João, retendo-lhe as mãos.
Tu, que amaste o homem, sem conheceres o A JUDIA. 75 rei, porque não has-de ter ao soberano o affecto que ao teu Jayme consagravas?
Beatriz, grave.
Porque Jayme... podia amal-o, sem que todos me cuspissem o desprezo ás faces.
D. João, com orgulho.
E quem ousa em Portugal insultar a mulher que acceitou o amor do seu rei?
Beatriz, com dignidade.
Se ninguem o ousasse, ousal-o-hia a minha consciencia... (Interrompendo-se e fazendo um movimento para se retirar) Peço-vos, senhor, que deixemos esta conversação para mim tão penosa.
D. João, fazendo um gesto para lhe impedir a saída, amargo.
Ah! tu nunca me tiveste amor!
Beatriz, com um grito.
Eu!... (Contendo-se, e com impaciencia dolorosa) E’ verdade, é, nunca vos tive amor.
D. João, resentido.
Zombaveis então de mim?
Beatriz, impaciente, e convulsa.
Zombava, sim, zombava de Vossa Alteza...
(supplicante) Oh! mas deixai-me partir.
76 A JUDIA.
D. João Qual era então o vosso intuito? Que motivos a isso vos impelliam?
Beatriz, quasi frenetica, e sem atinar com o que diz.
Que motivos?... Os motivos?... Eu sei! Oh!
por compaixão deixai-me.
D. João, cruzando os braços, com profunda amargura.
Parece impossivel que minta assim o rosto d’uma mulher... Mas enganais-me agora ou enganaveis-me então?
Beatriz, com dignidade.
Nem vos enganava então, nem vos engano agora. (Commovendo-se á medida que vai fallando) Amei, é verdade, amei um fidalgo meu igual, um homem que se parecia extraordinariamente com Vossa Alteza, amei-o com todas as véras da minha alma, com todo o ardor do meu coração...
Era elle o sangue do meu sangue, a sua imagem a companheira das minhas vigilias, a visão das minhas noites. Quando essa imagem se esvaío como phantasma vão, como sonho d’alvorada, fiquei eu solitaria, deserta, debruçada sobre as ruinas do meu amor. (Continúa com a voz mais afogada em lagrimas e soluços) Oh! amei-o tanto, tanto que, quando elle me fugio, fugio-me do A JUDIA. 77 rosto a côr, do coração a vida. O que sou eu agora? Sou a sombra de mim mesma, sou um cadaver que a onda da existencia arrasta. Oh! bem vêdes, senhor, que não vos posso amar! um cadaver não ama, um cadaver não sente. Oh! não, não posso amar-vos, porque na minha alma, no sitio que a vossa imagem occupava, ai! meu senhor, veio sentar-se a morte. (Deixa caír a cabeça entre as mãos, oppressa por um soluçar doloroso).
D. João, com arrebatamento, e tomando-a nos braços.
Choras?! Amas-me então. Ah! que me importam os teus escrupulos? Amo-te, és minha.
Beatriz, debatendo-se nos seus braços.
Oh! não, não vos amo, senhor.
D. João, exaltado, e beijando-a na fronte.
Sou eu, é o teu Jayme.
Beatriz, um pouco desvairada, e repellindo-o.
Jayme! Oh! deixa-me, não te amo, não...
Oh! mas tu bem vês que não te amo.. Não, não quero amar-te. (Com desespero) Oh! meu Deus, o 78 A JUDIA.
que hei-de eu dizer a este homem para que elle me deixe? (Energicamente) Odeio-te.
D. João, resentido e largando-a.
Odeias-me!
Beatriz, com um grito, e correndo a elle, lavada em lagrimas.
Oh! não, não, minto, minto ! Mas bem vês, Jayme, que profundo abysmo nos separa. Como hei-de eu ser tua? (Tomando-lhe as mãos com entranhado amor) Tua esposa? Não posso. Tua amante? Não quero. (Com energia) Amo-te e morro. (Desvairada e repellindo-o) Vai-te. (Desvia o rosto para enxugar as lagrimas e compôr a physionomia).
D. João, depois d’um instante de silencio, com pensativa tristeza.
Enigmatica mulher, quem és tu emfim?
Beatriz, ainda agitada, com o seio a arfar, mas senhora de si, curvando-se e dando ás suas palavras o tom do mais profundo respeito.
Quem sou? De Vossa Alteza a mais humilde vassalla. (D. João faz um movimento de impaciencia).
A JUDIA. 79 SCENA V
OS MESMOS E D. LEONOR
D. Leonor apparece á porta da direita, acompanhada por Fernão Botelho. Permanecem um momento conversando e contemplando o rei e Beatriz, sem que estes os vejam. Depois Fernão atravessa o tablado nos bicos dos pés, e esquiva-se por uma das portas do fundo. D. Leonor dirige-se vagarosamente para os dois personagens que estão em scena. D. João sente-a, e volta-se com sobresalto.
D. João Desculpai-me, senhora, que vos não via.
D. Leonor, olhando com intenção ora para el-rei, ora para Beatriz.
Ah!
D. João, um pouco embaraçado.
E vinha comtudo procurar Vossa Alteza para lhe pedir as suas ordens relativas á recepção da camara de Lisboa.
D. Leonor D’aqui a um instante, se Vossa Alteza m’o permitte; estou um pouco fatigada.
D. João Quando Vossa Alteza quizer. (Beija-lhe a mão 80 A JUDIA
que ella por cortezia procura subtrahir a esta homenagem e sáe).
SCENA VI
BEATRIZ E D. LEONOR
D. Leonor, olha um momento fito e em silencio para Beatriz, depois, com intenção.
Choraveis, D. Beatriz?
Beatriz, enleiada.
Eu, real senhora!
D. Leonor, ironica.
El-rei é tão compassivo! Estava-vos enxugando as lagrimas?
Beatriz, como acima.
Não percebo o que Vossa Alteza quer dizer.
D. Leonor, sevéra.
Quero dizer que no Paço não consinto escandalos.
Beatriz, com dignidade.
Não serei eu quem os dê, real senhora.
D. Leonor, continuando.
Que, se não fosseis sobrinha de D. Vasco, expulsar-vos-hia ignominiosamente.
A JUDIA. 81 Beatriz, com doloroso espanto.
A mim!
D. Leonor, continuando.
E lamento que el-rei escolhesse uma das minhas damas para objecto dos seus ephemeros caprichos.
Beatriz, sombria, e no tom do orgulho offendido.
Dos seus caprichos!
D. Leonor, ironica.
Pois que outro nome dais ao sentimento, que el-rei, segundo parece, vos consagra ? Amor, talvez?
Beatriz, com um triste sorriso.
Oh! não, de certo, de tanto não sou digna!
D. Leonor, com ironia cada vez mais pungente.
Amor, sim! Porque não? E’ como no romance de Bernardim Ribeiro. El-rei é Bimnarder, e vós a gentil Aonia.
Beatriz, contendo-se, com resignação.
Não mereço tão profunda ironia.
D. Leonor, sarcastica.
Fallo sério. A cada instante se vê por esse mundo reis apaixonados por pastoras, trocando o sceptro em cajado, e a corôa em malmequeres.
6 82 A JUDIA.
Beatriz, levando a mão ao coração.
Vossa Alteza magoa-me.
D. Leonor, sem a attender.
Que vos jurava el-rei? Combater por vós o gigante Galifrão? sustentar algum passo? ou antes, mais bucolico, ir guardar comvosco as brancas o velhinhas?
Beatriz, agitada, e mostrando que padece.
Sois despiedosa!
D. Leonor Ou repellieis talvez o seu amor?
Beatriz, grave e triste.
Repellia, sim, minha senhora.
D. Leonor, com uma gargalhada ironica.
Cruel! pois assim desprezaveis o amor do vosso rei? Ah! Ah! Sois romanesca, D. Beatriz.
Beatriz, melancolica.
Bem pouco.
D. Leonor, como acima, e fingindo não poder conter o riso.
Pois, sério, sério, julgaveis que ereis para elrei mais do que o desenfado d’um momento?
Beatriz, franzindo o sobr’olho.
Até agora nunca servi de brinquedo a pessoa alguma.
A JUDIA. 83 D. Leonor, sem poder já sustentar o tom da ironia, porque a invade a ira.
Que vaidade! Pensais que basta um olhar para que el-rei vos caia aos pés?
Beatriz, fatigada e impaciente.
Oh!
D. Leonor, já sem reprimir a raiva.
Parece impossivel a estulta presumpção d’estas donzellas, que, ufanas dos seus passageiros encantos, imaginam captivar D. João III, que póde escolher entre as filhas dos reis, que póde ser amado pelas filhas dos imperadores!
Beatriz, com um grito, e apontando para ella com um gesto energico.
Ah! Vossa Alteza ama-o!
D. Leonor, estremecendo ao ataque imprevisto.
Eu!
Beatriz, com explosão, triumphante.
Ama-o, sim, ama-o, e eu, eu sou amada.
D. Leonor, irritada.
E’ muito.
Beatriz, exaltadissima.
Ha um quarto d’hora que Vossa Alteza me está pisando aos pés, ha um quarto d’hora que me está trancando do coração este amor, que eu n’elle 84 A JUDIA.
guardo como em sanctuario recatado, para o arrastar ao pelourinho, para o crivar de motejos e de zombarias. E Vossa Alteza não temia que o meu orgulho reagisse emfim contra o insulto?
D. Leonor, querendo reprimil-a.
Mas que ínsolencia é esta?
Beatriz, com a mesma exaltação.
Deus me é testemunha de que nunca me vangloriei d’este amor que é para mim uma desgraça;
mas, quando me alcunham de vaidosa, ergo-me altiva e digo: Sim, sou amada, amada como nunca haveis de sêl-o, amada com ardor, amada com delirio; aqui mesmo, ha pouco, a meus pés, el-rei me offerecia o seu amor e o seu throno.
D. Leonor, recuando diante de Beatriz que tem crescido para ella.
Não vêdes que sou a vossa rainha?
Beatriz, com a cabeça perdida.
Que me importa? Sois rainha? E eu sou amada, amada, amada! Tendes o poder? E eu tenho o seu amor. Tendes a corôa? E eu tenho aqui, aqui (designando a testa) outra corôa ainda mais refulgente, porque me illumina a fronte o resplendor dos seus beijos.
A JUDIA. 85 D. Leonor, no auge da cólera.
Impudente! impudente!
Beatriz, sem a ouvir sequer.
Ah! pois não sabeis que o amor nivella todas as gerarchias? Elle para mim não é o rei, vós para mim não sois a rainha. Quando duas mulheres amam o mesmo homem, a rainha é aquella que é amada, é aquella a quem elle ergue, com um raio do seu affecto, acima do mundo inteiro.
D. Leonor, tomando-lhe as mãos com impeto, e dominando-a emfim.
Tens razão! Não ha aqui rainha nem vassalla.
Dizes que és amada? Pois bem! Verêmos a qual das duas elle mente. Espera. (Corre com impeto á porta do fundo que abre com violencia, deixando Beatriz assombrada. Para o porteiro da canna que apparece logo) Os vereadores?
O Porteiro Esperam as ordens de Vossa Alteza.
D. Leonor Dizei a el-rei que estou prompta a recebêl-os.
(O porteiro corteja-a profundamente, e parte.
Voltando a Beatriz. Com violencia) Dizes que és amada?
86 A JUDIA.
Beatriz, cuja exaltação affrouxou um pouco.
Mas, senhora, o que é isto?
D. Leonor, tomando-a pela mão e levando-a á porta da esquerda, cujo reposteiro levanta.
Dizes que és amada? Pois bem! (com energia) Esconde-te e escuta! (Deixa cair o reposteiro, e procura acalmar a sua agitação).
SCENA VII
BEATRIZ, escondida, D. LEONOR, D. JOÃO, D. VASCO DE
MENEZES, D. ANTONIO D’ATHAYDE, D. PEDRO
MASCARENHAS, FERNÃO BOTELHO, PAYO
JUZARTE, DAMIÃO DE GOES, FR. JERONYMO PADILHA, O PORTEIRO DA CANNA, CORTEZÃOS, DAMAS
E VEREADORES.
O Porteiro da canna, abrindo de par em par a porta do fundo, e ficando immovel junto d’ella.
Chega el-rei! (Entra D. João III, seguido por toda a côrte. Dirige-se a D. Leonor, dá-lhe a mão e leva-a para o estrado, fazendo-a sentar na cadeira da direita e sentando-se elle na outra.
Em tamboretes rasos, d’um e d’outro lado do estrado, sentam-se as damas, D. Antonio d’Athayde, D. Vasco de Menezes, D. Pedro Mascarenhas, A JUDIA. 87 e fr. Jeronymo Padilha, ficando os outros em pé.
Quando todos tornaram os seus logares, el-rei faz um signal ao porteiro da canna, que diz para fóra em voz alta) Manda el-rei que entre o senado de Lisboa! (Entram os vereadores. Chegando a pouca distancia do estrado, cortejam profundamente, e um d’elles adianta-se, faz uma venia a el-rei, outra á rainha, tira um papel da algibeira, desdobra-o e lê).
1.º Vereador, lendo.
Muito poderoso Senhor. Os vossos fieis e obedientes povos d’esta muito nobre e sempre leal cidade de Lisboa, e assim em nome de todas as cidades, villas e concelhos d’estes reinos de Portugal, somos certificados que Vossa Alteza, por comprazer ao Imperador, lhe quereis mandar a rainha, nossa senhora, sua irmã, com suas arrhas e seu dote e rendimento d’ellas, e por quanto este passo é de terrivel importancia e de perigosa esperança futura, considerando que, mandando a rainha, mandais a maior senhora da christandade fóra do vosso poder, a qual senhora é louvor e honra das vossas provincias, requeremos a Vossa Alteza da parte da misericordia de Deus, e pedimos por 88 A JUDIA.
seu amor, que Vossa Alteza case com a rainha nossa senhora. E, se o Santo Padre fôr bem informado, não somente o permittirá, mas sob pena de obediencia o mandará. O qual requerimento fazemos a Vossa Alteza com toda a obediencia, do qual nos fica o traslado, para, fazendo Vossa Alteza o contrario, o darmos por nossa desculpa. (Dobra o requerimento, approxima-se do estrado, e, pondo um joelho em terra, entrega-o a el-rei).
D. João Temos ouvido o que nos pede o senado de Lisboa, e communicar-lhe-hemos o que fôr da nossa vontade.
D. Leonor Seja qual fôr a resolução que o meu dever me possa dictar, agradeço ao leal povo de Lisboa o affecto de que me dá provas. (Levanta-se, el-rei imita-a, e despede com um gesto os vereadores que sáem logo. Os cortezãos erguem-se tambem, e saem vagarosamente e a pouco e pouco.
Borborinho e agitação entre elles. El-rei e a rainha conversam á parte).
D. Antonio, para Fernão Botelho, com quem sáe.
E’ a única solução. No estado da fazenda publica torna-se impossivel pagar as arrhas e o do-
A JUDIA. 89 te.O dinheiro da India mal chega para as armadas e para os juros da divida publica. O thesouro não tem ceitil.
Fernão alto, para vêr se o rei e a rainha o ouvem.
E’ um casamento por todos os modos conveniente. São dignos um do outro. Queira o céu inspirar-lhes a resolução de cederem aos desejos do povo.
D. Pedro Mascarenhas, para Damião de Goes.
Se escreveres a chronica de D. João III, faze para este capitulo o seguinte summario: «Do requerimento espontaneo, que, por ordem superior, a camara de Lisboa dirigiu a el-rei e á rainha, os quaes fizeram ao bem da patria o sacrifício de casarem um com o outro, coisa por que estavam morrendo.»
Damião Escreverei a chronica de D. Manoel, não a de D João III que prevejo que ha-de ser vergonhosa.
D. Vasco de Menezes, que deu mostras da indignação que lhe causa tudo o que se passa, isolado no meio da scena e fulminando com a vista o rei e a rainha, sem abaixar muito a voz.
Indigno! E é D. Leonor quem assim cospe na memoria de seu esposo! Esperai ao menos, 90 A JUDIA.
para commetterdes o incesto, que esfriem as cinzas do grande rei D. Manoel.
Payo, tocando-lhe no braço para que elle se cale.
Então, então, sunt lachrymoe rerum, como eu dizia a... (D. Vasco volta-lhe as costas e sáe).
D. Pedro Mascarenbas, passando junto de Payo e atirando-lhe o nome.
Virgilio.
Payo, sem reparar.
E’ verdade, como eu dizia a Virgilio. (Dando pela tolice) Não... (Zangado) Este D. Pedro Mascarenhas é...
Damião, por traz d’elle.
Estás cada vez mais tolo! (Esgueira-se).
Payo, que só ouviu a ultima palavra que Damião de Goes pronunciou em voz muito mais alta do que o resto da frase.
Tolo! Exacto. D. Pedro Mascarenhas é tolo.
(Voltando-se para vêr quem lhe deu a palavra)
Tiram-me as palavras da bôca! (Dirigindo-se para a porta) Raça de plagiarios! (Sáe. A pouco e pouco foram saindo todos os cortezãos, e ficam sós el-rei e a rainha. O porteiro é o ultimo a sair, fechando a porta).
A JUDIA. 91 SCENA VIII
BEATRIZ, escondida, D. JOÃO, D. LEONOR
D. João, ternamente para D. Leonor.
E deixais-me partir sem que eu leve uma esperança?
D. Leonor, baixando os olhos.
Bem sabeis que o meu destino do imperador depende.
D. João, insinuante.
Mas o que vos diz o vosso coração?
D. Leonor, garrida.
Não ouso interrogal-o.
D. João, insistindo.
Porque?
D. Leonor Porque é um orgulhoso que não quer nunca ser o primeiro a fallar.
D. João, galanteador.
Ha tanto tempo que os meus olhos lhe fallam!
92 A JUDIA.
D. Leonor, garrida.
E’ um idioma tão difficil!. Nunca se está bem certo n’elle!
D. João Tanto lhe prometteram os meus suspiros!
D. Leonor Promessas envoltas em suspiros nascem e morrem com elles.
D. João, com mais calor.
E, quando vos pude amar sem crime, não vos revelei o que se passava na minha alma, toda vossa desde que vos vi? não vos disse quanto padecêra obrigado a tratar por mãe a quem para esposa queria?
D. Leonor Amais-me então? Deveras?
D. João Oh! loucamente.
O. Leonor Só a mim?
D. João A ti só.
A JUDIA. 93 D. Leonor Não amastes nunca outra mulher?
D. João, illudindo um pouco a resposta.
Quem podia rivalisar comtigo, minha rainha?
D. Leonor, como que envolvendo-o no magnetismo do seu olhar.
Não é isso o que diz a chronica da côrte.
D. João Oh! a chronica da côrte mente como todas as chronicas.
D. Leonor O que? Nem por desenfado?
D. João, natural.
Oh! talvez. Durante a vida de meu pae, procurei ás vezes com ephemeros galanteios arrancar do coração este amor que se me figurava impossivel, mas renascia mais viçoso a cada esforço que eu fazia para o decepar.
D. Leonor, olhando-o sempre, com ardente meiguice.
Jurais-me então que me tendes um amor exclusivo?
D. João Oh! juro, sim.
94 A JUDIA.
D. Leonor, depois de relancear uma rapida vista d’olhos para o sitio onde Beatriz está escondida.
Jurai-o outra vez! jurai-o mais alto!
D. João, rindo.
Mais alto! Para que?
D. Leonor, sorrindo com garridice.
Para que o meu coração vos oiça.
D. João, ajoelhando.
De joelhos o imploro, e juro que não amo outra mulher senão a minha querida rainha, a minha estremecida noiva! (Erguendo-se) O que diz elle agora? Diz-me que tenha esperança?
D. Leonor Se elle começa a ter fé!
D. João Virá depois a caridade?
D. Leonor, sorrindo.
As tres virtudes d’uma vez? (Conservando o sorriso nos labios, mas impaciente de vêr partir elrei) Ide-vos agora.
D. João, meigo.
Já?
D. Leonor, pondo a mão no coração.
Quero interrogal-o sósinha.
A JUDIA. 95 D. João Dai-me a resposta em breve. Adeus (Beija-lhe a mão e sáe.)
SCENA IX
BEATRIZ, D. LEONOR
D. Leonor, segue o rei com os olhos até elle desapparecer, com mal reprimida impaciencia, depois corre ao sitio onde está Beatriz escondida, levanta o reposteiro, e tral-a para fóra pelo pulso, exclamando com triumpho.
Ouviste? Ouviste? (Beatriz vem como inerte;
pallida desvairada. Sente-se no olhar no gesto que a razão vacilla, e ameaça fugir. Responde á rainha com um riso de loucura, antes convulsão do que riso. A rainha larga-lhe o pulso e recúa assustada diante d’ella, exclamando n’um grito) Está doida, está doida!
Beatriz. Estas palavras chamam-n’a um pouco ao sentimento da realidade, e solta um grito.
Ah! (Passa a mão pelo rosto, procurando reunir as suas idéas, olha emtorno de si, e, vendo a rainha, lembra-lhe tudo emfim, corre a ella, leva-a ao proscenio convulsamente agarrada pelo 96 A JUDIA.
braço, e exclama com voz cava e profunda) Oh!
não o ameis, senhora, não o ameis; porque eu... sou louca, sou louca! oh! mas elle... elle é um infame ! (Cáe o panno).
ACTO QUARTO
Sala preparada para o conselho, mas provisoria. Quasi no meio da sala meza coberta com alcatifa de velludo vermelho, tendo em cima papel, pennas, tinteiros, de modo que os membros do conselho possam tirar apontamentos. A’ roda da meza tamboretes, emtorno d’uma cadeira destinada para el-rei. Porta ao fundo aberta e portas lateraes.
SCENA I
DAMIÃO DE GOES E O PORTEIRO DA CANNA
Damião, entrando pelo fundo e dirigindo-se ao porteiro que está dispondo sobre a meza objectos necessarios para escrever.
O que é isto?
O Porteiro, continuando o seu trabalho.
O conselho que se reune hoje aqui.
Damião N’uma sala de passagem?
7 98 A JUDIA.
O Porteiro E’ provisorio apenas. Tem andado obras na sala propria. (Tendo acabado a sua tarefa, sáe.)
SCENA II
DAMIÃO, só; com pensativa tristeza.
Que jubilo sentiria qualquer cortezão, se houvesse recebido d’el-rei a prova de confiança que elle ainda agora me deu! E essa prova de confiança tanto me tortura! (Tirando um bilhete do seio) Entregar-me um bilhete para D. Beatriz, a mim que a amo desde que a vi! Payo Juzarte é indiscreto, disse-me el-rei; Payo Juzarte não é nada proprio para mensageiro d’amor. Tu sim, meu gentil pagem! «Meu gentil pagem!» Estas palavras, proferidas pela bôca omnipotente d’el-rei, far-me-iam estremecer d’orgulho, se as houvessem pronunciado os roseos labios, a querida, a querida voz de Beatriz. (Esta entra n’esse momento pela porta da esquerda, e vai a atravessar a sala com passo rapido e modo preoccupado e sombrio.
Damião vendo-a estremece, e recúa ao fundo da scena mormurando) Ah!
A JUDIA. 99 SCENA III
DAMIAO E BEATRIZ.
Damião, depois de vencer uma breve hesitação, á parte.
Eu sempre lhe digo um galanteio. (Alto, e com muita amabilidade) Senhora minha!
Beatriz, parando, e olhando para elle com modo carregado, e uma especie de distracção selvagem.
Que é?
Damião, querendo galanteiar, mas desorientado pelo modo e o olhar fixo do Beatriz.
Vindes... sois.... estais., pareceis... (Vendo que não consegue ligar uma frase, resigna-se com um suspiro e um modo de piedade a entregar o bilhete, e a dizer simplesmente) Um bilhete d’el-rei!
Beatriz, tirando-lhe o bilhete da mão.
D’el-rei! (Vem mais ao proscenio, emquanto Damião se retira ao fundo. Abrindo o bilhete com raiva concentrada) Que me quer elle ainda? (Lendo) «Beatriz. Preciso de concluir a nossa conversação interrompida. D’isso depende a minha ven-
100 A JUDIA.
tura. A rainha vai hoje, com as suas damas hespanholas, cumprir uma promessa e passar a noite em devoções no convento d’Odivellas. Recebes-me no teu aposento, como outr’ora no teu jardim d’Almada, um instante só?» (Passando a mão pela fronte com reprimida cólera, como parecendo-lhe impossivel o que leu) O’ meu Deus ! pois póde chegar tão longe a impudencia humana?... Que idéa faz este homem de mim?... O que suppõe? O que imagina? Como foi possivel que eu o amasse?...
E’ um monstro. (A cólera vai-a invadindo pouco e pouco n’um crescendo d’exaltação, até chegar ao extremo paroxismo) As mesmas palavras que elle me dizia, ouvi-lh’as eu dizer a outra, com a mesma voz, com a mesma intonação que me arrebatava ao céu!... Ah! mas elle não conhece então esta alma apaixonada? O que admira, se eu mesma a não conhecia, se me não suppunha capaz da cólera immensa, do odio inextinguivel que substituiram dentro em mim o amor que me inundava.
(Agitando a carta com mão convulsa, e dirigindose a ella como se tivesse diante de si a pessoa que a escreveu) E’ pois verdade que fui apenas, como ella dizia, o objecto dos teus ephemeros caprichos? que fui para ti um brinquedo? uma dis-
A JUDIA. 101 tracção passageira? a escrava humilde a quem de vez em quando queres arrojar o teu lenço de sultão? E não me hei-de eu vingar? e julgas que me resigno á infamia de que me cobres? Queres que eu te receba no meu aposento? Tambem eu quero vêr-te inda uma vez, quero lêr nos teus olhos a hypocrisia que elles me souberam encobrir, quero encontrar-me face a face comtigo, e, se ousas ainda, depois do que ouvi, recordar-me o passado, se ousas com a tua bôca mentida, com os teus labios perjuros e com a tua voz maldita, com as tuas supplicas infamantes, fallar-me de amor, a mim, a mim, a mim... oh! mato-te, e mato-me.
(Corre n’um estado d’immensa exaltação á meza, e pegando n’uma penna, escreve com rapidez estas palavras que pronuncia em voz alta com energia febril) «Vinde.» (Com a cabeça perdida estende o papel mesmo aberto a Damião de Goes.)
Damião, que seguio de longe com anciedade esta scena agitada toma o papel, e, lançando para elle os olhos, lê.
«Vinde!» (Estremece, e exclama supplicante dirigindo-se a Beatriz) Sempre recebeis el-rei?
Estais tão pallida, tão agitada, enferma talvez. .!
102 A JUDIA.
Beatriz, sem o attender, e afastando-se com impa- ciencia.
Ora, menino, deixai-me! (Sáe pela direita).
SCENA IV
DAMIÃO, só.
Menino! E’ assim que ella me trata! Pois eu conto deseseis annos, já me desponta o buço, e uma paixão ardente, oh! bem ardente, me devora.
(Olhando para o bilhete) E serei eu que hei-de levar esta resposta a el-rei? Por meu intermedio é que se ha-de realisar uma entrevista, que, só de pensar n’ella, estremeço? Não quero! não quero!
Hei-de impedil-a por qualquer modo. (Com resentimento) Menino! Eu vos provarei, senhora minha, que já não sou criança. Mas como conseguirei os meus fins? (D. Vasco entra n’este momento pela porta do fundo, porque se vai approximando a hora do conselho. Damião vê-o, e exclama tocado d’uma inspiração subita) Oh! que idéa! (Reflecte ainda um instante, e depois deita a correr impetuosamente na direcção da porta do fundo, dá, como por acaso, um encontrão em D.
A JUDIA. 103 Vasco, e deixa cahir o bilhete, como se fosse por causa do embate.)
SCENA V
DAMIÃO, D. VASCO.
Damião, com muita deferencia para D. Vasco de Menezes, que olhou para elle espantado, e levando o respeito quasi a extremos de humildade.
Perdoai, senhor D. Vasco, foi involuntaria a culpa.
D. Vasco, affavel.
Estais perdoado, senhor Damião de Goes. (Vendo-o a procurar inquieto com a vista pelo chão)
Procurais alguma coisa?
Damião, como que distrahido, e procurando no sitio onde a carta não está.
Um bilhete de D. Beatriz de Menezes.
D. Vasco, profundamente espantado.
De...? Para quem?
Damião, como acima.
Para el-rei. (Fingindo que só então repara na sua imprudencia) Ah! que fiz eu?
104 A JUDIA.
D. Vasco, como ferido d’um raio.
Para el-rei! (Apanha rapidamente o bilhete abre-o).
Damião, querendo impedil-o.
Mas, senhor D. Vasco...
D. Vasco, rude.
Deixai-me! (Depois de lêr)... Que li eu?... Isto que quer dizer?... E’ a letra de Beatriz, é a letra d’el-rei... Sou victima d’alguma illusão terrivel!...
El-rei escrevendo assim!... Beatriz... Impossivel.
(N’um subito accesso de cólera, agarrando impetuosamente no pulso de Damião) Anda cá, pagem maldito, e responde-me... Quem te deu esta carta?
Damião, fingindo-se assustado.
El-rei.
D. Vasco, indicando-lhe um sitio no bilhete.
E quem escreveu esta palavra, aqui, aqui, aqui?
Damião A senhora D. Beatriz.
D. Vasco, com explosão, e sacudindo-o frenetico.
Mentes!
Damião, queixoso.
Magoais-me, senhor.
A JUDIA. 105 D. Vasco, solta-o repellindo-o com um movimento d’impaciencia contra si, e arrojando o papel, exclama á parte.
Este bilhete enlouqueceu-me. Fazer mal a uma criança!... E depois tal escandalo torna-me a fabula da côrte. (Alto, mas sem atinar bem com o que diga) Perdoai, senhor Damião de Goes, sou sujeito a estas allucinações... Eu percebo agora este bilhete... Beatriz dissera-me... (Com explosão) Não sei! Vai-te!
Damião, que apanhára o bilhete, escapando-se, á parte.
Cá fica o leão ás soltas! Guarda. (Sáe).
SCENA VI
D. VASCO, só, depois FERNÃO BOTELHO E PAYO
JUZARTE, depois D. ANTONIO D’ATHAYDE
D. Vasco, passeiando agitadissimo.
Foi um sonho de certo... Como podem succeder estas coisas na vida d’um momento para o outro?... Entra-se n’uma sala, sereno, e de subito estala o raio que anniquila uma existencia...
Impossivel! (Meditando) E comtudo era a letra de Beatriz... (Com profunda amargura) De Bea-
106 A JUDIA.
triz!... (Com explosão) Paço maldito, côrte corrompida, ares empestados, como podestes murchar tão depressa aquella flôr tão pura? (Meditando de novo) Mas o bilhete falla em Almada!...
Já lá se tinham visto... Eu que a guardava com tanto recato, escondida longe das vistas do mundo! Como a descobriram? (Fernão Botelho, e Payo Juzarte entram pelo fundo, cortejam D. Vasco, que lhes corresponde friamente e ao de leve. Miramn’o um instante espantados, e depois conversam entre si. Concentrado) Foi algum d’estes sabujos da realeza, d’estes caçadores do vicio? Ah! que de boa vontade os esmagava a todos.
Payo, para Fernão Botelho, indicando-lhe D. Vasco, Que terá o heroe?
Fernão Chegaram-lhe talvez aos ouvidos rumores ácerca da sobrinha.
Payo É provável!
Fernão, rindo.
Olhai, Payo Juzarte. Se elle soubesse que fostes vós quem levantou aquella caça real, não vos dava um ceitil pela vida. (D. Antonio d’Athayde A JUDIA. 107 entra pela esquerda com uma pasta debaixo do braço).
D. Vasco, vendo-o entrar, á parte corno se um relampago o illuminasse.
D. Antonio d’Athayde, o companheiro das devassidões do principe real! Foi elle!
D. Antonio, cortez, para D. Vasco.
Bons dias, senhor D. Vasco de Menezes.
D. Vasco, avança para elle n’um impeto, de punhos cerrados, depois reprime-se, e volta-lhe as costas, dizendo-lhe sêccamente.
Bons dias!
D. Antonio, espantado e ferido.
Isto que é? (Fica alguns instantes a olhar para D. Vasco).
Payo, que seguiu este jogo de scena, para Fernão Botelho, indicando-lhe D. Antonio.
Vêde o que é ter a fama.
Fernão, rindo.
N’uma parte se põe o ramo...
Payo, modestamente, pondo a mão no peito.
E n’outra se vende o vinho. 108 A JUDIA.
SCENA VII
OS MESMOS, O PORTEIRO DA CANNA, depois D. JOÃO
E D. PEDRO MASCARENHAS
O Porteiro, entrando e annunciando. Chega elrei! (Fica immovel junto do limiar).
D. João, entra pelo fundo conversando com D. Pedro, corresponde ao profundo comprimento dos personagens que estão em scena e vai sentar-se á meza. Para os cortezãos.
Sentai-vos, senhores. (Sentam-se. A’ direita de D. João, D. Antonio d’Athayde, Payo Juzarte, D. Pedro Mascarenhas, á esquerda Fernão Botelho, e D. Vasco de Menezes. Este ultimo, cuja agitação redobrou depois da chegada d’el-rei a quem mal cortejou, conserva-se preoccupado, e vêse que durante a scena toda, até ao momento da explosão, faz esforços violentos para parecer tranquillo, e responder com respeito ás perguntas d’elrei. O porteiro da canna, a um signal do soberano, sáe fechando as portas. El-rei continúa) Convoquei hoje o conselho, apezar da doença do secretario Antonio Carneiro, e da ausencia em mis-
A JUDIA 109 são especial do escrivão da puridade D. Antonio de Noronha, porque temos de tratar coisas urgentes. Exponde os negocios, D. Antonio d’Athayde.
D. Antonio, tirando uns papeis da pasta, e levantando-se, começa, depois de cortejar D. João III.
Carta do védor da fazenda do Estado da India, transmittindo as queixas d’el-rei de Cochim, e de muitos fidalgos alli residentes, contra a venalidade e a corrupção do governador D. Duarte de Menezes. (Pondo os papeis de parte) Devo fazer notar a Vossa Alteza que tem estas queixas o maior fundamento. D. Duarte de Menezes mais parece um chefe de piratas do que o representante de vossa real pessoa; D. Duarte de Menezes deslustra no Oriente o nome de Portugal. (Senta-se).
D. João, com certa indifferença.
Bem! Trataremos de o substituir. (Para D.
Vasco de Menezes com deferencia) D. Vasco, dizeime: Quem me indigitais para governador da India?
D. Vasco D. Vasco da Gama, senhor.
110 A JUDIA.
D. João Está tão velho!
D. Vasco, amargo.
Um velho que se chama Vasco da Gama vale mais do que trinta fidalgos moços.
D. João Mas vi-o ha pouco, decrepito, curvado...
D. Vasco, erguendo-se com impeto.
N’esse decrepito envolucro vive um espirito robusto, como aço de fina tempera em bainha enferrujada. Curvaram-lhe o corpo talvez os vendavaes do Cabo da Boa Esperança, não de certo as zumbaias servís dos cortezãos d’agora. (Fulmina com a vista Payo Juzarte, que fica imperturbavel, e D. Antonio d’Athayde que faz um movimento de espanto).
D. João, tambem um pouco espantado do tom de D.
Vasco, sêccamente.
Bem, resolveremos. (D. Vasco senta-se. Para D. Antonio) Continuai.
D. Antônio, tirando outro papel da pasta.
Carta do governador d’Arzilla....
D. João, impaciente.
Adiante. As praças d’Africa são importunas.
A JUDIA. 111 D. Antonio, substituindo por outro o papel que tem na mão.
Carta do inquisidor-mór de Castella, queixando-se de que os judeus hespanhoes encontram em Portugal segura guarida, e lembrando a Vossa Alteza a conveniencia de estabelecer n’este reino o Santo Officio, a fim de se poder manter em toda a Peninsula a unidade catholica.
D. João, com muito calor.
Eis um negocio verdadeiramente importante.
(Com sombrio fanatismo) O meu desejo mais ardente é conservar em Portugal a pureza da fé.
Antes quero reinar sobre um deserto do que sobre um povo de pagãos e gentios. Juro á Virgem Sagrada que a minha propria mão queimára, se n’ella se houvesse inoculado o veneno da heresia. Será pois util estabelecer em Portugal a Inquisição? E’ a esse respeito que desejo ouvir os vossos pareceres. (Percorrendo com a vista os conselheiros, hesitando em saber a quem dê primeiro a palavra, e fitando os olhos em Payo) Fallai, Payo Juzarte.
Payo, erguendo-se com importancia.
Meu senhor, com a rude sinceridade que me A JUDIA.
caracterisa, direi que... que sou da opinião de Vossa Alteza!
Fernão Mas Sua Alteza ainda a não expendeu.
D. Pedro, com sorriso zombeteiro.
E’ o mesmo!
Payo, irreflectidamente.
Exacto! é o mesmo! (Reparando na tolice e irado) Não...
D. João, impaciente.
Dizei pois.
Payo, tossindo e gesticulando.
Meu senhor, eu entendo... que... a pureza da fé é a base dos impérios... (Declamando) Julgo...
Parece-me incontestavel... (Com enthusiasmo)
Creio portanto... Supponho...
D. João, impaciente.
Suppondes que a Inquisição é necessária?
Payo Adivinhou Vossa Alteza. Seja outra embora a opinião vulgar, eu odi profanum vulgum, como dizia Horacio conformando-se com o meu parecer. (Senta-se. Muito satisfeito para D. Pedro Mascarenhas) Não fallei mal, anh?
112 I
A JUDIA 113 D. Pedro, zombeteiro.
Muito bem.
D. João, para D. Vasco.
E o vosso parecer, D. Vasco de Menezes?
D. Vasco, erguendo-se, rude e energico.
Eu entendo que o soberano temporal não tem alçada sobre as consciencias dos seus subditos, e que, ainda que a tivesse, as perseguições religiosas infamam quem as intenta, e as conversões forçadas são contrarias aos preceitos de Jesus e ao espirito do Evangelho. (El-rei faz um movimento d’ira. Os cortezãos guardam um silencio estupefacto, aterrados da audacia de D. Vasco).
D. Antonio, com ironia.
Nós todos sabemos que o senhor D. Vasco de Menezes não prima pela devoção.
D. Vasco, deixando irromper emfim a sua cólera, e começando com amargura concentrada, para terminar com exaltação extrema.
E’ certo, senhor D. Antonio d’Athayde, que não sei demonstrar a minha devoção, espoliando, calcando aos pés, assassinando uma raça humilde e inofensiva, laboriosa e util; sei demonstral-a apenas, quebrando lanças nos peitos dos inimigos da fé, d’aquelles que se oppõem ás pré8 114 A JUDIA.
dicas dos nossos missionarios, tendo n’uma das mãos o alfange, e na outra o Alcorão. Eu vou affrontar as soltas tempestades e os cavados mares, para levar bem longe, a regiões ignotas, sempre desfraldado e ovante, entre turbilhões d’espuma, na proa dos galeões, o estandarte da cruz, em quanto os religiosos fidalgos ajoelham tranquillamente nos templos de Lisboa, e vão depois devassar os paços da fidalguia, para de lá trazerem, arrastadas para a regia alcova, as filhas dos lidadores.
D. Antonio, erguendo-se com indignação.
Comigo fallais, senhor D. Vasco de Menezes?
D. Vasco, com explosão.
Fallo com quem se julga culpado, e capaz da infamia.
D. Antonio, com força.
Regeito a allusão, mas tomo, como dirigido a mim, o insulto que se traduz no gesto...
D. João, que os escutou assombrado, e, como se a cólera suffocando-o o houvesse impedido de intervir.
Na presença do vosso rei, D. Vasco!
D. Vasco, altivo.
Senhor, eu sei como se falla aos reis. Eu, fidalgo d’alta linhagem, posso dizer da minha jus-
A JUDIA. 115 tiça perante o soberano, que não é mais do que o primeiro entre nós.
D. João, erguendo-se colerico.
Vindes tarde, D. Vasco de Menezes. Depois de D. João II, não ha em Portugal senão vassallos e um rei.
D. Vasco, profundamente amargo.
D. João II! Oh! não evoqueis esse grande nome que vos esmaga, senhor. Mal sabia elle quando travava com a aristocracia a sua lucta ingente, que a victoria havia de servir para tanta obra de vilipendio e infamia; mal sabia elle que a morte, arrancando-lhe de cima dos hombros o seu manto de Hercules, faria chover sobre Portugal uma turba de pygmeus.
D. João, exaltado.
D. Vasco de Menezes, não acordeis a cólera do leão que dorme.
D. Vasco, sereno, mas terrivel.
Com a consciencia limpa affronto a cólera dos reis, com a consciencia limpa, senhor, senti, sem descórar, rugir emtorno de mim a procella que é a cólera de Deus.
116 A JUDIA.
D. João, avançando para elle com a mão no punho da espada.
D. Vasco!
D. Vasco, sem recuar um passo.
Não me assustam os vossos féros, senhor. Luctei face a face com D. João II, e esse fez-me tremer, confesso-o, porque o seu olhar frio, cortante, mas limpido como o luzir do aço, não tinha sombras d’hypocrisia, porque esse matava mas não manchava, esse sabia que uma nodoa estampada no brazão da nobreza ia resaltar na corôa. Uma vez, ouvi, senhor que é uma lição de historia! eu e mais dez fidalgos juntámo-nos para o assassinarmos ao fundo das escadas dos aposentos da rainha. Era noite. Sentimos o seu passo firme approximar-se, acordando os echos sonoros dos lageados degraus. Apertámo-nos mais uns aos outros, e as nossas mãos convulsas procuraram por baixo das capas o cabo dos punhaes. Elle chegou.
Pendia-lhe ao lado o braço inerme. Vio-nos e nem parou um instante. Que ignoto respeito se apoderou de nós, como se estivessemos na presença d’um representante de Deus? Fascinados, recuámos até á parede, curvámo-nos então, e D.
João II passou incolume, A JUDIA 117 sereno e altivo. (Com profunda commoção) Ah! é porque esse era deveras um rei. Esse feria na cabeça, não nos feria no coração, não nos feria na honra! (Vem-lhe uma convulsão de choro que não póde reprimir. Sussurro d’espanto entre os cortezãos. D. Vasco, com a face banhada de pranto, mas terrivel de indignação volta-se n’um impeto, e exclama com a voz a embargar-se-lhe na garganta) Quem se atreve a rir quando eu choro?
D. João, que se deixara dominar um momento pela intimativa de D. Vasco, reagindo contra esta impressão.
Com voz trovejante.
Basta! Demasiado tempo vos hei ouvido. Agradecei ao respeito que tenho pela memoria de meu pae, que tanto vos estimava, a minha longanimidade. Mas, depois do que se passou, nem mais um instante vos quero vêr na côrte. Parte hoje um navio para Tanger. Embarcareis n’elle. Ide empregar contra os Moiros d’Africa a espada que, por Deus, me parece que estivestes quasi arrancando contra o vosso monarcha. Disse. (Sáe arrebatadamente. D. Vasco fica immovel e sereno.
D. Antonio segue el-rei depois de trocar com D.
Vasco um olhar fulminante).
118 A JUDIA.
D. Pedro, gravemente, approximando-se de D. Vasco e apertando-lhe a mão.
Tendes um amigo na côrte, senhor D. Vasco.
D. João, voltando atraz, e com um tom de voz irritado.
D. Pedro!
D. Pedro, sem se apressar, respeitoso mas nobre.
Eu vou, senhor!
Fernão Botelho, depois de olhar emtorno de si, approxima-se com muita rapidez de D. Vasco, e diz-lhe em voz muito baixa.
Fallastes nobremente. (Esquiva-se).
Payo, que o ouvio com espanto, diz-lhe.
Que tolice foi essa?
Fernão, desdenhoso.
Tolo és tu; na côrte quem tem uma sobrinha como D. Beatriz sempre vem á tona d’agua. (Sáe).
Payo, á parte.
Sim senhor. (Approxima-se de D. Vasco, imitando Fernão) Fallastes nobremente. (D. Vasco volta-se com um gesto de fastio. A’ parte) Sim, sim, Deus é bom mas o diabo tambem não é mau.
(Sáe).
A JUDIA. 119 SCENA VIII
D. VASCO, só.
Rei covarde, se o ousasses, como tu manejarias o cutello de D. João II! Affastas-me para Tanger, que é para ficarem mais livres. (Com um gesto de supremo desalento) Ah! que me importa agora? (Senta-se, e fica immerso em sombrio scismar).
SCENA IX
D. VASCO E BEATRIZ
Beatriz, entrando pelo fundo, inquieta e açodada.
Meu tio, o que se diz no Paço? Tivestes uma discussão com el-rei? El-rei desterra-vos?
D. Vasco, erguendo-se indignado.
Affastai-vos, senhora, eu não sou vosso tio!
Beatriz, enleiada.
Que dizeis?
120 A JUDIA.
D. Vasco, concentrado.
Ah! pois, ao commetter o crime, devieis ter sentido que não pertencieis á nossa familia; na familia dos Menezes nunca um homem voltou costas ao inimigo, nunca uma mulher se prostituiu nem a reis nem a imperadores.
Beatriz, ferida pelo golpe imprevisto.
Ah! meu tio !
D. Vasco, com raiva.
Quantas vezes quereis que vos diga que não sou vosso tio! O meu nome, filha da desgraça, emprestei-t’o, como uma salvaguarda, e julguei que o conservarias puro, mas, agora que o arrastas na lama, chego-me a ti, e arranco-t’o porque és indigna d’elle. (Com força) Vai, vai ser amante dos monarchas, mas não leves comtigo para esse tremedal d’infamias o nome santo de meus paes.
Beatriz, fulminada por estas subitas revelações.
Mas quem sou eu, então?
D. Vasco Quem és? Vais sabel-o para teu castigo. Amas el-rei, não é verdade?
Beatriz, dignamente.
Amei-o.
A JUDIA. 121 D. Vasco Sabes como principiou no conselho a discussão de que fallas? Foi por eu defender os proscriptos judeus contra D. João III, que os quer assassinar, que os quer arrojar em massa ás fogueiras da Inquisição.
Beatriz Que horror!
D. Vasco E sabes a que raça pertences? Sabes quem és emfim?
Beatriz, anciosa.
Quem sou...?
D. Vasco, com um gesto d’intimativa.
E’s judia.
Beatriz, com um grito.
Judia, eu!
D. Vasco Sim, és judia. Não te enganavam as tuas recordações de infancia. Quando, no domingo da Paschoella de 1506, uma turba infrene e sanguinaria corria pelas ruas de Lisboa assassinando esse povo desgraçado, eu que me affeiçoára a teus paes, honrados israelitas que se envergonhariam de ti, quiz ir salval-os; encontrei-os já mortos, 122 A JUDIA.
mas entre os cadaveres achei uma pobre criança, desmaiada e exanime. Que fatalidade me impelira a tomar-te nos braços, a envolver-te no manto, a atravessar comtigo as ruas sombrias, levando-te como cubiçada prêsa, a introduzir-te em minha casa, a fazer-te passar por minha sobrinha, a dar-te o meu nome, ainda mais, a dar-te um amor tamanho que o não teria maior aos filhos do meu sangue?! (Com as lagrimas a embargaremlhe a voz) Ah! quando a pobre criancinha, reanimada pelo frescor da noite, abrindo os olhos, se sorriu para mim, eu, velho soldado, queimado pelos soes de cem batalhas, senti correrem-me nas faces prantos de ternura; apertando-te ao peito, julguei que levava comigo a consolação da minha velhice, ah! levava apenas a minha desgraça, levava a minha deshonra. (Chora).
Beatriz, ajoelhando, lavada em lagrimas, e erguendo para elle as mãos supplicantes.
Meu tio! não, meu santo, meu venerado pae, oh! juro-vos que não sou culpada! Ah! como vós sois bom! (Tomando-lhe as mãos e cobrindo-lh’as de beijos) Deixai, deixai a mulher, já devastada pelos vendavaes da existencia, pagar a divida da criança, cobrindo de beijos e de lagrimas esta A JUDIA. 123 mão salvadora. (Vendo que elle quer fugir-lhe com a mão) Oh! os meus labios são puros, é pura a minha consciencia! Amei, é verdade, amei esse homem sem vol-o dizer, perdoai-m’o que bem punida estou. Se soubesseis como elle me trata, se soubesseis como elle me despreza! se soubesseis também o odio immenso que eu lhe consagro agora!
D. Vasco, que se ia deixando enternecer, recobrando a estas ultimas palavras toda a sua indignação, e affastando-se como assombrado da impudencia.
O que! pois até chorando mentes? Não li eu com os meus olhos...? (Com força, e sublinhando a primeira frase) Vai! vai á entrevista que elle te aprazou e a que tu o convidas, e requinta as tuas voluptuosidades com a carnificina d’um povo.
Por cada beijo dar-te-ha elle um cadaver, cada caricia accenderá uma fogueira; vai, e escuta, entre os delirios do teu amor, o concerto de blasphemias e maldições dos teus irmãos de raça.
Beatriz, erguendo-se, profundamente resentida.
Ah! é muito. Condemnais-me sem me ouvir, senhor! Restituo-vos o vosso nome puro como o recebi. Não o acreditais? Embora. Talvez dentro em pouco me presteis mais justiça, quando 124 A JUDIA.
pelas bôcas das feridas o meu sangue, espadanando, vos disser bem alto que ao vilipendio preferi a morte.
D. Vasco, olvidando tudo, para só se lembrar do seu affecto.
Que dizes, filha?
Beatriz, exaltada.
Filha d’Israel é que eu sou. Deviam-m’o ter feito presentir as sympathias que eu votava a essa raça proscripta. Sou judia! Bem alto m’o diz a indignação que me devora. Sou judia, diz-m’o a paixão que me queima o sangue, e que me brada:
Vingança contra o perjuro, vingança contra o infame, vingança contra o perseguidor d’um povo!
D. Vasco, enleiado.
Mas essa entrevista...
Beatriz, como acima.
D’essa entrevista ha-de talvez brotar a salvação d’Israel.
D. Vasco Impossivel em quanto D. João III viver!
Beatriz, tomando-lhe a mão e trazendo-o com força ao proscenio.
Sim? E que dirieis se algum dos proscriptos, \
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-
A
JUDIA. 125 imitando o exemplo da forte Judith, sacrificando a sua vida a essa causa sagrada, erguendo sobre o algoz o punhal vingador...
D. Vasco, interrompendo-a e tremendo de adivinhar.
Mas a raça judaica é fraca e timida... Quem ousaria?
Beatriz, com voz rouca e surda.
Quem? Quem? Eu! (Cáe o panno).
ACTO QUINTO
Camara de Beatriz, alcatifada ricamente. A’ direita no angulo o leito com cortinados que o escondem, á esquerda uma janella aberta, e banhada pelo luar. A’ direita um genuflexorio e por cima um crucifixo. Mobilia de alcova rica do século XVI. Porta ao fundo, portas lateraes. E’
noite; velas ou lampadas illuminam o quarto.
SCENA I
BEATRIZ E ZAIDA
Zaida, acabando de compôr os cabellos de Beatriz, que está sentada e a escuta com sombria tristeza.
Sim, minha senhora, já o meu bote se affastava do navio que se ia fazer de véla, e ainda o senhor D. Vasco me repetia: Dizei a Beatriz que lhe peço, que lhe ordeno que venha ter comigo a Tanger. Pero Affonso a acompanhará. Dizei-lhe que tudo o mais esqueça, que é esta a minha firme vontade.
128 A JUDIA.
Beatriz, tristemente.
Pobre amigo!
Zaida Em quanto estive a bordo, não fez o senhor D. Vasco senão passeiar no convez, murmurando palavras entre-cortadas: Partir!... deixando-a assim!... Pobre criança!... E não será minha a culpa?... Antes a houvesse deixado morrer!
Beatriz, com um suspiro.
Tinha razão.
Zaida Mas também que barbaridade! Obrigarem-n’o a ausentar-se para Tanger no espaço de duas horas. E, se não fosseis vós, matavam-n’o, que eu vi-o disposto a resistir ao meirinho. Só aos vossos rogos cedeu, que nunca diante d’inimigos, dizia-me Pero Affonso, elle abateu a espada. (Depois d’um instante de silencio, tendo acabado de penteiar a sua ama, pergunta-lhe) Quereis mais alguma coisa, senhora?
Beatriz, levantando-se.
Não; pódes deitar-te.
Zaida, espantada.
Mas... \
A JUDIA. 129 Beatriz, imperiosa.
Vai. (Zaida curva-se respeitosamente, e obedece em silencio saíndo pela esquerda).
SCENA II
BEATRIZ, só; pensativa.
Meu pobre tio! Que affecto elle me tinha e que immensa angustia lhe causo! Passado o primeiro momento d’exaltação, estava prompto a olvidar tudo, e não fazia senão tentar desviar-me do meu projecto. (Com amargura concentrada e um pouco selvagem) Oh! mas é impossivel. Sou escrava da fatalidade. Depois do que se passou, nem eu posso viver, nem quero que elle viva. (Approximandose da janella aberta) Como está placida a noite!
Nem uma aragem murmura! Era em noites assim que eu o esperava, na margem d’além do Tejo, e palpitavam-me no coração o amor e o dôce jubilo. (Com tristeza) Hoje tambem o espero, mas que diferença! Entre as ruinas da minha vida volteiam, como passaros fataes, o odio e a vingança! (Batem á porta do fundo. Beatriz estremece, mas diz com voz firme) Entrai!
9 130 A JUDIA.
SCENA III
BEATRIZ E DAMIÃO DE GOES
Damião; lê-se-lhe no rosto um desespero profundo ainda que um pouco infantil. Balbuciando.
Eu vinha... eu venho... (Resignando-se com um suspiro) da parte d’el-rei, que remedio!
Beatriz, friamente.
E depois?
Damião Manda perguntar se o podeis receber. (Com anciedade supplicante) Oh! mas eu digo-lhe que estais incommodada, não é assim?
Beatriz, como acima.
Dizei-lhe que o espero.
Damião, aflicto.
. Mas...
Beatriz, indicando-lhe a porta.
Ide.
Damião, saíndo e torcendo as mãos com raiva.
Ora isto, isto... (Sáe pelo fundo).
A JUDIA. 131 SGENA IV
BEATRIZ, só. Dá alguns passos ao acaso, com agitação profunda.
Meu Deus! Como eu estou agitada!.. Vou-me encontrar face a face com elle... Parte-se-me o coração... Não me costumo facilmente a odial-o...
Oh! mas o amor está morto, e isto que sinto... é...
é odio, nem póde ser outra coisa! (Com energica e sombria resolução) Vou sacial-o emflm, oh! dai-me forças, Deus vingador!
SCENA V ;
BEATRIZ E D. JOÃO
D. João, entrando cora jubilo pela porta do fundo, e indo a ajoelhar diante de Beatriz.
Beatriz! Ah! quanto eu anhelava por este momento.
Beatriz, com amarga ironia, e não o deixando ajoelhar.
Sois tão prompto em ajoelhar, senhor.
132 A JUDIA.
D. João, espantado.
Que tens tu? As tuas mãos queimam.
Beatriz, fugindo-lhe com as mãos, e irada.
Oh! não me toqueis.
D. João, com leve tristeza.
Ah! Percebo; estás irritada comigo. Tens razão talvez.
Beatriz, com ironia amarga.
Talvez!
D. João Viste-me dar uma resposta quasi favoravel, á supplica da camara de Lisboa? Ah! Beatriz, se soubesses quanto é duro este mister dos reis!
Julgam-nos omnipotentes, e temos sempre de transigir com a vontade do povo, com o voto dos ministros!
Beatriz, irônica.
Ah!
D. João Contra o casamento, que me propõem, vantajoso para o paiz, só allegar posso razões de coração que ninguem na côrte escuta. Sabes o que eu faço? Deixo correr os acontecimentos. Eu bem sei que tal casamento se não realisa, porque já Carlos V prometteu a mão de sua irmã a Fran-
A JUDIA. 133 cisco I de França, e diante da vontade de Carlos V tudo na Europa verga.
Beatriz, como acima.
Fingieis então?
D. João, tristemente.
Fingia sim, que n’essa palavra se resume o nosso viver constante, fingia que a isso me obrigam razões politicas, altas razões d’Estado.
Beatriz, com os dentes cerrados, e deixando atravez da ironia acerada transparecer a cólera.
E foram talvez também razões politicas, razões d’Estado, que vos lançaram aos pés da rainha, jurando-lhe que era a unica mulher a quem amaveis; são talvez tambem razões politicas, razões de Estado que vos trazem ao meu quarto para me repetirdes o mesmo! (Ameaçadora) Oh!
mas comigo cautella!
D. João, primeiro enleiado, e tomando a final uma resolução.
Ah! sabes..? Pois bem! vou-te fazer uma confissão leal e franca. Amei a rainha, amei-a antes de te conhecer, amor filho mais talvez do resentimento contra meu pae do que de verdadeira inclinação; mas emfim amei-a, e disse-lh’o. Querias que a repellisse abertamente, agora que ella está 134 A JUDIA.
livre? Oh! é porque não conheces a rainha, a hespanhola apaixonada e vingativa, vingativa e poderosa porque é irmã do imperador.
Beatriz, ouvindo-o com incredulidade.
Hypocrita!
D. João, com certo calor e commoção.
Ah! és injusta e cruel! Em vez de me lamentares, condemnas-me! Condemnas-me quando eu venho, cheio de jubilo, farto das dissimulações a que sou forçado, das mentiras que me rodeiam, procurar no teu seio o dôce refrigerio do teu amor leal.
Beatriz, começando a commover-se, murmura.
Oh! bem leal!
D. João, com mais calor.
Sim, sim, e por isso te adoro. O meu sonho era poder desabafar comtigo, esquecer junto de ti os cuidados da realeza, as amarguras do poder, e de joelhos a teus pés deixar de ser o rei, para ser apenas o teu Jayme, (com ternura, e tomando-lhe as mãos, que ella frouxamente lhe procura subtrahir) o Jayme que tu amaste, Beatriz.
Beatriz, luctando contra a sua propria commoção, e com triste amargura.
Oh! não me enganeis mais, senhor!
A JUDIA 135 D. João, apaixonado.
Porque havias tu de vir para a côrte? Vê como este ambiente bastou para lançar uma nuvem no céu do nosso amor! Oh! quanto eu déra para voltar ao tempo venturoso em que não me sabias principe, para rehaver essas horas bemditas, as mais felizes da minha vida.
Beatriz, vencida a final, e caindo n’uma cadeira, lavada em lagrimas.
Meu Deus! meu Deus! estou a vêr que elle mente, e estou a amal-o!
D. João, com fogo.
Não minto; juro pelo Christo crucificado...
Beatriz, erguendo-se com um grito dilacerante.
O Christo!... Oh! desgraçada que tudo esqueço!
D. João, espantado.
Que dizes?
Beatriz, com desespero, e fallando meio allucinada, e sem attender a el-rei.
Julgava-me forte e uma palavra me desarma!... Como cumpres a tua missão, desgraçada!
Queres salvar a tua raça, os teus irmãos? Não, pensas apenas nos interesses do teu amor!... O
que julgavas sacrificio heroico a uma causa sa-
136 A JUDIA.
grada era apenas o desespero da mulher trahida!... Ah! és indigna!
D. João, espantado, mas com ternura.
Salvar os teus irmãos!... Não percebo esse mysterio, não entendo, oh! mas se para desassombrar d’uma nuvem a tua fronte, póde servir d’algum modo a minha authoridade regia, dispõe d’ella, Beatriz!
Beatriz, ferida por uma idéa subita.
Ah! talvez... Abençoar-me-hão ao menos...
(Voltando-se com resolução para el-rei, e tomando-lhe as mãos com impeto febril) Ouve-me, e por Deus, não mintas! Amas-me deveras?
D. João, com fogo.
Amo, sim.
Beatriz O teu amor não recúa diante de coisa alguma?
D. João Não!
Beatriz, em voz baixa e fremente.
Pois bem! Eu não sou sobrinha de D. Vasco, eu não sou fidalga, pertenço a uma raça maldita..
sou judia!
A JUDIA. 137 D. João, largando-lhe as mãos horrorisado, e recuando dois ou tres passos com um grande grito.
O que?
Beatriz, sem attender ao effeito produzido.
Sim, sou judia. Criança de cinco annos, arrancou-me D. Vasco d’entre os cadaveres de meus paes assassinados na mortandade da Paschoella.
Pertenço a esse povo condemnado, ao povo que tu odeias. (Com lagrimas na voz) Oh! mas tu disseste que me tinhas affecto! Esse affecto é que eu invoco, invoco a recordação das noites deliciosas em que as horas nos corriam, sem as sentirmos, enlevados em dôces conversações, em que me dizias que eu era tudo para ti. (Com meiga tristeza) Não sei se me mentiste depois, mas não mentias então, não é verdade? Houve um instante, rapido como um relampago, em que me tiveste amor! Pois bem, se queres suavisar os meus derradeiros momentos, se queres que as minhas ultimas palavras sejam para ti de benção, de affecto, de gratidão infinda, perdoa a meus infelizes irmãos. Associa o nome da tua Beatriz a um acto generoso do teu reinado. Se, depois de eu morrer, evocares a minha imagem, faze que se enlace com ella uma recordação de 138 A JUDIA.
clemencia. Perdoa, perdoa, e virei expirar a teus pés, contente, risonha, grata, amando-te e dizendo-te: Jayme, és nobre, meu dôce amor, és bom!
D. João, em cuja physionomia se pinta o mais profundo horror, o mais ignobil fanatismo, recua diante d’ella murmurando, aterrado.
Uma judia! uma judia no Paço! Oh! Deus meu a que estamos expostos!
Beatriz, sem o ouvir, só buscando convencel-o, com a face banhada de pranto, e a voz cheia de lagrimas.
Oh! mas quem sou eu; o que vale o meu amor, para que eu ouse invocal-o? E’ para o teu coração que devo appellar. (Sem atinar com as palavras)
Jayme!... Meu senhor!... Peço-te... Não... Rogo a Vossa Alteza. Senhor, é um povo desgraçado, em toda a parte proscripto, em toda a parte inimigo.
A terra em que nascem não lhes é patria, é exilio!
Tristes, com a saudade immensa da sua dôce Jerusalem, vagueiam no mundo as tribus dispersas, implorando do estrangeiro apenas o sorriso da hospitalidade, um pouco de compaixão, uma scentelha d’affecto, e ás suas supplicas respondem o odio, o desprezo, o insulto. «Vai, dizem-lhe, vai, povo condemnado e errante, não contamines com a tua presença os nossos lares, A JUDIA. 139 com a tua tristeza os nossos jubilos, caminha leproso, vil, proscripto; caminha sempre, sempre!...» E elles seguem avante! retomam o seu bordão de peregrino! lá vão, pisando com os pés ensanguentados o longo trilho do seu desterro sem termo, levando no coração a religião de seus paes, unico laço que os liga entre os desprezos de todos.... Meu senhor, Vossa Alteza teve mãe, mãe que, ajoelhando junto do seu regio berço, lhe ensinou as dôces orações da infancia, e toda se ufanou de o ouvir balbucial-as entre sorrisos e beijos; ah! meu senhor! ás pobres mães judias é defeza essa consolação, teem de sellar nos labios de seus filhos a prece que em segredo lhes ensinam, porque, se a ouvissem, viriam os tyrannos arrancar-lhes do seio os filhinhos estremecidos, para lh’os levarem bem longe, para lhes ensinarem outras orações, outro culto, para lhes ensinarem a renegar seus paes! Ah! meu senhor!
que tristeza immensa, que desgraçados entes!
Dizem que pesa sobre elles a maldição de Deus!
Oh! é mentira. Deus é pae, e um pae não amaldiçôa os seus filhos. Christo perdoou aos algozes;
como condemnaria os innocentes? E’ falsa a sua religião? Persistem n’ella? Oh! vereis, meu 140 A JUDIA.
senhor, como vem contrictos banhar de lagrimas a cruz, quando d’esse madeiro sublime jorrar para elles em ondas beneficas a luz, o riso, a caridade e o amor!
D. João, com os olhos brilhantes de desejo e fanatismo.
Amei uma judia!... Amei uma judia!.. Ah!
filha de Satanaz, mas como és bella assim!
Beatriz, fatigada, offegante, já desalentada, mas afferrando-se avidamente a esta ultima esperança, com as palavras entre-cortadas por uma dolorosa lucta intima, e um pouco desvairada.
Ah!... sim... sou bella... dizem que sou bella...
dizem que toda a chamma do Oriente se concentra no meu olhar, que as minhas trancas soltas espalham emtorno de si a voluptuosidade e o amor... Pois bem... amo-te, sou tua... Verás como eu desprezo o mundo, verás como eu lhe digo orgulhosa: «Sou amante do rei, mas vêde por que preço, pela salvação d’um povo!»
D. João, repellindo-a com energia.
Deixa-me, tentadora! Affasta-te, sacrilega!
(Vai ajoelhar diante do crucifixo).
Beatriz, profundamente ferida, e sentindo a cólera invadil-a.
Este homem não tem sangue nas veias.
A JUDIA. 141 D. João, ajoelhado e continuando a sua reza.
... Livrai-me, senhor, da tentação.
Beatriz, sentindo despertar-lhe no espirito com immensa violencia todas as paixões selvagens da sua raça, tira rapidamente do seio um punhal, e, com o corpo curvo para diante, a mão retrahida, os olhos scintillantes, solta como que um rugido abafado.
Ah! (N’este momento pela janella aberta ao luar e ás brisas da noite entra vagamente um descante de barqueiro. E’ a melodia do primeiro acto.
Ouvindo-a Beatriz estremece, e as queridas recordações do seu profundo amor vem suavisarlhe o espirito requeimado pelas paixões violentas.
Pouco a pouco, o rosto vai perdendo a contracção, affrouxa a rigidez do braço que segura o punhal, e o anciar oppresso do seio, augmentando, as ondulações, cada vez mais pronunciadas, denunciam a lucta intima que se está travando lá dentro, e mostram que vem a irromper os prantos que sobem do coração aos olhos. A final a resistencia é impossivel, e, quando expira a ultima nota da melodia, Beatriz deixa cair o punhal, e, cobrindo o rosto com as mãos, desata n’um alto choro, n’um soluçar convulso e doloroso).
D. João, voltando-se sobresaltado, e vendo o punhal.
Um punhal!
142 A JUDIA.
Beatriz, apanhando-o com um movimento rapidissimo, com a voz cortada de soluços, mas energica e vibrante.
Para mim, rei sem alma, fanatico sombrio que te vais banhar com delicias em torrentes de sangue humano! Pois bem! seja o meu sangue o primeiro a tingir de vermelho a tua lívida fronte.
(Mata-se com um movimento energico, enterrando o punhal no seio; arrancando-o da ferida, e arrojando-o de si, cáe).
D. João, corre a ella com um grito, depois vai á porta do fundo, abre-a com violencia, e brada para fóra.
Soccorro! soccorro!
SCENA VI
OS MESMOS, e sucessivamente ZAIDA, DAMIÃO DE
GOES, D. PEDRO MASCARENHAS, FR. JERONYMO PADILHA
Zaida, entrando pela esquerda, e vendo o cadaver de Beatriz.
A senhora! morta! (Corre a ajoelhar junto d’ella).
Damião, entrando azafamado pelo fundo.
O que é, meu senhor? (D. João, sombrio, de-
A JUDIA. 143 signa-lhe silenciosamente o cadaver de Beatriz.
Com um grito dilaceranle) Beatriz! (Ajoelha junto d’ella, procurando tornal-a á vida).
D. Pedro, com o fato em desordem e uma espada núa na mão.
O que é isto? O que succede? (D. João repete o mesmo gesto. Espantado, murmura comtudo apenas, olhando para el-rei) Ah!
Fr. Jeronymo, que entrou ao mesmo tempo que D. Pedro, e se approximou logo de Beatriz.
Morta! sem confissão nem sacramentos!
D. João, saindo do torpor em que ficára, com intimativa.
Sacrilegio! Affastai-vos, meu padre, que é uma judia!
Todos Judia! (Só o frade se affasta; D. Pedro, de braços cruzados, ora olha para Beatriz com dó, ora para el-rei com desdem).
D. João, occupa isolado o meio da scena. Depois d’um momento de silencio, e quasi sem olhar para D. Pedro.
D. Pedro Mascarenhas, o nosso embaixador em Roma que sollicite de Sua Santidade um breve para o estabelecimento da Inquisição em Portugal.
(Persigna-se, o frade imita-o, D. Pedro 144 A JUDIA.
Mascarenhas encolhe os hombros com profunda amargura, Damião de Goes estremece violentamente, como se tivesse um presentimento do seu triste fim. Cáe o panno).
FIM DO QUINTO E ULTIMO ACTO.
PORTO: 1869 — TYP. DE M. J. PEREIRA, Largo do Correio, 4 e 6.


PORTO
VIUVA
MORE -EDITORA
PRAÇA DE D. PEDRO
1869.


Domínio Público Gov.BR


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