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Crônica do viver baiano seiscentista - a cidade e seus pícaros - Custódia

Índice OS SEUS DOCES EMPREGOS
HUMA GRACIOSA MULATA FILHA DE OUIBA CHAMADA MARICOlTA COM QUEM O
POETA SE TINHA DIVERTIDO, E CHAMAVA AO FILHO DO POETA SEU MARIDO.
A MESMA CUSTODIA MOSTRA A DIFFERENÇA QUE HA ENTRE AMAR, E QUERER.
À MESMA DAMA.
OS SEUS DOCES EMPREGOS
5 – CUSTÓDIA
Graciosa Mulata filha de outra chamada Maricotta Manuel Pereira Rabelo, licenciado que eu não vi Mulata ainda que me desse tanto abalo Oh se verdade fosse, o que sonhava!
HUMA GRACIOSA MULATA FILHA DE OUIBA CHAMADA MARICOlTA COM QUEM O
POETA SE TINHA DIVERTIDO, E CHAMAVA AO FILHO DO POETA SEU MARIDO.
1 Por vida do meu Gonçalo, Custódia formosa, e linda, que eu não vi Mulata ainda, que me desse tanto abalo:
quando vos vejo, e vos falo, tenho um pesar grande, e vasto do impedimento, que arrasto, porque pelos meus gostilhos fora eu Pai dos vossos Filhos antes que vosso Padrasto.
2 Odiabo sujo, e tosco me tentou como idiota a pecar com Maricota, para não pecar convosco:
mas eu sou homem tão osco, que a ter notícia por fama, que lhe mamastes a mama, e eu tinha tão linda Nora, então minha sogra, fora, e não fora minha Dama.
3 Estou para me enforcar, Custódia, desesperado, e o não tenho executado, porque isso é morrer no ar:
quem tanto vos chega amar, que quer por mais estranheza obrar a maior fineza de morrer, porque a confirme, morra-se na terra firme, se quer morrer com firmeza.
4 Já estou disposto d'agora a meter-vos num batel, e dar convosco em Argel por casar com minha Nora:
não vos espante, Senhora, que me vença tal furor, que eu sei, que em todo o rigor o mesmo será, e mais é ir ser cativo em Salé, que ser cativo do Amor.
A MESMA CUSTODIA MOSTRA A DIFFERENÇA QUE HA ENTRE AMAR, E QUERER.
Sabei, Custódia, que Amor inda que tirano, é rei, faz leis, e não guarda lei, qual soberano Senhor.
E assim eu quando vos peço, que talvez vos chego a olhar, as leis não posso guardar, que temos de parentesco:
Que vossa boca tão bela tanto a amar-vos me provoca, que por lembrar-me da boca, me esqueço da parentela.
Mormente considerada vossa consciência algum dia, que nenhum caso faria de ser filha, ou enteada.
Dera-vos pouco cuidado então ser eu vosso assim, e anda hoje para mim vós, e o mundo concertado Mas eu amo sem confiança nos prêmios do pertendente, amo-vos tão puramente, que nem peco na esperança.
Beleza, e graciosidade rendem à força maior, mas eu se vos tenho amor, tenho amor, e não vontade.
Como nada disso ignoro, quisera, pois vos venero, que entendais, que vos não quero, e saibais, que vos adoro.
Amar, e querer, Custódia;
soam quase o mesmo fim, mas diferem quanto a mim, e quanto à minha paródia.
O querer é desejar, a palavra o está expressando:
quem diz quer, está mostrando a cobiça de alcançar.
Vi, e quis, segue-se logo, que o meu coração aspira o lograr o bem, que vira, dando à pena um desafogo.
Quem diz, que quer, vai mostrando, que tem ao prêmio ambição, e finge uma adoração um sacrilégio ocultando.
Vil afeto, que ao intento foge com néscia confiança, pois guia para a esperança os passos do rendimento.
Quão generoso parece o contrário amor: pois quando está o rigor suportando, nem penas crê, que merece.
Amar o belo é ação que toca ao conhecimento ame-se co entendimento, sem outra humana paixão.
Quem à perfeição atento adora por perfeição faz, que a sua inclinação passe por entendimento.
Amor generoso tem o amor por alvo melhor sem cobiça, ao que é favor, sem temor, ao que é desdém.
Amor ama, amor padece sem prêmio algum pertender, e anelando a merecer não lhe lembra, o que merece.
Custódia, se eu considero, que o querer é desejar, e amor é perfeito amar, eu vos amo, e não vos quero.
Porém já vou acabando, por nada ficar de fora digo, que quem vos adora, vos pode estar desejando.
À MESMA DAMA.
Ai, Custódia! sonhei, não sei se o diga:
Sonhei. que entre meus braços vos gozava.
Oh se verdade fosse, o que sonhava!
Mas não permite Amor, que eu tal consiga.
O que anda no cuidado, e dá fadiga, Entre sonhos Amor representava No teatro da noite, que apartava A alma dos sentidos, doce liga.
Acordei eu, e feito sentinela De toda a cama, pus-me uma peçonha, Vendo-me só sem vós, e em tal mazela.
E disse, porque o caso me envergonha, Trabalho tem, quem ama, e se desvela, E muito mais quem dorme, e em falso sonha.


Texto-fonte: Obra Poética, de Gregório de Matos,
3ª edição, Editora Record, Rio de Janeiro, 1992.


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