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Textos para uso geral de domínio público.

Tropas e boiadas

Caminho das tropas O lote derradeiro desembocou num chouto sopitado do fundo da vargem, e veio a trouxe-mouxe enfileirar-se, sob o estalo do relho, na outra aba do rancho, poucas braças adiante da barraca do patrão.
O Joaquim Culatreiro, atravessando sem parar o piraí na faixa encarnada da cinta, entre a espera da garrucha e a niquelaria da franqueira, desatou com presteza as bridas das cabresteiras, foi prendendo às estacas a mulada, e afrouxou os cambitos, deitando abaixo arrochos e ligais, enquanto um camarada serviçal dava a mão de ajuda na descarga dos surrões.
O tropeiro empilhou a carregação fronteira aos fardos do dianteiro, e recolheu depois uma a uma as cangalhas suadas ao alpendre. Abriu após um couro largo no terreiro, despejou por cima meia quarta de milho, ao tempo que o resto da tropa ruminava em embornais a ração daquela tarde. O cabra, atentando na lombeira da burrada, tirou dum surrãozito de ferramentas, metido nas bruacas da cozinha, o chifre de tutano de boi, e armado duma dedada percorreu todo o lote, curando aqui uma pisadura antiga, ali raspando, com a aspereza dum sabuco, o dolorido dum inchaço em princípio, aparando além com o gume do freme os rebordos das feridas de mau caráter.
Só então tornou à roda dos camaradas, ao pé do fogo do cozinheiro, no interior do rancho, onde chiava atupida a chocolateira aromatizada do café.
A tarde morria nuns visos de crepúsculo pelas bandas da baixada. A mulada remoía nas estacas, e junto ao couro de milho um ou outro animal mais arteiro e manhoso escoucinhava e mordia os demais no afã do maior quinhão.
Assentados sobre os calcanhares, os primeiros chegados – cujos lotes arraçoados se coçavam impacientes aos varais – espicaçavam pachorrentamente na concha da mão o fumo dos cornimboques, picavam miúdo no corte do caxerenguengue as rodelinhas finas, esfrangalhando entre os dedos os resíduos, palha grossa de cigarro encarapitada na orelha. O cabra abeirou, apossou-se do cuité fumegante que lhe estendia o cozinheiro; e, enquanto deglutia a beberagem, ia comentando com os demais, voz amolengada, a marcha daquele dia.
– O lamedo dera-lhe, no vau do Anicuns, um trabalhão; mal do lote, se não fora o ramo verde da marmelada que o dianteiro tivera o cuidado de atravessar no caminho, a burrada embarafustava logo pelo atoleiro e ele não estaria àquela hora no pouso; quando lá passou, ia bem fresco ainda o rastro da tropa no desvio; mesmo assim, o macho crioulo que vinha adestro, não duvidara em meter-se naquela perdição...
– Bicho novato, de primeira viagem... – observou o dianteiro, que tocava, como de direito, o lote mais luzido da tropa.
No gancho da mariquita, especada sobre o brasido, refervia o bom adubo da feijoada; um bafo grosso, apetecente, daí se evolava, babando a gula de dois perdigueiros da comitiva, que, assentados sobre as patas traseiras, estendiam para o borralho o focinho curto, cupidamente...
– Já vem chegando a boquinha da noite, minha gente – avisou o arrieiro saindo da barraca e chegando até o parapeito do rancho, olha o encosto da tropa. – Uma peia garantida nesse macho crioulo, ó Joaquim, que não dê outro sumiço; olá, mudem o polaco da madrinha, bate soturno esse cincerro.
Guiada pelo chocalho da madrinha, levada no cabresto, à mão do dianteiro, a tropa desatrelada enveredou pela devesa, redambalando por intervalos cada polaco das cabeças de lote nos torcicolos abrutalhados da vereda, ribanceira abaixo. A noite descia mansa e silenciosa, perturbada apenas pelo clamor longínquo das seriemas da campina no fundo dos vargedos, e a lua assomava como uma grande moeda de cobre novo por sobre os descampados, em vago nevoeiro.
À noite, repasto feito, descansava o pessoal recostado sobre as retrancas e pelegos dos arreios. Pelos cantos, trilavam grilos; e, de fora, vinha o grito dolente dos caburés e noitibós, agourando a solidão. Um tropeiro sacou do piquá que trouxera a tiracolo, o pinho companheiro dessas caminhadas no sertão; apertou a chave da prima e pigarreou pelo cordame um lundu, todo repassado de ais e suspiros.
– Cabra malvado, faz tristeza essa viola – disse alguém, o pensamento longe, perdido no arraial, onde deixara, certo, saudades e cuidados. – Diga antes um caso, daqueles que nos contava, quando na boiada do Antão...
– Homem, inda agorinha – atalhou o Manuel, o dianteiro – relembrava um fato que me sucedeu duma feita, quando viajava escoteiro, às ordens do major Matos, pr'essas bandas. O caso é que era então acostado, e de fiança, daqueles de pouca conversa e de grande estadão. Na quinta-feira das Dores, o sol ia descambando, o patrão manda-me chamar, passar a cutuca no lombilho do matungo, e partir sem detença para o povoado, uns papéis de eleição bem arrumadinhos na patrona. Mecês devem estar lembrados que na altura dos Marinhos, num estirão de meia légua de tabatinga e terra puba, fica um cemitério abandonado, há muito toca de tatus e camundongos-do-campo.
Semana atrás, numa rusga de cachaça e mulheres, esticara a canela ali perto o Bentinho Baiano, um cafuzo intrometidiço, baleado por dois tiraços de rifle na volta esquerda da pá. Para poupar maior trabalho, aproveitaram a serventia antiga do terreno, sepultando por ali mesmo o assassinado. Fora eu até quem, de passagem, cedera a mortalha de ocasião com que o embrulharam, uma larga pala branca, enfeitada de bambolins, que me presenteara alguém que não tem a ver cá com a questão.
“Viajava distraído, esquecido de tudo, na marcha a furta-passo do matungo, perrengueando, a pitar o meu cigarro, quando num repente, estaca de supetão o animal.
Assuntei. A noite estava turva, o céu sem lua, aqui e ali picado de estrelinhas. O sítio não me pareceu estranho; atentei com mais justeza, – umas cruzes apodrecidas pendiam, no escuro, desconjuntadas, à beira do caminho, sobre cômoros malfeitos de terra... Era o cemitério velho do povoado. Apertei as chilenas no pangaré; ele andou alguns passos e depois emperrou de novo no meio da estrada, orelhas entesouradas, espreitando a escuridão. Adiante, não via nem ouvia movimento ou tropel algum; o bicho nunca fora empacador ou passarinheiro, tentação do capeta devia de andar ali por perto. Um homem é homem, mecês bem sabem; atravessei o punga no caminho, encurtei as rédeas e escrutei melhor a vista, já acostumado à escuridão. À minha frente, roçando o chão, brancacento, ia um lençol aberto. O matungo refugava arreliado, bufava pelas ventas, uma vontade danada de voltar atrás e desembestar pelo chapadão afora. Senti, benza-me o Santíssimo, u'a mão de ferro, no coração, triturando... Mas, como lhes dizia, em qualquer aperto, pr'este mundo de Cristo, um homem é homem, e o que tem de acontecer, tem força, acontece mesmo!
“Desviei o meu bicho para uma pequena macega de sapé, pus-me abaixo da sela, amarrei seguro as bridas a um tronco de imbiruçu e voltei atrás, decidido, franqueira atravessada na boca como era de preceito, mão sobre os gatilhos escancarados da garrucha. Parecera, a este pobre cristão, melhor observado, que era a mesma franja de bambolins, o lençol que seguia estendido à minha frente – aquela mesmíssima mortalha com que dias antes enroláramos o corpo do mal-aventurado Bentinho...” Parou, gozando a expectativa angustiosa que errava derredor, entre os parceiros.
Bebeu uma última golada de congonha, que lhe servira atencioso o cozinheiro; bateu fogo na pedra do isqueiro, acendeu o cigarrão e olhou para fora, vagamente, meneando.
– A gente, quanto mais vive, mais aprende, já dizia minha avó. Assombramento, tenho ouvido casos, verdade seja, mas as mais das vezes falta de coragem, turvação do medo e da bebida... Maluquice, anda à toa pelo mundo da Virgem; não fora o meu ânimo, hoje zanzaria por aí, nessas bamburras, gira varrido. Cheguei solerte, pé ante pé, negaceando, pronto a queimar as escorvas na cabeça do Mal-Encarado ou o quer que fosse que impedia a passagem. O lusco-fusco ia menos cerrado, o lençol prosseguia estrada afora, muito branco, desdobrado, largando felpas alvadias pela garrancheira e vassouredo da beirada. Sofreei o baque de meu peito e acheguei-me para mais perto da assombração; bati fogo na binga, soprei um chumaço, e agachado sobre o estorvo, pesquisei com cuidado.
“Era... mas devia ter logo visto, um tatupeba, que se fartara no corpo do infeliz ali enterrado e que se retirava, empanturrado, para o seu coito. A imundície, na gana do festim, enrodilhara-se na mortalha do desgraçado, varando-a com a cabeça, e de lá se retirava, certamente bem atrapalhado, arrastando após si o trambolho... Devia ter logo visto; na pressa do enterramento, a cova tinha ficado um tanto rasa, a terra fofa, sem cerca nem revestimento para impedir aquela profanação... Enfim, creiam mecês, é ter sempre desapego ao perigo...”
Calara. Cincerros distantes chocalhavam, longe, pelo encosto da devesa.
A lua nos aceiros era toda branca como geada de inverno.
1914 Mágoa de vaqueiro A Eduardo Tourinho Como os galos viessem amiudando e fora andasse a garoa fria de inverno que precede as primeiras horas do amanhecer, o Zeca Menino, largando num tamborete o par com quem dera a última volta da catira, esgueirou-se pelo corredor, atravessou sorrateiramente a varanda de terra batida, onde a mesa posta ostentava ainda os sobejos da ceia – frascos de licor e o doce de buriti esparramando-se na toalha besuntada – e saiu pelos fundos da casa.
No terreiro, encolhido ao aconchego da fogueira, gemia ainda àquela hora o tio Ambrosino, viola ao peito, respontando na prima:
A florzinha do pau-d'arco É da cor do entardecer, Traz tristeza, traz quebranto, Tu, que não hás de trazer...
Em pontas de pé, dissimulando o tilintar das rosetas no cachorro das esporas, Zeca Menino alcançou o alpendre à banda, desamarrou a mula estradeira e voltou montado ao oitão da casa, raspando-se no peitoril duma janela, que arranhou suavemente com o cabo da açoiteira.
Os tampos descerraram-se sem rumor; um vulto esquivo deixou-se escorregar para a garupa roliça da besta, e o estrépito abafado do animal, que ganhara a porteira e se afastava na cerração, misturou-se perdido aos zangarreios da sanfona, reavivando dentro a animação dos comparsas.
Junto ao fogo semi-extinto, cabeceando de sono, farto da queimada engolida aos gorgolões, o tio Ambrosino interrompera o curso de suas divagações e cachimbava distraído:
– Homem, a modo que já vão andando... Ah, meu tempo, agüentava firme no sapateio até pegar o sol com a mão!...
E caducou em solilóquio, levado de novo pelo curso da borracheira:
Lá na serra dos Angicos Quanta flor anda a brotar!
Assim também são teus olhos Quando pões-me a namorar...
Despertado, um galo cacarejou no poleiro ao pé, num grande grito de alarma.
– Carijó que assim canta, é que fugiu moça de casa.
Mas o frio apertava, a lua ia a perder-se por detrás das serranias; e tio Ambrosino recolheu-se tropeçando ao abrigo da varanda, a espertar o corpo perrengue num último gargarejo da queimada.
E só quando as barras vinham quebrando e era manhã feita nas morrarias do nascente e o último convidado, que morava mais chegado, se despedia do festeiro – num salamaleque derreado onde havia ainda bifadas de cachaça e licor de jenipapo – que este deu pela ausência da filha, chamando-a para a bênção do padrinho.
Houve um rebuliço. O vaqueiro gritava para dentro, supondo-a recolhida; e o Ambrosino, escarranchado na pileca manca, atalhou com voz pachorrenta:
– Ora, não se afobe, compadre, a afilhada já dorme, moída da festança; também, requebrou-se a noite toda com o manhoso do Zeca Menino, agora dorme...
E partiu, no passo ronceiro da mula cambeta, pendependendo no arção, as pálpebras inchadas, num sono invencível de sapo borracho.
O outro, porém, mal o viu desaparecer no cotovelo do atalho, embarafustou pelo rancho, andou lá por dentro remexendo, repondo os trastes em seus lugares; e, num pressentimento, chamou junto ao quarto da filha:
– Ó Maria!... Mas um silêncio angustioso pairou após o brado do velho; e ele, resoluto, meteu ombros à porta, cuja tranca cedeu sem dificuldade.
A cama estava como na véspera a vira, quando lá entrara para apanhar a bandeira do santo; a colcha de chita bem esticada, fronhas dos travesseiros intactas, sem vinco ou ruga duma cabeça que ali repousasse alguns instantes; e o rosário das orações como sempre, dependurado na cabeceira. Da Mariazinha, porém, nem vestígio.
Ele olhava apatetado, sem compreender; foi à cozinha, na esperança de encontrá-la dobrada sobre o jirau de mantimentos, quando lá fora talvez buscar a candeia de azeite e se deixara ficar, vencida do sono; foi, e apenas o bichano, mui gordo e ronronento, abriu para ele da trempe do borralho onde se aboletara, uns grandes olhos deslavados de espanto e ronronando ficara de novo a dormitar, no calor brando das cinzas.
O velho Tonico percorreu todas as dependências daquele pobre rancho de vaqueiro, a sala, a varanda e sua própria divisão; saiu, foi ao alpendre e até o chiqueiro e o fundo do quintal inquiriu ansiosa, inutilmente.
Veio ao terreiro da frente, o sol já nado; e só então a dor expluiu, numa crise de lágrimas e recriminações.
Fugira, a malvada! E com quem, Santa Maria, com o Zeca Menino certamente, um perdido de pagodeiras e do truque, brigão vezeiro nas redondezas, sujeito que além da garrucha e da besta de sela, só tinha por si essa estampa escorreita de mestiço madraço e preguiçoso! E
por que, Virgem Maria, se ele nunca se intrometera no namoro, até satisfaria a vontade de ambos, dando o consentimento; ele que, mal da idade, com tão pouco se contentava – vê-la sempre de sorriso à boca ao batente da porta, quando viesse das malhadas, e a tigelinha de café bem requentada, quando partisse pela manhã para as labutas do campo! Ele que, bom Deus dos fracos, só tinha aquele mimo na sua velhice desamparada e solitária de viúvo, à beira dum atalho sempre deserto e cujo vizinho mais próximo, o Ambrosino, ficava a duas léguas de distância!
E arrepelava a grenha, num pasmo mudo agora, como se nem pensar naquilo valesse mais a pena, tão absurda parecia a desgraça que se lhe abatera sobre o casebre.
Ah! não ter dez anos para menos, não virasse já os sessenta bem puxados, tivesse o pulso a rijeza de outrora e partiria sem detença, no rosilho troncho, pronto a tirar a desforra merecida da afronta!
Mas o corpo já não dava de si e ele bem sabia quão boa estradeira era a mula ruana em que haviam partido. Àquela hora, já transpunham a mata funda, rumo do Paranaíba e talvez das terras mineiras do Triângulo, bem longe da sanha e da ojeriza impotente de seu amor paterno ludibriado.
E num dasalento, amparou-se ao cupinzeiro que erguia o seu cone crivado à frente da palhoça, a olhar emudecido, em desespero.
O sertão abria-se naquela manhã de junho festivo, na glória fecunda das ondulações verdes, sombreado aqui pelas restingas das matas, escalonado mais além pelas colinas aprumadas, a varar o céu azul com suas aguilhadas de ouro; batuíras e xenxéns chalravam nas embaúbas digitadas dos grotões; e um sorvo longo de vida e contentamento errava derredor, no catingueiro roxo dos serrotes, emperolado da orvalhada, a recender acre, e nas abas dos montes e encruzilhadas, onde preás minúsculos e calangos esverdinhados retouçavam familiares, ao esplendor crescente do dia.
Ele ficara mudo, olhos apalermados, virado o rosto para a volta da estrada, de cuja orla subia um nevoeiro luminoso, que o mormaço solar irisava.
Ali permaneceu horas a fio, o sol já dardejando a prumo, indiferente à canícula, mãos túrgidas engalfinhadas na barba intonsa, boca contorcida numa visagem estranha de mágoa, a olhar longe, muito longe, para além das colinas longínquas e do céu anilado.
À tarde, o eco dum aboiado rolou pelo fundo da várzea, ondulando dolentemente de quebrada em quebrada, num despertar intenso de saudade...
Eram boiadeiros que lá passavam, na estrada batida. O vaqueiro velho não saiu então como de costume, ferrão em punho, perneiras e guardapeito, escorreito e desempenado, no rosilho campeador, a dar a mão de ajuda àqueles forasteiros que lá iam, demanda das terras distantes e das feiras ruidosas dos sertões mineiros d'alémParanaíba.
Continuava recostado no cômoro dos cupins, mão no queixo, olhando extático; somente, agora, a cabeça bronzeada pendia mais flacidamente sobre o peito de vaqueano, e o olhar com que via, era inexpressivo e desvidrado, desmedidamente aberto, estampando na retina empanada a visão pungente do sertão em festa, todo verde, e a orelha à escuta, longe, das notas derradeiras da canção nativa.
Morrera, ouvindo os ecos que lá iam do aboiado, a rolar, magoadamente, de quebrada em quebrada...
Ao pé, na roupeta singela de algodão em que se enfatiotara, nas axilas, nos braços, pela boca e orelhas, ia cerce a faina das térmitas em rasgar, picar, cortar e estraçalhar aquele estorvo molengo que se lhes abatera desde cedo por cima da casa...
1914 A bruxa dos Marinhos A João do Rio Ao lado da estrada real e à sombra espessa duma gameleira centenária em cujos esgalhos finos cantava em épocas de sazão a passarada, e arquitetavam o ninho gentil os povis e tiês mimosos de papo fulvo e penugem azulejada das campinas, ficava a venda da bruxa dos Marinhos, assim como a nódoa minúscula e alvinitente duma rês branca, sobre o fundo verde-dourado da imensa malhada que eram aquelas paragens. Avultava ao longe, mal dobrassem o cotovelo brusco duma serrota de alourejada coma de capim-melado e moitas de murici cheiroso, na várzea aberta dos buritis virentes que espanejavam, à fresca das manhãs veranejas, a sua flavela esguia e revoluteante de folhas, toda arqueada e gemebunda aos afagos do vento.
Por ali passavam tropas mineiras d´além-Paranaíba – rijos tocadores palmilhando as alpercatas de couro cru pela extensão ardente e arenosa das estradas poentas, ladeadas às vezes de barrancos escarpados e esfarinhentos de pedra-canga, por cujas erosões, vincadas, medrava tenaz o catingueiro parasitário dos morrotes. Por ali passavam, barulhentos e ralhadores, de peregrinações distantes, após haver trilhado as rechãs esturradas d'argila vermelha e sapé bravio dos chapadões, onde apenas, a quebrar a uniformidade dos horizontes, apareciam de vez em vez, ao longo dos carris profundos deixados à passagem pela roda ferrada dos pesados carros de bois, a fruteira-de-lobo e os coqueiros de macaúba, como tênues, fugaces teias de sombra espalmadas sobre a crosta recozida do solo.
Cruzavam tropeiros da terra, gente sã e escorreita, incitando aos estalos ásperos dos relhos e piraís compridos de trança fina, o trote leve da burrada, que se detinha por momentos a retouçar a babugem das margens – guizalhentas as cabeçadas – com carregamento de cristal de rocha, surrões preciosos do bom fumo goiano, ou malotes ajoujados de sola sertaneja, para as divisas estaduanas do grande rio. E não raro, chiava um carro vilarejo dos fundões remotos, ao passo tardo e hierático dos bois patriarcais, nostálgico e lamuriento à distância, como uma dessas cigarras cinzentas de areia chirriando suas desditas no tronco rugoso duma lixeira dos cerrados, à hora do crepúsculo, pelas queimadas fumarentas e asfixiantes de agosto.
Em navegando pr'essas bandas, era certo os arrieiros desavisados virem dessedentar-se da agrura calcinadora do verão tropical ali aos Marinhos, com uma bochechada cheia da boa e rascante pinga da terra, quando, as mais das vezes, não a traziam eles já nos alforjes bem fornidos da garupeira, e lá não fossem senão atraídos e tentados pelos olhos langorosos e quebrantadores da bela cabocla – arteira e artificiosa em seus gestos provocativos à sensualidade dos rapagões – e inflamados mais pela cor de mate sadia e forte de suas carnes roliças e de formas adengadas, que inquietados da fama maligna de bruxedos e avezada a desnorteamentos de cristão, que possuía a luxuriosa habitadora daquele recanto.
Muitas vezes, chocalhando a guizalhada dos peitorais e cincerros sonoros da cabeçada de prata reluzente, em cujo cimo se firmava arfante e senhoril a loura boneca da guia, apontava o primeiro lote na dobra do caminho, levantando áureas nuvens de areia sutil e detritos e fagulhas delgadas de malacacheta rebrilhante. Aos berros roucos e muxoxos cuspilhados dos lábios secos, desviava o dianteiro a madrinha que se aprumara rumo do copiar da casa.
Era uma tropa que passava.
E torcendo rédeas braças antes, na sua besta de sela de estimação, os arreios niquelados faiscando de mil maneiras, à luz estuante do sol, e as bombachas folgadas, à moda gaúcha, de padrão azul listrado ou xadrez, o moço arrieiro que pr'essas estradas batidas tenteava a existência fretando cargas, e vivia a penar enredado nos embelecos traidores da comborgueira, afastava-se pressuroso do roteiro ordinário da comitiva. Ganhava distância; e, corridas as chilenas, metia a mula rosilha num garboso esquipado à marcha picada e vinha, riscando curto o bicho, esbarrar mesmo a dois passos da porta, espancando o ar quieto e morno do interior, onde uma ou outra mosca caseira voejava sonolenta e trôpega por sobre os coscoros duros do balcão, com um forte e sacudido: – Ó de casa!
Ao tropel, acudiam dos paióis e alpendres onde modorravam suas mazelas e a preguiça meridiana, os rafeiros varados da vigilância, leprentos, coberto o fio do lombo de quistos bichosos, orelhas tronchas em pé, investindo firmes e às alertas com os latidos ferozes.
Molecotes, crias da casa, chegavam ao limiar, longas tereas de cipó ou embira na mão pronta;
enxotavam às pancadas rápidas e atiradas ao acaso a cainçalha assanhadiça, que arisca e irrequieta se furtava para os lados, para de novo arremeter, esquelética e reincidente; té que, corridos às vergastas, encafuavam todos pelo vão estreito das cercas de nó-de-porco e sucupira das tranqueiras, onde se postavam rosário de horas farejando e ganindo ao léu, ventas ao ar –
tresandando rabugem – ou a peluça crespa, enrodilhando-se, enroscando-se, a ver se apanhavam a raiz da cauda apinhada de larvas, arrepiados e ameaçadores.
Descerram-se os tampos da janela de batentes de cabiúna, onde signos de Salomão e marcas de gado se assinalavam a carvão e ferro em brasa; assomava o rosto amorenado e redondo da benzilhona, abertos os lábios úmidos e rubros num sorriso discreto e enigmático de acolhimento, convidando o forasteiro a apear-se ao amparo da soalhada: Que sim, que ia mesmo braba nesses chapadões, dizia persuasiva, meneando a cabecita sestrosa, onde duas tranças fartas, luzidias, se bipartiam de meio a meio.
Desengonçado no arção da sela mineira, o pé esticado num único estribo, na posição habitual de descanso, titubeava o moço arrieiro; olhava no alto o céu sempre azulíneo e ofuscante de luz, cerrava um canto d'olho, mão alçada, a atenuar a crueza dos raios solares, e embrulhava uma escusa tola, dando tempo à própria incerteza, perplexo na execução dum ato que se lhe afigurava de importância suma:
– O sol assim parece que vai descambando, dona, duas horas pelo menos; – a mula rosilha vinha sentida dos rins; no segundo e quinto lotes vários burros pisados no espinhaço, pelo atrasamento da carga; os dobros dos da frente, mal divididos desde a saída do pouso, não ajeitavam bem e iam dando um trabalhão pelo caminho, dissera-lhe o dianteiro ao topá-lo ali atrás. Confiança, lá isso tinha na sua gente e sabia que tudo seria bem cuidado e remediado no pouso, à hora da descarga; mas – e voltava ao assunto primitivo – a rosilha não ia bem, sentida dos rins, o que o punha preocupado, tanto mais que o macho mascarado, trazido à escoteira, sempre à mão, para atalhar tropeços e incômodos de montar na necessidade lombo chucro de animal ruim ou passarinheiro, aguara dos cascos na subida da serra do Corumbá...
E engrolava escusas néscias, cuidados falsos com cousas que lhe não diziam o mínimo respeito – obrigação exclusiva dos camaradas – desajeitado, tímido, como que arrependido já da íntima fraqueza, e tivesse vergonha e acanhamento de mais uma vez render o seu preito submisso à cabocla.
Ela sorria sempre, o encarnado vivo do lábio inferior acentuando-se sob a alvura dos dentinhos espontados à faca, com aquele mesmo sorriso que lhe fazia as tristezas nos pousos distantes, quando, ferindo magoado as cordas gemebundas da viola, recostado no punho móvel da tipóia macia de algodão ou de imbé, relembrava em quadras toscas, improvisadas ao acaso –
algumas de imagens coloridas e nítidas – esses mesmos beiços polpudos, seios sublevados e as faces carnudas da sensual moradora daquele cochicholo da estrada real – desespero de quantos boiadeiros brônzeos e ricaços em trânsito nessas plagas, que se iam sertão em fora ruminando, desaforados e impotentes, quizílias e secretas maldições contra as feitiçarias e quebrantos em que os traziam envotados o riso e olhar felinos da terrível ensalmadora.
Remoía desculpas o moço arrieiro, desacoitado do cocuruto o chapelão d'abas largas. Ela insistia, maneirosa e hospitaleira, vencendo a fragilidade dos escrúpulos do cabra. E retinindo nos cachorros de ferro batido os grossos rosetões, rendilhados em crivo, do par d'esporas, entrava ele sala adentro, abancava-se a um dos tamboretes de tauxias amarelas e couro curtido de mateiro, onde ficava a prosear, arrotando pabulagens de mestiço pernóstico e chupitando a miúdo goladas fartas dum pipote velho de aguardente, que um menino ia medindo e vendendo a meia pataca o quartilho, ou entretido com a lábia e ademanes da dona dengosa e impudica, num derriço palerma, à espera do café costumeiro. No copiar à banda ou sob a copa da gameleira, mastigava o freio pachorrenta e encilhada a mula estradeirona, aos cochilos cabeceantes, perturbada às vezes pelo zumbido tenuíssimo dos miruins do campo e ferretoadas agoniantes das pardacentas e achatadas mutucas sugadeiras; e estrada afora, a sumir na estiva do rego além, ou cá no cotovelo da serrota, ia a toada argentina das cabeçadas das madrinhas da tropa, na branda e ligeira cadência da marcha, demorando em espiras largas no ar, e enchendo e abalando de vibrações quérulas os ecos sucessivos das quebradas longínquas, apressurada de mais a mais pelo relho dos peões dos lotes a passar, que bem sabiam o patrão ali enrabichado, presa duma suçuarana de nova espécie, e o pouso longe, légua além, de boas aguadas e encosto seguro para os animais solertes e avezados a sumiço.
Às vezes, nos dias festivos dessa transparência deslumbradora que é característico invariável do estio goiano, topava ele ali gente de fora e a companhia de forasteiros que se deixava a bebericar era animada. Ficava então horas a fio alheado, conversando com a roda nos assuntos do ofício, o olhar devassando pelos corredores o interior varrido e asseado da casa, que findava num terreiro capinado e limpo, aquém do quintal ensombrado, onde pendiam, em festões engrinaldados, os limoeiros azedos, o laranjal pejado, cuja grimpa era de momento a momento assaltada por densas revoadas de guaxos e joões-congos de peito amarelo e acerado bico, perfuradores dos frutos sumarentos, que se punham a merendar álacres, numa orquestra alada de vivos e azoinantes galreios.
Ele reparava enublado tudo aquilo; deixava-se esquecido a sacolejar no fundo da tigelinha de café aromático, sarapintada de azul, os últimos resíduos do açúcar em dissolução; anotava lá embaixo, na estrada ampla e areenta, barrada a orla do rasteiro capim-gengibre, o passo acelerado e tilintante do derradeiro lote, instigado pelo culatreiro empoeirado e suarento, a desaparecer no cotovelo verdejante da serrota, rumo dos arranchamentos, onde já folgariam os tocadores passados; e, pesaroso, recordava que era também tempo de se lhes ir juntar. Despediase impulsivo da bela cabocla – a quem só veria meses depois, talvez um ano, talvez nunca mais – saltava desembaraçado na rosilha desperta em sobressalto ao abrigo da gameleira, e partia direito, sem voltar a cabeça sequer, naquele mesmo esquipado à marcha picada da chegada, o arreame niquelado todo cintilante ao sol...
Ao pouso arribava à boquinha da noite, feita a descarga, raspada, curada e amilhada a tropa já no encosto costumeiro da aba do morro, esfregadas a sabuco, afofadas e atalhadas as cangalhas pisadoras, a janta desempoleirada do gancho da mariquita aberta sobre o brasido, ao voejar imperceptível dos primeiros enxames de muriçocas e pernilongos saídos dos charcos de juncais e angola das baixadas alagadiças, quando nas restingas de mato da beira dos córregos e capões, começavam a sua terna elegia as jaós merencórias do sertão; e longe, nas várzeas tenras onde o jaraguá altaneiro campeava eternamente viçoso, nos descampados limpos, semeados aqui, além, de palmeiras incipientes de indaiá abertas em leque à flor da terra, piava aguda, lamentando-se da ausência da companheira predileta, a perdiz solitária das campinas, a lançar alarmas estrídulos aos ecos despertados das quebradas remotas, duma coloração pôr-de-sol verde-negro sombria, e reavivando extintos pruridos de caça aos ouvidos tensos dos velhos perdigueiros – nédios e bocejadores ao calor do borralho – que acompanhassem a comitiva.
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* *
Ali passei eu duma feita pelo arroxear suave de melancólica tarde de fins de verão, quando nos tabuleiros elevados e descampos mal desabrochava ainda a humilde flor-de-maio das campinas, rumo sul e da primeira estação da estrada de ferro, então aos barrancos do Paranaíba, pronta a transpor esse natural obstáculo das divisas estaduanas, e galgar sertão adentro, conquistando, transformando e aniquilando tipos, costumes e aspectos, na marcha arrasadora do progresso, da civilização.
A vivenda lá continuava ao sopé da estrada, e à sombra da mesma centenária gameleira.
Não mais porém, em rumorosas manhãs de estio, ao guizalhar festivo das tropadas passantes, se via o freteiro abandonar pressuroso o roteiro batido para vir ali, sedento, matar pesares e saudades da ausência prolongada. Escalavradas eram as paredes do emboço alvacento, a mostrar, como alastrações de lepra, escorrimentos profundos nos adobes esborcinados, a desmanchar-se, lodosos e amolecidos, nas chuvadas de invernia. Um limo viscoso e esverdeado, gotejado pelo estilicídio dos beirais desconjuntos e a cair, sobrepunha-se em camada fina, rente ao chão, no rodapé d'oca barrosa.
Pelas fendas do lajedo, na linha do oitão, vegetavam as beldroegas tímidas, o capinzal de raiz e gramíneas próprias dos taperões há muito deixados.
Ao lado, no desvio, assoberbava o assa-peixe tristonho, agitadas as franças cá e lá pela arribada atônita duma aluvião de pintassilgos, coleiros e patativas apanhadas a petiscar pelos pedúnculos cacheados e floridos; embaixo, como lagartas esverdinhadas, rastejava a praga da tiririca miúda, os provisórios de caroços espinhentos, o fedegoso bravo, as malícias garranchentas e irredutíveis, a apegar-se, como carrapicho, à canela do desastrado animal aventurado na vereda. Para o fundo, no quintalejo maltratado e sujo, mirravam as laranjeiras sob as ervas daninhas; e como provasse uma fruta temporã que um galho peco oferecia, achei-a azeda, amarga quase, como uma punição.
Cercas e paióis, tranqueiras e currais desmantelados, atravancados de imundícies e monturos, donde, como serpes, saíam emaranhamentos compridos de touças de cabaceira e buchas-de-paulista, emergindo dependurados, como brincos colossais, os seus frutos balofos e aquosos – estralejando com estrépito sob os pés as cabaças que a estação sazonara – tão ocos, tão vazios, como o interior bolorento daquele mesmo casebre, a desfazer-se em ruínas, como uma enorme maldição, sob o matagal.
Entretanto, no verde perene de que se revestira o sítio, havia algo de anormal e trágico, misto vago de íntimo terror e inexplicável aperto, a gerar arrepios de pavor aos que, como eu, se detivessem a contemplar, àquela hora do anoitecer, o estranho aspecto da tapera, batida a cumeeira de telha-vã dos últimos clarões crepusculares...
Ao condutor – um tipo robusto e acaboclado de nortense, lábios finos e olhos profundamente rasgados de índio – que tão inquieto e impaciente se mostrava à aproximação da noite com a nossa demora ali, indaguei, curioso do descaso e feição lutulenta daqueles ermos.
Ele – viagem andante viera narrando a íntima satisfação e gozo violento de que se sentia noutras eras invadido em se aproximando dessas bandas – olhou-me em silêncio d'alto a baixo, como que avaliando se estava a zombar; esteve algum tempo considerando, incrédulo da presumida ignorância, fez depois uma visagem supersticiosa de esconjuro, e o índice afuzilado –
cor de tisne – designou um marco carunchento, que as enxurradas tinham aluído, meio oculto em macegas de são-caetano.
– Uma cruz...
– Aqui, patrão, pela passagem das últimas boiadas, encontraram-se e acabaram a botes de faca, dous cabras da terra, ambos desempenados e amigos, aos quais desnortearam as mandingas da bruxa: filhos do mesmo pai, filhos da mesma mãe...
Quedou-se mão no queixo, a olhar estarrecido. No céu, lacrimejava já a estrela boieira.
Um acauã grazinou mato adentro, espreitando agoureiro.
Benzeu-se, e ferrando esporas, afastou-se cabisbaixo, a trote rápido.
– E a bruxa? – disse alcançando-o.
– Ah, sim, a bruxa... Essa, decerto, levou-a o cuca num pé-de-vento, à hora da meia-noite, pela sexta-feira do quarto minguante... Nostalgias...
(Trecho de carta)
Já que vais brevemente à chapada, vê se ainda se encontra legivelmente o meu nome num tronco novo de jenipapeiro que fica junto à casa do teu agregado (se é que ainda o manténs), próximo a umas goiabeiras, e aí talhado por mim a última vez que lá estive. Olha, não te esqueças de dar algumas tarrafadas ao poço do Periquito, de fundo aliás bem sujo e garranchento; e também, ao do Mané Fulô, como diziam os caipiras, onde ia todas as tardes, a comprida cana de pesca sobraçada, farnel d'iscas a tiracolo, descalço às vezes, peito descoberto e em mangas de camisa quase sempre – tal o nosso Casimiro de Abreu dos Meus oito anos, – a cantar velhas trovas nativas pelas estradas...
Era pelas férias, em tardes luminosas de que já não tenho notícias, pelos meses calorentos de dezembro a março, quando o murici e a corriola, amadurecidos, embalsamavam o chapadão.
Passava a correr, saltando córregos, a tua espingarda ou outra qualquer ao ombro, às vezes só, quase sempre acompanhado dum moleque, o Manuel ou o Raimundo do agregado, baixotes e barrigudinhos, que se incumbiam da longa fieira de peixes quando de retorno.
Gralhas e acauãs guinchavam na galharada esguia dos cerradões, sobre o arvoredo denso de ao pé dos córregos. Havia o trilo metálico das cigarras ao mormaço; e, galgando a outra banda – com a chuvarada que descera brusca para de novo abrir-se o céu, diáfano e azulíneo, ao sol glorioso, descambando além na Barra – preás levípedes, o olho reluzente e globoso de roedor espreitando em torno, saíam assustadiços das moitas da beirada, atravessavam aos pinchos a um tempo grotescos e graciosos a rampa d'argila vermelha, entranhando-se do outro lado, no catingueiro recendente. Não raro, no emaranhado dos travessões de mato que aí cobrem habitualmente o curso das ribeiras, uma caninana inofensiva e modorrenta passava entre os cipoais, em coleios flexuosos, farfalhando as folhas secas derredor...
Apressava o passo, a gargantear velhos motivos da terra, ora esse dengoso Compadre Chegadinho, dos batuques e muxirões da roça, ora aquela dolente melopéia do Baleador, tão simples e evocadora:
Ê! baladô!...
Ê! baladô!...
Bateu bala na porteira, A porteira não quebrou!...
Assim alegremente, fazia os dois quilômetros que nos separavam do poço onde dormiam, no remanso das águas, os cardumes de avoadeiras e jeripocas sob as coivaras.
No Manuel Flor, tapera antiga que, como todas as taperas, diziam mal-assombrada, e de que restavam apenas os moirões d'aroeira, carcomidos e negros, metia-me pelo atravancado dos gravatás, goiabeiras silvestres, taquaral estralejante e o sarandi da beira do rio, tomava pelo trilho inculto que levava à pedreira favorável, e aí, junto dum chiqueiro abandonado sob cujas taquaras apodrentadas adensavam os mandis-chorões, desenrolava a linha, iscava o anzol, impunha silêncio inviolável ao moleque, e eis-me todo entregue às emoções variadíssimas da pescaria...
Voltávamos ao sítio pelo anoitecer, ao assomar a lua no quadrante turquesa e ouro, quando caga-fogos e vaga-lumes luzeluziam nas baixadas, eu um tanto fatigado da caminhada, mãos e rosto arranhados pelo cipoal, chupando às vezes o dedo dolorido duma ferroada de jurupensém, mas pronto a recomeçar no dia seguinte, o Raimundo atrás, sopesando a grossa cambada e nela discriminando já, com olho de dono, os bagres e lobós que lhe seriam como prêmio adjudicados.
De longe, ouvia-se o rechinar lamuriento da gangorra no terreiro à frente, onde Vítor e os primos tripudiavam contentes, os mais pequenos receosos e assustados dum trambolhão a um pinote ou volteio mais rápido. Caía sobre o Vermelho, que passava ao fundo, a grande, merencória tristeza da tarde.
Berravam nos cercados os bezerros. Piavam guaxos e joões-congos nas grimpas dos jenipapeiros, onde ninhos caprichosos, ao feitio de compridas bolsas, balouçavam prenhes.
Mosquitinhos azoinantes e zumbidores enxameavam ao longo das tranqueiras, nas perebas dos moleques, sobre a lombeira sarnosa da cachorrada, que, a bruscos estremeções do pêlo arrepiado, gania relambendo-se entre palhas, no borralho.
Distante, na estrada da Barra, cargueiros passavam ajoujados e resfolegantes sob a carga de mantimentos, em bruacas de couro cru, rumo da cidade e do mercado. Escutava-se o relho a estalar ao longe, e a voz pigarrosa do caipira, batendo fogo, assoprando o chumaço da binga, a incitar aos muxoxos a mulada:
– Ehú! Ehú! Ehú!... Crioulo!... Penacho!...
E mais além, aqui na mata, ali nos furados de jaraguá, jaós e perdizes correspondiam-se, moduladas e dolentes as primeiras, subitâneas e estrídulas as outras, de lado a lado rememorando a história pungentíssima de seu mútuo apartamento...
Anoitecia. A paz do sertão, sugestiva e boa, descia nos escampos solitários. Na mesa tosca, ao canto da sala, fumegava a janta sobre a toalha alvacenta d'algodão, alumiada ao centro, vagamente, pela candeia de três bicos, que se espevitava de vez em vez.
Surgiam o angu de caruru nos tigelões pintalgados, a feijoada, o ensopado de peixe, farto, em travessas e pratos estanhados, rebrilhando à luz entre olhos de gordura. Ao lado, o garrafão de caninha e o frasco de malagueta para os mais velhos, os que gostassem do condimento rústico.
Empanturravam-se como pagãos que éramos, à primitiva moda e ao apetite das velhas colônias...
Que rica bóia e depois que rico sono, aquele que nos surpreendia pela volta das nove, ao tempo que se contava ainda na fieira dos anos onze, doze, treze primaveras apenas!
Não raro, o caseiro do sítio, forte e desempenado em sua robustez de oitenta anos – o braço mais rijo e feroz dos eitos da roça três léguas derredor – vinha para a soleira da porta, encapotava-se banzento ao batente, acendia um cigarrão, e, a cabeça nevando ao luar como capucho d'algodoeiro, punha-se a devanear, baforando... Cercávamo-lo todos, grandes e pequenos.
Eram sempre histórias antigas, das passadas eras do Império e presídios do Araguaia.
Ficávamos a escutar, sonhando com essa região longínqua de canguçus e caboclos desnudos, areias infindáveis alvejando à distância, onde a pintada vinha uivar em cio à noite, agoniada do luar, e de cujo fundo das águas saíam, em estação propícia, as tracajás à desova pelas praias d'arribação...
E a mente exaltava-se, repassando contos e lendas, frutos de leituras precoces duns e outros que, mais felizes, tinham visto ou descrito o Araguaia, e bebido em suas paragens a selvática poesia dos sertões brasílios...
– Ah! tempos que passaram, tempos de moço, como cabo ordenança e vaqueiro particular do capitão José Manuel, teu pai, nosso tio-avô!
Vinham logo narrações da vida à beira do grande rio, proezas de caça e pesca, combates e matanças dos índios canoeiros, caiapós e xavantes; o ataque do fortim de Santa Maria, como ele, ajoelhado à soleira do rancho, a velha espingarda reiúna e respectiva munição ao lado, mordendo impassível o cartucho, fizera frente a toda uma tribo encarniçada de guerreiros, fuzilando-a à queima-roupa e dando assim tempo à guarnição de tocar a rebate e acudir em defesa às muralhas.
– Era pelo meio da noite, um luar tão claro como dia. A caboclada tingira-se de preto, uma larga faixa branca pintada na testa. Isso servia de pontaria. Não perdera um tiro. O rancho ficara que nem porco-espim: crivado d'alto a baixo de frechas e tantas que, ao outro dia, andando os soldados a apanhá-las nos arredores, ajuntaram feixes enormes, que depois serviram para manter o fogo da cozinha semanas a fio. De sua parte, por conta e risco, só ele matara oito.
– Tempos brabos – comentava. (Ai, meu pobre herói obscuro, que dormes hoje, entre florinhas agrestes, o teu sono de paz numa cova rasa do cemitério da Barra, junto ao filho do Anhangüera, o desbravador de meus pagos!)
Relatava agora, entre sério e jocoso, como a colerina alastrara súbito no presídio, afrontando do último recruta ao comandante; de como faltaram então todos os recursos e mantimentos naqueles fundões. Só a ele poupara, a danada! Ia para o fundo do quintal, o paude-fogo aperrado, entre os bamburrais, assuntando. Tucanos, quebrando talas, grazinavam saltitantes nas embaúbas.
– Pum! pum! Botava um, botava dois, três, abaixo; e era essa a canja que, com milho pilado, servia ao pé do leito aos patrões devorados de febre.
– Bicho duro, o tucano! Pernoitava dias inteiros no fogo e nada de dar caldo que prestasse. Como ele, só papagaio, vote! Parecia até o capeta em figura de ave.
Depois, era como duma feita sangrara um cabra intrometidiço, que se lhe fizera engraçado com a mulher. O camarada riscara a parnaíba com vontade; ele aparou e deu-lhe resposta bem segura, entre costelas, no bucho...
E explicava: O anspeçada fora procurá-lo no açougue da vila – estavam então em Santa Leopoldina – onde ele acabara de abater uma rês gorda, cria da fazenda, por ordem de seu capitão. O cabra chegou como quem vinha mesmo decidido a armar sarseiro, cara amarrada, berrando alto, gesticulando atrevido, arrotando pacholices e valentias, uma dose forte de cachaça nos bofes.
Ele ouviu, ouviu, como quem não entendia; mas num repente, ante um desaforo mais grosso, quando o provocador transpunha já o limiar, saltou por cima do balcão, ajuntou o famanaz pelos peitos, atirando-o com violência ao meio da rua.
O Domingos foi de roldão bater na quina dum frade, e voltou de lá cego, o facão à mostra, piscando os olhinhos de cobra assanhada, sobre o adversário, que já o esperava também do lado de fora, a comprida faca do corte – reluzente e ensebada do serviço – na mão firme.
O crioulo marrou-lhe, a bem dizer, uma pontada direita ao coração; ele torceu e deixou-o passar. De novo, frechou-lhe em cima o anspeçada, faca a prumo, num bote curto, procurando aberta; novamente ele furtou o corpo, mas esperava-o dessa vez na ponta do ferro, onde o cabra veio espetar-se, bruscamente, o sangue esguichando com fartura para os lados, aos borbotões.
– Ah, como que ainda sentia pelas mãos, na cara – vão quarenta e cinco anos – o sangue do Minguinhos salpicando-o d'alto a baixo, todo fumegante, como brasa!
Animado pelo calor da narrativa, acrescentava depois como derrubara doutra vez, numa tarde mui límpida e calorenta d'agosto, um velho carajá que topara acocorado no alto duma árvore, todo acobardado e trêmulo ao vê-lo, duma feita, quando vinha do campeio...
E anotava:
– Qual! Carajás... nação fraca...
– Mas mataste-o à toa, Casimiro?
– Ora, ora, o velho coroca arregalava-me o olho do alto do pau, assim que nele botei a vista, como guariba assustada, batendo os dentes, a dizer com perrenguice: “Aí tori... aí tori...
(cristão, cristão), mata Bremeri... (nome lá da língua deles), aí ele não faz mal... Tori valente!...”
E tremia, que nem atacado de maleitas. Eu atravessara o meu pampa campeador no meio do caminho, a coronha da lazarina sobre o serigote dos arreios, todo encruado em minhas perneiras e guarda-peito de mateiro, o chapelão para trás, preso ao queixo pela barbela de sola, mão em pala, assuntando... Dera com aquele diabo ao sair do cerrado, onde andava a campear umas reses do capitão José Manuel, seu tio-avô, que Deus tenha em sua santa guarda. Tinha achado rastros frescos num brejal, entre touças de caranã, mas batera três dias seguidos as redondezas, não topando vivalma. Daí a presunção em que vinha: pintada não fora, senão deixava algum sinal, resto de carniça, marca das patas, qualquer cousa; e só muito faminta atacava cria taluda...
Os índios, talvez... Vai senão, topo aquele estorvo.
– Desce do pau, ó tapuio!...
– Aí tori... aí tori... mata ele... Brequeti não faz mal... Aí tori valente!... – Ora, ora, o perereca batia a queixada como caititu acuado e eu – diacho de velho pra viver!... – quando o pampa dera já algumas passadas, torci-me no arção da cutuca, e despejei-lhe nas costelas a carga da reiúna. – Que bufo, vote!
Aqui interrompia a segunda mulher do caseiro – que a primeira há muitos anos morrera –
toda lastimosa, um travo de zanga na voz:
– Pois tu não tens vergonha de contar cousas dessas, Casimiro! Credo! Olha o purgatório!
– Mulher, mulher, mete-te com tua vida, deixa os outros sossegados. Mortes, tenho treze nas costas, mal contado; e não me arrependo, mais não fora, tanta gente ruim anda pelo mundo!...
– E remorsos, nunca os teve? – indago.
O velho, cuja cabeça nevava ainda mais o luar, olhou-me em silêncio, como se não compreendera. Depois riu, a boca murcha espichando num bocejo cínico, onde sobressaía desenhada toda aquela vida primitiva no seio bruto do deserto, a par de feras e perigos, sem contemplações e sem piedade para com os mais fracos, os vencidos...
– Leréia...
Sim, lérias, discutia eu no meu íntimo, que nessa época já começava a tirar lições práticas do mundo, e sabia que o cafuzo que ali estava, o busto ainda alto e espigado, onde os três sangues da raça se caldeavam apaziguados, nunca passara da cartilha de mão, e vivera assim desde rapazote, à gandaia da natureza, a grande mestra da vida.
Quando fora da estopada do Minguinhos, cristão como ele e companheiro de tarimba, não tivera, quanto mais daquele velho coroca, a bem dizer bicho do mato!...
Ora, ora, anos depois, de passagem, fora ver o local: a caveira reluzia ao sol e ria macabramente no aceiro da selva, enquanto que a ossada se espalhava em torno, dispersa pelas enxurradas e animais bravios...
Terras bárbaras, gente forte!
*
* *
– Ai, a nostalgia do sertão!...
Pela manhã a Merência, papuda e avara, ia ao curral ordenhar a sua parelha magricela de vaquinhas barrosas, cujo leite nos vendia sovinamente a tostão o guampo. Também, crivávamos-lhe de epítetos e epigramas, à veia estudantal, a papeira mazomba, mal virava, rezingando, a costa acorcovada.
Amigo: não val descrever a vida que aí levamos e da qual fruis ainda os doces encantos.
Longe, numa terra inóspita para os pequenos e humildes, nesta trapeira velha onde noite alta zune a ventania e vem visitar-me alcatéias de ratazanas, às voltas com os meus tédios e minhas pequenas manias de rabiscador anônimo, o espetáculo grandioso da civilização desenrolando-se ao pé pelo buzinar álacre dos autos nas avenidas e pedalar intermitente de tranvias, tão só, à espera dum futuro que não chega e sabendo quão amarga sói às vezes ser a solidão para os que meditam e sonham e quão duro é viver distante das cousas que nos foram familiares, relembro a paisagem adusta de nossa velha terra, e confesso – não raro uma lágrima furtiva ressuma em minhas faces escaldadas, como óbulo votivo ao torrão onde vi a luz, onde minha infância decorreu como todas, ai, tão depressa, tão descuidosa...
Mas basta de sentimentalismo!
Revê-la-ei? Não sei. Talvez nunca. Entanto, nesta luta insana pela existência que é o viver cotidiano das grandes cidades, assediado a cada momento por vivos e contrários embates de interesses e paixões mesquinhas, sinto que o meu íntimo permaneceu o mesmo doutrora, insensível e sereno a todas as agressões brutais deste meio material e grosseiro que o cinge e aperta num supremo e frenético esforço de conquista e erguendo, em meio o seu abandono e em meio a sua tristeza, a grande escada de fogo por onde se guindará a outras paragens mais amigas, filhas do meu Sonho e da minha Saudade...
Vale.
Rio... 1915 Caçando perdizes Volta e meia, o Guilherme, pousando sobre um tamborete o pires por onde sorvera o café, deu um giro pela varanda, e disse ao Vicente:
– Compadre, já que tanto gaba o Belém, enquanto não chega a boquinha da noite para ir escolher a minha espera, vou experimentar o cachorro aí pelos lados do Lambedor.
– Pois perdigueiro como este, estou ainda à percura.
– Êh! – E assoviou arremedando a perdiz, quando anoitece.
Lá embaixo da mesa, onde dormitava, o Belém fitava orelhas, e varreu com a cauda a poeira do massapé.
E a comadre desandando:
– Vai mesmo, compadre. Criação no terreiro 'stá de gogo que é um castigo; o Vicente não tem tempo para caçadas; só assim terei uma perna de galinha para ir debicando com farofa...
E logo, sem tomar fôlego:
– Não imagina como ando enfarada estes dias! Já me estava dando no goto o quitute...
O Vicente Peludo morava, e ainda mora, ali, naquela encruzilhada de Santa Leopoldina –
Vargem Alegre. Como bem diz o nome, tirando a nesga de terras lavradias ao pé do Mosquito –
campos e várzeas, num horizonte aberto, mui ao longe, à distância indefinida, rendilhados pelo azul nostálgico dos contrafortes da serra Dourada. Pela estrada arenosa, escaldada e faiscante, ao largo, o vaivém contínuo de carros e cargueiros, gemebundos ou arfantes, em demanda das margens do Araguaia, ou vindos de Santa Rita com destino à capital.
Àquela hora, já declinava o sol para o lado da Barra. O compadre Guilherme viera da cidade caçar naquelas bandas. Como tivesse o animal aparelhado no telheiro, mal apanhou a caçadeira, já o Belém, a um silvo amigável, dera duas corridas pelo terreiro, e batia-lhe às perneiras com a cauda jovial.
O Vicente viu-o desaparecer em direção à tapera do Antônio; mas não o viu voltar naquela tarde.
Com certeza ficou na chapada, prendeu lá o cachorro e foi armar a sua espera de veado no caminho da Barra, explicou à mulher.
De fato, ali pela volta das onze, levantada e descambando a lua, chega o Guilherme.
Trazia à garupa uma enfiada de perdizes; não o acompanhava, porém, o cachorro.
Fora até a chapada, matando pelo caminho quantas perdizes o cão levantava; na volta, descuidando perto do Mosquito em escolher um pequizeiro onde armar a sua rede, o Belém metera-se pelo mato, não mais aparecendo. Amarrara a besta num retiro; trepou para a espera, supondo que o perdigueiro tivesse tomado o rumo de casa.
– Pois aqui não voltou; você botou fora o meu cachorro, compadre.
– Espera que ele há de aparecer; bicho de faro como aquele não toma sumiço assim, compadre.
E como o luar estivesse claro como o dia, dispensou a hospedagem, e ia torando para a cidade.
A noite toda o Vicente não dormiu. Volta e meia levantava, abria a porta, chegava ao terreiro, a ver se aparecera o Belém. Apenas o luar, mui frígido e translúcido, ia rebrilhando indefinidamente pelos campos, além.
Ao amiudar dos galos não se conteve; foi ao curral, encabrestou o redomão que ali estava para acabar de amansar, arreou-o e meteu-se pelo trilho da chapada. Ia seguindo o roteiro que fizera na véspera o compadre. De caminho, cortava pelos atalhos, a indagar em duas ou três choças, raras, que lá havia ao fundo das restingas, se o animal fora por ali esbarrar.
Tomava de novo o roteiro. Não lhe bastavam as indicações que trazia. Sertanejo, seguia passo a passo todas as marchas e contramarchas que fizera na véspera o Guilherme. Pode mesmo, pelas penas deixadas, assinalar um por um os lugares onde tinham sido abatidas as perdizes. Desistira de procurar aquém do Mosquito: no tijuco fresco da rampa, rastros da montaria iam e vinham; os do Belém seguiam, mas não vinham. Cruzou em todos os sentidos o Lambedor. Na manhã luminosa, engalanadas para a glória do mês mariano, as aleluias e florinhas-de-maio iam pontilhando de ametista e prata o verde ridente da várzea. Pios súbitos, estrídulos, explodiam às vezes, quebrando a monotonia dos grilos nas touceiras de jaraguá.
Invadia-o a pouco e pouco uma ponta de desânimo. Deu uma volta de quarto de légua, foi à casa do defunto Amâncio, outro morador naquelas redondezas.
– Não – por ali não tinha aparecido o cachorro.
O sol aquentava já, seriam onze horas da manhã e ele ali em jejum, atrás do Belém!
Descorçoado, tomou o rumo de casa. Então, na descida do Mosquito, esse ribeirão tão farto de piaus e curumatãs, como se descuidasse a enrolar uma palha de cigarro, um tranco do animal que ainda não perdera as suas tretas de redomão – por pouco o botava fora da sela. – Era um toro de madeira atravessado no caminho.
Pelo menos, assim julgou à primeira vista. Mas logo, engatilhava a central e dois formidáveis tiraços abalavam aquelas solidões. Mexeu-se o madeiro, pesadamente, aquietando depois.
O Vicente apeou e chegou-se à sucuri. Era a maior que topava junto àquele rio, tão fértil delas! Deu volta à estrada, torou para casa.
Depois do almoço, tornou ao lugar. Mediu-a de ponta a ponta, contando quarenta e oito palmos, nem mais nem menos. Um grande nó no ventre desde logo lhe atraíra o olhar. Meteulhe o facão, abriu de extremo a extremo a barriga: dentro, todo inteiro, enrodilhado e gosmento, jazia o cão.
E a pele dessa sucuri, ainda há três meses viva lá no meu sertão adusto, tenho-a presente agora sob os olhos, dando volta aos quatro ângulos do meu quarto de estudante... Alma das aves Havia na fazenda uma regular criação de galinhas. Certo que não abundavam as raridades.
Viam-se algumas representantes da brama e cochinchina, louras como gema d'ovo; carijós, garnisés, arrepiadas, de forma e feitio de penas arrevesado e raro. Tudo, porém, sem método de seleção, entrecruzando-se com a raça corriqueira da terra – abundantíssima, onde cores e característicos se baralhavam na mais inextrincável promiscuidade.
Mas legítimas, descendentes daquela que tanto pavor causara ao índio de Vaz Caminha, podiam-se contar às dúzias, sobressaindo desde a boa nanica chocadeira, até às agourentas pescoço-pelado, aliás de mui excelentes qualidades poedeiras.
No terreiro argiloso e duro, mui vasto, que se entranhava a princípio num vassoural rasteiro, depois – mais além – no cerrado, e por fim onde acabava o mato sujo e começavam os morrotes embalsamados de mangabeira e murici, andavam elas desde o dealbar ciscando e esgravatando, ou a enfartar-se de jenipapos esborrachados pelo chão, quando não era disputada a fruta pelos bácoros soltos, grunhidores que mesmo alta noite, escutando-lhe a queda balofa sobre o solo, saíam de suas camas de palha e cisco ao pé das cercas e vinham, bufando e farejando, manducar naquela ceia que de momento a momento lhes mandava a aragem.
E aos bufos da leitoada, era um cacarejar alerta e impaciente à hora matinal, bater d'asas, corridas aqui sobre esta manga meio roída de periquitos que despencara, a fuga ali da que, desentranhando gorda minhoca, se fora num cacarejamento de triunfo, a degluti-la noutro canto, perseguida das demais; e tal o ruído que, certo, se não fizesse a roça a todos madrugadores, se se não acostumara antes o ouvido ao mugir do gado desde as três da manhã, seriam aquelas umas férias mui pouco invejáveis de passar para gente dorminhoca.
Dês, porém, que a caseira surgia no limiar, achegando à peitada bamba duas pontas de saia, um palmo de morim da de baixo, encardido e sujo, colando às canelas luzidias de qüinquagenária – e um psiu asmático, à direita, à esquerda, se lhe fluía da beiçada murcha – não se poderia ao certo dizer do alvoroço havido naquele pequeno mundo, as correrias que do amplo perímetro do pátio convergiam como varetas dum leque ou raios de semicírculo ao centro magnético, o açodamento cômico das retardatárias emergindo de touças que pareciam antes desertas, as que dentro do quintal escarafunchavam a raiz das laranjeiras transpondo céleres as cercas num surto em arco, e mesmo, o estoufraquear das cocás, ou o gluglu dos patos vorazes acudindo da represa.
E eram punhadas sábias para um lado, para o outro, de grãos saltitados, rápido estrelando o solo com o seu brilho alegre de ouro novo, mais depressa subvertendo-se naquela multidão de mendigos, cada qual apostado em exceder o vizinho em gula e solércia; o cuidado da mulher em ter uns dos outros afastados os galos de rinha, de aculeado esporão, ciosos e espancadores; e depois, tufada a paparia fulva, o pedinchar de quem ainda atende e a sua dispersão final – a custo resolvida – pelo cerrado dos arredores.
Algumas lá pelo mato se deixavam ficar semanas a fio, ou eriçadas e chocas faziam de quando em vez rápidas escapadas em que vinham passear pelo pátio a sua turra de enfastiadas.
E quando, dias longos amoitadas, apareciam de novo, era puxando fieiras intermináveis de pintainhos, onde daí a meses faria mão baixa o caseiro, enchendo capoeiras que ia levar ao mercado da cidade.
Então, pelo dia andante, uma quietude monástica, em que o sol tudo amolentava e aquecia naquele seu mormaço de dezembro, vinha mata abaixo, na bafagem do rio, cousas e entes amodorrando. Lá embaixo, na praia, a eterna ofuscação de mil chispas de faúlhas, cambiando os seus fogos num ondular crepitante de mica e saibro descaldado. Cachimbando, batiam roupa as lavadeiras do sítio. Já de há muito desleitadas, vacas e bezerros pastavam, apartados, no mangueiro. E a antiga casa sertaneja, erigida a sopapos, ficava assim, dentre o verde ramalhudo dos cercados de pinhão e fruteiras do quintalejo, como um velho tiú dormido à beira da estrada, no cicio acalentante das cigarras. *
* *
Ora, uma tarde, após um dia cheio de caçadas e pescaria, abertas as tarrafas a enxugar no terreiro, tomávamos a fresca à soleira; e longe, pelas bandas do ocaso, bulcões de nuvens ocorriam, lentas, acolchoando sobre os cerros, para a encenação costumeira do anoitecer. E o silêncio que em torno se fazia foi de súbito cortado, dum modo estranho e grotesco, pelo grito dum volátil numa das touceiras em frente à estrada. O caseiro, que no momento examinava os sacos duma nossa rede, onde as matrinchãs tinham feito esse dia largo rombo, volveu o ouvido experimentado, olhou-nos com inteligência, sondando depois os ares cuidadosamente.
– Algum gavião? – indagou a mulher.
Mas não. Não havia ali por perto ninhada fresca de pintainhos, além de que o céu, parado e límpido, nenhum indício d'asas do plumátil rapace assinalava que levasse em roda alarma à criação.
Entanto, fez-se logo ouvir, insistente, o cacarejo no vassouredo. Para lá nos fomos todos curiosos.
Minúscula tragédia, espetáculo extraordinário e grandioso aquele, em sua estranha singeleza!
No aceiro, uma ninhada d'ovos em véspera de abrir. Sobre ela, armada para o bote, uma cascavel batia enfurecida o chocalho. Mais terrível porém era o aspecto ouriçado duma galinha da terra, o papo pelado já, gotejando pelos sucessivos arremessos. Numa de suas breves sortidas à cata de que entreter uma fome de semanas, topara de retorno com aquela intrusa sobre a sua postura tépida, ali teimando em permanecer, malgrado o alarde com que nos atraíra a nós, e as heróicas e reiteradas arremetidas com que procurava, em vão, enxotá-la.
Ficamos ali parados, a olhar perplexos.
A ave, nuns pulos bruscos, bizarros, de batráquio em fúria, acossava de perto o reptil aos esporeios e bicadas. Este, a cada novo assomo, mordia-a desapiedado, chocalhando incessantemente. De novo, voltava à riça o animal, arremetendo corajosamente de unhas e bicos. Novamente sibilava a cobra, ferindo-o, injetando-lhe o pescoço, as asas, o peito incidente e agudo, da mortal peçonha.
E o nosso pasmo era tal, que ainda assim permaneceríamos, a ver em que dava a singular briga, se o caseiro, pondo termo à luta desigual, não arrancasse uma estaca, abatendo a cascavel em duas certeiras pauladas.
Lanhosa e escamada, ficou-se ela por ali a enrodilhar, enquanto lhe esmagávamos a cabeça. Arrastada para o terreiro, medimo-la com cuidado, achando-se seis palmos e tanto de comprimento, fora a cauda, cujo crótalo dizia oito anos de idade.
Voltamos depressa à ave.
Deitada sobre o ninho, dormia já, mais negra que o carvão. À beira do pouso A Mário de Alencar Contavam casos. Histórias deslembradas do sertão, que aquela lua acinzentada e friorenta de inverno, envolta em brumas, lá do céu triste e carregado, insuflava perfeita verossimilhança e vida animada.
Pela maioria, contos lúgubres e sanguinolentos, eivados de superstições e terrores, passados sob o clarão embaçado daquela mesma lua acinzentada e friorenta de inverno, no seio aspérrimo das solidões goianas.
Acocorados à sertaneja sob a copa desfolhada do pouso – um jatobá gigantesco –
aquentavam fogo, a petiscar baforadas grossas dos cigarrões de palha, ouvidos atentos ao narrador.
A cangalhada, vermelha à luz da fogueira e rebuçada em ligais, amontoava-se em forma de toca ao pé da árvore, resguardando o carregamento, e, na necessidade, dado o mau tempo, todo o pessoal. Uma neblina leve e hibernal, esgarçada e refeita aos raios mortos da lua, embuçava ao fundo a campina, onde cincerros de tropa badalavam intermitentes.
E, sob aquele céu frio e austral de maio, estiolava-se ressequida a vegetação tenra e rasteira dos campos goianos.
O arrieiro, mestiço traquejado e serviçal, na sua voz grossa e arrastada de cuiabano, arrematava o final dum conto de lobisome.
O silêncio – pesado – restabelecera-se debaixo da impressão sinistra daquela narrativa; e o Aleixo – um caburé truculento amigo da boa pinga e freqüentemente mudando de patrão pelo seu gênio teimoso e arreliado, – puxando para si o cuité fumegante de congonha e chupitando uma golada, começou então assim:
– Naquele tempo viajava eu escoteiro, no meu jaguané de fama, por estas estradas da minha terra; isso, noitão cerrado e vésperas da Paixão. Manhãzinha, Deus servido, devia bater em Santa Rita pra negócio de precisão e a lua só pela madrugada despontaria. Marchava apressado, tendo a cortar todo um estirão de oito léguas bem puxadas para alcançar o arraial.
Vai senão, ali nas alturas do Bugre, ouço passos cadenciados à minha frente. Olhei, o lugar era ensombrado, o caminho muito estreito e solapado não tinha desvio; e, como lhes dizia, não havia luar. Assim na sombra, assemelhou-se-me a dois homens baixos, conduzindo qualquer cousa, a modo de trouxa, num varão.
“– Naturalmente soldados em diligência para Santa Leopoldina –, calculei. Num claro de mato, achegando o animal, vi perfeitamente: eram dois negros acurvados, num andar ora lento, ora apressado, que levavam ao ombro uma rede de defunto. Cravei as esporas no meu bicho pra ganhar a dianteira – que eu não arreceio um cabra de maus fígados, mas tenho uma ojeriza dos diabos a tudo que me cheira defunto; e isso, desde aquela estopada onde o Policarpo viu que um jacaré não sai à toa da bainha e que eu, apesar de simples camarada, não guardo desfeita para depois. O bicho fiel certamente estranhou as rosetas, tanto que meteu num trote bruto de pôr tripas pela boca afora do peão mais desabusado. Os pretos excomungados, sacolejando a rede, começaram a trotar lá adiante.
“– Olá – gritei. – Param vocês aí com o defunto e abram-me passagem. – Os carregadores nem pio, antes continuaram, arremedando, a correr duro, vergados sob o varão, cabisbaixos e macambúzios. Achei esquisito. Joguei o jaguané a galope: galoparam também, ganhando distância, a desaparecer no sombreado espesso das árvores. Qual, isso é ainda efeito da beijoca que dei ali atrás ao frasco de cachaça, ia pensando. Noutro claro, porém, lá tornei a enxergar os dois pretos condutores, arqueados e silenciosos debaixo da carga maldita. Iam depressa, tanto como o meu punga. O carreiro apertava, aprofundando-se; não tinha por onde atalhar. Demais, um travo de zanga subia-me à garganta.
“– Eu lhes amostrarei, canalhas; estão caçoando comigo, seus bêbados, pois esperam aí. –
Varei o meu bicho nas chilenas e ele disparou à toda, que o terreno era um seu tico movediço, mas o animal, apesar de cansado, era de fiança.”
– E pegou-os? – Qual o quê, seu Zé; os demônios abriram numa carreira de curupira, a fazer mais estrépito que o casco do meu bicho! Assim andamos bom pedaço, o carreiro mais estreito e solapado, o arvoredo mais fechado e carrancudo, o sítio mais escuro. Afinal, não ganhava nem perdia, e o pingo a resfolegar já bambo. Sofreei a marcha. Os pretos, bufando alto debaixo da carga, regularam logo a sua andadura pela minha. Pus o sendeiro a passo: eles, do mesmo modo, pausados, em cadência, recomeçaram o movimento primitivo, a passo, desocupados.
Decididamente esquisito, mesmo muito esquisito. Parei o pingo. Os pretos, imitando, pararam.
Fiquei ali imóvel longo tempo, os olhos neles grudados, sem tino, enquanto que o minguante principiava a tingir de açafrão a copa folhuda das árvores, e lentamente ia abaixando a sua luz amarelada sobre o carreiro. Acoroçoado, reencetei a marcha; eles fizeram o mesmo, e assim continuamos por mais de hora, eu calado, apertando nos dedos o cabo encerado do jacaré, eles arcados, pausados, o fardo ao ombro, em cadência de soldados. De supetão – desfiava eu o creio-em-deus-padre de trás para diante mais uma vez – o carreiro desembocou num campo largo, coalhado de luar. A lua deu de chapa nos dous carregadores. Adivinham, se podem, o que vi então, todo apalermado, assombrado mesmo.
– O cuca – aventurou tímido um.
– Qual! Uma vaca.
E perante o assombro descomedido daquelas feições rústicas e encardidas de sol, o Aleixo arrematou com pachorra:
– Pois isso mesmo, os dois pretos arcados, eram seus quartos escuros e a rede de defunto, a barriga malhada. Como o carreiro era fundo e apertado, ela não tivera por onde torcer; o escuro, a solidão daqueles lugares e – pra tudo dizer – o medo, fizeram o resto.
A companhia respirava aliviada.
O plenilúnio acinzentado e friorento de inverno, envolto em brumas, lá do céu triste e carregado, insuflava vida e animação às personagens fantasmagóricas daquelas histórias primitivas.
Cincerros badalavam intermitentes e sonoros na campina ao fundo, onde a neblina hibernal do sertão, esgarçada e refeita aos raios mortos da lua, abafava o horizonte.
Fumegando, a chocolateira fuliginosa e aromatizada de congonha passou de mão em mão, transbordando os cuités.
A fogueira – em brasa – tremeluzia.
Um outro tomou a palavra.
Janeiro – 1912 O poldro picaço A Cláudio S. Ganns As vaquejadas estavam a terminar. No curral da fazenda apressava-se a ferra duma última partida de bezerrotes trazidos da Boca da Mata, gado espantadiço e artificioso, que tanta atrapalhação dera aos campeiros para reunir e trazer arrebanhado à porteira. De envolta, vieram também daquelas bandas uns poldros cardões, sangue azougado, crescidos às soltas por ali mesmo, em furados de papuã e jaraguá, à lei da natureza.
Como a neta do patrão se encantasse da estampa escorreita dum pingo picaço, estrelo de testa e olho em brasa – que só fizera até então fitar orelhas e coçar-se aos varais do cercado ao mínimo rumor estranho – patrão interpelou-me:
– Ó Antônio, olha que a Guiomar se engraçou do picaço; vamos ver se mo pões manso como um sendeiro velho, para o silhão da menina.
– O patrão mandando, hoje mesmo tiro as tretas do bicho.
– É o que quero ver.
Eu era nesse tempo o peão mais afiançado da fazenda. Nas redondezas destes Guaiais – e o meu companheiro fez um gesto largo, abarcando céu e terras com a mão – não havia quem fosse mais maneiro de juntas e seguro nos arreios, que este seu criado. Não é por querer gabar, mas no lombo dum malcriado, estribos bem justos, o que prometia, fazia mesmo!
Ainda duma feita, quando o patrão andava ajuntando nas invernadas umas tropas que fomos depois vender ao Mato Grosso, muita gente pasmou para as tropelias puxadas à sustância que fui cometendo com quanto burro brabo e redomão aparecia nos lotes.
– Criação da Boca da Mata tem fama, não é caçoada – avisou um vaqueiro velho experimentado. – Se não fizer finca-pé nos loros e pressão dos joelhos, está por terra, tão certo como esse sol que nos alumia.
– Não meta medo ao rapaz, tio Pedro – chacoteou outro peão do sítio, o Mateus; e riu, sustentado na galhofa por um cabra arribadiço, bela peitaça, que também trazia fama de montador, segundo ouvira dizer, lá dos sertões donde viera.
– Êh, gente! – defendeu alguém. – Tanto foguetório e pabulagem para aquele picaço; o Antônio é cabra matreiro, aposto o meu ponche-pala contra a tua franqueira, Mateus, como em menos duma hora o poldro é matungo de longa serventia.
Não conversei. Amofinava minhas prosápias de montador aquela pacholice da camaradagem. Levantei-me da roda em que estava, no puxado dos bezerros; passei a perna por cima da cerca e endireitei para o paiol de milho, onde tinha os arreios. O dia começava a esfriar, a sombra das gameleiras alongava no terreiro.
Logo no princípio, deu pancas o animal para deitar-lhe em riba os baixeiros da cutuca.
Com uma laçada mestra, amarrei-o à argola do moirão; mesmo assim, preciso foi uma faixa escura na vista, peia de pernas e torniquete nas orelhas, bem torcido pelo cabra da peitaça, para que conseguisse apertar a barrigueira e abotoar freio de barbicacho sobre o pêlo virgem do danado.
Ele ia aceitando os arreios desconfiado, a fugir de corpo, sonegando, tremelicante a beiçama, a mostrar uma dentuça mui alva de dous anos e meio, contido nos jarretes e a mão de ferro de todo o pessoal interessado naquele feito.
Quando ia a trepar, chilenas bem arrochadas no calcanhar e perneiras com guarda-peito para livrar das garrancheiras e espinhedo por onde o acaso levasse, senti, vez primeira no arriscado ofício, um estremeção desagradável pelo fio das costas e o coração bacorejando. Não duvidei, porém, em afastar o pessoal, afrouxar os atilhos, bambear a laçada.
Ao momento que o picaço hesitava ainda ante a súbita claridade que se fizera, botei-me acima da cutuca.
Ah, meu patrão! Só tive tempo de gritar:
– Abram a porteira!
O endemoninhado recuava sobre os cascos, refugando, encolhendo a lombeira, como que a experimentar, admirado, o estorvo que trazia por cima. Súbito arremeteu. Nem tempo tiveram de tirar os últimos paus. Passou por cima da porteira num salto breve, nervoso, ganhou o campo aberto, e espalhou.
Que bicho, meu menino! Sete vezes fui ao céu e sete desci às profundas dos infernos!
Mas agüentei firme. Cabriolou aos pinotes, no estradão; andou de banda, por instantes, arreliado, procurando morder; atirou dous pares de couces para o ar, e como se fosse só então principiar, disparou noutro arremesso.
Engolimos num trago aquele chão.
No valado das divisas, a distância era respeitada; e ele, sem detença, precipitou-se num arrancão. Cuidei ficar daquela feita no fundo do barranco, estive mesmo, vai não vai, por abandonar as estribeiras. Ganhamos o outro lado. Atravessamos num relance o sarobal que lá havia e ensaiei, atendo-me ao governo, encaminhá-lo para o pontilhão e voltar ao terreiro, onde todo o mundo andava atarantado.
Mais por inclinação própria, que obedecendo às rédeas, ele desembestou por ali e veio num fechar d'olhos, aos pulos e aos trancos, jogando de popa, esbarrar ao pé das cercas, pinoteando.
Não lhe conto nada, meu patrão, o certo é que não sei por que artes e manhas do tinhoso, quando supunha já ser ocasião de sujigá-lo nas esporas e tacadas de rabo-de-tatu aplicadas a preceito, o malvado, num solavanco, empinando sobre as patas traseiras, acachapou-se no terreiro, sacudindo-me com violência do lombo.
Agüentaria firme ainda, não fora a traição da barrigueira e sobrechincha, que arrebentaram no esforço...
A sela fugiu sob os joelhos, perdi a firmeza e pareceu-me que mergulhava de ponta numas raízes da gameleira que assombreava o terreno.
Quando dei acordo, estava estirado no banco da varanda, sobre o joelho da menina, que me banhava a cabeça num lenço ensopado, todo besuntado da sangueira que me saía duma brecha funda do cocuruto, esta mesma cicatriz que aí vê...
(Tirou fora o chapelão de feltro, d'abas largas, acampado à banda pela presilha dum botão, desengonçou-se no arção do selim, e, afastando o cabelo corredio, apontou.)
O sangue estancado, ela atou-me o lenço à ferida, embebeu-o de bálsamo e esteve muito tempo a olhar, compadecida...
Mais tarde, quando quis restituir aquele pedacinho rendado de batista – que trazia um G
arabescado tão perfeito, bordadura de seus dedos, recusou.
Trago-o aqui desde então, sobre o peito, bem dobradinho, como um breve.
Amofinado, abandonei aquele ofício de peão, trocando-o por este de condutor, mais pacífico e sossegado, como me convinha. Também, desde o acontecido, senti-me mal, umas tonturas, turvação na vista, sei lá... O certo é que, sarado, nunca mais tornei à fazenda.
Uma vez, viajando, quis queimar essa prenda. Estive muito tempo a olhar, meneando, indeciso, mas não tive coragem. Que fazer, cousas do coração...
E como visse, na encosta da várzea por onde trilhávamos agora, uns coqueiros de indaiá em cujas palmas salmodiavam, àquela hora do entardecer, as inhumas do sertão, improvisou alto, alheado:
Passo'-preto cantador Que canta no buriti, Vai dizer ao meu amor Que de pesares parti...
A noite ia avolumando do fundo das baixadas. O crescente transmontava, muito branco, alagando os escampados de sua grande luz merencória.
– E o poldro picaço?
– No dia seguinte, tentou também o cabra da peitaça quebrar-lhe as tretas, não obstante a proibição da patroa, que não queria ver mais sangueiras em casa; foi mais caipora, na força do tombo ficou com o braço na tipóia, partido em dois lugares. O Mateus desistiu por sua vez da experiência. Também o bicho, atido preso, desandou de emagrecer, rejeitando a ração.
Toparam-no uma daquelas manhãs arrebentado no curral, onde lhe andavam a curar com salmoura a esporeação do vazio.
– A patroazinha...
– Essa, creio, andou uns tempos entristecida com o sucedido; casou, segundo ouvi, há cousa de ano e meio, com um moço da vizinhança.
(Acendeu o cigarro, desengonçou-se de novo no selim, e até o pouso próximo não lhe arranquei mais uma única palavra.)
1914 Ninho de periquitos ABRANDANDO a canícula pelo virar da tarde, Domingos abandonou a rede de embira onde se entretinha arranhando uns respontos na viola, após farta cuia de jacuba de farinha de milho e rapadura que bebera em silêncio, às largas colheradas, e saiu ao terreiro, onde demorou a afiar numa pedra piçarra o corte da foice.
Era pelo domingo, vésperas quase da colheita. O milharal estendia-se além, na baixada das velhas terras devolutas, amarelecido já pela quebra, que realizara dias antes, e o veranico, que andava duro na quinzena.
Enquanto amolava o ferro, no propósito de ir picar uns galhos de coivara no fundo do plantio para o fogo da cozinha, o Janjão rondava em torno, rebolando na terra, olho aguçado para o trabalho paterno: não se esquecesse, o papá, dos filhotes de periquitos, que ficavam lá no fundo do grotão, entre as macegas espinhosas de malícia, num cupim velho do pé da mariapreta. Não esquecesse...
O roceiro andou lá pelos fundos da roça, a colher uns pepinos temporões; foi ao paiol de palha d'arroz, mais uma vez avaliando com a vista se possuía capacidade precisa para a rica colheita do ano; e, tendo ajuntado os gravetos e uns cernes da coivara, amarrava o feixe e ia já a recolher caminho de casa, quando se lembrou do pedido do pequeno. Ora, deixassem lá em paz os passarinhos.
Mas aquele dia assentava o Janjão a sua primeira dezena tristonha de anos; e pois, não valia por tão pouco amuá-lo.
O caipira pousou a braçada de lenha encostada à cerca do roçado; passou a perna por cima, e pulando do outro lado, as alpercatas de couro cru a pisar forte o espinharal ressequido que estralejava, entranhou-se pelo grotão – nesses dias sem pinga d'água – galgou a barroca fronteira e endireitou rumo da maria-preta, que abria ao mormaço crepuscular da tarde a galharada esguia, toda tostada desde a época da queima pelas lufadas de fogo que subiam da malhada.
Ali mesmo, na bifurcação do tronco, assentada sobre a forquilha da árvore, à altura do peito, escancarava a boca negra para o nascente a casa abandonada dos cupins, onde um casal de periquitos fizera ninho essa estação.
O lavrador alçou com cautela a destra calosa, rebuscando lá por dentro os dois borrachos.
Mas tirou-a num repente, surpreendido. É que uma picadela incisiva, dolorosa, rasgara-lhe por dois pontos, vivamente, a palma da mão.
E, enquanto olhava admirado, uma cabeça disforme, oblonga, encimada a testa duma cruz, aparecia à aberta do cupinzeiro, fitando-lhe, persistentes, os olhinhos redondos, onde uma chispa má luzia, malignamente...
O matuto sentiu uma frialdade mortuária percorrendo-o ao longo da espinha.
Era uma urutu, a terrível urutu do sertão, para a qual a mezinha doméstica nem a dos campos possuíam salvação.
Perdido... completamente perdido...
O reptil, mostrando a língua bífida, chispando as pupilas em cólera, a fitá-lo ameaçador, preparava-se para novo ataque ao importuno que viera arrancá-lo da sesta; e o caboclo, voltando a si do estupor, num gesto instintivo, sacou da bainha o largo jacaré inseparável, amputando-lhe a cabeça dum golpe certeiro.
Então, sem vacilar, num movimento ainda mais brusco, apoiando a mão molesta à casca carunchosa da árvore, decepou-a noutro golpe, cerce quase à juntura do pulso.
E enrolando o punho mutilado na camisola de algodão, que foi rasgando entre dentes, saiu do cerrado, calcando duro, sobranceiro e altivo, rumo de casa, como um deus selvagem e triunfante apontando da mata companheira, mas assassina, mas perfidamente traiçoeira...
1915 O saci Por aquele tempo o saci andava desesperado. Tinham-lhe surrupiado a cabaça de mandinga. O
moleque, extremamente irritado, vagueava pelos fundões de Goiás.
Pai Zé, saindo um dia à cata dumas raízes de mandioca castela que sinhá-dona lhe pedira, topou com ele nos grotões da roça.
O preto, abandonando a enxada e de queixo caído, olhava pasmado o negrinho que lhe fazia caretas e trejeitos, a saltar no seu único pé, e fungando terrivelmente.
– Vancê quer alguma coisa? – perguntou pai Zé admirado, vendo agora o moleque rodopiar como o pião do ioiô.
– Olha negro – respondeu o saci, – vancê gosta de sá Quirina, aquela mulata de sustância;
pois eu lhe dou a mandinga com que ela há de ficar enrabichada, se vancê me arranja a cabaça que perdi.
Pai Zé, louco de contentamento, prometeu. A cabaça, ele sabia-o, fora amoitada pelo Benedito Galego, um caboclo sacudido que, cansado das malandrices do moleque, a tinha roubado das grimpas do jatobá grande, lá nas roças do ribeirão.
Pai Zé fora um dos que o tinham aconselhado, para obstar que o saci, como era o seu costume quando incomodado, tornasse a levantar as árvores da derrubada que o Benedito fizera nessas terras.
Arrastando as alpercatas de couro cru pelas terras de sô feitor, pai Zé capengava satisfeito e inchado com a promessa do saci.
Desde Santo Antônio que ele rondava sá Quirina, procurando sempre ocasião de lhe mostrar que, apesar dos seus sessenta e cinco anos e meio, um olho de menos e falta de dente na boca, não era negro para se desprezar assim por um canto, não – que sustância ainda ele tinha no peito para agüentar com a mulata e mais a trouxa de sá Quitéria, sua mulher, se ele tinha!
Mas a cafuza era dura da gente convencer. Toda a eloqüência que ele penosamente engendrara em seu bestunto de africano e que lhe tinha despejado pela festa de São Pedro, não teve outro resultado senão a fuga da roxa quando o encontrava.
– Mas agora – gaguejava o preto – eu lhe amostro, que o saci é mesmo bicho bom pra deitar um feitiço.
Com a rica dádiva dum quartilho de cachaça e meia mão do seu fumo pixuá, pai Zé alcançou do Galego a cabaça desejada.
Sá Quitéria, porém, não via com bons olhos o afã de seu velho pela posse da milonga. E
ela também sabia deitar e tirar quebranto, se sabia! Perguntassem à bruxa da nhá Benta, que desde vésperas de Reis estava entrevada na trempe do jirau; e não era o zarolho e cambaio do seu homem que a enganasse.
Por isso, a velha ciumenta estava de tocaia, desejosa por saber do seu intento. Lá ia pai Zé, arrastando novamente as alpercatas de couro cru pelas terras de sô feitor, à entrevista do saci. Atrás dele, sorrateira, lá ia também sá Quitéria.
O negro chegou aos grotões e chamou pelo saci, que de pronto apareceu.
– Toma lá a sua cabaça de mandinga, seu saci, e dá-me cá o feitiço pra sá Quirina.
O moleque desbarretou-se, tirou uma pitada grossa da cumbuca, fungou, e, entregando o resto a pai Zé, disse:
– Dá-lhe a cheirar esta pitada, que a crioula é sua escrava.
E desapareceu, fungando, pulando no seu único pé, nos grotões e covoadas da roça.
– Ah, negro velho dos infernos, que conheci a tua tramóia – gritou sá Quitéria furiosa, saindo do bamburral e segurando-o pelo papo.
E, na luta do casal, lá se foi o feitiço que o pobre pai Zé adquirira com o sacrifício dum quartilho de cachaça e a meia mão do seu bom fumo pixuá.
Desde então, nunca mais houve paz no casal, que se devorava às pancadas; e pai Zé arrenegava sem descanso o maldito que introduzira a discórdia no seu rancho.
– Porque, Ioiô– concluiu o preto velho que me contava esta história – a todo aquele que viu e falou com o saci, acontece sempre uma desgraça. Goiás – 1910 Peru de roda Bela estampa de homem, o coronel Pedrinho! Alto, desempenado, a pele corada e rebrunhida pelos sóis do sertão, fazia gosto vê-lo quando apontava à tardinha no pouso, onde a tropa arranchara, e, estribado na sua grande mula ruana, passava revista à burrada, em fila ao longo do parapeito, o cabrestame em cruz sobre a testeira aberta, e mui vivaz e solerte à voz do patrão, interpelando Joaquim Percevejo – o arrieiro.
Sempre num terno de brim milagrosamente escapo à poeira das estradas, as botas de verniz mui lustrosas sob a prata dos esporins, um lenço de seda negra cingindo em fofo pela aliança de ouro o pescoço desafogado, mão firmada na ponteira do chicote que se apoiava à albardana acolchoada da sela bela-vistense – era mesmo uma bizarria quando o seu perfil moreno atravessava ao largo das fazendas, donde o pessoal se postava das janelas e currais observando pouco antes a passagem da tropa, ou rompia árdega a mula pela praça do povoado, à descarga do último lote na rancharia dos tropeiros.
Figura única aquela, como única a andadura da ruana, de postura e qualidades tão bem gabadas e discutidas como as vantagens pessoais de seu dono.
Também, já ia o moço tropeiro beiradeando pelos trinta e quatro, e desde rapazote batia as estradas comerciais do velho Goiás, a princípio sob as ordens de seu defunto padrasto, o coronel Gominhos de quem herdara a tropa e o título, depois por gosto próprio, fugindo à vida marasmática e aperrengada do vilório natal, com todas as suas intrigalhadas e ódios inevitáveis de facção política.
De Pirenópolis a Araguari, em Minas, de passagem por Corumbá, Antas, Bela Vista e mais vilarejos do interior, transportando do sertão dos Pireneus couros e fumo, trazendo das praças mineiras as variadas manufaturas, ninguém como ele mais estimado e procurado para um ajuste de frete, dada a segurança da sua tropa – a mais garbosa e luzidia naquelas alturas – e o zelo sempre alerta que punha no resguardo da carga, quer fossem caixotes com o dístico –
cuidado!... – indicando o conteúdo perigoso da dinamite, quer fosse o letreiro encarnado – frágil – sobre a tampa de pinho dos aparelhos delicados de louçaria e vidro. E, quando em mãos dos destinatários, não havia então reclamações por vias de uma peça partida, ou fazenda desbotada pela chuva na caminhada dificultosa.
O seu prestígio corria parelha com a fama de honradez e sobranceria de caráter em que era tido naquelas funduras.
Já Joaquim Percevejo, o arrieiro, era um tipo bem diverso do patrão. Com uma longa faca de arrastro sustida ao correão da cinta pela espera de sola grossa, a barbaça grisalhona, espalhada em leque sobre as cordoveias do papo túrgido e rubro de peru de roda, afunilada e acabando em bico na boca do estômago, as pernas mui curtas e em arco pelo hábito da montaria, era um homem cuja eterna sisudez impunha sempre um respeito desconfiado aos camaradas. E, mui embora lhe viessem sentindo dia a dia a morrinha impertinente de seu gênio testudo e ateimado de idéias, em contraste à franca jovialidade do patrão, não ousavam contudo murmurar dos ralhos do arrieiro, quando via as suas ordens mal cumpridas ou relaxadas pelos seus na labuta cotidiana.
Assim, antes que a madrugada fosse amiudando, sobre a verde louçania dos serrotes apurpureassem os primeiros listrões da aurora, já na trempe do rancho, sob o buriti do olhod'água, se pousavam ao relento, chiava o caldeirão do cozinheiro, preparando o café e a rapaziada toda fazia roda, pronta a bater o encosto da vargem, ao campeio habitual da mulada.
Pois toda a satisfação do arrieiro consistia em ver o patrão, assim saído da barraca, com o seu floreado cuitezinho da bebida estimulante à espera, e os lotes completos, em fila nas estacas, babujando já a quirera da ração matutina.
Era de vê-lo então apurando o ouvido, inchando o peito, numa empáfia de mal contido orgulho, à saudação costumeira: –Ah! sim, que vocês por aqui me madrugaram hoje, hein?!
– Na forma de sempre, patrão!
E bradava logo, comandativo, ao dianteiro, a raspar ainda a sua rapadura no fundo da caneca:
–Êh! Jerome! Toca pra diante, rapaz! Que o sol já 'stá pr'aí botando o seu carão de fora!
O outro não se fazia rogado. Descido o primeiro fardo da pilha, dava-lhe o boleio de uso, metia os dedos às alças, levantava-o à altura da cabeça, e, sob um peso de cinco ou seis arrobas de sola, estalava a mão ao fundo, na regra do costume, descia suavemente ao ombro; e, upa, upa, amiudando um passinho de mulo carregado que tivera a sua medida, vinha encostá-lo à capota do cargueiro, onde um camarada dava a demão, enfiando as alças no cabeçote e escorava a cangalha, enquanto ele corria a pegar outro fardo, restabelecendo do lado oposto o equilíbrio.
Vinham os dobros desfazendo as demasias; e, passado o ligal, arrochado e preso o cambito da sobrecarga, o dianteiro desatava o cabresto, enfiava-o à argola da cabresteira, e dando um muxoxo ao ouvido da madrinha, esta tomava prestes a saída do trilho, apanhava o balanço rítmico da marcha, e lá ia arfando estrada afora, na matinada bimbalhante dos guizos e cincerros.
E o segundo burro, aprestado e solto, àquela toada costumeira que se alongava e ia distanciando do outro lado do córrego, saía logo a passo amiudado, impaciente por morder o primeiro na retranca, mal dando tento do peso morto de dez arrobas e mais que trazia sobre o lombo. E após esse, um a um os demais iam saindo na poeirada do antecedente, desaparecido no cotovelo do atalho. E quando o último sumia além, no gorgulho da rampa, já o segundo lote acangalhado e alerta nas estacas recebia os surrões, nos primeiros aprestos da partida.
Do lado de dentro do rancho, cotovelos fincados sobre o parapeito, Joaquim Percevejo assistia diariamente à saída da tropa. Era um garbo ver como as cores dos lotes se sucediam por escalão, o primeiro de crioulos alentados, o pêlo rebrilhando sobre a fartura luzidia das ancas; o segundo alvejante e albino, na mesma abundância de carnes roliças, para dar lugar aos rosados, castanhos-escuros e pêlos-de-rato dos terceiro, quarto e quinto lotes, ainda mui arteiros e indiferentes sob o arrocho dos carregamentos...
Já o cozinheiro albardara o seu ruço desferrado, e numa andadura indolente saíra ao alcance do dianteiro, que levava como dobro a capoeira de seu trem de cozinha. E quando era a vez do culatreiro, ainda os machos queimados de seu lote – o refugo da tropada – fariam inveja a muita fieira de tropa que briquitava naquelas estradas!
Então o arrieiro ajeitava a chilena ao pé esquerdo, aparelhava a ruana do patrão, presa à cancela do rancho, e ia apertar a cilha à sua mula mascarada, que naquela manha de animal velho e sabido, inchava a barriga, eriçava-lhe os redomoinhos, para menos sentir os efeitos do arrocho.
O coronel deixava-o pouco adiante, para um dedo de prosa com os conhecidos das fazendas que se iam avistando a pouco e pouco à direita, à esquerda, da estrada. E ele torava para a frente, no trote picado da montaria, chupando o cigarrão, devorando rapidamente as distâncias, no rastro ainda fresco da tropa, cuja ferradura ia amoldando a argila barrenta da chapada, estrada afora.
E quando galgava a eminência de um descampado, onde eram o araticum-do-campo, o pequizeiro, a fruteira-de-lobo e os coqueiros de macaúba que para cá dos listrões de mato se descortinavam esparsos no sapé bravio, a sua vista perdia-se ao longe, nas ondulações do terreno, abrangendo a récua distante do dianteiro, contornando um serrote; mais aquém, no fundo da vargem, o segundo, que galgava a encosta; o terceiro e o quarto ainda ocultos no travessão de mato, lá embaixo, donde não tardaria em pouco aquele a desembocar; o quinto acobertando-se nas árvores, e os cincerros da guieira do culatreiro a chocalhar-lhe os ouvidos ali adiante, numa nuvem de poeira, de que recebia as últimas lufadas.
Na estiagem magnífica da manhã, o sol aquentando e vibrando todo o sertão numa auréola gloriosa de luzes, zumbidos e chilreios – trilos de insetos nas touceiras orvalhadas e chirriadas adormentadoras de cigarras, plumagens multicores de pássaros no verde retinto da folhagem e arrulhos cantantes de água corrente – Joaquim Percevejo empinava o busto e ficava olhando muito tempo, esquecido, para baixo, donde vinha, por vezes, o reverberamento do sol, dando de chapa no latão de uma bacia, emborcada sobre um cargueiro do segundo lote.
Ao longe, os peões bracejavam e sacudiam a taca, achegados à retranca dos lotes; e nos volteios do caminho, as suas cabeças amarradas em lenço de alcobaça – as pontas sarapintadas voltadas para trás – passavam como asas de borboletas, adejando num vôo indolente rasteiras ao solo, uma azul, outra amarela, outra encarnada, por sobre o verde-pálido indefinível da campina.
Faiscavam às vezes, num movimento involuntário do pescoço, os metais das cabeçadas de prata;
subia a toada contínua dos guizos e cincerros; e, a perder de vista, a terra estuava e desdobravase uniforme, na mesma e epitalâmica pujança de arruídos e de vida.
Joaquim Percevejo ficava olhando, olhando, estribado sobre os loros; e, vendo-se a sós, não podia que não soltasse o brado de entusiasmo que lhe transbordava do papo túrgido de peru de roda:
– Eta tropa danada!...
E aquela exclamativa era a expressão sentimental de toda uma existência subitamente revelada.
Espicaçada por súbita esporada, a mula descia em dois corcovos bruscos a rampa, crepitando, fazendo às árvores e cupins que deixava para trás, em postura de monge ermitão, uma carantonha obscena com o rabo erguido.
Pegado o culatreiro, já a sua fisionomia readquirira a sisudez apática de costume. O
vozeirão grosso, descansado, de quem sabe dar o devido peso às palavras, interpelava:
– Êh! Sô Quim, como vai seguindo isto por aqui?
– O Passarinho tá danado de veiaco hoje; essoutro dia tanto coçou nos pau que deitou a carga no atoladô. Agora só qué memo cortá vorta no mato. Tá danado!
– Chega-lhe a taca, home; que isso é falta de carga no lombo. Amanhã, bota-lhe em riba mais um dobro da dianteira e o rosário de ferraduras. Vamos ver se ainda treta depois pelo caminho...
Não lhe dava o xará em respeito à hierarquia. Tinham chegado ao córrego, no âmago do travessão. Os burros enfurnavam-se pela garganta do ribeiro acima, entre o arvoredo das margens, recusando cada qual beber a água suja do que o precedera; e os que ficavam para trás, saciados, experimentando um súbito abaixamento de temperatura, abriam as pernas, selavam o ventre, e rabo ao ar dejetavam na corrente, naquela satisfação refestelada de irracionais.
Os dois tinham parado à beira do córrego. Picando uma rodela de fumo, continuavam a conversa encetada. A mula do arrieiro, mais filósofa, matava ali mesmo a sede, num chiado agudo de água passando entre os ferros do freio, até que o primeiro mijado, a descer em bolhas na torrente, lhe despertasse os melindres.
– A modo que a manha de Passarinho é da cangaia nova. Mecê deve ter assuntado que desde os Olivero o bicho não toma jeito.
– Qual cangaia, qual carapuça! Encosta o relho e toca pra diante que é treta antiga!
– Êh! êh! Pachola! Ventania!... Diacho de bicho brabo!
O relho estalou e a burrada foi cortando pelo mato adentro, rompendo a marmelada-decachorro, vindo de novo ganhar a estrada cá em cima, na rampa.
Joaquim Percevejo correra a espora por sobre a anca da besta, já lá ia adiante, nas pegadas do segundo lote. Ia tudo sem novidade. E quando, passado um quarto d'hora, alcançara o terceiro, encontrou-o encalacrado numa volta do capoeirão, os burros socados no cerrado e o tocador a arrumar a carga da dianteira – que não tomava jeito e ia arrecuando e pisando o espinhaço do animal a cada nova subida do caminho.
– Toma tento na Tetéia, Izequiel; olha um calço na capota dessa cangaia.
O outro não respondeu. Vendo um cargueiro adiante raspando terra e fazendo menção de deitar, já lhe correra ao encalço, sacudindo-lhe a taca ao traseiro, bradando:
– Completo! Diacho de preguiçoso!... Joaquim Percevejo, vendo-o naquela entaladura, apeara, concertava o cargueiro abandonado. E como tinha a mão pronta, dera logo jeito aos dobros, passara de novo o ligal, e arrochava a sobrecarga, mordendo os beiços e metendo o pé à barriga do burro.
Ao longe, no atalho da serra, passava um cavaleiro, alvejando, o cão de fila à cola, lambendo a poeira da estrada com o seu palmo de língua. E Joaquim Percevejo apertou a andadura da besta e foi torando mais depressa para alcançar o patrão na encruzilhada da serra.
E o ofício era aquele, assim, duro, na regra de pobre, como dizia o arrieiro.
*
* *
Aquela tarde a tropa arranchara nas Estacas. Volta e meia Percevejo procurou o culatreiro. Impressionara-o a contradita que tinham tido, na marcha do dia, a respeito do Passarinho. Topou-o mudando a baeta verde da cangalha do animal, distintivo dos arreios daquele lote, pela encarnada de um burro do dianteiro.
Em pouco esquentava a discussão.
– É como lhe digo, rapaz. O Passarinho quer mas é barrigueira acochada acima do branco das costelas e mais uns dobros por riba. Bicho novo, amilhado como vai, treteiro de marca, pede carga de sustância. – Não devia relaxar. Juntasse aos dobros o amarrado de ferraduras.
O outro fez-lhe ver os suadouros da cangalha, que surrara a cacete. Duas grandes pisaduras, asas agoureiras de borboleta, maculavam o acolchoado na altura da cruz.
Nem isto o demoveu. Empirraçado já, recusou-se mesmo a ir verificar nas estacas, o lombo do animal, e palpar-lhe o sentido.
Como seu Quim continuasse recalcitrante na destroca dos arreios, bufou regurgitado:
– Tu 'stás aí, ainda me cheiras a ovo, menino! – Nunca se lhe fizera alguém intrometidiço no ofício, nem mesmo no tempo do defunto compadre Gominhos. Fizesse o que ordenara, senão...
– Tá bão! tá bão!
O Quim encolheu-se logo humilde. Como todo moço tropeiro, tinha um respeito bemeducado pela barbaça grisalha do outro. Mas o patrão gritava da barraca pelo arrieiro.
Ali na intimidade das paredes de lona, chamou-o à ordem. Não o contrariara à vista dos outros, a fim de evitar o seu desprestígio entre a camaradagem. Mas não tinha andado direito.
Assim como queria, o burro ficava inutilizado. O Passarinho carecia era de cangalha bem assentada, mais larga. Aquela ia-lhe mal; o culatreiro conhecia bem o seu lote, deixasse-o à vontade.
Joaquim Percevejo espetou os dedos no barbalhão hirsuto; ajuntou o pêlo todo num puxão, amarfanhou tudo, fechou-o dentro da boca. Mastigou nervosamente, cuspiu a barba em leque e pediu a sua conta.
O coronel Pedrinho, já impacientado, abriu as canastras, somou as cifras, passou-lhe o papel.
O arrieiro era bem analfabeto; sabia porém, com extraordinária memória, tintim por tintim, quanto devia ao justo – três contos, seiscentos e oitenta mil-réis. O elevado da importância era o insofismável penhor da estima e confiança em que era tido. No sertão, camarada relapso não acresce dívida.
Arreou a sua mula, dispensou a janta, avisou que estaria de volta ainda naquela noite. Ia entender-se com o seu Ivo, mal-encarado coronel, afazendado nessas alturas. Conforme combinassem, talvez se desquitava aquele dia mesmo.
– Vai comendo brasa – disse o cozinheiro vendo-o chegar ao mesmo tempo relho e espora ao animal.
– Não é p'ra menos – retorquiu Izequiel; – qu'estúrdia, um pito no arrieiro!
E temperado o pinho, repisou uma quadrinha predileta de Percevejo: Quatro cousas neste mundo Arrenega um bom cristão:
Uma casa goteirenta, Um cavalo bem choutão, Uma muié rabugenta Mais um menino chorão...
E não achou ali ao pé o arrieiro para dar, triunfante, a resposta na letra:
Mas agora venho a crer Que pra tudo Deus dá jeito;
O cavalo se barganha, A casa a gente reteia, Do guri se tira a manha, Na muié se mete a peia!
O coronel Ivo era um famanaz temido nas redondezas. Braço direito dos chefões estaduais, ferrador de burros e antigo tropeiro como o maioral deles, quando ia à cidade, os babaquaras da terra interrompiam a palestra e safavam-se pelos cantos, ao assomar na esquina o seu vulto apessoado de anta brava.
(Não sorriam os leitores; é histórico e atual. E é até possível que quem escreve estas linhas fizesse o mesmo... Qualquer dia vê-lo-emos deputado federal pelo Estado.)
Também, as suas façanhas contavam-se pelos anos de vida; e, entre as menores, registrava-se o castramento por suas mãos de um pobre pancada em Goiabeiras, o estoiro de outro – de quem suspeitara meter-se-lhe a engraçado com a mulher, em Curralinho, à força de infusões de malagueta e salmoura deitadas goelas abaixo, por intermédio de um funil...
Naquela sua fazenda nos arredores das Estacas, quarenta agregados e acostados enchiamlhe as casas, pelo menos. O sítio era um arsenal, centro das marombas politiqueiras do município. Camarada que para ali fugisse, se era da gente da oposição, tinha coito e segura garantia.
O coronel Pedrinho era neutro. Caráter altivo e reto porém, ofendia as fumaças do mandachuva com o seu todo independente e sobranceiro.
Tinha-lhe o outro este ódio secreto e instintivo de todas as criaturas inferiores e autoritárias para com os que não possuíssem um mesmo espírito de rebanho.
Gozoso, aproveitou a oportunidade para uma das suas pirraças. Sabia Percevejo visceralmente honesto. Engambelou portanto o pobre homem, comprometendo-se a solver a dívida no dia seguinte.
Pois sim, pois sim; o Zeca Menino, seu capataz, era uma cabeça avoada. Malquistara-o com o administrador do porto de Mão de Pau, um velho correligionário, na passagem das últimas boiadas que por conta própria mandara às feiras de Minas. Demais, um perdido de mulheres... Estava precisando mesmo de um homem de confiança como Percevejo.
Este voltou inchado ao pouso da tropa. Fez os seus arranjos, e ao levantar do sol tornava de novo para a fazenda.
O patrão mandou soltar a tropa no encosto, e esperou-o o dia todo na rede, puxando as espiras azuis de seu goiano. Doera-lhe despedir o arrieiro. Também, não admitia controvérsias.
Como todo chefe sertanejo, era fundamentalmente autoritário. Mas até aí, felizmente, nunca tivera azo de manifestar a sua energia. Percevejo trazia a tropa num brinco, e ali estava desde os velhos tempos do padrasto Gominhos. Estimava-o. Não transigiria, porém.
O crepúsculo veio com a monotonia dos grilos e sapos nas varjotas. Tons róseos, eslaivados, erraram, passaram fugidios sobre as franças das últimas cristas da Dourada, além. A
noite entrou fechada, sem transição, e derramou-se no céu a prata das estrelas.
Arrastaram-se as violas no pouso até às dez. Depois tudo fez silêncio e o arranchamento dormiu embalado à distância pelo polaco das madrinhas de lote.
O coronel Pedrinho esperava encontrar Percevejo pela manhã, ao sair da barraca. Não contava, porém, com a lábia do fazendeiro. Servido o almoço, atrelada a tropa, acangalhada e alerta nos aprestos de saída, e Percevejo não aparecia com o dinheiro.
Pelo beirar das onze o céu embruscou-se, soprou um vento quente, grossos pingos começaram a cair, prenunciando chuvarada.
Não se conteve mais, mandou enfrear a ruana. O rebenque metido no cano da bota, foi à boca do mato, abriu o viva-Goiás, ali tirou uma comprida e consistente embira de timbó. Fez uma rodilha, amarrou-a na garupa e enfiava o pé no estribo, quando o dianteiro correu do interior, bradando:
– Olhe, patrão, olhe que esqueceu o revólver mais a cartucheira!
– Não é preciso, levo ainda o meu canivete.
Lá na fazenda, Percevejo conversava, sobre os calcanhares, num canto do curral. O
coronel havia-lhe dito:
– Sabe que mais? Não está nos meus hábitos pagar contas a desafetos. Dou-lhe a minha proteção, é suficiente. Ninguém o tirará daqui. Deixe-se por aí ficar, não há de ser o seu patrão que mande chover por outra forma.
E sorria pachorrento, nas suas enxúndias de homenzarrão, afagando os queixais de prognata, a olhar significativamente os rapazes em torno.
Foi quando o Pedrinho estancou a mula na cerca. Viu Percevejo acocorado no meio da roda, riscando o chão molhado com a roseta de sua enorme franqueira. Toda aquela gente ali reunida era um cabide de armas. E ao local chegava mais um grupo, o cano das clavinas aparecendo de sob as fraldas das carochas de indaiá.
Nem pestanejou.
– Percevejo, a tropa está há quatro horas de saída, e não quero saber de mais tardança.
Avia essa conta ou volta para o pouso. Não posso falhar mais este dia!
– Hum! hum! Já aqui estou, por aqui me vou deixando... A conta será quando seu Ivo quiser...
O moço tropeiro não trepidou.
Bateu violentamente a cancela, entrou montado no terreiro, saltou da sela; e, a corda na mão, caminhou direito sobre Percevejo.
Nem um único olhar lançara ao fazendeiro. Pegou o arrieiro pela barba, atou-a num ápice, em nó-de-porco, à embira; prendeu a ponta desta ao rabo da mula e achou-se montado de novo.
O coronel encarava-o aparvalhado, os olhos ramelentos, rindo constrangido. Nem um gesto sequer. E ninguém se movera naquele rápido segundo. Olhavam, estarrecidos.
Viram-no ferrar esporas, a besta arrancar num trote largo. E, ao primeiro puxão, Percevejo se pusera também a trotar atrás, desesperadamente. Sumiram-se na quebra do cerrado.
E nenhum tiro se ouviu.
Paralisara-os a todos tamanha audácia!
E foi assim, empastado de suor, lama e aguaceiro, deitando os bofes pela boca, roxo de vergonha, que Percevejo fez a sua entrada nas Estacas.
Cortou-lhe a corda o patrão. E num gesto enérgico despediu-o:
– Vai-te, perrengue! Um homem que se deixa amarrar pela barba, não é homem, não é homem! Vai-te, não me deves mais nada!
E não se ouviu mais ali palavra a respeito.
Mas à noite, ponteando na viola, satirizou num repente o cozinheiro:
Quatro cousas neste mundo Arrenega o arrieiro:
A manha do Passarinho, A teima do culatreiro, Uma conta a liquidar E costas de fazendeiro...
Izequiel saltou como um boneco de mola, noutro improviso: Mas agora venho a crer Que pra tudo Deus dá jeito:
Lá no mato tem timbó Que se tira sem o lenho, Que se passa no gogó À maneira de sedenho!
No dia seguinte, aproveitando a estiagem da manhã, a tropa toda arribou das Estacas e desfilou unida ao longo das tranqueiras do Ivo, sob as vistas de Jerome, elevado à categoria de arrieiro.
Os guizos carrilhonavam em conjunto no bulício matutino. Os peões, à passagem, faziam estalar indolentemente a lonca de seus compridos piraís. Mas iam todos precavidos e traziam à bandoleira os rifles de estimação.
Quanto a Percevejo, convenceu-se tanto o pobre-diabo do que lhe dissera o patrão, que derrubou a grenha e passou daí em diante a usar a barba raspada à navalha. Gente da gleba A Guimarães Natal APERTANDO a sobrechincha encarnada por sobre os pelegos da sua boa sela mineira, o Benedito dos Dourados enfreou a mula rosilha e espalmando satisfeito a mão no lombilho dos arreios, voltou ao paiol da fazenda, onde a camaradagem se entretinha ferrada no truque.
– Morro abaixo, morro arriba, urrando como guariba, truco no meio, barriga de coeio –
berrava o Malaquias, um negralhão espadaúdo, primeiro braço de foice e machado em derrubadas e demais eitos da roça.
– Estou de forma! com quinze quilos e quinhentas gramas! – retrucou Joaquim da Tapera, um cafuzinho pernóstico de gaforinha e barba rala, agregado do sítio.
– Êh lá, que eu também tenho parte do boi, os quatro quartos, a cabeça e o fato! –
pilheriou o cabra entrando e indo abeirar-se do lume.
– Já de partida, seu Dito? – perguntou um adventício assentado numas retrancas de cangalhas e batendo fogo no isqueiro; olha que, mesmo assim, só estará em Santo Antônio lá pelas tantas do dia, com um solzão à mostra; a rosilha é estradeira, não resta dúvida, e amilhada como vai puxa bem légua e meia; mas a Estiva está que é uma lazeira, atoleiro pra riba do peitoral; um trabalhão, a passagem...
– Qual o quê! Seu Zeca passou lá ontem à boquinha da noite, sem lua, com o mato já escuro; não soube reparar no desvio que conheço. Chuva deste mês já não faz lamedo, e a mula, além de ferrada, arresta que fia fino pr'essas estradas...
– Bicho como aquele tive um, quando traquejava na linha de Cuiabá; macho rosado de fiança! Levou-o um arrieiro por seiscentos bagarotes, notas novinhas em folha, e uma franqueira aparelhada de prata de quebra; e assunta que, mesmo assim, não ficaria contente da barganha, não fora o defeito do macho em meter-se a passarinheiro nos últimos tempos. Bicho bom! como aquele bem poucos...
O cabra espicaçava com a unha uma rodela de fumo pixuá que tirara dum embornal da parede; assentado sobre os calcanhares, escutava descuidado a pacholice do correio. Retirou detrás da orelha a mortalha do cigarro, enrolou-o cuidadosamente e puxando com um graveto a brasa da fogueira, acendeu-o, baforando dous tragos longos de fumaça.
– A lua vai descambando, quero ainda amanhecer no arraial a tempo de pegar a missa do Divino; até amanhã, para toda a companhia.
E saiu fora, arrastando as chilenas.
– Não esqueça a minha cabaça de pólvora para as salvas de roqueira no Chico Fogueteiro – avisou o Malaquias interrompendo a partida.
– E o garrafão de licor com a comadre Maruca – disse João Vaqueiro.
– Esse não esqueço eu, sem o que corre chocha a função – caçoou o cabra desamarrando a besta no moirão do cercado; arre! está um frio das carepas!
– Veja lá um golo de pinga pra esquentar – obsequiou de dentro alguém.
– Vá feito.
Abeirou já montado do batente, estendeu para o interior o braço, tomando o cuité que lhe ofereciam. Bebericou uma golada e passando o dorso da mão pelo bigode fino, elogiou:
– Bicha braba!
– Truco tapera, quem não ama não espera! – gritava o Malaquias, que descobrindo com precaução o naipe seboso de suas cartas, levantara-se num repente até a cumeeira de sapé, ferrando uma patada no ligal que servia de mesa, a fazer dançar os tentos e bois da parceirada.
– Crioulo de sorte – observou o adventício.
O Benedito já virara rédeas, batendo lá longe a cancela do curral e ganhando o estradão.
A lua ia a transmontar, muito branca, como uma garça-real nas águas azuladas da lagoa.
Os campos desdobravam-se por devesas e baixadas, em ondulações suaves e alguns sulcos fundos, onde negrejavam restingas de mato e os renques de buriti que orlam o curso dos córregos das vargens. Emperolava-se a orvalhada no grelo viçoso do catingueiro roxo dos serrotes e a gadaria ruminava ao luar, à sombra tranqüila das fruteiras-de-lobo e pequizeiros da chapada.
A mula cortava a estrada na marcha batida; o cabra, desengonçado no arção, ia a chupitar fumaçadas, algumas vezes entremeadas duma quadra esquecida:
Menina, amarra o cabelo, Bota um lenço no pescoço, Pra livrar dalgum quebranto, Mau-olhado dalgum moço.
Caburés e noitibós estridulavam a sua elegia noturna à beira dos capões; um curiangu que encontrara a fingir uma ponta negra de cerne emergindo do solo, acompanhava-o agora no seu vôo rasteiro e balofo, indo postar-se adiante, para recomeçar à aproximação da montaria, estrada afora.
As divisas do Quilombo desapareciam ao longe, envoltas em neblina e luar; a mula resfolegava, abeirando a passo miúdo da Estiva; um galo tresnoitado arreliou numa palhoça, além, no fundo da baixada.
O Benedito repisou a melopéia:
Pra livrar dalgum quebranto, Mau-olhado dalgum moço.
Aí, nesse mesmo estirão, viajando, alta noite, um luar tão claro como aquele, por pouco que se deixara ficar, assombrado.
Era pelo começo de seus amores com a Chica do povoado. A labuta ia dura na fazenda.
Ajuntavam boiadas para a venda do ano. Nessas vaquejadas, mal tivera tempo de dar, no decorrer duma quinzena inteirinha, um só pulo a Santo Antônio para deitar seu olho enamorado à cabocla.
Assim, para que não o dissessem mofino e mulherengo, quando vinha a tardinha, após o jantar, enquanto a camaradagem, amodorrada, espichava-se pelas redes e mantas, ele aparelhava o macho queimado – velho sim, mas ainda marchador – e à socapa, juntando esporas, ganhava a porteira e dentro em pouco lá ia, plena andadura, chapadão em fora, rumo do povoado e do cochicholo da Chica, donde arribava madrugada alta, para, no dia seguinte, levantar-se com o sol, ao traquejo costumeiro.
– Raparigas...
Bom tempo aquele! E nunca, campeasse em plainos de malhadas ou fossem cerradões garranchentos, faltara à sustância, mostrando corpo mole, mesmo quando fosse para dar uma rodada bem feita num garraio espantadiço ou rês matreira enfurnada nas brenhas, que pedisse quem lhe corresse nas pegadas à desentoca.
O Malaquias, que lhe sabia das escapadelas, ao vê-lo noutro dia como sempre, laço à garupa, forte e desempenado, ao alto do seu pampa campeador, botava a mão no queixo, coçava o picumã da barba falha e metido lá naquelas espáduas largas de preto nagoa que eram a admiração do pessoal, rosronava d'olho avelhacado:
– Home, como sô Dito, só ele mesmo! Eta gente, quem havera de dizer. Qual! parece mais obra do capeta!
Pois meu povo, pr'essas pelintragens, se a fraqueza lhe dava às vezes à canela, não era de raspar-se com a estrela boieira para o povoado e lá, metido a noite toda em vira-vira de cateretês e sapateios à viola com a Chica, – toda dengosa e faceira em suas chinelinhas arrebitadas de marroquim, – ao outro dia agüentar escorreito com o seu posto no campeio. E mesmo – que nesses bailaricos surgiam dessas – topar pela frente um dunga qualquer de quatro costados, vezeiro em tretas, arrotando valentias e pabulagens, o jeito de querer sonegar-se com a morena.
Não! que nesse caso fechava mesmo o tempo, acostava-se jururu à rapariga e fazia trabalhar o ferro, costurando o mais intrometido; e isso, quando a queimada vinha já a ponto de pedir que se tirassem as teimas ao valentão.
Uma cruz, simplesmente uma cruz, o motivo de todas as suas dúvidas e hesitações ao momento de pôr o pé no estribo e ganhar a estrada batida.
O caso é que era um fraco da meninice. Pequenote – puxava então guia de carro na fazenda à falta doutro préstimo – vindo duma festança em Santo Antônio, estourara ali perto o Zé Caolho, cantador daquelas bandas, dumas sopitações do coração, falta d'ar, segundo diziam uns, empanzinado de cachaça, afirmavam outros. O certo é que o velhote, quando no codório, metia-lhe medo com aquelas compridas unhas de pássaro agoureiro e as histórias infindáveis de sacis-pererês assobiando ao lusco-fusco no olho do pau, gemidos de menino pagão no cemitério, pragas de rola fogo-apagou no alto dos telheiros e cousas mais, que asseverava à noite aos pequenos, enquanto a cachorrada saía a ganir à lua no terreiro.
Desde então, passasse aí na Estiva, um mal-estar danado cerrava-lhe o peito; e era quase aos choros, geladinho de terror, juntando-se muito aos que com ele iam, que atravessava a ribeira. Com a idade, apontando o buço, fora-se a maior parte da perrenguice; contudo, talvez pelo costume adquirido, uma sensação incômoda molestava-o sempre naquele travessão de mato, onde a cruz do violeiro avultava dentre o mata-pasto e samambaias da beirada, toda roída de velhice e caruncho.
Três anos havia, vindo do arraial, sob o xadrez da camisa uma prenda querida da Chica e nos lábios escaldados a impressão gostosa de sua primeira boquinha – a cabeça zanzando, tonta de paixão – topara com boa naquele trato de terra.
Passava alheado, não se lembrando dessa vez da promessa que lhe fizera o cantador duma feita, por vias dumas peraltices, de vir puxá-lo pelas pernas à meia-noite, quando morresse; eis, um grito rouco, d'alma penada, chega-lhe com o vento aos ouvidos.
O macho entesourara orelhas, estacando na estrada. Ele caíra do céu das recordações e olhava em torno. Lá estava ela, a cruz do troveiro, em meio o seu montículo de pedras, braços abertos, no aceiro do mato; e o luar tão lindo, que tomava agora uns tons lívidos ao entranhar-se nas primeiras árvores da Estiva, donde aquele clamor parecia subir, tão fundo, tão angustioso, que só de lembrá-lo agora os pêlos se lhe arrepiavam na cara.
Fosse noutra ocasião e torceria rédeas, esperando pelo amanhecer. Mas essa noite, com a impressão ainda fresca do beijo da Chica, impressão nova que lhe infundia ao ânimo uma ardideza capaz de enfrentar com o Cuca em pessoa, pareceu ao cabra que andava mal em dar assim de costas ao perigo.
Fosse lá a morena vê-lo como se portava naquele aperto...
Apeou, já que o animal empacava de vez. Negaceando, com cautela, avançou sorrateiro, palpando o terreno em torno. Era agora um desfiar intermitente de ladainhas, como se andasse alguém encomendando almas a Satanás, ou houvesse ali uma tropilha de feiticeiros apanhados em tramóia.
Junto ao córrego, estralejante, um fogaréu luziluzia entre os cipoais, alumiando ao fundo, vagamente, um amontoado de vultos esquisitos, que a vista turva não distinguia bem, uns aqui direitos como guardas, outros ali de cócoras, sob uma coberta; no meio espaço, lívido, sinistro, estirado no chão duro, um rosto magro olhava o céu, as formas do corpo sobressaindo angulosas da mortalha, restos talvez de quem sucumbira escanifrado de fome, ou houvessem os vampiros e demônios chupado o sangue em seu festim imundo...
Ele detivera-se a olhar tudo aquilo, transido, mão na coronha da garrucha, como que grudado ao ingazeiro onde encostou para não cair. Uma cabeça branqueada surgia agora da terra, ao pé do morto; mastigava as ladainhas, um ferro a retinir no fundo da cova.
Não havia duvidar – era assombração.
Crac, crac, aperrava a arma; e, reagindo contra o medo, berrou:
– Lá vai obra!
Descarregara ambos os canos. Ao estampido, cessou a cantoria. Uma voz que nada tinha de sobre-humana, voz um tanto travada pela comoção, queixou do fundo do buraco: – Olha que me mata, moço! Anda a gente a cumprir com seu dever de cristão e saem-lhe em cima aos tiros! Já se viu só! Santa Maria!...
– Ora, é o velho Cristino!
– Ele mesmo, moço! Uai, como se não bastasse uma só desgraça num dia.
E o velho carreiro, arrancando-se do fundo da escavação, veio até ele, tremendo.
Tudo ficou claro. A tropilha de bruxos encapotada ao fundo, era o carro do velho, o respectivo toldo de couro malhado, os fueiros e as cangas e cambões enfeixados ao lado. O
defunto do lençol e para o qual olhava ainda com desconfiança, um filho do Cristino, que também ganhava a vida carreando nessas estradas. Apanhara umas febres no Veríssimo e vinha por toda a viagem tiritando no fundo do carretão. Morrera esse dia e o pai, entre lágrimas, orando ao Santíssimo, estava ali cuidando da sepultura, quando o surpreenderam os tiraços do passageiro.
– Ahn! isso é outra conversa. Pois me parecia... Mas não era para menos! Vote, a gente topa cada uma...
E como tinha boa alma, ajudou-o a enterrar o rapaz e passou ali ao pé do fogo o resto da noite, embrulhado no pala, bebericando café, que o velho veio aprontar, e procurando consolá-lo e entretê-lo com o seu proseado fácil de mestiço imaginoso.
– Êh, gente – ia agora a matutar. – Sertão, escola do mundo.
E com as barras que vinham quebrando, misterioso, soturno e imenso, esse mesmo sertão desaparecia ao longe, no nevoeiro da manhã, todo prenhe de assombros e aparições...
II
A madrugada amiudava. Já as barras vinham quebrando e no cabeço dum serro, mui branca e tremeluzente, a estrela-d'alva minguara o seu clarão lacrimejante, anunciando o romper do dia.
Rédeas encurtadas, a niquelaria da cabeçada retinindo festivamente, Benedito deu entrada no arraial no trote picado da mula, que frechou direita ao rancho dos tropeiros.
Pelo largo, no vassouredo rasteiro onde trilhos se entrecruzavam em teia, adensava o lençol matutino da neblina, abafando o horizonte. E o mulherio do lugar, embiocado em xales, esgueirava-se ao longo dos casebres, arrastando pela mão a filharada, semitonta de sono e entanguida de frio sob as dobras da saia materna, que lá ia em camisola, o chinelinho de couro na ponta do pé, trec, trec, trec, rumo da igreja, onde o sino se pusera a badalar a intervalos, enforcado no trapézio de aroeira ao ângulo esquerdo da sacristia.
Pelos currais mugia o gado, ladravam cães, o galo amiudava o canto álacre e as vacas leiteiras, passando a beiçama rósea por baixo dos paus de porteira, farejavam avidamente a cria presa, soltando após doloroso e prolongado bramido.
O rapaz desenfreou, prestes, a mula no rancho dos tropeiros; desapertada a cilha, dependurou os arreios num caibro baixo do teto, enfiou à Pelintra o embornal de milho que trouxera à garupeira e, fechada a cancela, saiu então apressado, no retintim das esporas, em direção à capelinha.
De lá vinha o clarão tristonho dos círios, a alumiar ao fundo, soturnamente, a paramentação dos altares de pobreza vilareja, e imagens toscas, esculpidas a maior parte por ali mesmo, que o poviléu contemplava em silenciosa e profunda veneração, amontoado pelos cantos, sobre o pavimento úmido de terra batida.
Pelo teto desforrado, em surtos trôpegos, alguns morcegos erravam às tontas, apegandose ao caruncho das traves e de lá, inquietos e atordoados de luzes e o burburinho desusado, quedavam-se a observar os intrusos, agitando as suas cabeçorras de ratos. E andava em torno, de mistura com o arder de ceras e rolos de incenso, o cheiro enjoativo da excrementação daquelas “aves” noturnas, junto ao bafio peculiar dos templos do interior muito tempo fechados. A campainha retiniu mais uma vez. Nos coqueiros de guariroba que ladeavam o calvário do adro, chalrava agora um bando de pássaros-pretos, tatalando as asas, arrepiados, saltitando de palma em palma. E ia fora a garoa matinal esgarçando-se e acentuando os contornos do casario, que principiava a debuxar-se dentre o caio alvacento das fachadas, que o sol não tardaria em pouco a branquear de vez com a sua grande luz cáustica de manhã sertaneja.
– Ite missa est – perorava afinal o celebrante, um padre redentorista vindo expressamente da vila próxima.
Mais uma vez, repenicou o sino na sua forquilha de aroeira, naquela mesma toada cavernosa de bronze gretado. Um foguete subiu ao céu, estourando no meio da praça. Aos atropelos, os pequenos do adro precipitaram-se a ver quem apanharia a cana.
Estava findo o ofício.
Ele levantou-se lesto do canto à entrada, onde se tinha ajoelhado e perquiria em torno.
Sim, lá estava ela, por sinal que um tanto macambúzia e entregue toda ao terço do rosário, naquele seu vestidinho de chita azul bem liso e justo ao corpo, fruto capitoso que o sol sertanejo amadurara e enrubescera despercebido ali, naquele fundão da boa terra goiana, para o gozo e a secreta ventura de seus olhos...
Não o vira, absorta na devoção. Também não insistiu em olhar muito para aquele lado, mesmo porque uma velhota se pusera a vigiá-lo com o seu único olho de coruja rabugenta, escandalizada, talvez, de não o ter visto ainda corresponder a preceito com as pancadas de contrição que a assistência rumava ao peito.
Ganhou o adro; atravessando rapidamente a praça em bulício; e veio esperá-la à esquina dum beco tortuoso, que ia ter, após voltas e reviravoltas, à fonte pública do lugar, uma cacimba afogada em estendais de são-caetano e fedegoso-bravo, onde a água minguava a maior parte do ano.
Ao fundo, num alto que apanhava a linda vista do povoado, a casinhola de Chica abria as duas janelas ao longe, mui brancacenta em suas paredes barradas a fresco de cal, a entrada baixa ao lado, por onde tantas vezes passara feliz, na certeza antecipada de logo ter aos braços, ofegante e rendida, aquela dengosa morena que fora o encanto de suas primeiras emoções de homem e a quem queria com a violência e o ardor que os daquele sangue põem em suas mínimas paixões.
Aí vinha ela já, um tanto arisca e sorridente – reconhecera-o de longe – ensaiando o seu passo requebrado, feito todo de denguices de felino e arqueios de pomba-rola, que o trazia enrabichado havia três anos.
– Não quis faltar à devoção, hein, sô Dito; medo do purgatório não é brincadeira... – E ria, mostrando os dentinhos claros, de roedor, na face cor de mate.
– Qual o quê, sá Chica; purgatório é este mundo, onde tanta alma de Deus vive a penar;
oratório, tenho-o sim, mas aqui dentro, no coração, para rezar por certa ingrata que sei...
Suspirara fundo, brincando com a trança da açoiteira, que ia enrolando e desenrolando em espiral pelo cabo niquelado, num enleio que nem o hábito, nem o tempo tinha conseguido ainda dissipar.
E seguiram pelo pedregulho da viela, que os cercados de taquara dos quintais confinavam, ela adiante, ele um pouco atrás, a mão tisnada repuxando o fio do bigode, em derriço.
Um güegüé morrinhento saiu do fundo do quintalejo e veio escarreirado até a rampa por onde subiam, latindo furioso; reconheceu gente de casa, abanou a cauda farejando e foi anicharse entre cinzas, no palheiro, aos ganidos e mordidelas com os bernes da gafeira.
Uma boró apareceu no momento ao terreiro, a vassoura de piaçaba na mão, o bócio enorme avultando sob o queixo, e um riso atoleimado escorrendo da boca desdentada, donde duas compridas presas, sólidas e amareladas, surgiam, vincando o canto inferior do beiço.
– Ehú! ó Joana – acenou-lhe a mulata, bota a chaleira no fogo.
A idiota continuava a rir, acurvada; e os dous passaram, transpondo num salto, entrelaçados, a soleira. Na sala, presa das escápulas, roçagante, pendia a larga rede cuiabana, atravessando de lado a lado o pavimento de massapé. O resto da mobília espalhava-se em torno, meia dúzia de tamboretes de couro tauxiado ao pé da mesinha de costura, de cujo balaio transbordavam entremeios de crochê, um cabeção de crivo, alinhavos inacabados de corpete, junto ao castiçal de latão sobre um volume encadernado da história de Carlos Magno e dos pares de França. No canto oposto, uma banquinha com a sua almofada de bilros e a renda em começo sobre o papelão de alfinetes.
Ele espichou-se, deleitado, na rede; e Chica entrou no quarto contíguo, a dependurar o xale com que viera embrulhada.
Pôs-se então a fitar distraído as folhinhas que cobriam a parede, os recortes de jornais com retratos e figuras coladas de alto a baixo, estampas e cromos tirados de peças de morim, abrindo-se em leque no reboco nu; uma senhora Sant'Ana em moldura, duas séries intermináveis de fotografias do papa e grandes anúncios ilustrados do Rio, a forrar todo o espaço acima da mesa.
Eram-lhe familiares aquelas gravuras. Algumas fora ele até quem trouxera de Goiás, de quando lá ia levar os carregamentos de açúcar e café que o coronel mandava anualmente ao mercado. Tinha mesmo um vago prazer – misto de amizade e saudade antiga – em remirar um Santo Antônio já amarelinho, um dos primeiros ali grudados, o sorriso bonachão na cara desbotada, testemunha silenciosa de seus papagueados amorosos, e cúmplice da primeira beijoca que roubara à Chica, uma noite em que ela trazia um enorme monsenhor na rodilha do cabelo e tinha o riso mais úmido e sensual nos lábios polpudos e sangrentos...
Um cheiro forte, de banha fresca derretida, vinha lá de dentro; crepitavam os gravetos do fogão e a gordura na caçarola.
Benedito espreguiçou-se, bocejando:
– Ó benzinho!...
– Espera, homem, estou frigindo uns carajés.
Ela apareceu logo, um prato de bolos na bandeja, o bule fumegante à outra mão. Com denguice, fazendo cair do alto o café aromático, encheu-lhe a tigelinha bordada d'azul.
Ele passou-lhe o braço em redor da cintura, petiscando pelo pires uma golada.
– Me deixe, homem, ora já se viu só!...
– Cabocla faceira...
– Uai, gente, como está hoje mesmo... Parece até que é separação...
– Hoje não, todo o santo dia, coraçãozinho...
– Que enjôo!... Anda, toma o café, é melhor; olha um bolo, tem pimenta; este não, essoutro que já mordisquei.
Depusera a bandeja sobre um tamborete e sentara-se ao lado na rede, sorrindo, encarandoo fito, os olhos langues.
Ele deitou-lhe a cabeça ao colo, olhos cerrados, numa felicidade calma de velha posse; e ligeira, com meiguice, a mão da amante ia perpassando devagar por sobre os seus cabelos corredios, a catá-lo minuciosamente, às cócegas, como um cachorrinho de estimação.
A claridade solar entrava aos jorros pela porta aberta, acalentava-o pouco a pouco, preguiçosamente, num enervamento volutuoso de corpo e sentidos. Lento e lento, pesava-lhe o sono as pálpebras cansadas.
Pela volta das dez e meia, Chica acordou-o como pedira. Foi à loja do major, a cuidar das encomendas. Deu um giro pelo arraial, à cata do fogueteiro e conhecidos; veio por último esbarrar na venda da Maruca.
Àquela hora, em sua fatiota domingueira de riscado, a rapaziada bebericava ali aguardente, jogando o truque e o douradão.
O tempo estava mesmo quente, pois desde o lado de fora ouvira exclamações:
– Milho no muro, antes que fique escuro!
– Quebrou um lanço da cerca, eu vou dentro!
– Vim topar o portão da romaria!...
– Licença, licença, meu povo. – Ora, viva, o Ditinho dos Dourados! Pula pra cá, rapaz; entra na roda, que temos parceiro sacudido, gente! Cabra turuna pra esquentar uma partida!
– Pois então entra aqui no meu lugar – obsequiou Zé Velho – que tenho d'ir ainda campear o meu piquira; levou um sumiço desde trasanteontem.
– Se é um piquira cabano, estrelo de testa e ferrado das mãos, não se afoba, seu Zé, topeio ali atrás, numas barrocas de catingueiro, meia légua pra cá da Estiva. Estive mesmo quase a tocá-lo para o povoado; por sinal que trazia cincerro.
– Ele mesmo, muito obrigado; já lá vou atrás do malandro; agora não relaxo mais a peia.
E dizer que o cigano com quem o barganhei afiançou ser mesmo o bicho raçoeiro. Vá lá uma criatura de Deus fiar-se naqueles excomungados.
– Ciganos? Dizem até que têm parte com o Cão – advertiu Bentinho Baiano.
– Se têm! Mal esticam a canela, vão logo de cambulhada para as areias gordas...
– Para animal fujão conheço santo remédio – aconselhou um velhote d'olhos pretos e cabeça branca, que tinha uma gagueira na voz e os membros trêmulos. – É receita afamada dum benzedor das bandas do Tocantins. Um porrete! Fiz a simpatia com a minha égua baia e nunca mais saiu deste largo. Ponha mecê numa cuia uma mancheia de sal torrado bem moído, vai dando a salga ao animal por debaixo do sovaco, da porta da cozinha à da rua e da frente à porta do fundo, três vezes sem parar, passando e repassando por dentro da casa. Faça isso três dias seguidos e pode dormir depois descansado.
– Não duvido, compadre; mas, por via das dúvidas, sempre passo hoje a peia de sola curta no danado. Sá Maruca, bota pr'aí mais um cobre de pinga e meia quarta de fumo, que o que tenho na patrona não chega para o pito. Até à vista, minha gente, apanhando o rastro, piso logo na retranca do velhaco.
– E mecê vai olhando as encomendas, que a demora também é pouca – ajuntou Benedito.
– Trago aí debaixo dos coxonilhos um sapiquá, manda o pequeno buscá-lo lá no rancho, enquanto baralho cá uma corrida com esta rapaziada.
– Isto é que é falar às direitas – disse Bentinho Baiano, já entusiasmado.
– Quem é mão, pessoal?
– Agora é mecê – respondeu o velhote.
– Cuidado, minha gente – avisou alguém. – Temos aí cabra pra trucar sem zape nem catatau.
– Truco, tapera! Por que não me espera! – gritava já ao lado o primeiro parceiro.
Corrida a roda, Benedito retrucou, cortando-lhe a vaza. E um mulato apessoado, que fizera a segunda, estatelando a espadilha na mesa, desafiou todo ancho.
– Estudante de medicina, vou em Roma volto em mina, consulta seu companheiro e vê se vocês combina!
– Truco vai, milho vem, mosquito na corda desce bem!
– Assim, menino! Jesus Caetano! Noss'Senhor, diabinho!
– Onze! Baralho na mão do bronze!
Junto ao balcão, onde voejavam moscas caseiras sobre coscoros, Maruca coçava a verruga do queixo, e metia com pachorra o garrafão de licor no fundo do piquá. Da outra banda do saco, colocara os embrulhos, que dependurou ao alcance, numa vara.
– Os temperos vão de lado, seu Dito; fica aí à vista no varão, para não esquecer quando sair.
– Não seja esta a dúvida, sá Maruca. Comigo é nove, êh! velhote treme-treme! Corto o sete-de-ouros com o curinga!
Levantara-se no bico das botas e abatendo-se com arreganho, vozeou:
– Êh! carta véia... Chincha de Medéia!
O outro volveu encafifado:
– Velhote... treme-treme... Cada qual sabe de sua vida, moço; não fosse arribadiço naquelas bandas, conhecessem há mais tempo quem fora o Generoso das Abóboras e a conversa mudava de rumo. Mundo, lição pra gente...
E depôs as cartas, resmungando. A partida esfriava. A companhia espreguiçava-se no saguão, em torno da mesa cambeta, sobre sacos de mamona, baforando cigarradas, desbonecando as mortalhas de palha, que a lâmina dos quicés ia a grosar, ringindo ásperas, e cuspilhando a miúdo, às placas estraladas, o pavimento de terra úmida com a gosma dos gorgomilos. Amiudavam-se os copitos duma cachaça amarelinha e rascante – das boas – que a vendeira trazia reservada para os fregueses mais chegados. E como entrasse o pequeno com o tabuleiro de café, o velhusco repetiu ainda uma vez, um tanto agastado, sorvendo pelo pires o conteúdo da xícara:
– Velhote?… treme-treme?… – Passasse aquela gente o quarto d’hora que tinha experimentado e o caso mudava de feição.
– Ora, sai daí! Que homem mofino! Deixa de zanga, seu Generoso, que o Dito é assim mesmo; é do jogo. Venha antes a história, se há; o mais, conversa fiada.
Pois não, pois não; mas assuntassem que nem sempre aquela tremura de pernas lhe atrasara a vida, nem tampouco tivera a língua perra nalgum aperto que pr’este mundo de Cristo a gente topa…
O caso acontecera pouco antes da campanha de Canudos, onde a jagunçada dera pancas ao antigo batalhão cá do Estado, segundo ouvira contar, e um seu mano obteve as divisas de furriel…
– Andava nesse tempo numa comissão de linha telegráfica, porta-mira de turma. Féria boa, é verdade, mas trabalho era ali! Isso, rumo do Araguaia, abrindo picada na mata virgem, esse mundão de mato grosso que principia em Jaraguá, beiradeia os rios Uru e das Almas, cai no Araguaia, ganha o Tocantins e vai acabar lá para as bandas do Pará.
Madrugadão, com um frio de bater queixo, o pessoal já estava de pé, teodolito e apetrechos ao ombro, rumo do serviço. Poucas léguas faltavam para alcançar o porto do Registro e ganhar a outra banda do rio. A turma armara o acampamento num aceiro largo, à beira dum ribeirão. Ali os borrachudos e miruins eram que nem castigo. Assim, moído como estava, não pudera pregar o olho boa tirada de tempo.
Os mosquitos – zim!… zim!… – outras vezes – zum!… zim!… – estas eram as muriçocas miúdas, azoinavam-lhe o ouvido, conquanto trouxesse a cara tapada sob o cobertor. Os pernilongos então, esses, nunca vira cousa assim; atravessavam com o ferrão a lã grossa do pala, a calça, a camisa e vinham aferretoar-lhe embaixo as carnes, com danação.
– Vote! Praga desse feitio, só mesmo naqueles fundões; mil vezes antes os carrapatinhos, que se encontram às bolotas nos travessões de mato, mas uma boa fumegação bota-os abaixo por dá cá aquela palha; e, mesmo, porque não resistem às primeiras chuvas do ano.
Mas, como estava a dizer, aquilo já passava de mangação, tinha as orelhas a arder, as horas iam correndo e manhãzinha lá o esperava o serviço costumeiro.
Puxou umas mantas dos arreios, onde dormia; e, na luz das estrelas, saiu às gatinhas da barraca, indo arranjar a sua cama bem longe do córrego, entre folhas secas, ao pé duma sucupira.
Ferrara no sono que nem camaleão no oco do pau. Com o virar da madrugada, começou a ter uns sonhos maus; ora era enterrado vivo, como sucedera na estranja a uma velha, ora uma porção de diabinhos se punha a batucar no seu peito, pesando, pesando, que… Acordou.
Abriu os olhos, mas esses, meio cerrados, pisca-piscando, tornaram a fechar-se com força.
Cruzes! Parecia até que era ainda em sonho! Descerrou de novo os luzios com cautela, o coração aos trancos, mal-assombrado.
Lembrava-se como se fora naquela hora. O dia acabava de clarear, cantava perto um curió no galho da sucupira.
Sobre o seu peito, enroscada, a cabeçorra ao centro, os olhinhos voltados para a sua cara e a língua em forquilha para fora, uma cascavel dormia sossegadamente, no calor brando do corpo.
Ficou gelado, sem movimento, a cabeça transtornada, a olhar apatetado a cobra. O tempo que assim passou, não sabia dizer; mas se há inferno nalguma parte, é curtir uma alma de Deus as amarguras daquele ruim quarto d'hora!
– Santo nome da Virgem, que martírio! Olham a tremura que reaparece...
– Eu sacudia de riba o bicharoco e pulava para o lado – comentou Bentinho Baiano vivamente interessado.
– Qual! e resolução? Pensar não é nada, fazer é que são elas!... Se acudisse um gesto, um expediente, estava salvo; mas, como lhes dizia, fiquei gelado, as juntas bambas, sem movimento, como cousa largada. Vivi naquele momento mais vida que a de mecês todos somada.
Afinal a cascavel, despertando, espichou a forquilha da língua, foi desenrolando aos poucos os anéis do corpo e saiu devagar pelo meio das folhas, farfalhando...
– No acampamento era tudo animação. Ultimavam-se os preparativos para o trabalho do dia. Cheguei tremelicando, as pernas vergadas, como atacado de maleitas. A voz embargada, relatei o fato ao chefe. Mas que é isso, Generoso, disse ele; olha aqui este espelho. Olhei. Tinha a cabeça branquinha!
– O que deve acontecer, tem força, acontece mesmo – ponderou Benedito à laia de consolo.
– Pinga pr'aí mais dous dedos, sá Maruca – pediu o narrador.
No largo, a luz meridiana rebrilhava na areia das estradas, faulhavam ao longe os detritos de mica e uma evaporação quente, pulverulenta, como que parecia subir da terra rescaldada.
Alguns já se erguiam, despedindo-se dos parceiros; e, como era domingo e dia santo, a vendeira aprestava-se a fechar as portas do negócio.
III
Deixando atrás a longa trilha paralela do ferro das rodas, rolava um carro encosta abaixo, ao passo vagaroso da parelha de bois, o eixo lamuriando à distância ao atrito dos munhões, vindo das plantações do outro lado da baixada.
Ensangüentada, a tarde baixara o seu clarão crepuscular sobre a mata, ao longe, a cuja entrada dois jequitibás se alteavam, erectos e sobranceiros àquele mar de frondes, donde a sombra parecia avolumar por graduações, redourada e tênue ainda nas últimas cumeadas, dum azul sombrio e carregado sob as últimas ramagens, riscadas aqui, ali, dos primeiros pirilampos.
Aumentara a gritaria dos meninos no terreiro da fazenda. Uns, ao canto, jogavam o bete;
escarranchados os demais na gangorra, cujo peão fazia eco ao rechinar distante do carro, que descia aos solavancos os brocotós do carreiro.
A camaradagem, acocorada ao longo dos puxados, comprimidos os pés em chinelões de caititu e botas de veado catingueiro, chupava pachorrentamente cigarradas, manejando o Malaquias uma alavanca no meio do terreiro, a cavar o lugar onde em pouco se aprumaria a bandeira do Divino.
João Vaqueiro alinhou as roqueiras em direção à estrada; e, como um moleque o acompanhasse curioso, ordenou áspero:
– Anda a ver uma cuia de farinha, ó pamonha, e mais a pólvora que sobrou da festa passada. Êh, pessoal, vamos cá esperar nhô Dito com uma salva de sustância!
– Olha que a Pelintra é reparadeira – avisou o nagoa. – O rapaz, se vier distraído, pode comer terra na força do estrondo.
– Quem, aquele? Tá, tá, tá, vai para outro lado com essa cantiga; ainda meninote, não havia poldro nestas redondezas ao qual não lhe desse na veneta tirar as tretas. Nhô Dito, esse, conheço-o melhor que as veredas deste sítio: peão de fiança!
E, enquanto proseava, punha a carga à roqueira; sobrecarregou-a com um punhado de farinha grossa de mandioca e duas pancadas secas da culatra no chão serviram de soquete.
– Lá vem ele, lá vem! – bradou um molecote empoleirado no moirão da cancela. O vaqueano escorvou o ouvido à peça e correu a apanhar um tição no fogo que fizera entre as pedras da gameleira; mas alguém atalhava:
– Rebate falso, é a obrigação de sô Quim.
De fato, o agregado, naquele pedrês caolho, barganha infeliz duma lazarina nova, chegara à frente da sua obrigação, a Gertrudes, três meninas rechonchudas e bisonhas, e um par de pequenotes atarracados, d'olho esbugalhado e triste, a barriga a impar sob a correia da cinta –
sinal característico de meninada molenga, afeita a roer torrões de barro às escondidas, pelos cantos da palhoça.
A mãe vinha adiante toda sestrosa, empurrando a filharada para a frente, o bócio avultado sob o carão empalamado, pito à boca, um lenço d'alcobaça atado à cabeça, as pontas reviradas para trás e os chinelões de marroquim amarrados numa trouxinha sob o braço, para calçar à hora da reza.
– Uma salva pra seu Quim e a comadre Gertrudes, minha gente – propôs Malaquias. E
sem mais, descarregou o trabuco de que se armara.
Joaquim da Tapera voltou-se então, ufaneiro, na cutuca velha; aprumou o clavinote que trouxera a tiracolo para um galho de gameleira, pipocando estrondoso tiraço.
– Desapeia, desapeia, compadre, e chega pra cá, que seu Dito não deve tardar. Vamos todos arrebentar a pipocada tão logo apareça lá na vargem a rosilha.
O caipira afrouxou a barrigueira do pedrês, sacudiu de riba a sela, e as caçambas de pau entrechocando-se uma na outra, foi guardá-la ao paiol.
Na saleta da casa-grande acendiam-se agora as velas em torno da bandeira. Nhá Lica, a filha do patrão, já lhe pregara aos bicos os bambolins azuis e andava borboleteando em torno do altar improvisado, a enfeitá-lo com florinhas de papel de seda rosa. A Divina Pomba, mui mansa e serena, asas espalmadas, abria o seu vôo místico inclinada no fundo branco do andor, sobre uma toalha engomada de linho, ladeada por dous jarrões, que embalsamavam o aposento com a fragrância ativa dos resedás.
Cessara há muito a grita dos meninos no curral. O carro, aos avisos – êh! Barroso, êh!
Relógio! – entrara lá fora no abrigo dos tropeiros. Desajoujados da canga, os bois foram soltos no mangueiro e o guia, um latagão destorcido, sobrinho de João Vaqueiro, que se tinha deixado ficar ainda aquele dia no canavial, veio enxaguar a poeira do rosto e as mãos à bica do monjolo, reunindo-se depois à rapaziada.
O lusco-fusco já se fazia cerrado nos arredores. Ia no céu, atrás da copa distante dos jequitibás, o brilho trêmulo de papa-ceia.
Súbito, no fundo da estrada, junto à nascente que os buritizais assombreavam, adensou uma nuvem de pó, que cresceu rapidamente, na marcha de mais em mais apressurada da mula rosilha.
– Agora é ele, agora é ele! – berrou o pequeno lá do poleiro da cerca.
João Vaqueiro encostou a brasa ao rastilho da peça. Ao estampido, a besta refugava, atravessando em dous trancos a cancela escancarada e veio célere bufando alto, esbarrar ao pé dos foliões, contida nas rédeas pela mão segura do cavaleiro. Este, garrucha em punho, aperrados os gatilhos, virara-se no arção, mirando a caveira de boi-espácio que alvejava na forquilha do cercado.
Joaquim da Tapera fez ainda fogo com o clavinote. Então o recém-vindo desfechou de vez os dois canos, saudando a companhia.
Lá na forquilha da cerca saltaram lascas das chanfras do espácio.
Vitoriava-o uma aclamação geral. Apeado, as pernas meio trôpegas da caminhada, dirigiu-se para a casa-grande, onde o coronel relia àquela hora, sob a luz baça do lampião de queresone, um número atrasado da Folha de Goiás, recostado pachorrentamente na sua rede de embira.
– Bênção.
O fazendeiro tirou as cangalhas que pusera para ler, chupou uma última fumaça à ponta sarrosa do cigarro e fez um gesto vago.
– Deus o abençoe. Não me manda nada o major? – Trago aqui na patrona as cartas do correio e um maço de jornais. O major manda dizer que rompeu com o partido, à vista das últimas eleições; o resto vem aí relatado na carta.
Entregou os objetos e foi avançando para o interior, as botas esturradas de mormaço ringindo ásperas no assoalho desigual, rumo da cozinha. Lá provava d. Luísa o caldo à comezaina do dia, azafamada numa roda-viva de mulheres.
Beijou-lhe com respeito os dedos nodosos da mão reumática e trabalhadeira. Foi tirando do piquá as encomendas e como a boa senhora se pusesse logo a esparrimar umas pitadas de canela no pratarraz d'arroz-doce, indagou apressado:
– Dindinha não tem mais precisão de mim para alguma cousa?
– Ah, sim, toma tento em Nequinho; diacho de pequeno sapeca, não me deu sossego todo o santo dia, a querer provar o ponto a quanta tachada houvesse. Sentido naquele capetinha, não fosse também querer deitar fogo às roqueiras...
Em pouco, na sala toda luzes, por cuja janela aberta o clarão dos círios vinha alastrar-se cá fora, no terreiro, principiaram as rezas em torno do altar rústico.
Malaquias dera desde cedo a mão de cal ao mastro, que branquejava ao longo da casa, sobre dous cavaletes, cintado todo d'anéis d'oca e tinta a três cores. Era um magnífico cedro, que ele próprio fora tirar às terras da baixada, alto, liso, direito, medindo de ponta a ponta uns sessenta e seis palmos bem puxados.
Os moradores do sítio, ajoelhados até o fundo do salão, iam engrossando o vozerio das mulheres, reforçando atrás, gradualmente, a rogativa. Fazia-se uma pausa lenta, após a qual a voz afinada e suplicante de d. Luísa evocava novo santo, tirando a ladainha.
À saída, Nequinho distribuía os rolos de cera, enrolados em talas de taquaril, que cada qual foi acendendo ao lume do vizinho; e a procissão se fez breve, levado o andor à frente por quatro meninas, acompanhando as cercas dos currais, dando voltas às gameleiras, em torno do casario dos agregados, as luzes a tremeluzir na noite clara, sob o límpido luar do sertão, vindo por último esbarrar junto à espiga do mastaréu.
Fez-se um grande círculo. O coronel colocou a bandeira. Benedito adaptou a maçaneta, segurando-a a prego.
Rasgando em raiva o ar, estrugiu no alto um rojão. Era o sinal. A camaradagem agarrarase ao longo do mastro e à garrulada dos pequenos e estouros de foguetes, puseram-no acima, aos vivas e brados ao Divino Espírito Santo.
Um momento, no afã da ascensão, o pesado madeiro pendeu para o lado da casa e esteve vai não vai a cair sobre os telhados.
– Arriba! arriba! – urrou Malaquias, o mais entusiasta, puxando pela peitaria.
– Puxa! puxa!
– Arriba, homem – gemeu sufocado Joaquim da Tapera, arcando de seu lado com o maior peso.
– Agüenta, agüenta, meu povo – acudiu Benedito, metendo um forcado de escada na parte perigosa.
A rapaziada respirava aliviada, agüentando nas cordas, previamente atadas ao longo do espigão; e aos atropelos, trataram de encher o buraco. Pedras, calhaus e terra socada atupiram logo a cova; e o mastro, já seguro, aprumou-se airosamente, mui branco em sua mão de cal, os anéis em ressalte na noite luminosa e a bandeira lá no topo balouçante, sobre a cabeça de Malaquias, que se encarniçava embaixo, em torno da raiz, remoendo cantorias, a manejar o pesado macete.
Poucas braças adiante, junto ao calvário da fazenda, donde pendiam, esculpidos em madeira, os sete instrumentos de tortura, tinham sido levantadas as cruzes de bananeira, d'alto a baixo espetadas por um renque paralelo de pauzinhos destinados a suporte das luminárias. Estas apareceram logo, em casca despolpada de laranja-da-terra, a torcida grossa d'algodão ao centro, embebida em azeite, trazidas em bandejas à cabeça do mulherio, como ex-votos piedosos de passadas promessas.
Malaquias, paciente, com unção, foi dispondo as luzes nos espeques; e, vistos à distância, eram dous grandes cruzeiros luminosos, a rebrilhar sob a paz radiosa daqueles céus e ante a serena brancura do luar, que varria longe os escampos solitários. D. Luísa surgiu no limiar da casa-grande, um tabuleiro de tigelinhas em cada mão;
arrastando-se de joelhos, veio depô-las ao pé do mastro, que osculou repetidas vezes, em fervorosa contrição. Só assim cumpria de todo a promessa que fizera antes pelo restabelecimento de nhá Lica, presa das febres intermitentes quando da romaria do Muquém.
Nequinho, desenvolto, numa arteirice de colegial vadio, aproveitou-se logo daquelas luzes e desenhou em arco, ao redor da bandeira, em letras de fogo: Viva o Divino.
Arrematou-as com um enorme ponto de exclamação e às piruetas, de súcia com a molecagem dos agregados, atirou-se a ver quem saltava mais alto a fogueira do pátio.
Nhá Lica recolheu-se depressa ao interior da casa, onde tinha ordens a comandar.
A ceia, lauta, duma fartura de senhorio feudal, fumegava no varandão, esclarecida a intervalos pelos candeeiros de quatro bicos. A família do fazendeiro agrupou-se em torno do chefe e para o fundo, segundo o costume tradicional das velhas colônias, o pessoal do sítio, por graduação de idade e serviço.
Deram pela falta do Nequinho. Apareceu logo, à mão de Benedito, sujo de cal, amarrotado o lindo terno d'azul-ferrete à marinheira, pé fincado atrás em oposição, arrepiadinho de ira. O moço levantou-o nos dedos, veio assentá-lo ao pé de nhá Lica e foi tomar assento do outro lado da mesa, junto à velha senhora.
Quisera o meleiro, de parceria com os moleques, marinhar-se ao alto do mastro e ele, Dito, obedecendo ao aviso da Dindinha, apanhara-o a meio caminho.
O pequeno desceu do tamborete e veio cavalgar a perna do coronel. A voz travada, explicava ainda o caso: seu Dito que se intrometesse com o que era da sua conta, não fosse mandar nos outros. Queria apenas ser o primeiro a beijar lá em cima a estampa do Divino, e virar a bandeira para o lado da casa.
O fazendeiro embalava-o na perna, gravemente, em silêncio. Mas nhá Lica, fitando o moço, reclamou assustada:
– Veja só! que maldade, mordeste-o na mão!
Uma pequena mancha rubra, vincada de dentinhos afiados, pontilhava o dorso da mão do rapaz, a ressumar umas gotículas de sangue.
Embaraçado, num acanhamento súbito, recolheu a destra debaixo da toalha e disse chocarreiro:
– Ora, ora, não foi nada, um arranhão; amanhã faremos novamente as pazes.
Mas o coronel encrespara o sobrolho, descia do joelho o filho e ralhava severo:
– Não fosse hoje dia de festa e levarias uma tunda de arnica e salmoura, para aprender a respeitar os mais velhos!
– Menino de hoje – disse d. Luísa reconciliadora – não guarda mais respeito a ninguém;
olha, seu briquiteques, este moço que aqui vês, estás escutando? Já o sujaste muitas vezes nos braços, quando trazias cueiros!...
– Pois sim, mas agora sei português e geografia, e seu Dito levou uma manhã inteirinha a escrever um bilhete que mandou depois ao povoado...
Benedito disfarçou, carregando nas talhadas de leitão recheado que estavam à sua frente.
Nhá Lica abstraíra-se da conversa, atarefada em dar de comer a uma pequenita birrenta, sua afilhada, que pusera ao colo.
O fazendeiro, melhor humorado, cofiava a barba, asseverando:
– Gente de agora, nasce falando; influência do regime, fosse lá no tempo da monarquia...
Espalitava os dentes, espreguiçando-se no espaldar, repleto. Os subordinados, um a um, já se iam retirando silenciosamente; e as mulheres do sítio, assentadas como trouxas aos cantos, pelos batentes da cozinha, distribuíam a refeição à filharada, amassando entre os dedos a comida, a empurrar com o polegar os capitães de tutu de feijão para a goela dos pequenos, que engoliam sem mastigar, como patos.
No paiol, repenicando na prima, já ensaiava João Vaqueiro um descante. Malaquias logo o seguiu, a respectiva viola à bandoleira; depois outro, mais outro e outro ainda. O resto formou alas do lado oposto e caíram todos com entusiasmo, batendo palmas, na velha dança-decamaradas. No terreiro, à míngua de azeite, morriam as lamparinas dos cruzeiros; e o micaruloso luar do sertão, tão límpido e sugestivo naquelas terras, entrava por toda parte, espancando penumbras, devassando meandros, coado aqui pela galharada das gameleiras, alastrando-se acolá sem mancha e sem obstáculo pela lhanura plana dos chapadões.
E até tarde chorou no paiol a viola, na toada doída da trova sertaneja.
IV
Abrandara o mormaço do meio-dia. Com o chiar lamurioso dos carros que desciam das roças atulhados de cana para o serão da moagem, vinha refrescando no ar translúcido a viração da tarde.
Nhá Lica contava pontos de crochê junto à janela do quarto. Para o fundo, abriam-se os canteiros de roseiras, a horta viçosa, as mangueiras folhudas do quintal, com sua longa fila de laranjeiras em sazão de ouro, o cafezal abaulado, dum verde retinto e sombrio; e mais além, onde a vista se perdia, vagos contornos de colinas verdejantes, malhadas aqui e ali duma rês esquiva que pascia, entre teias longínquas de arame farpado...
Joões-conguinhos e guaxos importunos galravam no laranjal, em matinadas atordoantes, ora abatendo-se aos bandos, ora em arribadas para a grimpa distante dos coqueiros do cerrado, onde tinham os grandes ninhos pendentes.
Nhá Lica contava pontos de crochê, a linha de novelo entre os dedos.
Cismava...
Eram recordações que lá iam, perdidas no fundo da memória, ao trabalho silencioso da agulha, dias de meninice, as primeiras inquietações da adolescência e a saudade ainda latente do colégio de Sant'Ana, na capital, onde bela e calmosa quadra da existência passara descuidosa.
E surgiam os passeios com as boas dominicanas, em tardes gloriosas como aquela, nos arrabaldes, pela estrada do Areão; as correrias das companheiras ao longo do caminho, a colheita de campainhas e boninas, umas róseas, dum perfume intenso, outras brancas, da candidez imaculada das almas que com ela iam, apanhadas aqui, além, aos molhos, que vinham sorridentes e confiadas ostentar ao sorriso benevolente da Madre; o jogo das prendas, o chicotinho-queimado, nos pontos de descanso; e depois, ao crescer o crepúsculo, a volta para o convento, duas a duas, elas adiante, as irmãs atrás, às orações invariáveis d'ave-maria.
Vinham os caprichosos artefatos d'agulha e bordado, aquarelas, pastéis, a confecção artística de almofadas para a exposição do fim de ano, que ao colégio atraía toda a alta sociedade da capital; os prêmios, antecipando as férias, passadas entre arvoredo e alegres folgares, numa chácara pitoresca que possuíam as religiosas à beira do Bagagem.
No ano seguinte, a mesma vida uniforme, com as alterações do adiantamento de idade e progresso nos estudos, e de mais a mais, o gosto acentuado que crescia nela para as cousas místicas, os desvelos que punha no adorno da capela e aquele seu ardente fervor religioso ao terço do rosário, quando anoitecia...
Iam então juntas aos tríduos e novenas da Boa-Morte, às rezas vesperais da igreja do Rosário, e com que ansiosa expectativa, misto de impaciência e alegria, atendiam todas, as internas, às solenidades da Semana Santa! Pelo menos, eram as únicas em que lhes fora dado tomar parte.
Folias do Divino, com cantorias louvaminheiras de crianças à frente das filarmônicas, os peditórios de porta em porta por meninos e cavalheiros revestidos de balandrau e opa encarnada, o cetro, a coroa e a bandeira do Divino passeadas de lar em lar, aos ósculos extáticos da multidão e moedas e cédulas que se iam amontoando nas salvas, mal as podiam apreciar, através das persianas do monastério, a cuja saleta exígua recebiam algumas freiras o farrancho.
O ano passado, no entanto, aparecera ali no Quilombo uma das tais folias da roça, mui diversa, aliás, das da cidade. Compunham-na um bando de trinta mandriões, cavalgando animais lazarentos, apetrechados de pandeiros e violas, que se tinham deixado ficar em pândega na fazenda oito dias seguidos. Ao aproximar, deram uma descarga de trabucos, que a camaradagem do sítio replicou com salvas de roqueiras. Depois, apeados, aos descantes e loas, encostaram a um canto da sala a bandeira e caíram em regozijo na dança, aos sapateados e louvaminhas, que se prolongaram até altas horas da madrugada, e insaciáveis todos de cachaça, que o coronel mandara vir às canadas da armazenagem.
Abateram-se reses no curral, despovoou-se o chiqueiro de porcos, vários leitões foram assados, e, daquela folia, só guardara lembrança do muito cuidado que lhe dera, e à mamãe, na direção da cozinha. Ainda bem que o papai estava acostumado àquelas pousadas intempestivas.
Mas o que lhe doera ao coração, ao saber, foi os foliões, apenas saídos do Quilombo, terem ido arranchar meia légua adiante, na palhoça dum pobre lavrador, onde acamparam três dias seguidos. O rancheiro, coitado, ficara certamente na miséria, desertos os currais e poleiros da pequena criação, em folgança devorada pelos tiradores de esmola...
– Ora, que fazer – dissera o coronel. – Costume da terra!
Não guardava, muito menos, daquele tempo na capital, lembranças das cavalhadas que o imperador eleito do Divino realizava no campo de São Francisco para gáudio da população local, com aquelas histórias tocantes do cativeiro dos cristãos na torre de Ferrabrás, os amores da princesa Floripes com o par de França, o cativeiro dos mouros, a sua conversão na capelinha, que armavam ao segundo dia, e, no terceiro, a corrida final de argolinhas, que punha termo àqueles divertimentos.
Esses festejos, presenciara-os o ano passado em Curralinho, onde tomavam parte o papai como embaixador cristão, e Dito – rei dos mouros.
Guapa cavalgada! Como empinava bem o baio de estima de Roldão, dizendo atrevidamente a embaixada de Carlos Magno ao rei dos infiéis! E com que arrogância e donaire lhe respondia Dito na letra, cabriolando o ginete, a lança alçada, dois passos adiante da sua guarda! Chamejavam espadas. A pedraria reluzia faiscante na bordadura azul e vermelha dos justilhos e pelo cravejamento das fivelas prateadas, que prendiam os penachos encaracolados dos guerreiros. O sol lavava de luz opulenta e clara a arena sonora onde a pugna se desenrolava fremente. Havia um contínuo tropear de cavalos, mal contidos nas estacadas, e o vozerio indistinto da multidão, sob o varandil dos palanques, mãos em pala, à crueza dos raios solares, enquanto a charanga atacava num ângulo da praça a marcha belicosa.
Dentre o contínuo lantejoulamento das arreatas suntuosamente revestidas, a moirama passava em árdegos serbunos, crinas entrelaçadas, ferraduras e cascos dourados rebrilhando ao longe, à desfilada franca, toda sangue em sua vestimenta de veludo carmesim, as flâmulas tremulando na haste pontiaguda das lanças, à investida audaz contra os defensores da Fé. Estes, dentro o uniforme azul-celeste de seu rei, não menos garbosos e escorreitos, saíam em campo, à rebatida brusca dos barbarescos.
Apreciara o desenrolar de toda a justa do palanque de pita que o coronel mandara armar no lado principal, bem a coberto do sol. Divertira-se tanto aqueles três dias!
Mas em Goiás, quando no colégio, as irmãs não as levavam ao campo de São Francisco, supondo talvez, em seu piedoso entendimento, um tanto profanas aquelas exibições.
Havia ainda, na capital, outros divertimentos por ocasião das festas do Espírito Santo.
Danças principalmente. O bumba-meu-boi, que afugentava às marradas a petizada; a dança-dosíndios, na sua véstia cor de carne, tinta de urucum, à moda dos tapuios, os cocares e as cintas de penas variegadas, trazidas de propósito de aldeamentos indígenas da beira do Araguaia, com toda aquela figuração de brandir de tacapes, lamentações de pesar em torno do pequenino cacique morto e o grande grito vindicativo de guerra:
Jaburê, quá! quá!...
Jaburê, quá! quá!...
Começavam os combates singulares de lança, porrete e frecha, sucessivamente, em torno da maloca assanhada. Os campeões procuravam-se por sob uma abóbada de arcos entesados, em artimanhas de selvagens e choques bruscos d'armas. E ao tempo que os adversários se sonegavam felinamente, uníssonos, num diapasão que ia do mais leve sussurro ao estertor fero d'ódio e vingança, e deste, novamente, ao queixume lancinante murmurado em dolência, entoavam os guerreiros o hino bárbaro:
Arirê, cum! cum!...
Arirê, cum! cum!...
Saíam a campo, afinal, os dous pequenos caciques, maneirosos e ligeiros, em esquivanças rápidas de caxinguelê e passes traiçoeiros de jaguatirica, à rebatida derradeira dos tacapes enfrentados. As tabas rivais cercavam-nos então, a passo lento, esticando o cordame dos arcos, a clamar em lamúria:
Japurunga matou minha fia, Japurunga matou minha fia, Frecha nele sem parar!...
Frecha nele sem parar!...
Prazs!... Prazs!... Prazs!...
Disparavam.
Havia ainda a dança-de-velhos, em grandes cabeleiras empoadas, os sapatos de fivelão e costumes à Luís XV, exibindo por salões franqueados voltas obsoletas, à moda antiga.
O vilão, os lanceiros, estes organizados pelos rapazes da fina flor social, em rica fantasia, inauguravam as suas quadrilhas logo à noite do baile e banquete que o imperador do Divino oferecia à cidade.
O quebra-bunda não deixava de fazer também a sua aparição desde o começo das novenas, com as coplas e lundus chorosos dos mulatos, quadras requebradas e dolentes, uma das quais, esperem, rezava assim:
Minha mãe me pôs na escola Pra aprender o bê-a-bá, Eu fugi, fui aprender O lundu do marruá!...
Indecente, pois não, mas apenas de nome, que no fundo, tão ingênua, tão simples, dessa simplicidade de velha dança colonial, não se impedindo o seu ingresso no seio das famílias, antes mui disputados e solicitados os organizadores a irem exibir os bailados no interior das casas principais e mesmo no palácio governamental...
De todos aqueles festejos, tinha conhecimento pelo que lhes contavam no outro dia as externas, aos intervalos da aula, o que valia, às vezes, exemplar reprimenda da irmã zeladora.
Um e outro ano surgia a mais a dança do Congo, posta à rua pelos pretos, cujo rei era sempre um africano centenário, ainda forte e robusto, trazido de Luanda ao tempo da escravatura.
Aos reco-recos das varetas pela superfície estriada em serras das compridas cabaças que apropriavam, e ao som de adufes e pandeiros, celebravam os ritos e glórias de seu país ancestral, religiosamente através do exílio transmitidos, em fraseados complicados e embaixadas pomposas de língua perra.
Executava-se o duelo dos príncipes, procurando-se os dous rivais aos pulos ágeis, ora num pé ora no outro, entre as filas apartadas dos guerreiros e a final degola destes – a espada correndo cerce ao longo das gargantas. Arrematavam a encenação com dolentes cantorias, onde a nota – êh! Maria-Longuê! – era repisada em estribilho a cada retorno, invariavelmente.
Esses, os do Congado, vira-os passar duma feita sob as gelosias, num quente meio-dia de domingo. Uns traziam gorros e capacetes de plumas, grandes corações recamados de vidrilho sobre o peito ofuscante de lantejoulas e glóbulos dourados; outros, meias-luas de prata em ressalte no fundo do colete mourisco, colares de búzio com voltas de conta e pulseiras de miçangas, metidos em calções de debrum e largos sapatões cara-de-gato. Os mais vistosos calçavam botins e tinham o justilho azul de pano mais fino, sobressaindo-se os tufos de pelúcia nos punhos curtos e sobre a gorjeira baixa.
Caminhando, iam e vinham sobre os próprios passos, arrastando a cantilena, ao reco-reco infatigável das cabaças empunhadas.
Ah, as doces, ingênuas, tradições goianas!
De novo, a saudade de Lica voou, trêfega, para as procissões da Semana Santa.
Ah, as procissões... Então, através das persianas donde espreitavam, como que a cidade tomava outro aspecto, revestindo-se dum ar solene e grandioso.
Trabalhadores, enxada à mão, punham-se nas ruas e praças a capinar febrilmente, dentre os interstícios do macadame, os tufos rasteiros de gramíneas; varriam-se as calçadas, o chão era atapetado de goivos, miosótis, jacintos, manjericões e mais folhas odoríferas.
No primeiro domingo, o de Passos, iam todas à Boa-Morte, a cuja entrada tinha lugar o encontro da Virgem Maria com o Filho desejado. Este, sob o peso do madeiro, mui lívido e doloroso, a grossa corda de nós cingindo os rins sobre a túnica roxa, a fronte pálida, porejando sangue, dobrava a esquina à coral mística dos rabecões, sob a auréola sangrenta da coroa de espinhos e nuvens e nuvens consecutivas de incenso, que o pároco, mui solene e paramentado, ia à frente turibulando.
Fazia-se um grande silêncio. A banda de música, que fechava o cortejo, cessava a sinfonia plangente do acompanhamento. Acotovelava-se o povo no ádito da igreja, pelas ruas e vielas que desembocavam na praça; e, de ao pé duma das janelas que abriam do coro para o largo, um frade beneditino, mui untuoso e comovedor, começava a longa prédica da paixão do Senhor, a voz soluçante e profunda no descrever a cena patética do Calvário, e a disputa última dos guardas sobre o corpo ainda palpitante do Crucificado!
Choravam todas. Ainda agora, ao relembrar, tinha as pálpebras umedecidas...
À noite, os Sete Passos da cidade, encravados em espaçosos nichos, onde o Cristo se detivera lasso na caminhada, iluminavam-se d'alto a baixo, e toda a gente corria em Via-Sacra a visitá-los, depositando na toalha do altar, sobre a salva exposta, o óbolo devoto.
Depois, Quinta-Feira das Dores, nova procissão, a da Virgem Dolorosa em busca do Filho bem-amado. O andor, numa suntuosa ornamentação de flores artificiais, a imagem naquele manto azulíneo todo constelações, era pelo percurso levado ao ombro das donzelas de mais destaque na sociedade, todas de branco trajadas. E que desejo nutria ela, Lica, de carregálo também, garbosa e transfigurada da divina carga, embora nessa época mal debuxara ainda os seus primeiros catorze enfermiços anos e ser assim tão franzina e frágil de forças!
Dirigia-se então com as irmãs a esperar o acompanhamento na Matriz, onde recolhia, e deixava-se estar de joelhos muito tempo em adoração, extasiada, e, enquanto os círios ardiam, evolava-se em torno o cheiro profundamente místico dos incensórios, e o sacerdote no altar-mor principiava o ofício.
Após as Trevas, na Sexta-Feira Santa, as solenidades atingiam o seu apogeu de esplendor e compunção religiosa. Desde a véspera, nenhum rumor, nenhum grito de pregão, nem mesmo o ao de leve bater dos saltos dum sapato na rua deserta. A cidade soterrava-se num silêncio mortuário, sombrio, profundo, sepulcral, de necrópole abandonada... Nenhum brado d'armas na cadeia pública; os toques de corneta dos quartéis não davam esse dia os sinais regulamentares e até os galos, no fundo dos quintais, pareciam olvidar o seu canto álacre.
Era o dia das santas virtudes, em que as árvores e as cousas se revestiam dum atributo sagrado e os homens, mulheres e crianças saíam pelos campos e matas dos arredores, atrás duma raiz milagreira de amaro leite, suma, batatinha ou folhas de chá-de-frade, que, colhidas em tal ocasião, santificadas pelo teândrico martírio do Cristo, adquiriam um maravilhado poder de cura nos achaques caseiros do ano... Súbito, às doze, quando o sol que – único – não se velara de crepe, alcançava o pináculo do quadrante, ouviam-se as notas retumbantes e ásperas da matraca, anunciando aos quatro cantos da cidade que Nosso Senhor era morto. Então as meninas, que haviam comungado pela manhã e estavam desde a véspera em jejum absoluto, encaminhavam-se para o refeitório, onde o jantar era amelhorado duma iguaria nova, preparando-se todas logo em seguida para continuar as devoções da Boa-Morte.
À procissão do Enterro, acudiam moradores de toda a redondeza e mesmo de fora do município afluíam às vezes. Apesar da distância, a sua família viera duma feita, mais no entanto para visitá-la, que a essas cerimônias tinha d. Luísa por costume assistir em Curralinho, lugar bem mais próximo do Quilombo.
Milhares de luzes tremeluzindo em alas davam volta às ruas principais, o cortejo ritual ao centro. Escutava-se a espaços, o peito lacerado por inenarrável opressão, o cântico merencório e lancinante da Verônica – moça feliz que tivera a fortuna de representar esse ano a Madalena –
trepada a um tamborete carmesim, o diadema refulgente sobre a testa e a ampla cabeleira desnastrada espáduas abaixo, exibindo à multidão contrita, entre mal sopitadas lágrimas, o lençol sanguinolento que amoldara a cabeça coroada de espinhos do Homem-Deus.
E toda a milenária Dor humana, consubstanciada naquelas palavras, parecia ainda como que a ressoar-lhe aos ouvidos, funebremente, doloridamente: Vos omnes qui transitis per viam, attendite et videte si est dolor sicut dolor meus!...
À sua imaginação, impressionada ao excesso, fugiam os detalhes, num turbilhão de figuras litúrgicas a passar; aqui São João, o halo predestinado sobre a fronte, entre dous apóstolos, sobraçando um livro; ali, as três Marias carpideiras,vestidas de crepe, atrás do catafalco lúgubre, sob cujo pálio damasquino, sustentado por seis cavalheiros d'opa violeta a empunhar as varas de prata maciça, jazia num leito de martírio o corpo seminu e anguloso da Divindade, macerado d'angústia, em holocausto sacrificado à redenção de todos os mortais.
Sábado da Aleluia! Repiques festivais de sino na catedral; pombos e pássaros que se soltavam, a esvoaçar entre os coruchéus e cornijas do templo; foguetes e girândolas no largo estourando. Saudade...
Domingo da Ressurreição, madrugada alta, um frio cortante descendo da garganta da Carioca e tanta gente amontoada à luz do luar no adro da igreja, à espera de que as largas portas se descerrassem, enquanto a meninada se ajuntava no meio do largo, procurando distinguir as feições do Judas, lá dependurado no alto duma embaúba, e que seria queimado após o ofício divino.
Até àquele canto da nave, onde costumavam ajoelhar-se, chegavam de fora gritos e assovios, matinadas ferozes em torno dum mesmo objeto, vaias estrídulas, a partir dos quatro ângulos da praça. Era a molecada, às centenas, às maltas incontáveis, armada de seixos, atacando os caipiras – pobres matutos desentocados do fundo de suas roças e plantações pelo prazer de tomar parte naquela santa festividade, – e a bradar-lhes à orelha a alcunha injuriosa:
– Queijeiro!... Queijeiro!... Queijeiro!...
Ainda bem que Benedito, que fora com a família uma daquelas vezes à capital, mudava de feição, adotando facilmente o aspecto distinto de moço da cidade, não obstante passar a maior parte do ano na fazenda, e mesmo, não se envergonhando de – na necessidade – pegar o cabo da foice, como vira o ano passado e pôr num chinelo toda a camaradagem do sítio, batendo-a no eito, mesmo àquele Malaquias, apontado como o primeiro no corte dos canaviais.
E Lica, levada por outro curso de idéias, olhou para o fundo do quintal, onde o seu companheiro de infância, assentado numa moenda velha de engenho, à sombra das mangueiras, se entretinha a traçar com o canivete arabescos caprichosos na peroba dum piraí, a assobiar descuidado, enquanto Nequinho já em vias de reconciliação, rondava em torno, olhos grudados no trabalho do moço, entre arrependido e incerto da posse daquele brinco.
– Olha que apanhas um resfriado, menina – disse d. Luísa abeirando-se sem que percebesse. – São horas de recolher, o sereno já começa a cair e tu aí absorta, como se estivesses sonhando! Anoitecera. No céu azulíneo, duma diafaneidade única, o Cruzeiro do Sul lucilava como um símbolo vivo sobre a imensurada vastidão daquelas planuras, que a rudeza do velho Anhangüera desbravara e estendera o guante de conquista, povoando-a duma grande raça empreendedora e forte, que a moleza do clima, o misticismo ancestral dos reinóis e bastardias de sangue, iam lento e lento desfibrando, salvo arrancadas extemporâneas dum e outro rebento mais rebelde...
E nhá Lica cismava ainda nos festejos queridos de sua terra, que traziam entretecida a cadeia de suas recordações de menina e moça dum filão preciosíssimo de suaves e repassadas saudades, que o luar, a noite, o sertão e a festa da véspera tornavam ainda mais fundas e cruciantes naquela alma ingênua e simples, virgem ainda dos contatos brutais com as paixões, os azares, com a Vida enfim.
Uma mato-virgem arrulhou além, oculta entre os cafezais; e um grilo, cricri, afinou sob a janela, ao rés da grama, numa fenda mal coberta de reboco.
Súbita tristeza, amálgama de confrangimento e aperto de coração, num pesar indefinível, assenhorou-se de nhá Lica. Dobrando o pescoço, mui alvo e transparente, sobre o peitoril da janela – um bucle anelado a ressaltar na nuca, sobre o cetim da epiderme – as lágrimas, uma a uma, correram lentas, sem causa aparente e sem um só queixume de seus lábios contrafeitos...
V
Benedito pensava a Pelintra. Uma dobra dos baixeiros pusera-a sentida do espinhaço no passeio que tinha feito pouco antes em companhia dos filhos da fazenda, ao sítio próximo.
Vieram chamá-lo a mando do patrão.
Dependurou o chifre de tutano com que lhe engraxava o pêlo na argola de recavém dum carro, saiu às pressas do puxado dos tropeiros, rumo da casa-grande, onde o fazendeiro media impaciente as passadas ao longo do varandão.
Caminho andado, João Vaqueiro fizera-o ciente do sucedido – fugira o Malaquias!
O nagoa, furtando-se à velha dívida do ajuste, abrira o pala à meia-noite, montado na melhor besta de sela da fazenda.
Galgando os degraus do varandil, viu logo pelo jeito que o caso era sério. O coronel passeava os quatro cantos da sala, carrancudo, repuxando as falripas da barba grisalhona, o olhar atravessado e duro sob a ruga da testa, num daqueles seus terríveis e freqüentes acessos de mau-humor.
Era quase ao anoitecer. Pelos tampos escancarados das janelas, enquadradas em portais de jacarandá, a luz crepuscular entrava difusamente, alumiando ao fundo o ouro fulvo das peles d'onça que forravam as paredes, esbatendo-se entre os rosários de orelha d'anta e veado entrecruzados e pendentes do teto, destacando aos renques – bizarramente – a alvura das caveiras de capivara, galheiro e queixada que atestavam aos cantos, ao gosto das fazendas do interior, as proezas venatórias do chefe.
Sob aquele peso de troféus, de rifles, clavinotes e caçadeiras dependuradas dos cabides, o fazendeiro media às passadas o aposento, como outrora o senhor feudal cruzando as lájeas de sua sala d'armas, a meditar a baixa justiça sobre a cabeça redonda e vil dum vassalo acusado de felonia e traição...
Mal o divisou, foi advertindo ríspido:
– É aprontar-se já e partir sem detença pela madrugada. Não descanso mais uma só noite sossegado, enquanto não ver aquele ladrão na sala do tronco.
– A Pelintra veio sentida do Mamede, mas não havia de ser por isso que o negro deixaria de vir...
– Pois é escolher aí no pasto o animal que mais convier. Quanto a dinheiro para despesas, vem aqui ter comigo assim que tudo estiver arrumado. Gaste eu um conto de réis nesta empreitada, mas a fama do Quilombo não há de ficar desmerecida; nesta fazenda cachorro vadio teve sempre ensino, ninguém foge aqui ao trato firmado! É dar em riba do negro e trazê-lo amarrado pelo cangaço ao moirão do curral, que o resto havemos de ver.
O outro não estranhou, acostumado àqueles repentes. Coçou a orelha sob a aba do chapéu, e, sem mais, foi tratar com zelo dos aprestos da viagem.
Sabia-a arriscada, melindrosa mesmo, dado o desapego do nagoa ao perigo, e o seu tino tantas vezes comprovado em manhas e astúcias para enfrentar ou esquivar-se a quem se lhe atravessava no caminho. Também a ele, Dito, não faltava jeito... Haviam de ver.
Foi ao quarto, em separado num dos ângulos do casarão; abriu uma canastra, vinda com ele em pequeno dos Dourados, quando lá mandara buscá-lo a Dindinha. Trazia ainda tacheadas sobre a tampa de couro, as iniciais de seu finado pai. Pôs-se a separar atento a roupa – dous parelhos de brim riscado, ceroulas d'algodão grosseiro, três camisas de morim, que lhe dera a madrinha pela véspera do Natal. Levaria aquilo tudo sob os coxonilhos dos arreios, reservando os alforjes da garupa para a matula, as mezinhas, se houvesse precisão, e demais objetos miúdos. Enfim, ali estava todo o necessário para quem, como ele, ia viajar à escoteira.
Despendurou do cabide o rifle e, à luz da candeia que acendera, pôs-se a examinar com cuidado o mecanismo da culatra, fazendo mover lentamente a alavanca do gatilho. Limpou-a minuciosamente, meteu pelo cano de reserva os doze cartuchos precisos, fechou a arma e foi pendurá-la à bandeira da porta, para quando saísse.
Nada, o nagoa era arteiro, trazia patuá bento contra ferro alheio; e, para gente curada, só mesmo calibre 44 e a pontaria de seu olho. Pois sim, que com ele, não havia reza nem bentinho;
era tiro e queda.
Enfim, ia prevenido.
Demais, não era essa a primeira vez que o patrão o enviava à pega de camarada fugido.
Tinha até fama o seu faro nas redondezas. Em apanhando a catinga, ia direito no rastro que nem cachorro perdigueiro e não havia então tirá-lo da pista enquanto não trazia filada a caça à porteira do curral.
Ainda duma vez...
Mas para que lembrar! Tinha ainda no braço os caroços de chumbo com que o chamuscara um cigano, ladrão de cavalos, que andava a limpar as pastarias dos arredores. Ao estampido, caminhara que nem canguçu na fumaça e trouxera-o ali amarrado ao moirão, onde o coronel, à vista de todo o pessoal reunido, mandou aquele mesmo Malaquias chegar-lhe aos untos do traseiro uma coça mestra, rapar pestanas e cocuruto à moda de frade, salvo seja, e depois, com desprezo e aos risos da camaradagem, soltá-lo no campo, assim como uma rês capada...
Outra, foi na romaria da Trindade. Um baiano apessoado batera uns contecos ao patrão no jogo. Ele bem observara, postado do lado de fora, a tramóia. O meleiro ia ajuntando uma por uma as pelegas, de que fazia um bolo e que metia no bolso interior do jaleco, proseando com ufania, a entreter o coronel; este, mui confiado, a praguejar contra o azar do marimbo que o perseguia, atirando nota sobre nota na mesa.
Aquilo cheirava às léguas a embromação. Com disfarce, descobriu logo que o gajo, de súcia com o parceiro, manejava com outro baralho, que traziam escondido no forro dos chapéus.
A horas tantas, quando já se levantavam satisfeitos, saltou-lhes à frente, a garrucha na destra, a franqueira na outra, desmascarando num berro a esperteza.
Foi uma roda-viva. Um deles pôs-se logo a tremer, acovardado; mas o baiano, sujeito atirado e quizilento, encrespou o sobrolho, rugiu cinco desaforos e quis abecá-lo pelas costas, armado dum sabre-punhal que sacara do cabo do rebenque.
Homem aquele de peitaria! Mas não dera tempo; já o apertava num canto, riscando-lhe de sobreleve a faca pelo ventre, dominando-o com a garrucha, até que, rendido, o forasteiro achou por seguro chegar às boas, restituindo a cobreira, sempre protestando no entanto, o descarado, contra a sua parte na maroteira...
Ah, tempo! Metesse na veneta do fazendeiro fazer-se oposicionista, não havia mãos a medir com tantos seu-Dito-faz-isto, seu-Dito-desmancha-aquilo! Verdade seja, não mandara nunca uma criatura de Deus desta para melhor, não, graças ao Santíssimo; mas não era que carecesse de ocasião. Santa Maria! brigas, tivera-as muitas, raras por provocação, seja dito de passagem, que era lá de seu foro mui ordeiro e avesso àquelas exibições, antes de natural lhano e metido em seu canto; mas, as mais das vezes, birras do patrão com a gente da redondeza, no que o servia em reconhecimento de ter ido recolhê-lo aos Dourados, quando lá ficara órfão e só; e depois, pela Chica, mulata que por ser mulher, tinha seu quê de faceira, gostando de estadear o talento do amante quando se lhe faziam de engraçado.
Em épocas de eleições, quando o coronel estava contra o governo, então, andava numa corre-coxia dos trezentos, tais os embrulhos que surgiam. Na vila, às vezes, dançava alto o pau;
não raro, eram os tiros que se não sabia donde partidos, as teimas para convencer o votante contrário, enfim, o costume da terra. Eram ordens pra aqui, ordens pra ali, arregimentando o pessoal da fazenda, garantindo a chapa, o diabo!
Malaquias fora sempre um dos que mais o ajudavam naquelas alhadas. Nem mesmo sabia por que fugira o preto. Estimado da casa, afeito àquele serviço desde rapazote, não podia ganhar fora mais do que lhe davam na fazenda. Feitiçaria? Não acreditava, apesar de tudo, naquelas baboseiras; que ali, naquelas cercanias, eram ele e nhá Lica, talvez, os únicos que não criam nessas imundícies... Feitiço, talvez, mas dalguma daquelas mulheres que tinham pousado a semana passada no puxado dos tropeiros, em companhia duns soldados em diligência para as recebedorias do Paranaíba. Isso sim, acreditava; tanto que elas tinham passado a noite toda em gaitadas e cantorias, enquanto o cabo da tropilha tocava a sanfona de sobre o jirau dumas cangalhas, as espingardas empilhadas ao canto, o chapelão de palha com fanfarrice batido e acampado à banda. Por sinal que uma daquelas raparigas veio comprar à casa-grande meia garrafa de caninha e fora o Malaquias quem lha medira no quarto da armazenagem. Não fosse o preto ficar embeiçado da roxa, e daí os propósitos da fuga.
Mas abanou a cabeça, duvidando:
– Qual! O nagoa fugia sempre ao rabicho das saias e não seria daquela vez que se deixaria tentar.
Quanto à besta de estima, sabia-o bem, não havia ali tenção de furto; Malaquias levara-a por necessidade de montaria ligeira que o apartasse depressa daqueles sítios.
Então, que seria?
E o cabra, apoiado à cabeceira da cama, entrou a matutar fundamente. Lembrou-se pela vez primeira – ele que a praticava instintivamente – que era livre e movia-se para onde bem queria, prendendo-o apenas àqueles lugares o hábito da meninice e a sua gratidão para com os donos da fazenda, enquanto que a condição dum camarada era muito diferente, tolhida a liberdade pelo ajuste do fazendeiro.
Geralmente, o empregado na lavoura ou simples trabalho de campo e criação, ganha no máximo quinze mil-réis ao mês. Quando tem longa prática no traquejo e é homem de confiança, chega a perceber vinte, quantia já considerada exorbitante na maioria dos casos. É essa a soma irrisória que deve prover às suas necessidades. Gasta-a em poucos dias. Principia então a tomar emprestado ao senhor. Dá-lhe este cinco hoje, dez amanhã, certo de que cada mil-réis que adianta, é mais um elo acrescentado à cadeia que prende o jornaleiro ao seu serviço. Isso, no começo do trato; com o tempo, a dívida avoluma-se, chega a proporções exageradas, resultando para o infeliz não poder nunca saldá-la e torna-se assim completamente alienado da vontade própria. Perde o crédito na venda próxima, não faz o mínimo negócio sem pleno consentimento do patrão, que já não lhe adianta mais dinheiro. É escravo da sua dívida, que, no sertão, constitui hoje em dia uma das curiosas modalidades do antigo cativeiro. Quando muito, querendo dalgum modo mudar de condição, pede a conta ao senhor, que fica no livre arbítrio de lha dar, e sai à procura dum novo patrão que queira resgatá-lo ao antigo, tomando-o ao seu serviço. Passa assim de mão em mão, devendo em média de quinhentos a um conto e mais, maltratado aqui por uns de coração empedernido, ali mais ou menos aliviado dos maus-tratos, mas sempre sujeito ao ajuste, de que só se livra, comumente, quando chega a morte. Benedito sentiu aquilo tudo, confusamente; mas nem por sombra lhe passou pelo juízo contrariar as ordens do coronel. Desde pequeno, achara as cousas naquele pé, e assim como estavam, haviam de continuar até quando fosse Deus servido em comandar o contrário.
O preto fugira, estava ali o fato; devia ao patrão novecentos e cinqüenta e cinco mil-réis, eis a circunstância; mandavam-no buscá-lo: havia de vir. Os meios, pouco importavam; morto ou vivo, filado à gola pelo sedenho ou apenas o par de orelhas como prova, havia de vir.
– Nhô Dito, olha que a ceia está a esfriar – arrancou-o daquelas preocupações a voz de João Vaqueiro, surgindo à abertura da porta.
No varandão, agora deserto, provando uma colherada d'angu de caruru que lhe servia a mulher do caseiro, pôs-se a ruminar os planos de campanha.
D. Luísa apareceu do interior e colocou sobre a mesa um sapiquá atufado, aconselhando maternal:
– Muita prudência, menino.
Não fosse atirar no outro sem necessidade; também, nada de afoiteza em expor-se à ira do camarada.
A Dindinha que não se arreceasse, sabia com quem lidava; demais, se o preto emproasse, ali estava ele mais a carabina para quebrar as proas que fossem aparecendo.
E como nhá Lica surgia no limiar, iluminando com o seu perfil suave a moldura enegrecida da porta, empinou o busto orgulhoso, mão à cinta, sobre o cinturão de sola larga, onde rebrilhava o cabo niquelado da franqueira.
– Olha, deste lado vão a paçoca, um frango recheado e o mexido d'ovos em separado na lata – disse a senhora. – Do outro, café, o açúcar em latinhas e umas cocadas que nhá Lica aprontou.
– Não era preciso tanto cuidado – agradeceu meio confundido. Tomou-lhe a bênção rápido, cumprimentou a moça e foi despedir-se do pessoal da casa, àquela hora, como de costume, reunida no paiol de milho, em comentários ao caso do dia.
– Aquele negro tem sorte – dizia Joaquim da Tapera. – Caindo no mundo, ninguém mais lhe bota a vista em riba. Cabra destorcido! Matreiro que nem lagartixa, com a cabeça diz que sim, com o rabo diz que não. Ali está a marca que fez uma vez para mostrar como se empalma uma faca nesta terra! Traçou uma roda de palmo na parede, dividiu-a em doze riscas e à distância de seis passos não errou um só bote! Demais, arrepiado como ouriço-cacheiro; diabo como aquele não entrega à toa os pulsos à correia.
– Pois, seu Quim – respondia João Vaqueiro –, se ele é que nem martinho-pescador, que frecha certeiro o peixe, tem pra frente nhô Dito, que é como tucano, quebra tudo que o bico alcança.
– A pois, lá diz o rifão, dois bicudos não se beijam – comentou alguém.
Entrando, ele foi assentar-se num amontoado de suadouros de cangalha que ali estavam empilhados para atalhar e pôs-se a ouvir em silêncio a conversa.
– Seu Dito, toma tento com aquele crioulo, caso venha a topá-lo, o que duvido – avisou Fidélis. – É bicho sarado, tem mandinga contra arma de fogo. Mesmo ferro benzido, escorrega naquele couro que até parece bagre fora d'água. Toma sentido!
– Essa cantiga comigo não adianta – disse afinal. – Não há como pulso firme e franqueira de fiança, sempre pronta na ocasião. O mais, conversa fiada...
– Ora, ora... Não acreditava! – cortou o outro melindrado. – E esta! Só mesmo um moço da cidade. Nem parecia até que fora criado naqueles fundões. Conversa fiada, veja só!...
E desatou a rir, constrangido. Depois:
– Pois vou contar um fato, acontecido com o meu defunto compadre Desidério, cabo de polícia no tempo da monarquia. Andava aí pr'esses sertões um tal Deodato, bandido de profissão, com dezoito mortes e tantas no costado, e um sem-número de falcatruas nos povoados, a caçoar do governo com as arrelias e façanhas de todo o dia, matando hoje um homem aqui, forçando amanhã uma mulher ali, ora nos Gerais, ora nesta província, e, apesar dos prêmios e a fama que adviria a quem o prendesse, sem poder as diligências jamais botar-lhe o olho em cima. Crescendo de atrevimento com a falta de ensino, chegou a penetrar nas vilas à luz do meio-dia, ameaçando céus e terra, pondo o povo todo espavorido com as bravatas que arrotava, e faria mesmo, caso piasse alguém ao lado. Duma feita, penetrou na cadeia do lugar onde estava arranchada a escolta encarregada de prendê-lo e foi desancando do primeiro ao último com o cabo do chicote, enquanto dous de seus parceiros mantinham em respeito, com a boca dos trabucos escancarados da soleira, a soldadesca surpreendida. Vivia num estadão, garantido até pelos chefes de partido, que aproveitavam os seus préstimos de capanga para negócios de politicagem. Deodato trazia sempre consigo um bentinho no pescoço, bentinho em que depositava muita fé e é aqui que bate o ponto da história.
“O meu compadre era um homem às direitas. Metera-se-lhe na cachola que havia de dar cabo do bandido, e uma vez assim ateimado, não havia por onde torcer. Ele batia pois essas estradas e cafuas, à frente de quatro cabras decididos, e tanto viramexeu, que uma noite, dando cerco a uma tapera à beira do Uru, onde tinha notado uns sinais que o punham assofismado, calhou que lá dentro se encontrasse de pernoite, sozinho, o afamado assassino. Deram volta à casa, e um deles foi bater à porta da frente, de cujas fendas gretadas de caruncho saía um longo crivo de luz. Os demais ficaram de tocaia, estirados atrás das moitas de gravatá e tiririca do arredor, vigiando as saídas.
“– Ó de casa – bradou o soldado com voz firme. Respondeu-lhe tremendo estampido de clavinote, que escumou de vez a madeira da porta, e a fera pulou para fora, o facalhão em punho. O rapaz ouvira antes o estalido da arma aperrando e teve tempo de desviar-se da descarga. Ajoelhado de banda, fez-lhe fogo ao peito. Os companheiros descarregaram por sua vez, da tocaia, as pederneiras. Deodato, mortalmente baleado, caiu sobre um joelho; e o destacamento, carregando de novo as espingardas, deu-lhe mais duas ou três descargas à queima-bucha, quebrando-lhe um a um, por quinze sangrentas feridas, os ossos do corpo. Foram depois pernoitar meia légua adiante, numa fazendola, donde voltaram com enxadas ao romper d'alva, para dar sepultura ao criminoso e cortar-lhe as orelhas. Conforme o uso, elas iriam dar testemunho daquele feito. O dia clareara já de todo, o sol mostrava-se meia braça acima dum oiteiro, quando chegaram à tapera. Deram um rodeio ao oitão, à procura do morto. Não o tinham encontrado no lugar em que caíra varado de papouco.
“O ervaçal espezinhado, coágulos frescos de sangue umedecendo o orvalho e que se alastravam agora em largas manchas sobre a grama, diziam bem que era ali exatamente o local onde sucumbira de vez o bandido sob os couces d'armas da patrulha. Mas o corpo, que é dele?
Admirados, zanza pra'qui, zanza pra'colá, na suposição de que uma vara de bichos do mato o tivesse arrastado para longe, eis que o anspeçada, afoitado numa capoeira de assa-peixe e juábravo, solta um grito de espanto, clamando socorro. Acudiram todos. Os cabelos em pé, olhos esbugalhados, o rapaz apontava para um claro da saroba. E aí está o que viram: encostado a um cupim, as pernas direitas, segurando numa das mãos o clavinote, a outra aconchegada ao peito, Deodato olhava-os também, mui vivo, procurando armar o cão emperreado do seu boca-desino... O anspeçada, sem relutância, meteu a arma à cara, e estava para disparar, quando o compadre atalhou:
“– Fica quieto, não é preciso gastar mais munição com esta cobra; deixa-a cá comigo. –
Achegou-se com cautela e afastando a mão do jagunço, que procurava embalde obstá-lo, arrancou-lhe do peito o bentinho, junto a um patuá, em cujo forro estava cosida a reza brava contra bala! Assim que lho tirou, o homem caiu que nem fruta podre, para nunca mais se erguer.
Como esse, tantos casos mais; qual, ser curado é cousa séria; perigo, e grande, corre quem se mete com esse povo. E o Malaquias, afirmo porque vi, sempre trouxe no pescoço um breve...”
– Por mim – ponderou João Vaqueiro levantando-se – acho que a melhor reza é confiança no santíssimo nome de Nosso Senhor Jesus Cristo e a carabina de nhô Dito, que nunca negou fogo.
– Pois não, pois não – confirmava o outro, arrastando um couro do fundo do paiol; mas que o moço fosse sempre prevenido.
E começou a preparar a cama, arranjada com um ligal aberto sobre a esteira de espigas, forrando-a depois com as mantas e lombilhos d'arreios.
Um acauã guinchava à distância, na noite escura. O minguante, esguio e tardo, principiava a espalhar, entre nuvens, os seus primeiros bruxuleios de luz mortiça por detrás das últimas serranias do nascente.
E, no paiol da fazenda, a camaradagem conversava ainda em torno da chocolateira fumegante, preparando nova infusão aromática de folhas de limeira-de-umbigo com rapadura, enquanto pelo sertão sem termo, de cotovelo a cotovelo das estradas, de barroca a barroca, ia o grito d'alarma das aves noturnas.
Através das persianas cerradas da janela de nhá Lica, uma luzinha brilhava ainda.
Que estaria a fazer àquela hora a filha do patrão? pensou Benedito, recolhendo caminho de seu quarto de solteiro.
VI
Pelos dias de agosto, todo o horizonte goiano é um vasto mar de chamas: fogo das queimadas que ardem, alastrando-se pelos Gerais dos tabuleiros e chapadões a afugentar a fauna alada daqueles campos; fogo dos cerrados que esbraseiam, estadeando à noite os seus longos listrões de incêndio nas cumeadas das serras, intrometendo-se léguas e léguas pelo mato grosso e travessões do curso dos rios e subindo, carbonizadas as folhas secas que o vento acamara, pelo cipoal e trepadeiras dos troncos seculares, cuja casca rugosa tisna de sobreleve para ir em fúria crepitar nas grimpas, entre as galharadas verdes, reduzindo a cinzas os ninhos balouçantes do sabiá nativo, as caixas extravagantes da borá e mandaçaia, quando não enxota de pouso em pouso as guinchantes guaribas, os velozes caxinguelês, das alturas prediletas do tamboril, jatobá, aroeira ou barriguda – os mais comuns – daquelas matas.
Através do espesso lençol de fumaça que à noite encobre o lume das estrelas, o sol semelha de eito a eito um enorme carvão aceso e sangra pelos flancos a sua luz avermelhada e mortiça, numa atmosfera de forja, que nenhum sopro de aragem alenta.
Emigra a vida para longes climas. Das alfurjas, nas tocas solapadas de ao pé dos morros, nos desvãos de pedra, onde em dias de chuva calangos e lagartixas espapaçaram-se ao vento, à cata de insetos, desapareceram misteriosamente os reptis, à espera da tarda estação da fartura, que aí deve chegar com as primeiras chuvadas de outubro. E somente à beira dos charcos que ficaram, nos furados úmidos, continua ininterrupto o ramerrão do cururu e saparia miúda, ao mormaço das longas tardes nevoentas e a zoada surda das mutucas e pernilongos, que lá, mais que alhures, enxameiam no gado acossado dos capões.
Não há ali porém, louvado seja, os rigores da seca em céus do Norte. As nuvens vão beber no farto divortium aquarum dos grandes rios que alimentam simultaneamente as bacias do Amazonas, Prata e São Francisco, elementos abundantes para o próximo ressurgimento da terra;
e a miséria do solo resulta antes da incúria do homem, que ateia fogo às derrubadas para a fertilidade da lavoura e destas, quase sempre, transpõe as divisas da roça e vai floresta adentro avançando a sua obra de assolação, transpondo levadas e ribeirões, escalonando serras de extremo a extremo do sertão, espraiando-se sem obstáculo pelas extensas ondulações das campinas fecundas, e só parando quando o tropeço dum grande rio ou o encontro com outra queimada lhe roube elemento onde saciar a sua fome implacável de extermínio. Rodopia e morre então em torno de si mesmo, quando não cinge uma vítima, caça ou rês dos arredores, no redomoinho trágico.
A obra de destruição vai lento e lento preparando ali a ruína das gerações futuras, embora a natureza opulenta exubere a cada nova hecatombe com redobrado vigor e esplenda em louçanias aos primeiros aguaceiros, espalhando aos quatro ventos, indiferentemente, as messes abundantes com que retribui de ano a ano a bronca insensatez do matuto. E ai do destino daquele ubérrimo rincão, não fora o recurso natural das imensas florestas virgens e dos sertões ainda por violar.
Cessa por esse tempo a labuta nas fazendas. O gado espera a chuva para amojar e remói o mata-pasto ruim das encostas, o angola paludoso dos alagados desaparecidos, o capimpuba e gordura que o fazendeiro reservou e defendeu nas invernadas, se se não embrenha na selva imune, atrás do papuã.
Se o incêndio devorou os capoeirões e pastagens naturais, deu por sua vez cabo da praga de carrapatinhos que depauperava a criação. É o tempo em que os carniceiros caracarás, únicos satisfeitos na desolação derredor, se põem a catar os gordos rodoleiros – caídos de maduro – na pelanca descarnada dos animais, esborrachando-os no bico d'aço retinto dum bigode de sangue negro, ora pousados no lombo, ora entre as aspas, ou sob a barriga varada, aos pulinhos curtos, mas certeiros, e gritos bruscos de espaço a espaço.
E se acaso passou, na lombada descoberta dos campos, um pé-d'água que não fez torrente, as perdidas emergem o seu caule nu dentre os interstícios do pedregulho rescaldado, sob uma pompa bizarra de flores de sangue...
Também o homem, agente irresponsável naquela desolação, ressente-se molestamente da mágoa que ressuma errante na natureza. Mais que o aspecto acabrunhante daqueles céus, reflete-se-lhe no olhar com que sonda as alturas, a nostalgia das águas que se foram, chupadas da terra avara e o verde primitivo das serranias que – quando? – verá de novo reflorir na quadra feliz, com as ramalhadas de ipê e paineiras esfolhando-se à distância, e a criação mugindo satisfeita nos currais, repletos de bezerrada nova.
Depois de São Sebastião, ultimam-se os aprestos do plantio nas roças calcinadas; a terra recebe a semente do pobre, que encoivarou as cercas nos derradeiros muxirões. Rondam os vaqueanos os malhadouros freqüentados, onde as vacas amojaram na força da lua; e em pilões da cozinha, o mulherio soca e peneira o sal para o cocho das salgadeiras. Na casa da oficina, temperam os ferros enferrujados, rebatem na bigorna uma marca nova para o filho do patrão, que já tem aquele ano a sua ponta separada.
E todos atendem às chuvas que não tardam.
Na alma de nhá Lica, à sugestão daquela paisagem amortalhada em brumas, pesares e saudades acorriam lentas, como nuvens...
A bica do monjolo corria embaixo, um fio tênue, indo empoçar-se lá no fundo do açude do mangueiro, para onde tangiam os campeiros de manhã a tropa das pastarias adjacentes, e o coaxar soturno das rãs punha uma nota lúgubre, ao vir das tardes enfumaradas, com as suas tristezas mudas do anoitecer.
Três meses atrás, e o céu revestia-se ainda de tons suavíssimos, numa transparência luminosa de anilina, refrescado pelos aguaceiros temporões que abril e maio prodigam às vezes.
Nas malhadas, refloria a flor-de-maio; cambarás vergavam sob os corimbos apendoados; e, dominando os escampos, sob as paineiras do outeiro, o solo estivava-se duma aluvião de pétalas lilases, quando o roxo vivo da quaresma não feria o olhar à distância, avultando nos alcantis dentre tufos de folhagem.
De manhã ou em vindo o crepúsculo, havia nas espessuras uma orgia contínua de sons, estrídulos prolongados de seriemas confidenciando nos vargedos, lamentos reiterados de almasde-tapuio, no fundo da mata, trilos, matinadas, algaravia de povis, tiês e sanhaços no colmo frutificado das gameleiras. Bento-vieiras e tesouras, como frechas, abicoravam a lavadeira, uma chupé que carreava para o cortiço, ou simples tanajura que tecia os seus amores nos espaços, e vinham depô-las na goela sôfrega dos filhotes, que aos chilidos esticavam o pescocelho implume dentre flóculos de paina, na copa altanada das marias-pretas...
Nuvens consecutivas de guaxos abatiam-se, elevavam-se, das fruteiras carregadas do quintal, cujas laranjas, poupadas da estação passada, reverdesciam outra vez, num orgulho exuberante de seiva nova, ao tempo que rombos anuns e azulões solertes remexiam, como besouros, a estrumeira dos currais.
Sobre os lameiros d'água empapaçada que secavam ao sol o seu limo esverdeado, borboletas enxameavam, numa ronda alerta d'asas multicores, variando entre o azul-negro, azulclaro e azul-metálico das Ageronias aretusas, cambiando a fartura de tons dos amarelados d'ocre, laranja e amarelo-enxofre das Pieris pirra, umas a pousar do surto incerto, estriduloso, nas pontas dos gravetos e nervuras descobertas de folhas podres que emergiam do charco, espalmadas as asas horizontalmente, as demais da margem levantando o vôo caprichoso em alegre farândola, pelo vento tocadas a outras vasas e vergéis mais fartos, para o aéreo noivado, para a aérea fecundação das pradarias em gala...
E mal ouvissem o passo dum animal na devesa, papa-capins, coleiros e patativas erguiam dentre moitas cacheadas de jaraguá o vôo frustre e o peixe-frito saía matraqueando ao longe, às orelhas-de-pau que se quedavam a escutá-lo, o zombeteiro cantar...
Na alma de nhá Lica, ao aspecto da paisagem fumarenta, como nimbos, saudades e sonhos se acastelavam. Dias de março, saía com o mano e o Dito, a quem confiava os filhos a mamãe, campo afora, ela na sua egüita castanha, uma pluma d'ema presa à fiveleta do chapeuzinho de feltro, airosa no selim, destemida às vezes nas apostas de galopada, a colher pelo caminho, junto aos cerrados e capoeiras, o murici cheiroso, cuja árvore anã e folhuda se distinguia ao longe, as corriolas verdolengas, denunciadas à distância pela fragrância intensa e mangabas e guabirobas, que trazia em jacazinhos, sobre o gancho do silhão.
E um a um, os passeios antigos iam avolumando, os da infância principalmente, a povoar aquelas horas de lazer doméstico do encanto agridoce da saudade, através da adustão derredor, e as primeiras bátegas espaçadas de chuva, que pejavam já as nuvens aplumbeadas das morrarias distantes.
Nesse tempo, talvez no Paranaíba, talvez do outro lado de Minas, em Mato Grosso quem sabe, Benedito viajava longes terras, nas pegadas do negro fugitivo.
Nhá Lica recordava sempre.
O hábito da soledade exacerbara a sua imaginação. Nos compridos vagares da agulha, quando d. Luísa se absorvia nos misteres domésticos e o fazendeiro rondava os arredores fiscalizando o serviço, vivia a vida passada, rememorando sentimentos, repassando saudades, reatando o fio de pequeninos episódios do viver sertanejo, que lhe iam apressurando os momentos langorosos de trabalho ao canto da janela.
É que, quando se sente infelicitada no presente, a alma corre para o passado, como um refúgio.
Da cozinha, no meio-dia ardente, vinha o baque alternado das mãos de pilão esmoendo a canjica. A água espanejava lá embaixo, junto aos alicerces do açude, na roda limosa do moinho.
Ciscavam pintainhos no terreiro. No pilão do monjolo afluíam as cocás, gulosas do arroz pilado, esticando para o interior o pescoço esgrouvinhado aos intervalos das pancadas, quando não empinavam a crista córnea de sobre a copororoca dos cercados, desatando o agudo tofraque.
Os olhos da nhá Lica baixavam de novo sobre o crochê e uma aqui, outra ali, evocações e saudades iam surgindo a cada movimento dos dedos ágeis, se a trama não ficava parada no colo e o olhar remoto, perdido numa imagem defunta, de que, sacudindo as bastas tranças, a arrancava um suspiro de alívio, para entregar-se novamente com redobrada atenção à contagem dos pontos...
Às vezes lia. Histórias tocantes de Genoveva de Brabante ou as aventuras dos doze pares de França, livro tido em grande estima no sertão, cuja leitura, nos serões solarengos das fazendas do interior, era feita em torno do lampião de querosene à família atenta, que tinha herdado da idade feudal, através do drama das conquistas, aquele gosto barbaresco de façanhas guerreiras, postas em prática anualmente na sede dos municípios com o espetáculo faustoso das cavalhadas.
Nhá Lica fazia em casa essas leituras. Começava quase sempre pelo episódio da princesa Floripes, de que tinha um secreto prazer em acentuar a animosidade e o ardor belicoso com que, abrasada toda por converter-se à fé cristã de seu amado Gui de Borgonha, acirrava contra as hostes de seu pai os cavaleiros cativos na torre de Ferrabrás...
E uma noite, recolhendo-se um tanto excitada daquelas narrativas, sonhou que estava encerrada numa alta torreola, como a que armaram a vez passada em Curralinho, e Dito era o moço paladino que viera libertá-la dos furores paternos do almirante Balão, encarnado na figura venerável de seu velho pai... De então, ao reler aquelas páginas, sentia-se enleada por um sentimento obscuro e era com desafogo que passava aos amores da rainha Angélica com o sobrinho do imperador, o destemido Roldão, corajosamente encerrado no interior do leão mágico... Tinha ainda sobre a mesinha da cabeceira alguns exemplares de contos da carocha, vindos com ela do colégio, cadernos de modinhas brasileiras, que lhe dera uma das amigas na capital, e um desaparelhado romance de Alencar, esquecido entre os formulários da medicina caseira do papai, que, mui positivo em matéria de livros, além dos de Carlos Magno e jornais políticos da terra, eram os únicos que tolerava.
O organismo debilitado pelas febres intermitentes apanhadas na romaria do Muquém, de que se vira tão-somente boa o ano passado, como que a energia vital se lhe refugiara no cérebro, desenvolvendo exageradamente as faculdades da imaginação; e esta, sôfrega, ia suprir-se naquela meia dúzia de volumes, junto às impressões cotidianas do viver campesino, que iam acrescentando dia a dia uma nova página onde deter e fixar aquela sua irresistível tendência evocadora.
Nos últimos dias de setembro, rolaram trovões pelo lado do Anicuns. Apertara a canícula abafadiça. No lamaçal do açude, sob as taiobas, redobrava o cantochão das rãs; e à tarde, com o chuvisqueiro que passara, um fartum ativo, de húmus fermentado e terra fecundada, exalava-se dos plainos escaldados.
Na alma de nhá Lica refloriam recordações...
Via-se pequena, na casa do engenho. A chuva corria grossa pelos beirais de telha-vã, descia em rego ao longo das almanjarras, e a espaços, com as rajadas de vento, vinha fustigarlhes o rosto, a ela e ao Dito, encolhidos num canto, sobre o borco duma talha.
Entontecia-a o bafio pesado de calda azeda que as masseiras exalavam; e como o aguaceiro abrandasse, a água do açude começasse a subir com as enxurradas que desciam, e o córrego fosse agora uma vasta caudal de torrentes tumultuosas, ocorreu-lhe uma idéia:
– E se arranjássemos um bote?
– Ora, não custa – disse o companheiro.
E pronto, revirou a masseira em que se achavam, cavada num tronco largo de tamboril, arrastou-a até a margem do rio, e arremangando as calças acima do joelho, impeliu-a para dentro.
Ela descalçou os tamanquinhos, experimentava a água fria com a ponta rósea do pé. E
como ele lhe oferecesse a mão, saltou sem hesitar para a canoa, que a corredeira já puxava para o meio do rebojo.
Benedito empunhou a pá de bater melaço, deu com firmeza duas remadas, para a direita, para a esquerda. A embarcação, muito frágil, inclinou para uma banda, carregando água. Com o balanço, ela agarrara-se assustada à outra borda, para lá pendendo o corpo; e, àquela sobrecarga, o barco virou de vez, arremessando os tripulantes ao bojo das águas.
Procurou nadar, desatinada; mas Benedito já a rebocava para terra, em duas vigorosas braçadas. E de novo no engenho, tiritantes, procuravam os dois reanimar-se mutuamente com gracejos, sacudindo os fatos molhados.
Ela suplicou:
– Não digas nada, hein?
– Pois sim.
E o parceiro foi de novo atirar-se à torrente repor no lugar a masseira, engarranchada lá embaixo, num espinharal de malícias.
Aqueceram breve a roupa, ao sol ardente que se fizera após a chuva, como acontece tantas vezes no sertão; e foram depois apanhar os girinos do córrego, que depunham, trementes, em tanques separados, ou cheia a mão d'água da bica, faziam-na cair aos pingos nas folhas largas de taioba, cuja extrema polidura emperolava o orvalho como líquidos, translúcidos brilhantes.
À noite, teve um ameaço de febre; mas o escalda-pés que lhe deu a mamã, pusera-a de novo risonha e lépida na manhã seguinte.
Benedito armava mundéus de cutia nos goiabeirais, ou vinha trazer-lhe as juritis surpreendidas nas arapucas do quintal. Uma tarde, tinha onze anos – o papai tencionava conduzi-la na manhã seguinte ao colégio da capital – acompanhava-a ele ao sítio próximo duns conhecidos, onde ia levar as suas despedidas. Cavalgava a egüita castanha, nesse tempo muito nova e extremamente arisca. Passavam à distância dum cercado. De lá um pastor se pôs a relinchar prolongadamente.
A porteira estava aberta, uma trave atravessada no furo mais alto dos moirões. A
potranca, surda aos reclamos do freio, enveredou num galope desatinado naquela direção. A
trave pegá-la-ia pelo peito, à passagem do animal.
Àquele risco iminente, fechara os olhos, abandonara as rédeas, transida de pavor... Mas o seu companheiro vira de longe o perigo; numa corrida desenfreada, fincando esporas ao piquira, chegou ainda a tempo de alcançar a poldra entrando de raspão no curral e de arrancá-la com violência de cima do selim.
E fora ele quem recebera a pancada em pleno peito! Pancada que o atirou na lama, mas a depôs, intacta e de pé, sobre o solo.
Levantara-se sem queixar e fora pegar no curral os animais, que espojavam os arreios no lamedo.
Depois, depois... ela partira para o colégio.
Quando voltou, era moça, ele passou a olhá-la com um respeito e uma timidez, que só se rende às rainhas e às santas.
Nunca mais se deixou levar nos abandonos duma amizade de irmãos; e quando obrigado a dirigir-lhe a palavra, era contrafeito, como se se envergonhasse em seu foro íntimo da antiga camaradagem que ousara dedicar à filha do mais opulento fazendeiro daquelas terras.
E era aquele o único homem que lhe fora dado admirar, e que a mão do Acaso tinha atravessado em sua vida!
Ah, quando? Quando? Chegariam a entender-se?
E como a lua surdia no horizonte, como uma enorme roda de carro, avermelhada e triste dentre os vapores das derradeiras queimadas, alumiando ao longe os carreiros cor de barro e inundando o rosto pálido de nhá Lica, os seus olhos voltaram-se para o céu; e, fitando aquele astro, exalou-se-lhe dos lábios uma prece tímida:
– Nossa Senhora das Candeias, minha madrinha, velai por nós!
VII
Benedito viajava longes terras.
Atravessara o Meia-Ponte em Pouso Alto. Seguindo as informações que lhe dera um rancheiro perto de Morrinhos, enveredou pelo sertão das Abóboras, coito famigerado de relapsos e trânsfugas, onde tem ido às vezes a política estadual suprir-se de acostados e facínoras para os motins locais.
Naqueles fundões, abandonando as fazendas de criação e indo pedir pousada a um rancho de sapé que se acaçapa afogado no bamburral, à margem do ribeirão, o viandante vareja muitas vezes a casa do sitieiro, sem que encontre um punhado de farinha, um taco de rapadura ou a manta de carne-seca no jirau de mantimentos, fora a acolhida usual que lhe dá o hospedeiro.
Mas a clavina chapeada ou o rifle de estimação, topa dependurado, ao alcance, no gancho da parede, junto à patrona couro d'onça bem fornida de cartuchos.
É o único luxo que se permite aquela gente hospitaleira...
Não raro, a arma permanece inativa no cabide meses e meses, quando não sai para uma caçada d'anta ou espera de veado, ao tempo que os pequizeiros da chapada ou as tarumãs da beira do rio começam a derrubar as suas flores e frutos.
Viajava de costume à luz das estrelas, ou sob o limpidíssimo luar daquelas paragens, fugindo à mormaceira meridiana, num rastro que se lhe escapava muitas vezes com os informes contraditórios, pousando hoje à sombra duma palmeira de buriti, dormindo adiante nos ranchos solitários, que o município ou moradores das proximidades mandam construir à beira das estradas, para o descanso do passageiro e o encosto forçado da tropa nos pastos fechados das circunvizinhanças. Assim rondou o sertão do Caiapó, despistado por um correio que lhe dera uns sinais falsos na estrada de Jataí; e desceu margeando o rio dos Bois, certo já de encontrá-lo no Paranaíba, se se não tivesse o preto embrenhado em Mato Grosso por Coxim, ou escapulido para o outro lado das divisas mineiras, perdidas as pegadas nos centros populosos do Triângulo.
A pêlo-de-rato que cavalgava afrouxou logo no terceiro dia da jornada e teve de barganhá-la em Morrinhos com um forte desconto de quebra, o que lhe transtornou os planos, dando tempo talvez ao Malaquias de tomar o rumo que melhor lhe parecesse.
Entanto, obstinado como todo sertanejo, cedo ou tarde havia de topá-lo forçosamente.
Conhecia casos em que o batedor tinha ido pegar a sua caça no Uruguai; mas para o seu não havia necessidade de tanto, pois que o preto, dormindo descansado na fiúza de seu braço e o bote infalível, não teria decerto expediente para entocar-se naquelas funduras.
Desceu pois o rio dos Bois, e subiu beiradeando o Paranaíba, cujos afluentes engrossavam com as chuvas, à passagem das primeiras boiadas que vinham do sertão.
Em Santa Rita, um arrieiro deu-lhe notícias seguras da estadia do nagoa em Caldas Novas – vendera-lhe a besta de sela por uma tutaméia, com o produto adquirira na loja do Gaudêncio uma garrucha niquelada e dous cortes de chitão enfestado, que ofereceu à roxa com quem se metera aqueles dias à entrada do povoado. Lá havia a noite inteira bebedices e cantorias, numa das quais saíra esfaqueado o culatreiro de sua tropa, atraído ao casebre pelos descantes de catira, no meio duma rusga que os parceiros do nagoa acharam por bem armar às tantas da madrugada.
E assim dizendo, à porta do administrador onde proseavam, lá se foram encaminhando para o rancho, a cuja frente a besta da fazenda recebia a ração do embornal, o ferro do Quilombo sobre o quarto traseiro, enfileirada com as demais ao longo da casa.
Joaquim Culatreiro, o cabra que levara a facada, ainda desfigurado da sangria, veio até o parapeito e confirmou as palavras do patrão. Que sim, era mesmo o Malaquias, um negralhão espadaúdo, por sinal que tomara o seu partido no fuça, desarmando o cachaceiro que lhe tinha aprontado à traição aquele aleive.
– Quanto à mula, seu moço – dissera em consciência o arrieiro – pode levar consigo, que não quero animal furtado na minha tropa. O prejuízo é de duzentos mil-réis, mas irei entenderme com o seu patrão, tão logo navegue naquelas bandas.
– Não resta dúvida – atalhou o outro –, e, enquanto não aparecer, aqui lhe deixo, a fim de evitar transtorno na condução, o meu macho queimado. Até lá, vai-se remediando com ele...
Passou a sela dum para o outro animal, e após ligeira prosa, servida a café, com que o obsequiara a companhia, postou-se a observar uma ponta de gado que descia para o porto, estacionando na encosta, toda estarrecida ante as águas do rio, que turbilhonavam lá embaixo numa extensão de cerca de mil metros, espessas e profundas.
Eram as primeiras levas que o Estado exportava naquelas paragens, tangidas pela vaqueirama encourada dos boiadeiros, que por ali penetravam o sertão, a tirar as boiadas luzidas com que iriam abarrotar os mercados e feiras d´além-Paranaíba.
O boiadeiro, feita a contagem das cabeças e embolsados os talões com um forte abatimento de cinqüenta por cento de imposto na recebedoria – segundo o velho trato que mantinha em particular com o administrador – veio dar uma vista d'olhos ao gado apertado na rampa, e bradava ao capataz:
– Êh, Chico! É tanger para o outro lado do rio a boiada, antes que o dia vá de todo descambando. Olá, que é do passador? Ó Totônio, dá um pulo à casa desse homem, e avisa que é tempo de passar os meus bois.
Mas a mulher do nadador veio à porta dizer que sentia muito, mas naquela ocasião o seu homem não podia apanhar molhado, em resguardo ao ataque de sezões; que procurassem outro por ali mesmo, que haviam de encontrar.
– Veja só, que transtorno! – bufou ojerizado o boiadeiro, batendo botas e bombachas com o rabo-de-tatu. – Êh! negrada valente da boca do barulho, qual de vocês aí sabe nadar?
E animava os rapazes reunidos num alto, a dominar a manada, gesticuloso, encarando-os fito um a um, os olhinhos reluzentes, dentro o seu carão tostado de sulista. Mas ninguém, entre aquela vaqueirada, se sentia com ânimo bastante para afoitar-se naquele mundão de corredeiras rápidas e rebojos que espumavam lá embaixo. O capataz ajuntou. Que seu Juvêncio desculpasse, mas tinha as cadeiras rendidas por uns fardos que erguera em seus tempos de tropeiro; e a mais, a mão esquerda aleijada duma cortadura de facão feita havia anos.
Os demais, não se atreviam.
– Rapaziada molenga! Quem há de ser, quem?
Descera o barranco, sobre o pontilhão da barca, a balouçar presa à corrente da beirada; e alcançando a mão em pala, olhou para o outro lado, perquirindo a margem mineira, onde um bando de pombas caldo-de-feijão parecia mais moscas a voejar; sondou com cuidado os arredores de uma casa acachapada na ribanceira, de cujo telhado ascendia uma espiral esmaecida de fumo, e voltou desalentado à roda dos camaradas, repuxando as bochechas rosadas, numa impaciência que mal podia sopitar as pragas trovejantes que lhe gorgorejavam no peito.
– Gente mofina, gente mofina – repetia inquizilado.
Então Benedito avançou a besta, que refugava nas esporas, e adiantando-se até o grupo, ofereceu os seus préstimos: Que ele sabia, e, se quisessem, estava ali às ordens.
A natureza expansiva do boiadeiro explodiu incontinenti numa risada sonorosa. Batendolhe à coxa com animação, vozeou voltando-se para a companhia:
– Moço às direitas!
A rapaziada espalhou-se logo em direções opostas, batendo o carrascal e unhas-de-gato dos arredores, apertando o gado num círculo de mais em mais fechado, compelindo-o para a rampa, onde os curraleiros se detinham, resistindo aos que vinham atrás, cascos fincados, numa atitude queda de refugo, o olhar esgazeado para a água torva do rio...
Mas a vaqueirama premia alas, animando-os no arrodeio, à grita prolongada:
– Êh! ôh!... Êh! ôh... oah!...
E um alentado caracu, após recolher hesitando uma e outra munheca, atirou-se num arranco ao remanso; e, perdendo logo pé, as suas aspas ficaram a boiar, junto ao focinho úmido, que aspirava com sofreguidão o ar em torno.
O cabra, apeado, atirou-se mais abaixo, vestido como estava, d'esporas e chapelão, tomando-lhe a frente, guiando-o com o aboiado; o resto da boiada, aos pares, aos magotes, os ia seguindo à esteira, após um baque surdo de corpos sobre a água, que espadanava para as margens as suas toldas aljofrantes.
Já o boiadeiro se metera com homens, animais e bagagem na barca. Impelida rio acima pela zinga do piloto e varejões, cujo gancho uncilado se agarrava à garrancheira da margem, foi impulsionada para o meio, entrando rápida a faina dos tripulantes em vencer as correntes no manejo dos remos, indo depois aportar, numa descida lenta, às terras de Minas.
Em pouco, descortinando-se de lá, flutuava mais abaixo e ao longe toda uma vasta floresta movediça de aspas retorcidas, emergindo fantasticamente do seio torvelinhento das águas, os cornos a entrechocarem-se nos bolos, tocada lentamente das correntezas, e aos poucos afastando-se da margem goiana, ao canto abafado do passador, cujo vulto aparecia aquém, como uma pequenina cabeça d'alfinete.
Às vezes, no redomoinho duma corrente, um boieco soerguia desesperadamente as ventas exaustadas, sorvia com demora o ar em roda, soprando um grosso bafo de vapor, que o sol irisava, e agitando os cascos à tona um momento, desaparecia de vez, no rebojo das águas.
– Mais um!... Mais outro!... – dizia resignado o boiadeiro, esperando-os cá do barranco.
Dava-se por feliz quando deixava apenas a ossada dumas trinta reses alvejando atrás, à beira dos malhadouros, nos olhos-d'água dos vargedos, onde acampava à tarde a boiada.
Azares do ofício. À noite, a camaradagem rondava por escala a manada, revezando-se um a um no arrodeio, descansando nos intervalos em que o gado deitava para ruminar, quando a presença duma jaguatirica na boca da mata não levava o alarma a todo o acampamento, como o espirro súbito duma ponta de curraleiros. Faina dura! E de pouso a pouso, léguas e léguas dos vastos Gerais goianos, à canícula meridiana dos tabuleiros e cerradões, bandos e bandos de urubus a acompanhá-los na marcha lenta, serenando nas alturas, abatendo-se às chusmas nos brejais lamarentos, onde um novilho incauto se esforça atolado; sobre a copa duma fruteira-de-lobo da chapada, a cuja sombra agonizava outra rês afrontada do mormaço, quando não se punham a banquetear na carniça da que ficou atrás, picada de cascavel, nos travessões de mato por onde passaram.
E é um espetáculo que cerra o coração, ouvir o bramido que solta a rês retida no atascal, onde embalde briquitavam em roda com o laço os campeiros para livrá-la, e o olhar profundamente humano com que segue a boiada, que se movimenta rumo das malhadas distantes...
E ali fica sem auxílio, apodrecendo numa agonia estupenda, presa viva dos abutres que lhe arrancam às bicadas a carne palpitante.
E se casualmente por ali passou depois um vaqueiro no rastro dum animal fugido, dá-lhe por comiseração um tiro ao ouvido, para acabar com aquele martírio.
Entanto, pago o ajuste de sua gente, descontados os impostos e encostada enfim a boiada nas invernadas de Três Corações, aqueles bois lhe vão render um saldo compensador, dada a baixeza de preço por que os adquiriu no interior de Goiás.
Tomando pé na margem mineira, Benedito foi ter ao varandão dos tropeiros. Assentado sobre os calcanhares, braços estendidos para o fogo, enxugava as roupas, enrolando uma palha de cigarro, já de todo reconfortado com o trago da borracha de pinga que lhe oferecera o cozinheiro.
A vaqueirama fechara num pasto a manada. O boiadeiro meteu a mão no bolso da calça e, sacando de um bolo de notas, estendeu-lhe uma pelega de cinco, que recusou.
Desculpasse, não era soberba, mas não fizera aquilo por amor ao ganho.
O outro insistiu, mas ele encolheu os ombros, sorrindo: ora, que desse à mulher do passador, necessitada, com a doença de seu homem, e aquela penca de filhos às costas.
– Pois este Pernaíba não é brinquedo de menina fêmea – asseverava o capataz. – Tem histórias... De vez em quando, contam os moradores, aparece aí no meio do rio um toldo de carro, e então é certa a morte duma pessoa afogada nas redondezas...
– Conversas! – atalhou o boiadeiro.
Mas não, ninguém ali duvidava, muitos tinham até visto ao meio-dia, outros à luz da lua.
– Ora, ora, nem mecê parece viajado, seu Chico! – Nunca vira patetice igual à daquela terra. Povo franco, é verdade, mas a presteza em pôr fé naquelas bobagens! Já para o sul, no Rio Grande onde tivera a dita de nascer, a cousa era outra: gente positiva.
Não duvidava:
– Toda terra tem seu uso; e o mundo é grande, seu Juvêncio, para caber isso tudo.
Enfim, não valia a pena teimar sem caso pensado.
Pois sim, pois sim; nele é que não pegavam, porém, aquelas baboseiras.
E como o cozinheiro batesse a borra do café no parapeito, escaldando o coador e repassasse depois a bebida, pôs termo à conversa com um convite franco:
– É entrar no cafedório, enquanto está pelando!
VIII
Chovia aquela noite. Não essa chuvinha miúda, comum às plagas do litoral, que no sertão cacheia os arrozais, e o lavrador abençoa como as primícias duma colheita abundante; mas aquela pancada pesadona, cortada de relâmpagos ziguezagueantes e estampidos de trovão, que emudece a natureza e transe as árvores sob o látego do vento esfuziando nas baixadas, e quebra e tala o milharal em que o matuto depositou as esperanças do ano. Chuva brava, a que sói muitas vezes, desentranhando raízes nas enxurradas, transpor socalcos e barranquias, despenhar-se nos grotões, esvazando nas covoadas e morrendo nos ribeirões, que engrossam e transbordam mato adentro.
Com os raios que fendem meio a meio angicos e canjeranas, estalando nos fraguedos nus e picos de morrarias, áspera provação, a do viandante desgarrado naqueles fundões.
De cada vargem rebenta um olho-d'água, fortes caudais descem reboando pela garganta das serras, a cada passo a montaria empaca junto a um lamarão inabordável, a pinguela do rio rodou légua abaixo, no atalho mais seguro. O frio cerra, sob o ponche encharcado; e é uma felicidade caída dos céus quando se avista, entre as cordas de chuva, uma luzinha ao longe, num desvio, que realenta o ânimo do caminhante transmalhado naquelas funduras. Tem-se então, viva, a sensação da graça divina outorgada. Daí o grande fundo de religiosidade daquela gente.
Naquele cochicholo da estrada, ao princípio do povoado, o cateretê entrara duro pela noite, sob as toldas d'água cantando no telhado, e aos goles da caninha com gengibre que a dona da festa repartia amiúde, em tigelas, aos convidados.
Sentado ao canto num tamborete, pernas trançadas, junto ao prato da queimada, o sanfoneiro espichava o fole do instrumento, a cabeça ora a uma banda, ora a outra, apertando entre os dedos as chaves, na toada dolente da dança.
Saracoteando na sala à frente duma mestiça, que bamboleava derreada o corpo, olhos em alvo para o parceiro que a distinguira na roda, chorava um crioulinho atarracado:
Rolete de cana É bom de chupar!...
É bom de chupar!...
É bom de chupar!...
E os demais, acompanhando, gemiam em conjunto:
É bom de chupar!...
É bom de chupar!...
Malaquias, saltando num pé, meio tomado, saiu-se com esta:
Minha tia é magricela, Tem achaque no pulmão, Fui pedi-la em casamento, Respondeu que fosse ao cão!
Rolete de cana É bom de chupar!...
Logo o coro:
É bom de chupar!...
É bom de chupar!...
Mas alguém batera à porta. A festeira foi abrir. Montado, o pala escorrendo água, as abas do chapéu dobradas sobre o rosto, o forasteiro num relance varejou aquela cena. Descobriu o Malaquias agachado sobre o garrafão de cachaça, a despejar o seu conteúdo no prato de açúcar, e berrou:
– Negro! Vim buscar-te!
Ele olhou, turvo, e apanhando sobre a mesa um facão amolado com que raspara a rapadura, saiu ao terreiro. Os demais guardaram silêncio, intimidados com o tom imperativo do recém-vindo. – A mim ninguém amarra – urrou o preto riscando a terra com a faca. – Quem entrar neste risco vai de encomenda pra Satanás. É chegar, quem pode!...
Benedito serviu-se da garrucha, alvejando-lhe o braço para desarmá-lo; não era, porém, fogo central e apenas as espoletas estalaram.
O negro, enfurecido, saltou-lhe então à goela num bote cego; e o outro, rodando numa esporada a besta, deu-lhe com a coronha da arma uma pancada no cotovelo, e o nagoa, tolhida a destra pelo choque, deixou cair o ferro.
Sem dentença, saltando do animal, já Benedito o algemava com as ferropéias, que tirara pouco antes da garupa. Jugulado o adversário, sem se importar com os protestos da assistência que dava mostras de querer intervir na questão, preso o cadeado da corrente à sobrechincha da sela, montou de novo e foi tocando o preso para a frente, sob o chuvisqueiro que recomeçava a cirandar.
– E essa! – disseram uns aos outros boquiabertos. Mas Silvirina, a festeira, que ostentava um vistoso corte de chita, presente do Malaquias, atalhou com um muxoxo:
– Ora, gente! Basta de pasmaceira. O que foi lá foi; o negro era camarada fugido, devia ao patrão. – Tinham vindo buscá-lo; o mais, era tratar de folgar enquanto houvesse música...
– Ó seu Tomás – disse, voltando-se para o sanfoneiro que se deixara ficar indiferente no tamborete. – Toca aí uma quadrilha, faz favor.
Estirado nos baixeiros que lhe deixara Benedito, Malaquias voltava a si, no rancho do povoado, dos vapores do álcool que lhe toldavam o juízo.
Desafogou o pescoço, metendo ambas as mãos à cadeia da gorja, a olhar aboborado para as brasas do lume, meneando a cabeça, num esforço penoso de quem procura coordenar as idéias. Sentia a goela seca, e, fazendo tenção de levantar-se, no que era estorvado pela corrente cuja extremidade o companheiro prendera por cautela ao pulso esquerdo, pediu com voz humilde uma gota d'água.
Benedito foi apará-la ao beiral e como se sentasse ao lado, chegando-lhe aos lábios a copa do chapéu onde a recolhera, o preto, limpando em cada ombro o fio d'água que escorria pelos cantos da boca, fitou-o demoradamente, depois disse aliviado, sem rancor:
– Seu Dito fez mal, não devia aceitar aquela incumbência... Tempo de cativo e capitãodo-mato já passou... – Estava no seu direito de ir para onde muito bem queria... Labutava na fazenda, trabalhando dia e noite como mouro; e no fim, que é que via? Dívidas e mais dívidas, o patrão de ano em ano mais exigente e desalmado; enfim, aquela vida de cachorro de camarada.
De resto, sem garantia no trato. O patrão abusava de sua falta de letra, esticando como lhe parecia na conta, transtornando os seus arranjos de abatimento do fim do mês; e ela, a danada, a espichar, a espichar, que nem mesmo um imperador era agora capaz de resgatá-la! Ora, nesse pé, não podia haver seriedade no ajuste. Mais valia cair a gente no mundo, como fizera, ou estourar aí para um canto, moído de pancada, como sucedera ao Torquato por meter-se a respondão...
O outro deixou-o desabafar em sossego. Ultimava os aprestos do café, que tirara dos alforjes. De cócoras junto à fogueira, ia empurrando para o lume os gravetos que ardiam, picando um rolo de fumo, e a esmoê-lo silenciosamente na palma da mão.
– Olha, negro – disse de repente – se és o mesmo de sempre e dás a tua palavra de como não tentas fugir, tiro-te esses estorvos.
Deu-lha Malaquias com solene gravidade, e como ficassem proseando num certo pé de camaradagem, assentados sobre as mantas, o preto falou sentencioso, acentuando as palavras, quase em segredo:
– Olha, seu Dito, sempre lhe tive na estima desde pequerrucho; nem sei mesmo como aprontei aquela tarantada na porta da Silvirina; devia ser da cachaça. – Mas que tomasse sentido, aquele fazendeiro ainda havia de lhe dar o pago da sua dedicação.
– Hum! hum! aquilo é bicho mau que nem peste, Seu Dito; muito afável para os que não lhe deviam obrigação, mas judeu até ali com os subordinados ou quem se metesse a empatar-lhe as vazas. Se não dava mostra de toda a ruindade que tinha, era devido à presença da mulher, temente a Deus. A prova estava em como bastou a patroa ir com os filhos passar algumas semanas em Curralinho, para que mandasse logo surrar o Torquato da maneira que fez, escadeirando o rapaz e dando com ele na cova.
E como batesse o sarro do cachimbo, atupindo-o com o fumo que lhe emprestara o companheiro, ficou a banzar, chupando o canudo, olho pregado nas brasas que se consumiam.
Depois, numa baforada, meneando a carapinha, repisou:
– Seu Dito, Seu Dito, toma tento naquele judeu. – Sabia de cousas... Olha, parecia conversa, mas era verdade; o velho botara o seu olho em riba da Chica; mandara-lhe por ele, Malaquias, uns presentes que a mulata recusou. Isso, depois que o moço já andava metido lá...
Não dissera nada até então, a pedido da Chica, que não queria Seu Dito zangado com o patrão.
Hum! hum! Aquela cobra tinha veneno... Nem mesmo parecia marido de quem era! D. Luísa, essa sim, uma santa. E a filha saíra-lhe em tudo na bondade, mais a beleza, que mesmo parecia uma Virgem no altar.
– E olha, seu Dito – ninguém lhe tirava da idéia – aquela moça tem paixão pelo senhor. –
Quando andava ausente lá pelo povoado, vira-a uma vez sob a mangueira do quintal, olhando para a janela de seu quarto, uma lágrima nos olhos. Ele estava ali perto, agachado numa touça de fedegoso, a armar um laço para os filhos de João Vaqueiro. Ouvira-a dizer num suspiro:
– Benedito...
Àquela revelação, o moço sentia como que um aperto acerbo travar-lhe pouco a pouco, dolorosamente, as pancadas do coração. Fugira a lembrança de Chica, de que a narrativa do preto avivara zelos ferozes; ficara apenas de pé, nimbada no fundo de suas recordações de infância, a meiga companheira de travessuras passadas, de que uma timidez excessiva o afastara na fazenda, atalhando uma inclinação que não se sentira nunca com forças para revelar-se a si mesma. Exaltava-a em pensamento, nos rápidos instantes em que detinha em sua doce figura a imaginação, como um ideal mui alto, onde só se pode deter de joelhos, como as imagens das santas que se contemplam nas igrejas... E quando a via passar entre as laranjeiras ou a acompanhá-la silencioso nos longos passeios pelo campo, morriam nele os olhos da carne, e era uma imensa, dolorosa saudade que ficava, angelizando tudo... E não sabia que aquilo era amor!...
Fora, as trevas despejavam chuva com reiterada violência; uivavam os ventos ríspidos, e no largo, o chocalho da besta badalava cavamente, aos intervalos da borrasca.
Malaquias roncava, papo para o ar, estirado nos baixeiros. E ele ali a pensar, a pensar, curvado sobre as cinzas, comprimindo entre os joelhos as fontes, que latejavam...
IX
Ainda não havia de todo anoitecido, quando avistaram, dentre currais, os telhados do Quilombo, para onde tangia João Vaqueiro uma ponta de gado. Na tarde que caía, o vulto do cavaleiro, cortando a galope a frente dum garraio refugado na porteira, agitava-se ao longe como um pequeno ponto sujo no horizonte; e até cá embaixo, na vargem por onde subiam, vinha rolando o canto do vaqueano, num supremo e vigoroso lamento:
– Êh côou!... Êh! côou!... Êh!...
Ecoava tão perto o aboiado, no ar translúcido da tarde, junto aos ladridos do cão pastor mordendo a focinheira da rês espirrada, que um momento entreteram a ilusão de alcançá-los logo à cola, mal galgassem a encosta dos buritis, embora o comprido estirão a palmilhar que mediava ainda a vargem da fazenda.
E era já noite fechada quando transpuseram o mangueiro, manquejando como vinha o Malaquias, com uma estrepada de tucum no calcanhar, que inchara e se pusera a sangrar desde o pouso da boca da mata. A cancela bateu, num chiar prolongado de guariba malferida; e os dois endireitaram para o lanço principal, em silêncio àquela hora e onde as luzes permaneciam apagadas, como mansão sem moradores. – Ó de casa! Êh, gente! Ó vaqueiro! – gritou Benedito.
João Vaqueiro pôs o nariz fora do paiol, onde recolhia os arreios, e numa mal disfarçada satisfação, retrucou:
– Êh, de fora! Ora essa, êh! Nhô Dito! Cá chegou o homem, enfim.
Arrastando as chilenas, correu a apertar-lhe as mãos, segurando as bridas para que apeasse, todo exclamações, mal dando tento de Malaquias, que se derreava encapotado à sombra do batente; e saía já às carreiras, a dar a novidade ao pessoal, quando o outro o interpelou de novo:
– Mas não se vá, homem de Deus, espera aí um tiquinho; que é do patrão mais a família?
Nhô Dito não sabia, mas tinha havido mudanças em casa; a patroa fora no princípio do mês passar com nhá Lica uma temporada em Curralinho, onde ia repor Nequinho na escola.
Quanto ao patrão, andava lá pelo povoado, às voltas com os negócios da política; mas não seria aquele o transtorno, mandava um próprio avisá-lo, e de manhãzinha estaria em casa ou enviava as suas ordens.
Não sabia por quê, mas aquela mudança contrariou o moço; farejou qualquer cousa no ar.
Apressou-se porém em recolher o nagoa à casa do tronco, o antigo legado da escravatura, onde, ao capricho dos fazendeiros, recebiam correção os camaradas malandros.
Desfeito o jejum forçado em que estava até aquela hora, pela pressa de chegar e dar cabo de sua missão, no rancho do vaqueiro, cuja mulher lhe serviu um quibebe de abóbora que foi depois levar ao Malaquias, dirigiu-se para o seu quarto de solteiro, onde um sono solto, sem sonhos, o empolgou numa assentada, compensando as horas mal dormidas ao relento, e acabando de vez com aquele mal-estar da viagem acidentada.
Acordou dia alto com o estrépito dum animal que transpunha a cancela, e a voz pigarrosa do coronel trovejando no terreiro. Deixou-se estar ainda algum tempo no leito, numa quebreira avassaladora, olhos no teto, a divagar sobre toda aquela existência ali decorrida, onde a visão de nhá Lica surgia agora iluminada duma nova luz, numa suave auréola de perdão e reconforto, a tirá-lo duma senda por onde cega e erradamente enveredara antes, e talvez, talvez... o verdadeiro descanso, a verdadeira felicidade, poderiam vir a bafejá-lo em cheio...
Mas a voz do fazendeiro, que mais brava e trovejante se escutava a espaços, arrancou-o de vez à inconseqüência daquele vago devanear. Levantou-se numa sacudidela, correu para a casa do tronco, na dependência à banda, onde o coronel, cercado de seus homens, empunhava o rebenque, ameaçando o preto acorrentado ao cepo, que, sem proferir palavra, olhava obstinadamente as cadeias do pulso.
O fazendeiro mal correspondeu à sua saudação. Voltado para os camaradas, ordenava imperioso:
– Que um de vocês chegue para aí às direitas o relho neste negro.
Os homens entreolhavam-se, confundidos. Não estavam acostumados àquele mister.
Mandassem-nos assaltar a urna no povoado, sob o ferro dos contrários, correr com um bando de ciganos que talasse os campos da redondeza, e estavam ali todos prontos a enfrentar o perigo, pagando mesmo com a vida, se preciso fosse, o seu devotamento.
Mas surrar um preso, atado sem defesa àquele tronco, excedia as raias de seu entendimento, nem tinham ânimo para tanto.
A nobreza daquelas almas brotava-lhes nítida do coração à flor dos olhos, e somente o cenho duro e feroz do senhor dava largas a um ódio surdo, implacável, que lhe punha tremuras na fala e os demais transidos, hesitantes entre desobedecer ou cumprir uma ordem que lhes parecia fora de todos os preceitos da lei humana...
– Ninguém?! ninguém?! – resfolegava a custo, purpureado o rosto de cólera. – Pois eu mesmo vou mostrar como se ensina um cachorro!
Enrijado, o azorrague estalou no ar e desceu sibilando sobre o lombo nu de Malaquias, donde não tardou em pouco o sangue a ressumar.
O preto apanhou calado, batendo a cinza do cachimbo, que acendera momentos antes.
Àquela resignada mudez, a encher de espanto os demais, afrouxou a sanha do algoz, que aplacado já à trigésima vergastada, rosronou d'entre dentes: – Tens para hoje a tua conta, veremos o resto depois. E olha que não sou dos mais vingativos, fosse noutra fazenda e a tua medida seria acrescentada...
Enfiou o chicote no cano da bota e meteu-se pelo interior da casa, onde não mais foi visto o resto do dia.
Benedito achou-se às voltas com um grande arrependimento. Ter ido a tão longes terras buscar o nagoa, para assistir àquela cena! Das outras vezes, cumpria relevar, fora sempre mais compassivo o patrão. Enfim, desobrigara-se do seu dever; que desse o coronel satisfações a quem de direito. Agora, só tinha em mente um pensamento: rever nhá Lica.
À noite, foi ter ao paiol, onde se reuniam os camaradas, a distrair o espírito daquelas idéias importunas. Na forma de costume, lá dava Fidélis largas à imaginação:
– Seu João, viu como o negro pitava o cachimbo?
– Vi, e que tem?
– Pois andava ali feitiço, tinha certeza; trato daquele jeito, ninguém pode aturar sem pôr a boca no mundo; só mesmo a santa paciência de Nosso Senhor Jesus Cristo era capaz de tanto.
Ali havia feitiço...
– Ora, gente, Malaquias sempre foi homem de opinião; achou que não devia piar, e nem que o matassem a pancada mudava de tenção; aí está.
– Pois pergunta sá Quirina, que foi do tempo da escravidão, a história de pai Romeu; tal qual como o Malaquias!
E narrou. O senhor mandara surrá-lo por vias dum furto, de que o escravo era inocente.
Deu-lhe o feitor uma tunda mestra, até não mais poder levantar o braço de cansado. Trezentas lambadas recebeu pai Romeu no cangaço sem que desse parecência de dor. Pediu apenas fogo para o pito, que atupiu de cinza.
A taca cantava de cima, e ele a tirar baforada mais baforada...
O senhor d'engenho apanhou o bacalhau, que o outro já não podia agüentar, e acrescentou outras tantas tacadas.
O preto, calado, pitava o seu cachimbo.
De vez em quando remoía os beiços, mastigando uma reza má; mas não soltou um só gemido.
Pois bem! assim a tereia cantou-lhe nas costas, lá no canavial ouviu-se um grito lamentoso. Era o filho do senhor a queixar-se de que o estavam espancando à traição.
Mas não havia ali perto ninguém. Os companheiros acudiram e bateram as moitas da redondeza, não topando viv'alma; e, entanto, as pancadas iam uma a uma caindo-lhe rijas nas costas, e ele a correr duma para outra banda, desvairado, ao tempo que os demais, tomados de pavor, levavam a mão à cabeça e clamavam por socorro. Ouvia-se perfeitamente o zunido do vergalho a retalhar-lhe as carnes, mas a correria, nem quem a manejava, não se percebia em parte alguma.
As roupas em frangalho, numa correria desatinada, o senhor moço embarafustou então pelo caminho de casa, apanhando sempre. Lá chegou arquejante à casa do tronco, onde o pai suspendia o castigo, e lá se estatelou atravessado no batente, vomitando sangue pela boca, para nunca mais se erguer...
Pai Romeu, entretanto, continuava a ruminar as suas rezas, puxando, indiferente, a fumaça do cachimbo.
– Isso viu sá Quirina, que aí está entrevada no jirau, em seu tempo de moça; e por esta luz me jurou que era verdadeiro.
Ora, Malaquias também pitava a cinza do seu cachimbo, e não tugiu nem mugiu quando recebia a coça... Uma criatura não apanha assim sem pacto com o diabo. Ninguém lhe tirava da cachola que o filho do patrão estava também levando a sua sova nalguma parte, em Curralinho por exemplo.
– Seu João, que me diz a respeito? A velha não mentiu, viu aquele fato com os olhos da cara que a terra há de comer. Que lhe parece?
O outro coçou a orelha, interdito. Histórias como aquela eram correntias no sertão.
Demais, poucos, muito poucos, duvidavam. Entre aquela gente simples não era costume a mentira. Se alguém aprontava um carapetão, ficava logo desacreditado para o resto da vida; e daí, a ofensa grave de que se julga alvo o sertanejo cuja palavra é tomada em suspeição.
Assim quando um caso como aquele ia de encontro às idéias assentadas sobre a experiência de cada dia, chocando as mais comezinhas noções que possuíam da realidade, era vezo dizer-se previamente: Não punha a menor dúvida no acontecido, longe dele duvidar, mas...
E avançava as suas razões:
– O fato podia explicar-se. Talvez fossem os parceiros de pai Romeu que, aproveitando a ocasião, tivessem dado aquela pisa no filho do senhor, a ponto de não mais poder queixar-se depois. E vieram relatar o caso daquela maneira... Tudo podia ser neste mundo largo... Vingança de cativo tem manha. – Enfim, não duvidava...
Quanto ao ato arbitrário do coronel em chicotear o Malaquias, ninguém aludiu, nem lhes passou pela mente discutir as razões. Era aquele um costume que assistia aos fazendeiros, e que punham em prática quando bem lhes aprovinha, sem que com isso levantassem entre os seus a mínima oposição, ou mesmo um simples murmúrio de censura.
Competia-lhes aquele direito, como outrora competia ao senhor feudal indicar, entre a arraia-miúda de sua peonada, um vilão qualquer, tirado a dedo, para que se lhe abrissem as entranhas onde enfiar, nas carnes palpitantes, os pés regelados das sortidas de caça.
Demais, da freqüência dessas usanças, resultava escapar à rude singeleza daqueles homens a compreensão de semelhante arbitrariedade. E, se protesto havia, era apenas a repugnância instintiva que sentiam todos em pactuar naquelas iniqüidades.
João Vaqueiro que ali estava, o mais prestimoso servidor da casa, cuja família a vinha servindo de pais a filhos, também tinha as suas queixas, se tinha! a formular contra aquele pé de cousas. Cuidava da criação de eito a eito, estivesse o senhor na fazenda ou andasse ausente na capital; tangia dos malhadouros as vacas, quando amojavam; curava no curral a bicheira da bezerrada nova, ferrando-a com o ferro do patrão, capando em tempo os boiecos, a fim de evitar desandamento na mestiçagem. A mulher fabricava com o leite, o queijo, o requeijão, a manteiga, que iam no mercado render dinheiro à casa; enfim, tinha por ano a sua paga de vaqueiro, que lhe dava a marca de tala, a razão duma sorte por lote de quatro crias.
Com essas cabeças tenteava a existência, formando pouco a pouco a sua leva separada.
Mas o patrão vira-lhe os arranjos, deitava logo com inveja o olho em riba.
Ora era a mulher do vaqueiro, que fora ao povoado e lá cobiçara um guarda-chuva de cabo floreado na loja do major Higino. Aquilo não lhe proporcionaria a mínima utilidade na fazenda, entre as garrancheiras e cipoais dos cercados. Mas era um desejo. Chegada à casa, punha o marido ao corrente de seu capricho. Ele coçava a orelha, e ia ter com o patrão.
Este, apressado, com gestos amplos de largueza, mandava um portador adquirir o brinco no negócio, e a mulher do vaqueiro tinha com que se pavonear do rancho à cozinha da casagrande.
Mas aquele guarda-chuva, que custara à vista oito mil-réis, lançava-o à sua conta o fazendeiro por vinte e mais, resultando daí todo o fruto da trabalheira do ano, as suas sortes penosamente apartadas, serem quase que insuficientes para resgatar o preço de semelhante bugiganga...
Outras vezes, era um zebu reprodutor picado de cobra, um novilho de valia que uma rodada mal segura pusera defeituoso. Jogada a culpa sobre o vaqueiro por imperícia ou falta de vigilância, o seu rebotalho era então pouco para saldar aquela rês perdida, que o senhor encarecia.
Entretanto, continuava a servir a fazenda com o mesmo zelo de sempre. O amor àquela vida a que se acostumara desde os cueiros do balaio, o dasapego nativo às questões de dinheiro, compensavam-no largamente das vexações sofridas. Continuava ali servindo, como tinham servido seu pai e avô, como também viriam a servir filhos e netos, desinteressado no ganho, defendendo com aferro os negócios da fazenda, na prosperidade dos quais punha mais cuidados que nos próprios arranjos. Assim, não compreendia a fuga do nagoa, que acreditava vergonhosa, como não compreenderia nunca a sua dedicação a toda prova pela causa do fazendeiro.
Só na alma de Benedito, mais esclarecido, como um cão danado remordeu o remorso...
X
Pela volta das três horas, Benedito recolheu-se do campeio; e, após uma terrina de coalhada, modorrava na rede do paiol, ao abrigo da soalheira, que abrasava.
Fora um dia trabalhoso aquele, na boca da mata! Metido na macega, no pampa mascarado campeador, ao virar das onze e meia já tinha todas as reses encostadas num furado, sob a guarda de Fidélis; mas um novilho de nhá Lica, alentado meio-sangue reprodutor, dera-lhe ainda pancas por uma boa estirada de tempo; e, não fora topá-lo depois a jeito, dando-lhe uma rodada merecida, nem mesmo sabia quando lograriam pôr-se de novo a caminho de casa.
Ajudara Fidélis a tanger o gado até a malhada próxima, onde os esperava João Vaqueiro com outra ponta, e fora depois tirar os palmitos de guariroba que lhe tinham recomendado na cozinha.
Chegou moído, o pampa meio bambo da labuta, que até mesmo recusara a mão de sal no cocho da salgadeira. Por seu lado, ele trazia as juntas doloridas, as mãos ardendo do cabo da machadinha, e o couro do guarda-peito inutilizado por um violento rasgão de espinho de veludo, que, na tropelia do campeio, quase o trespassava também de vez na mata.
Mal pousou a cabeça sobre o punho da rede, já uma camoeca molesta chumbava-lhe as pálpebras; e, na sonolência que o quebrantava, formas estranhas começaram a passear-lhe a imaginação, encarniçando-se às vezes sobre um pequenino episódio do dia, a ampliá-lo e a exagerá-lo dum modo bizarro, ora era o novilho ateimado em encafuar-se na biboca, ou tinha sempre à vista um galho atravessado na galopada, de que era preciso desviar-se a todo o custo.
Zuniam-lhe os ouvidos. A mormaceira ardente daquele dia, que ao recolher o gado apanhara quase toda na chapada, punha-lhe as artérias a latejar, e a cabeça mais parecia uma zorra a zumbir...
Fora o veranico, aquela dura soalhada que nas intermitências das chuvas castiga o solo goiano, imobilizava a natureza, numa letargia contagiosa, emudecendo no terreiro o terno cacarejar da criação, sob as taiobas do açude, a sugar ávida a água do rego, catando no tijuco uma minhoca para a ninhada de pintainhos, que recolhia agora à sombra dos laranjais, onde ciscava uma cama fofa e esparrimava-se na frescura da terra, o bico semi-aberto de cansaço e insolação.
A grande luz faiscava intensa na fachada do edifício principal. Da parede, uma tênue e impalpável poeirada ascendia, a provocar terçóis e inflamações noturnas à vista de quem desastradamente ali detivesse o olhar sonolento e deslumbrado.
A tarde já descia rápida, sem aragens. Benedito passava, enfim, do incômodo modorrar a um ligeiro sono reparador. E quando veio o crepúsculo, com um bando de pássaros-pretos que gorjeavam no coqueiro da cerca, e se pusera a picar no batente da porta o fumo do cigarro, tirando uma fumaçada distraído, ocorreu-lhe súbito a lembrança da Chica.
Assim, numa tarde calorenta como aquela, ao badalar do sino chamando os fiéis à novena e à alegre garrulada dos pássaros-pretos nos coqueiros do adro, vira-a a vez primeira no arraial, três anos e tanto atrás.
E uma semana havia já que estava no Quilombo, donde logo se ausentara o patrão, deixando-lhe expresso o encargo de vigiá-lo, e embalado num devaneio intraduzível, deixado n'alma pela revelação de Malaquias, não tivera tempo ainda de pensar naquela alegre companheira de folgares, que penas e aborrecimentos tantas vezes lhe poupara, com as suas chistosas galhofas e o riso brincalhão sempre pronto a desabrochar nos lábios escarlates.
Uma necessidade brusca de revê-la apossou-se-lhe da alma.
Seguindo, na forma do costume, o impulso da primeira idéia, mal o pensara já apanhava o cabresto, indo pegar no pasto a Pelintra. Deixou-se ainda ficar dous minutos no curral, proseando com João Vaqueiro, a fazer diversas recomendações, após recusar o convite para a janta, que estava posta, e dizendo ir cear no povoado.
Depois, duas esporadas no vazio e a mula atravessou a cancela escancarada num galope mal contido, descarregando o ar da barriga, na ânsia de ganhar o chapadão.
– Sinal de que volta logo – ainda bradou de longe o cabra a rir, voltando-se na sela.
E sumiram ambos numa depressão.
– Hum! hum! – pigarreou João Vaqueiro. E o patrão que punha tanto empenho ao ordenar-lhe que em caso algum deixasse a fazenda. – Hum! temos aí marosca feita.
E recolheu-se, pensativo, a repuxar a barba. Tinha uma dúvida a doer-lhe a consciência quando o moço se despedia, mas entre o dever e a amizade, resolvera calar.
– Mulheres!...
– Que é que te põe assim macambúzio, criatura! – interpelou-o a mulher, que o via ali parado à soleira, matutando.
– Cousas...
E num repente, meio irado, descarregando-lhe por cima o peso da preocupação em que vinha:
– Mulher, diacho de bicho abelhudo! É tratar antes do que é da sua conta, deixa os outros em paz.
– Também, pra que tanta zanga, homem de Deus? – não perguntara por mal.
E não falaram mais naquele assunto.
Entanto, Benedito batia longe, no galope sustado da rosilha.
Eram onze horas menos um quarto quando, deixando arreada a mula no rancho dos tropeiros, galgou com vagar a rampa que levava à casinhola da Chica; e, por maior cautela que pusesse em dar volta ao fundo da casa e aflorar de sobreleve a porta em duas breves e secas pancadas, sempre despertou o faro do guegué no palheiro, que investiu às cegas, ladrando desabaladamente.
Lá dentro houve um rumor de conversa abafada, como que duas pessoas se interrogavam precipitadamente, depois alteou-se a voz de Chica, que indagou medrosa:
– Quem está aí?
Não respondeu, numa súbita desconfiança; desviado na sombra, apurava o ouvido à escuta. O guegué fazia-lhe agora festas entre as pernas, relambendo o cano das botas, a reconhecê-lo. Um pontapé no ventre, e pô-lo depressa a caminho do palheiro, aos ganidos.
De novo a voz de Chica perguntava quem estava lá fora. Ele permaneceu silencioso, a orelha aplicada à fechadura; e já aquietada, ouviu a mulata que dizia:
– Não foi nada, certamente a vaca que vem aí lamber todas as noites o barro da parede assanhou o cachorro; em todo o caso, lá vou ver.
Escutou a cama ringir, e outra fala descansada de homem atalhando:
– Não é preciso, deixa-te estar.
Àquela voz, voz dum macho lá dentro, dum rival feliz, já a cólera o colhia repentina; e uma, duas, três, assentou sucessivas patadas à porta, cuja taramela cedeu à quarta; mas achando atrás anteparo numa escora, resistiu ainda, deixando uma abertura, por onde enfiou como uma cobra o braço, retirando a tranca.
Como um raio entrou na cozinha, e já forçava a porta do quarto, quando ouviu ranger lá dentro a janela que deitava para o oitão, dando talvez passagem ao fugitivo. Num pulo d'onça, achava-se de novo cá fora; deu às carreiras rodeio à casa, a garrucha engatilhada, e lobrigou ainda um vulto que descia apressuradamente a ladeira, enfiando o casaco.
Fez com ambos os canos fogo naquela direção, e voltou espumando ao interior, onde Chica rezava de joelhos, apegada ao oratório, junto ao leito desmanchado, a chorar copiosamente.
Arrancou-lhe num safanão o rosário dos dedos, e o gesto transmudado, indagou:
– Quem era? Quem?!...
Ela abaixara a cabeça, e assim de joelhos, pôs-se a suspirar, lamuriando a intervalo das lágrimas: – Ai! Jesus!... Ai! Jesus!...
– Vamos, diabo! Quem era o homem que estava aqui contigo?
Soluços, apenas soluços, sacudindo-lhe dolorosamente as arcadas do busto farto, e o olhar baixo, de cão corrido, eram a resposta às sucessivas e impacientadas perguntas.
Batia o pé no chão, cerrando os punhos, mordendo os beiços, o olhar chamejante, varrido numa raiva que não tardaria em pouco a explodir nalgum desmando, a repetir em desatino, com rancor:
– Quem era? Quem?!...
Aquela inércia exasperava-o. Fustigou-lhe o rosto com as contas do rosário, a coronha da arma chuchou-lhe o peito, a ver se conseguia obrigá-la a erguer o olhar culpado, rosnando sempre o estribilho feroz:
– Quem era? Quem?
Afinal, numa onda de sangue, atirou-lhe o primeiro pontapé às nádegas, jogou-a de bruços de encontro à parede; e, num assomo para o qual já não havia freio, pisou-a um instante barbaramente, estupidamente, passeando-lhe o corpo com as botas.
Depois, como tivesse ainda em resposta aquele choro frouxo e contínuo, cortado a espaços pelo estrangulado soluçar, um pasmo repentino sopitou-lhe a ira; e, na inexplicável comoção que o ia insensivelmente invadindo e era como que a gota d'água na fervura, ergueu-a com cuidado, assentou-a à borda da cama; e à luz do candeeiro que espalhava o seu clarão amortecido aos quatro cantos do aposento, deformando e ampliando em torno os objetos dum feitio estranho, levantou o queixo à mulata que tremia, pôs-se a festejar-lhe as faces mansamente, suavemente, num arrependimento mudo agora, em que tentava, embalde, estancarlhe o pranto ao rosto esbraseado.
– Não chora!... Não foi nada... Ora veja, que molenga!...
E já sentindo que ia em breve fazer acompanhamento àquela choradeira desatada, reagindo contra a natureza que o traía, interpelou de novo, num esforço:
– Mas quem era, quem? Não faço nada, vamos, diz...
Ante o silêncio que mais uma vez o acolhia, a negar toda a certeza daquele amor passado, da fidelidade e obediência antiga, achou-se de todo desorientado; e, perdida a tramontana, numa impulsiva revolta, derrubou-a de novo arrebatadamente, e desandou a espancá-la, aos rugidos de fera.
A um solavanco da mesa, a candeia entornou-se e apagou, num último e sanguinolento lampejo.
Então, já dementado, dobrou-se sobre aquele corpo que lhe opunha apenas a morna passividade dum silêncio obstinado, e furiosamente, bestialmente, violentou-a com selvageria, a unhadas e mordidelas, que lhe foram, enfim, com igual furor, com igual paixão, retribuídas aos ganidos pela boca convulsa da amante...
XI
A luz batia em chapa no forro de telha-vã, quando abriu os olhos daquele sono de pedra.
Pela altura do sol, já devia passar de meio-dia.
A princípio, não se recordou da hora nem onde estava; mas o aspecto desordenado dos objetos, noutro tempo familiares, que o rodeavam, lembrando sestas fervorosas e noitadas mais felizes, acordou-lhe brusca no espírito a cena da véspera. E foi com mal sofreada ânsia que procurou ao lado o lugar de Chica.
Encontrou-o deserto e frio. Levantou-se às tontas, tateando; e, na semi-obscuridade do aposento, chegou à janela, puxando o tampo, que ainda se conservava cerrado. Voltou-se então com a claridade, e àquela desordem dos trastes, as roupas atabalhoadamente atiradas aos montes pelos cantos, os baús abertos, estripando o seu conteúdo numa profusão de peças revolvidas, uma suspeita súbita cresceu-lhe na mente superexcitada: Fugira a cabocla!
Procurou-a ainda pela casa, batendo os recantos; mas a ausência dalguns objetos preciosos guardados em certos escaninhos que sabia, o xale desaparecido do cabide e a porta às escâncaras, atestavam bem em evidência a partida precipitada de sua moradora.
Não se deteve mais tempo a averiguar, e desceu ao povoado. Fez uma ligeira ablução na água da cacimba, molhando a fonte e os pulsos, a acalmar a efervescência do sangue; e já montado, deixou-se ficar mais dous minutos na venda da Maruca, cortando o jejum com um rebate de meio dedal de cana, após o que cravou esporas na besta, rumo do Quilombo, disposto ao que desse e viesse naquela embrulhada, de que não compreendera ainda patavina.
O álcool agiu depressa naquele organismo, que desde a véspera não ingeria alimento algum; e pela estrada, metendo o animal no trote picado, na marcha esquipada, entrou a bazofiar:
– Vote, cabra! Calango de chifre e macuta furada, se não me está a cheirar que ainda hoje vejo o melaço dalgum desgraçado correr na ponta de minha franqueira!
Insensivelmente, com as esporadas que ia acrescentando ao ventre da besta, abriu num galope furioso, sob o sol que assava, deixando ao lado os pinguelões das ribeiras, para num salto transpor as barranquias, vergastando os ramos que encontrava dobrados sobre o caminho com o cabo do piraí, numa fúria mal recalcada, que não achara ainda onde descarregar.
Já lá no fundo da baixada o mato da Estiva avolumava o seu listrão sombrio de frondes ramalhudas. Com o vento, engrossado pelas chuvas da quinzena, vinha o marulhar cachoante do córrego nas pedreiras deslavadas. Corria à rédea solta.
De repente, passarinhando para o lado, a Pelintra estacou em dois corcovos bruscos; e, não fora a segurança do cavaleiro, viria ao chão, numa rodada desastrosa.
Era um vulto, o Malaquias, que surdira como que por encanto de trás dum oco de pau, na estrada.
O preto, armado duma clavina, cuja boca revirara prudentemente para baixo, avançou cauteloso, um dedo ao beiço, impondo silêncio, pedindo atenção. O outro, meio ressabiado, alisava a coronha da garrucha, e esperou firme sobre os estribos.
– Seu Dito, volta donde veio e suma no mundo – disse o nagoa. – O patrão tem gente à sua espera para o prender, morto ou vivo.
E explicou. O patrão chegara, pela manhã, esbaforido, na fazenda, uma escolta de Zé Velho, Bentinho Baiano e Generoso das Abóboras ao lado. Depois de ter mandado soltá-lo à casa do tronco, propôs-lhe em particular a desobriga da conta e mais uma boa molhadura de vinte mil-réis de quebra, se fosse com os demais, e João Vaqueiro, esperar a ele, Dito, à saída do povoado, e conduzi-lo amarrado ao Quilombo, matando-o mesmo, caso resistisse.
Fingiu aceitar e deram-lhe aquela clavina, vindo então com os outros emboscar-se no córrego da Estiva, numa tocaia que fizeram junto à cruz do Ambrosino. Lá ficaram os quatro à espera; quanto a ele, que tinha Seu Dito em muita amizade e com o qual não queria questão, desconversou com a companhia, dizendo vir apalpar o terreno e dar-lhes aviso quando aparecesse o vulto do moço na estrada. Mas adiantara-se apenas para inteirá-lo do perigo e prestar-lhe o seu auxílio, se preciso fosse, caso pretendesse mesmo afrontar os capangas, o que não aconselhava.
– Bem dizia eu, seu Dito, aquela alma do diabo é que nem cobra, só vive para aprontar maldade! E mais a mais, metido em fuxico de saias! – Então, tomasse cuidado, a jararaca ia mostrar agora toda a peçonha que tinha. Bem dizia!
O outro ouviu de mão no queixo, refletindo. Dissipavam-se as dúvidas que viera entretendo pelo caminho. Era pois aquele velhote perrengue que se lhe metera com a Chica!
Bom achado! Quem havia de tal convencê-lo! E aí estava explicado o silêncio birrento da mulata e a sua fuga pela manhã.
– Ora, ora, mais parecia caçoada, que patusco!
Mas o sangue de todo não se lhe acalmara ainda nas veias. Passada aquela onda de chacota, veio logo uma secura à garganta, começou a sentir saibo de sangue na boca travosa, e, só em pôr o pensamento na imagem da Chica, o seu corpo luxurioso e fresco nos braços daquele velho coroca, uma revolta sanhuda sacudiu-o dos pés à cabeça, eriçando-lhe as falripas do rosto, abafando todo o respeito antigo, e uma necessidade imediata de desforço mostrou-se-lhe clara, na mais fera e imperiosa bruteza do instinto animal afrontado...
Pelo lume dos olhos e o arreganho involuntário do gesto, que o fazia crescer meio palmo na sela, Malaquias percebeu-lhe logo a intenção, e ia arengar no intuito de demovê-lo, quando, fincando esporas, já Benedito afastava-se, cego, numa arrancada veloz, rumo da Estiva, para o seu destino, para a sua perdição...
Mais uma vez, o vulto do negro aprumou-se no meio do campo, soerguendo o busto agigantado, levantando as mãos no ar, como que para detê-lo ainda a tempo, e já animal e cavaleiro desapareciam além, num capoeiral da volta da estrada.
Então Malaquias encolheu os ombros, resignado; e atravessando a arma à bandoleira, enveredou por um trilho à esquerda, caminho do homízio e do sertão.
Benedito penetrou as primeiras árvores da Estiva de sobreaviso, rédeas aos dentes, a garrucha numa das mãos, pronto a varrer qualquer tiraço na lã grossa do pala que desdobrara na outra, olho à direita, olho à esquerda, pesquisando. E ainda bem não deitara o olhar investigador a uma pequena moita suspeita de marmelada, saltou-lhe dali à frente o Zé Velho, empunhando um forcado, sobre a ponta do qual agitava um molambo de baeta, que estadeou às ventas da Pelintra.
O cavaleiro mal teve tempo de sofrear, no refugo, a alimária; e um laço sibilou-lhe à cabeça, atirado certeiramente pela mão de João Vaqueiro, do alto duma árvore, onde se empoleirara.
E os braços enredados pelo arrocho da correia, enquanto forcejava com os cotovelos, Generoso insinuava-se como uma cobra sob o ventre da mula, derrubando-o pela perna. Num fechar d'olhos estava desarmado, tolhido e atirado como um fardo ao lombo da besta, que os da matula entraram sem detença a tocar, rumo do Quilombo.
Entardecia quando o coronel, debruçado a espaços, impaciente, ao peitoril da janela, os viu chegar, enxotada a Pelintra à frente, sob a sua carga humana.
Um riso surdo, duma expressão maligna, indefinível, a repuxar-lhe os cantos da boca numa careta horripilante, e que devera ser o mesmo riso de Pêro Botelho às voltas com as almas do Purgatório, alumiou então o rosto do fazendeiro. Passou o dorso sardento da sinistra pelos beiços, prelibando o gozo da vingança, depois comandou:
– Amarrem o homem no curral, tirem-lhe os estorvos do corpo, deixem apenas pés e mãos manietados.
Mandou vir da armazenagem um garrafão de restilo, que distribuiu às canecas pela capangagem. João Vaqueiro, cumprida a sua obrigação, retirara-se para o seu rancho e, encostado ao poial, ficou de longe espiando.
Zé Velho e Generoso, fechado o corpo com o trago da pinga e embolsada a maquia da peita, tinham metido os trabucos ao ombro, e já lá iam distantes, batendo a poeira leve da estrada com as suas alpercatas de couro.
Então o fazendeiro despiu o paletó e arregaçando as mangas da camisa, saiu ao terreiro, uma comprida folha de quicé debaixo do braço. Deteve-se a amolar o ferro à piçarra do rego, pachorrentamente, voltando a fronte bronzeada e deprimida ora a uma, ora a outra banda, num facies de riso alvar e cínico. Depois, mordendo os beiços, zombeteiro quase, rosronou à companhia:
– Que diacho de estupor é esse! Isto é lá cousa do outro mundo? É esta a primeira vez que trazem à porteira um poldro madraço em vias de capação? Pois as éguas do meu pasto não foram apuradas para roncolho dessa laia! É pô-lo manso, antes que me desande no campo a descendência de alguma potranca de estima. Uai, nunca viram? Pois o bicho parece mais esperto que a gente, fareja depressa a sorte que o espera no moirão, vejam só, está que nem bezerro desmamado!...
Mas a cólera rugia-lhe dentro demasiadamente violenta para continuar naquele enxurro de chufas. Tremia-lhe a voz, a cada palavrão; e, ao aproximar-se, os dedos da destra crispavam-selhe no cabo do quicé como cunhas. Para Benedito, atado ao poste de tortura qual novo São Sebastião, as palavras do fazendeiro ressoavam-lhe à orelha sem significado, como um vago e longínquo zumbido de maribondos...
Desde que se sentira atravessado na Pelintra, uma prostração profunda, seqüência da excitação em que viera até aquele momento, paralisara no cabra a máquina do pensamento; e dali ao pelourinho do curral, tudo lhe parecera como num sonho, em que a sua personalidade semelhava desdobrar-se, e não era ele que ali estava jugulado pelo laço vaqueano, a arroxear-lhe os punhos intumescidos, e sim um outro indivíduo estranho, a quem era indiferente, com o qual não tinha a mínima relação.
A cabeça pendida sobre o peito, olhos esgazeados, olhava sem compreender, à espera de que aquele pesadelo de chumbo, à maneira do que lhe acontecia nas horas de febre – quando dormitava das soalheiras apanhadas na labuta do campo – se dissipasse ao vir da noite, nas primeiras frescuras orvalhadas do crepúsculo...
Que significava aquela lâmina reluzente, cujo fio o patrão experimentava na unha do polegar e a fitá-lo sinistramente? E a cadeia de idéias, de novo partida, se lhe embaralhava na mente, sem coordenação...
Modorrava...
Num gesto rápido, o coronel desabotoava-lhe d'alto a baixo as braguilhas da calça. A
roupa caiu-lhe balofamente aos pés, em papos fofos. E a camisa muito curta, que o estertor desordenado das arcadas do peito soerguia a breves intervalos, mostrou uns flancos robustos, peludos, de Hércules rústico.
A operação foi demorada, cruenta, dolorosa, a julgar pela contração intermitente de seus lábios convulsionados. Mas a boca, os olhos, esses, não exprimiram uma só queixa... Deixou-se amputar em silêncio, sem movimento quase, como uma rês abatida.
Dados os dois talhos longitudinais, o operador espremera os testículos, e repuxando os cordões, aos quais deu em cruz a laçada de uso como se faz aos marruás, separou-os de vez, num corte hábil.
Estava consumada a operação.
Já aquele pastor intrometido não sairia mais pela redondeza a importunar-lhe as potrancas de estima...
João Vaqueiro, encostado ao poial, punhos cerrados, olhava aquela cena. Tratos, assistiraos a muitos, de formas e maneiras várias, nessa e em outras fazendas do interior. Mas como aquele, pedia castigo divino!
Entrou no seu rancho pobre de sapé, sobre cuja esteira de jirau perrengueava a mulher, numa recaída de resguardo de parto; acordou-a de manso, e baixo, quase choroso, avisou:
– É pôr-se logo de pé, que nos vamos daqui embora para nunca mais. A marca de tala deu boa porcentagem este ano; junto aos lavrados que possui, dá de sobra para a nossa desobriga. É pôr-se logo de pé...
Entretanto, o coronel, finda a tarefa, recolhia os despojos sangrentos de sua vítima num caco de telha, que depôs num moirão do cercado, onde já voejavam moscas varejeiras, e foi lavar as unhas sujas no limo do rego. Deu mais uma vez ordem a que atirassem com aquela rês pesteada no quarto escuro do tronco, e fechou-se na casa-grande, sem mais palavra.
Aos últimos raios de sol a ferir obliquamente a cumeeira da casa, naquela interminável tarde sertaneja de verão, uma alegre cavalgada apontou ao longe, na vargem em sombras, e veio estacar junto à cancela do mangueiro, que abriram, penetrando ruidosamente no pátio onde havia pouco se desenrolara aquela execução sumária.
Era um grupo de representantes do povo, coronéis e fazendeiros pela maioria como o senhor do Quilombo, que eleitos pelos círculos vizinhos, por ali iam de passagem, a assumir as suas respectivas funções de deputados e senadores no Congresso estadual.
Iam prazenteiros e satisfeitos, apressados como estavam em chegar ao término da viagem, ali se detendo apenas dous minutos para um aperto de mão ao correligionário político do lugar, uma das mais legítimas influências, e o mais forte esteio do partido no município... Enquanto se serviam do café, contou-lhes por alto o fazendeiro o acontecimento do dia.
– Pois não, coronel!! – disse um da comitiva. – Fez muito bem; que essa gente, traste imprestável e traiçoeiro, só serve mesmo para nos dar prejuízos e cabelos brancos. Ainda a semana passada, morreu-me um dos tais, com uma dívida de um conto e quinhentos mil-réis no costado por pagar. E, se não mostrarmos energia, montam-nos o pêlo de botas e esporas... Gente ordinária até ali...
XII
Na fazenda, agora erma, lento e lento o tempo começara a sua obra de estrago e desconforto.
Um a um, valendo-se de novos contratos com fazendeiros do arredor, os camaradas do sítio se tinham ido, numa passividade fatalista de rebanho, das ferropéias dum jugo para as de outro, quem sabe, mais duro e cruel...
Por último João Vaqueiro, que ali se deixara ainda ficar, lutando embalde com um atavismo de condição que o trazia atreito àquelas paragens, arrancou-se uma clara manhã, tocando adiante da família maltrapilha os refugos de gado que conseguira ressalvar no seu ajuste final de contas.
Também, para que persistir naquele pedaço de terra, tão ingrata e penosa agora de rever pela maldade dos homens? O patrão recolhera-se a Curralinho, onde estava a família, pusera anúncio nos jornais da venda do Quilombo, com pastos, benfeitorias, criação e mais gado miúdo.
Já o inverno vinha próximo, na azul transparência daqueles céus de abril, que ofertava, nas vargens de mimoso e jaraguá, as últimas galas da estação. Emudecia em torno a natureza, sob a frialdade das noites... Nas nascentes, a água dos córregos ia escasseando.
Assim, na chapada, sob um sol de rachar, tangendo à frente dos seus remanescentes da antiga manada, rumo incerto de distantes terras onde iria recompor a vida transtornada, e ao chiar do carretão que conduzia cambotando os destroços de seu lar desfeito, a bela voz do vaqueano já não tinha aquela sonoridade vibrante de outrora no ecoar do aboiado, e mesmo, fazia-se triste e compungida ao acentuar as notas derradeiras da cantiga.
É que ali, naquele mesmo trato da campina, fizera-lhe tantas vezes acompanhamento o grito triufante de nhô Dito, que vira crescer e tornar-se homem sob o seu olhar desvanecido, e que – pobrezinho – lá ficava agora esquecido na fazenda, sob os gravatás e ananases da beira da cerca, onde o tinham a mando enterrado, a sonhar o seu sonho de paz e de ventura noutra vida melhor...
Morrera o infeliz, após lenta agonia de uma semana sem pão e sem água no fundo da casa do tronco, donde urros de endemoninhado saíam na noite, ao acompanhamento lúgubre das aves de má morte no telhado.
E mais dolente e compungido se faria decerto o sertanejo, se soubesse que aquele seu descante agoniado, na tarde que baixava, era a nênia fúnebre que acompanhava, mais além, o enterro de nhá Lica, a filha do fazendeiro, morta em Curralinho de tristeza e paixão. A Madre de Ouro Poço da Roda. Arredores de Bonfim BONFIM é uma das cidades mais antigas de Goiás. Como suas irmãs mais velhas, Meia Ponte e Vila Boa de Goiás, guarda ainda, sob muitos aspectos, o cunho dos núcleos coloniais do século XVIII, com a sua inconfundível arquitetura reinol, estilo barroco, de feição pesada, simplória e, ao mesmo tempo que bonachona, hospitaleira – aspecto esse que se vai aos poucos apagando dos burgos e vilórios progressistas mais próximos da linha férrea.
Ficou-lhe, pois, ainda intacto, o antiquado perfume de antanho, cousas mortas que a mente aviva e a tradição redoura, vago encanto do passado, sabor que não têm ou já perderam os centros mercantilistas, tomados de febre de riqueza e inovações, do litoral.
Como Goiás, a Triste, embala-a o mesmo sono de duzentos anos de Bela Adormecida, com as reminiscências da época da descoberta, as aluviões de aventureiros e desbravadores à cata do rico filão, página heróica do esforço extinto da raça, que à memória apraz reviver.
Escavações profundas, minas ao desamparo, veeiros revolvidos, barrocas solapadas, esboroando-se nas chuvas, velam de melancolia o olhar do viandante que demanda àquele recanto do Planalto. E à medida que se aproxima de seus arredores, mais vivos e constantes são os atestados do delírio avoengo em esmiuçar, estripando-as, as entranhas da terra, para delas dar cibo e páscigo à sede do luxo, ao esplendor bizantino da velha metrópole, já então em via franca de decadência.
Hoje, minas, lavras, catas, tudo jaz ao abandono. Alveja em montes o pedrouço das formações à beira das estradas; uma coma verde de gordura corre a crista dos valos e carreiros, argilosos e tristes, outrora sacudidos pelo estalo do relho dos feitores e o grito angustiado da escravatura, na lavagem do cascalho. Foram-se os antigos bateeiros da descoberta, extinguiu-se a febre da mineração; ficou, enraizada, uma população pacífica e laboriosa, que faz a prosperidade do município na lavoura, na criação do gado, no comércio das letras, em outras profissões liberais.
Da primitiva exaltação, porém, do ouro, restam, como tradição, histórias e lendas, das quais, talvez porque haja no fundo, como na maioria das lendas, um ponto qualquer de contato com a verdade, é a do Poço da Roda das mais populares.
Fica nas proximidades de Bonfim, no ermo de um descampado, ocupando o espaço de duzentos metros mais ou menos de circunferência. Contam moradores e viajantes que, à luz forte do dia, quando a superfície se lhe aquieta, mui transparente e cristalina na calma circundante, uma enorme pedra responde do fundo das águas aos fogos do meio-dia, irradiando em torno um brilho de mil chispas e centelhas, cujo estranho fulgor inebria e cega de deslumbramento e cobiça os olhos mortais ali empenhados, às bordas da frágil igarité, em devassar-lhe o líquido arcano. É a Madre de Ouro, cujo encantamento curiosos e mergulhadores tentam, em vão, surpreender o segredo, e de longos, mui longos anos habitadora daquelas águas remansadas...
Embalde é a teima porém, que o mistério do sítio, a profundidade do poço, a refrangência, o desvio de seus raios e momentâneo desaparecimento da visão assim lhe perturbem o imoto cristal, zelam e guardam para sempre inviolada em seu retiro, a pedra maravilhosa.
E se um, mais afoito e sôfrego, volve de novo à tentação da miragem e mergulha mais uma vez no lençol silencioso e frio, à busca do encantado tesouro – obscuro Alberico a quem faltou o anel dos Niebelungen – logo o pune de morte a Madre gloriosa, voltando à tona o seu corpo tempos depois, pasto de lambaris, papa-iscas e mais arraia miúda do lago.
Serenada a agitação das ondas, alisado o espelho translúcido na queda da aragem, eis de novo, fulgurando, a Madre de Ouro aviva, como um sol submerso, a aurifulgência de seus raios mágicos ante a adoração das florinhas anônimas, debruçadas à beira da lagoa...
*
* * Tal é a lenda nesse trecho do território. Se esplende ali a Madre de Ouro sepultada no fundo do Poço da Roda, continua entanto a sua peregrinação através de outras paragens do rincão goiano, numa viagem aérea, cujo termo é a explosão do meteoro na noite silenciosa.
E tal como a ouvimos, no interior, o seu quebranto consta do seguinte: Quem escuta ou vê, no ermo da noite, a passagem da Mãe de Ouro cortando o céu estrelado com o seu listrão ardente, toma na cozinha da choça um tição em brasa, corre ao limiar e faz no espaço uma cruz de fogo.
Logo, cede a Aparição ao sortilégio do homem, detém a sua carreira vertiginosa, e arrebenta em estilhas, lascas, pedrouços, calhaus e blocos, tudo de ouro maciço e do mais puro quilate. E depois, toca a catar e a meter no surrão aquela fortuna inesperada...
História que tem a sua origem nos bólidos, fenômeno que o olhar aparvalhado do matuto observa, muitas vezes, pelas noites claras daquela terra de várzeas e chapadões e de que gera a imaginativa a sua lenda, filha do cósmico deslumbramento e da superstição primitiva. Pelo Caiapó Velho – NOITE escura e má, patrãozinho. – O macho frontaberta de orelha murcha e pêlo arrepiado como o pinto pelado da história, cabeceava macambúzio, lembrando meu velho tio Hilário ao fogo da trempe de pedra, no nosso rancho de Ipanema, a ruminar lembranças e saudades da vida antiga de arrieiro; e assunte que o bicho crioulo não encapotava assim, com dois trancos, e era mesmo malcriado para varar chapadões de sol a sol, comendo dúzias de léguas, tenteando, tenteando, sem qu'isso nos assustasse, nem a mim nem a ele, frontaberta.
Mas atoleiro era uma lazeira! Chafurdara-me no lameiro até o cabeção da cutuca, e o ponche-pala ia pingando pelo atalho em fora bagas de lama que lhe atiravam as patas do crioulo, a bater na trilha ensopada e falha de cascalho, fazendo lembrar uma viagem que fiz ainda na meninice com o tio Hilário pela lagoa dos Xarais, nos fundões de Mato Grosso; – quando foi isto, Marinho? Em meados de 1868 ou 69... do ano da graça de Nosso Senhor Jesus Cristo...
O sertanejo velho levou a mão ao chapéu, couro de catingueiro curtido, descobriu a grenha hirsuta, desengonçando-se no pangaré piolhento, sorumbático e caduco.
Imitei-o devotamente. O tempo era bom e a viagem prosseguia como tinha começado –
sob bons auspícios – e o camarada contentado, tinia as rosetas, chupava grosso o cigarrão desacoitado da orelha, acariciando com o olhar o interminável verde-pálido ondulado do jaraguá em florescência, e, alegre como a amenidade do lugar, a brandura do sol e limpeza do tempo, repetiu:
– Noite escura e má, patrãozinho. Trovoada e relâmpago eram que nem roqueira e foguete de São João. Embarafustara-me, ao sair da mata grande, por um bamburral danado adentro, tão fechado de liana e cipó, que, se não fosse sábado e dia de um santo da minha devoção, acreditaria logo ser mitra do curupira, a fazer tretas e malícias para me perder. Mas louvado seja Deus – e o chapéu de catingueiro descambou novamente para a nuca do caburé –
patuá com benzedura e reza mansa contra tentação nunca abandonou peito velho do caboclo, lá isso não.
E naquele vira-tem-mão do taquaral esconjurado, a cabeça zanzou logo à toa, e ele perdera o roteiro. Tocou então sem rumo certo, na fiúza do faro de podengo do macho frontaberta; este não duvidou torcer mão direita, quebrar por um trilho de bicho do mato, e vir esbarrar num bebedouro de animais, atolado no pantanal – um mundão de lameiro, de sapo e de pernilongo.
Tenteando, tenteando, ganhara um serrote e costeou pelo espigão, topando logo aquela restinga alagadiça, onde o apanhou o pé-d'água, já à boquinha da noite.
– Como dizia, o macho frontaberta chapinhava de orelha murcha e pêlo arrepiado, como o pinto pelado da história. Corpo mole, bucho fundo, isqueiro molhado, ponche-pala encharcado e matalotagem virada mingau no sapiquá da garupeira, decidi apear no sombreiro de um jatobá velho casmurro e resmungão, debaixo da pontinha de vento frio que vinha dos pântanos, ateimado a passar ali mesmo o resto da noitada como Nosso Senhor fosse servido. Nisto, carijó preguiçoso cantou doutra banda, num descampado que deveria existir por detrás da restinga por onde trotava. O vento mudou de lá pra cá e o macho crioulo, farejando esterqueira, amiudou o passo, chapinhando ainda uns restos de poços, de orelhas arrebitadas.
– Ó de casa – gritei, colhendo o cabresto do animal, que veio esbarrar, num trotão bruto, bufando forte, na porta do cochicholo embodocado – que por sinal me pareceu palácio maior do que o do excomungado Balalão e mesmo o do santo imperador Carlos Magno – donde saía um fio adelgaçado de luz.
– Ó de casa – repeti.
– Ó de fora – choramingou uma vozinha aflautada, que me fez correr um arrepio de gosto pelo corpo.
Ai, patrãozinho, eu era moço, vinte anos, caburé e falto de festas de viola e pagodeiras desde Santo Antônio...
– Pousada, sinhá-dona. A porta de toros de buriti amarrados por corda de embira abriu-se e a hospedeira – que à luz da candeia espetada lá no fundo, na parede picumãzenta, me pareceu uma robusta rapariga de faces gordas, bochechas rosadas e boa corpulência – alongando o pescoço para o breu da noite, murmurou com uma espécie de tremor na fala:
– Vancê entra, sinhô moço, se for do seu agrado, a casa está às ordens.
Apeei. A chuva deixava de pingar pelo beiral palha de arroz velha da casa. Desacolchetei o ponche-pala, desencilhei o frontaberta, levantando os baixeiros aos poucos para que o macho não apanhasse resfriado, puxei-o depois para dentro da tranqueira no oitão da casa – que, assim, assim, a falar verdade não oferecia segurança – e entrei.
Não sei, entrei distraído, é certo, mas dito por não dito, me pareceu que a luz da candeia minguara, minguara, a modo de carestia de azeite...
A hospedeira – era sozinha – na sombra da luz, perguntou se tinha fome.
A falar, a falar ao certo, que sim – que desde as barras do dia andava em jejum, debaixo de chuva, sem mesmo ter enxugado os bofes com dois dedos de cachaça no fundo do cornimboque, mas que não se avexasse a sinhá dona, que ele com pouco se contentava – um cuité de farinha seca com um taco de rapadura na goela e qualquer pedaço de couro velho para descansar o corpo; que, quando a madrugada viesse amiudando, já estaria de animal aparelhado, pronto pra cortar por esse mundão afora.
Que não, que não, ia atalhando ela, que se abancasse à beira da trempe, onde podia se remediar com uma tora de toucinho na feijoada.
A fome, patrãozinho, era braba. O estômago farejou toucinho com ranço e feijão bispado.
Mas a gente neste mundo de Cristo, de lá pra cá e de cá pra lá, numa corre-coxia do diabo, pelo sertão sem morador, a mais das vezes nem isso mesmo topa – que assim, assim, a vida do tropeiro é remédio bom para acabar com quindins, luxos e poetagens de não comer caruncho no feijão, mofo na farinha e coró e saltão no toucinho.
Mas, não sabia, apesar de tudo, o estômago adivinhando, enjeitava zangado...
Naquela morna lassidão do descambar da tarde, pela estrada poeirenta em cujas margens florescia o jaraguá altanado, pareceu-me, olhando atentamente para o companheiro, que um ligeiro estremecimento fazia-lhe eriçar as falripas, como cerdas de canela-ruiva.
– Ceei, patrãozinho, e gargarejei a boca com a última guampada que me restava de pinga;
e esquentado, com a cabeça zonza pela comida e aguardente no bucho que não via ração desde manhãzinha, deitei e adormeci – quase sem assuntar – no jirau da mulher, mesmo em seus braços, que julgava roliços e macios, mas que eram lisos e escorregadios como bagre fora d'água, beijando suas bochechas carnudas e empapuçadas. Fora, entretanto, pelo breu da noite adentro, o ram-ram danado dos sapos e pelo beiral palha de arroz velha, ruflando caixa, a chuva amiudava – nunca me hei de esquecer.
Quando levantei, o carijó, preguiçoso, cantava empoleirado no oitão do chiqueiro. Saí fora; as barras vinham quebrando – era madrugada. O macho, vi logo, tinha pulado a tranqueira.
Ganhei o rastro assuntando o chão com o fogo do isqueiro já enxuto no calor do corpo, e assim, assim, meio ajudado pelo nascer do dia. Encabrestei o madrasto no fundo de um grotão; dei-lhe a mão de milho do embornal da garupa. E no moirão da porta, já dia feito, embarbicachado e arreado o macho, pronto pra cortar, a fala sumiça da dona chamou-me de dentro:
– O café!
Entrei, mas voltei atrás sarapantado. Pela porta aberta, as primeiras estriadas do sol davam-lhe de testa nas bochechas rosadas da véspera e nas mãos que seguravam a tigelinha de barro amarelo, onde fumegava uma infusão escura e gosmenta:
– O café!
Outra longa e irritada estremeção correu pelo corpo do caburé, sacudindo-o dos pés encravados nas chilenas ressoantes à grenha hirsuta, assanhada, como as cerdas de porco-espim acuado, e salpicado aqui e acolá de fios brancos – violentamente.
O cabra, batendo o isqueiro e chupando grosso, emudecera.
– Mas, Martinho... – Patrãozinho – e o sertanejo cuspiu forte para ambas as bandas da estrada – das bochechas e beiços arregaçados num vermelhão de apodrecido da rapariga, corria visguenta e fétida por entre uns tocos de dentes amarelos – patrãozinho – uma baba de empestado... Os dedos da mão, não os havia...
E como inquirisse admirado, regougou noutro acesso de asco:
– Macutena, patrãozinho, macutena...
O pangaré piolhento corria agora mais apressado emparelhando-se ao meu fouveiro, num pacatá furta-passo, pela estrada esmaecida e pulverulenta em fora, na cadência monótona, ritmática de viageiro, como se quisesse arrancar do amo o peso esmagador daquela recordação do passado – que fazia o caburé contorcer-se em convulsões furiosas de vômitos na cutuca –
quando, por uma noite tenebrosa d'invernada, viajava escoteiro pelas estradas ermas e alagadiças do Caiapó Velho.
A estrela boieira ensaiava já o seu brilho lacrimejante engarupada sobre os cerros, e longe, na ribanceira do descampado, a escaiolada e vasta pousada abria-nos os braços hospitaleiros no meio de uma fartura de currais coalhados de gado... Dias de chuva CAI a chuva lá fora. Plac! plac! ouço-a cantando em goteiras e cornijas, no cimento molhado da rua e nas vidraças embaçadas do meu quarto. Não sei por que, vendo o borraceiro descer, o espírito embebe-se-me em doce e longínqua rêverie.
Vejo, através duma tela úmida as paisagens distantes de meu torrão natal, e afaz-se-me a que ando viajando, como antigamente, por esses sertões, sentindo sob o pala de viagem a água cirandar forte, cabriolando e verdascando sobre os serros longes, as saraivadas, ou peneirando grosso, em meio o rendilhado sombrio da floresta por onde vou.
Assim, anos lá vão, cavalgava eu por essas estradas ermas da minha terra remota, um macho perrengue de aluguer, ou o lépido alazão Dourado, em férias, rumo do sítio. Dia em meio, casais de araras e bandos de papagaios despregavam dum jenipapeiro qualquer de tapera o seu vôo balofo, e passavam alto, em gritaria álacre de contentados; cracarás corriam escrutadores e solertes pelos campos, em surtos rasteiros de carnívoros. O verde das campinas, das orlas de mato longe, quando ganhava a chapada, tinha deslumbramentos intensos de seiva robusta e viva.
E – plac! plac! – arremedando como agora a chuva das goteiras, segue o alazão caminho afora, pelo alagado trilho de argila vermelha, deixando atrás, vincado, o molde de seus cascos ferrados, chapinhando pelo rego das enxurradas, crinas pendidas, cabeça baixa, a resfolegar...
E o aguaceiro molinhando, desce manso e manso, como se uma grande e fantástica mó andasse remoendo cristais pelo céu de cinábrio, e sobre a extensão imensamente esmeralda daqueles desertos rincões. E chupitando a fumaça de minha cigarrilha de palha, sob o pala quente de viageiro, sigo eu, cabeça baixa, desengonçado na sela, num grande descaso da borrasca, ruminando planos futuros.
Às vezes, cantavam galos perto, cacarejavam galinhas-d'angola – cocás, – cães latiam dos currais e porteiras, quando não vinham, esganiçadores e embolados, esfalfar-se até os jarretes do Dourado, em matinadas hostis. Olhava: era um sítio, um morador, por onde passava ao largo. E
calculando, pensava: Aí ficam já os Peludos, duas léguas ainda a andar. E agitando as rédeas em abandono no arção, prosseguia, acelerando a andadura do animal.
Dentro em pouco, ficava para trás, escondida nas sombras, no nevoeiro, na folhagem, a silhueta pardacenta dos telhados. A chuvarada continuava aberta, naquele seu grande choro de desconforto, ensopando os campos. Encachoeiravam-se longe, ao fundo, nos plainos baixos, em cujas bordas carreiras viçosas de buritis contornavam capões, as águas marulhentas de regatos perenes. Gaviões, entanguidos, quedavam-se sonolentos e marasmáticos a olhar do cimo desnudo dos galhos secos das encruzilhadas. Nas várzeas umentes de jaraguá, um e outro mestiço zebu passeia pachorrento e indiferente, ao borrifo.
Em torno, silêncio absoluto; muricizeiros abriam-se em flor, nessas primeiras chuvas de outubro, e, com eles, paineiras esgalgadas e pequizeiros copudos dos cerrados.
Numa baixada, transposto o córrego, o caminho internava-se novamente na mata bruta.
Aí, a rama superior, densamente fechada, afogava, nulificando-a, o ruído da chuva; apenas um ou outro grosso pingo, escapulindo-se por uma ligeira aberta rasgada no folhedo pelo vento, tombava – poc! poc! – na camada espessa de folhas podres que atapetavam, abafando os passos, o carreiro calmoso. E, indiferente e esquecido do mundo, seguia eu cabisbaixo, numa grande paz e conforto da alma, sob o pala de viagem, ruminando saudades...
Nas beiradas de mato dos barrancos – onde o carreiro se cavava fundo pelo trânsito continuado – marmeladas-de-cachorro ofereciam os seus negros e brilhantes frutos maduros;
ingazeiros encapotavam-se no alto; saputás polposos, à beira dos córregos, pendiam, num tom berrante de cores escarlatemente retintas, de frutas sazonadas; e perfumes intensos de baunilha e flores silvestres evolavam-se da mata densa, ao misterioso e secreto entreabrir das corolas medrosas... Um grande ramo pendia às vezes, tomando o passo, emperolado de orvalhada; e o alazão, acaçapando-se, metia a cabeça, atravessando-o a escorrer. E a floresta prosseguia, interminável e profunda, no silêncio eterno da sua solidão.
E, no silêncio eterno da minha solidão, prosseguia, sob o pala, ruminando saudades... Ah! viagens e passeios antigos, sob a chuva ou a canícula, nos pagos da minha terra!
Quão longe e distantes sois!


Domínio Público Gov.BR


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