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A Carta de Mestre João Faras

Senhor: O bacharel mestre João, físico e cirurgião de Vossa Alteza, beijo vossas reais mãos. Senhor: porque, de tudo o cá passado, largamente escreveram a Vossa Alteza, assim Aires Correia como todos os outros, somente escreverei sobre dois pontos. Senhor: ontem, segunda-feira, que foram 27 de abril, descemos em terra, eu e o piloto do capitão-mor e o piloto de Sancho de Tovar; tomamos a altura do sol ao meio-dia e achamos 56 graus, e a sombra era setentrional, pelo que, segundo as regras do astrolábio, julgamos estar afastados da equinocial por 17°, e ter por conseguinte a altura do pólo antártico em 17°, segundo é manifesto na esfera. E isto é quanto a um dos pontos, pelo que saberá Vossa Alteza que todos os pilotos vão tanto adiante de mim, que Pero Escolar vai adiante 150 léguas, e outros mais, e outros menos, mas quem diz a verdade não se pode certificar até que em boa hora cheguemos ao cabo de Boa Esperança e ali saberemos quem vai mais certo, se eles com a carta, ou eu com a carta e o astrolábio. Quanto, Senhor, ao sítio desta terra, mande Vossa Alteza trazer um mapa-múndi que tem Pero Vaz Bisagudo e por aí poderá ver Vossa Alteza o sítio desta terra; mas aquele mapamúndi não certifica se esta terra é habitada ou não; é mapa dos antigos e ali achará Vossa Alteza escrita também a Mina. Ontem quase entendemos por acenos que esta era ilha, e que eram quatro, e que doutra ilha vêm aqui almadias a pelejar com eles e os levam cativos.
Quanto, Senhor, ao outro ponto, saberá Vossa Alteza que, acerca das estrelas, eu tenho trabalhado o que tenho podido, mas não muito, por causa de uma perna que tenho muito mal, que de uma coçadura se me fez uma chaga maior que a palma da mão; e também por causa de este navio ser muito pequeno e estar muito carregado, que não há lugar para coisa nenhuma. Somente mando a Vossa Alteza como estão situadas as estrelas do (sul), mas em que grau está cada uma não o pude saber, antes me parece ser impossível, no mar, tomar-se altura de nenhuma estrela, porque eu trabalhei muito nisso e, por pouco que o navio balance, se erram quatro ou cinco graus, de modo que se não pode fazer, senão em terra. E quase outro tanto digo das tábuas da Índia, que se não podem tomar com elas senão com muitíssimo trabalho, que, se Vossa Alteza soubesse como desconcertavam todos nas polegadas, 2 riria disto mais que do astrolábio; porque desde Lisboa até às Canárias desconcertavam uns dos outros em muitas polegadas, que uns diziam, mais que outros, três e quatro polegadas, e outro tanto desde as Canárias até às ilhas de Cabo Verde, e isto, tendo todos cuidados que o tomar fosse a uma mesma hora; de modo que mais julgavam quantas polegadas eram, pela quantidade do caminho que lhes parecia terem andado, que não o caminho pelas polegadas. Tornando, Senhor, ao propósito, estas Guardas nunca se escondem, antes sempre andam ao derredor sobre o horizonte, e ainda estou em dúvida que não sei qual de aquelas duas mais baixas seja o pólo antártico; e estas estrelas, principalmente as da Cruz, são grandes quase como as do Carro; e a estrela do pólo antártico, ou Sul, é pequena como a da Norte e muito clara, e a estrela que está em cima de toda a Cruz é muito pequena.
Não quero alargar mais, para não importunar a Vossa Alteza, salvo que fico rogando a Nosso Senhor Jesus Cristo que a vida e estado de Vossa Alteza acrescente como Vossa Alteza deseja. Feita em Vera Cruz no primeiro de maio de 1500. Para o mar, melhor é dirigir-se pela altura do sol, que não por nenhuma estrela; e melhor com astrolábio, que não com quadrante nem com outro nenhum instrumento. Do criado de Vossa Alteza e vosso leal servidor.
Johannes artium et medicine bachalarius 3 Nota Biográfica A vida de Mestre João vem sendo pesquisada desde quando Francisco Adolfo Varnhagen trouxe a público, pela primeira vez, na década de 40 do século XIX, este depoimento da chegada da frota cabralina a Porto Seguro, em 22 de abril de 1500.
Mestre João Faras, bacharel em artes e medicina, era médico e cirurgião do rei D.
Manuel. É um personagem típico do humanismo ibérico envolvido com os descobrimentos e com o vasto universo de conhecimento da renascença européia.
Nota Explicativa Mestre João Faras foi quem realizou as primeiras observações astronômicas no território brasileiro, conforme se pode notar pelos seus comentários nesta correspondência em que se identificam as estrelas da constelação do Cruzeiro do Sul, configurada na Bandeira do Brasil. A carta de Mestre João, documento científico e informativo, é o único texto escrito na semana em que a frota ficou ancorada na atual Baía Cabrália que contém um esboço descritivo das estrela do céu brasileiro. Os comentários a respeito do uso dos diversos instrumentos astronômicos da arte de navegar demonstram como os portugueses detinham o que de mais avançado se sabia no tempo a respeito da ciência náutica.


O texto da carta e a nota explicativa basearam-se na edição publicada no livro de Paulo Roberto Pereira, Os três únicos testemunhos do descobrimento do Brasil - Rio de Janeiro: Lacerda Editores, 1999. (MCG)


Domínio Público Gov.BR


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